● R. LEONTINO FILHO | AVENTURAS DA POESIA NO TEMPO: O INTEIRO
CONTINENTE REVELADO
A poesia lavrada pela palavra alumiada do tempo traça
a formosura do sonho nos vitrais reversos da beleza. Todo sonhar é começo de viagem
– travessia do gozo nos confins da linguagem – insônia das promessas por cumprir.
A poesia assuntada pelo
canto provisório do devaneio subverte o paladar da transcendência nas marés do desejo.
Todo querer é ranhura de cânticos – passagem de afeto nas volutas da língua – correnteza
das brevidades por soletrar.
A poesia trancafiada pela
ressaca sedutora do disfarce escancara o improviso da oferenda nas reentrâncias
da provisoriedade. Todo equilíbrio é recorte de fotografias – costura de perdas
nos inchaços do verbo – rugas da posteridade por triturar.
A poesia encompridada
pela miragem quixotesca da barganha vislumbra o movimento da graça nos endiabrados
golpes da sorte. Toda treva é largura de dor – lida de excitações na silhueta da
sujeição – ardis do pensamento por deslizar.
A poesia desarmada pela
certeza enviesada da dúvida azucrina a durabilidade infalível da fé na fervura incandescente
do medo. Toda fisionomia é nódoa de emoções – álbum de açoites no catálogo da estranheza
– confidências do ser por libertar.
Poesia é continente. Universo
caleidoscópico magnetizado e magnetizante que faz aflorar sonhos e desembaraçar
realidades. Poesia é mundo. Vasto hemisfério inteiro em suas fragmentações, heterogeneidades
e multiplicidades: sons, cores e cerimônias pictóricas balouçando na névoa da razão.
Poesia é continente, sim.
Submersas verdades desempenhadas pela coragem de cumprir, em espraiado solo, prodigiosas
identidades. Poesia é sonho. Genuína mutação à cata de assombros no frio lençol
do real: estilhaços de eras na elíptica natureza dos rumores. A poesia, para o mínimo
dizer, é a cósmica consciência do continente.
Vez a vez, com intenso
capricho, os dizeres poéticos se entrelaçam, numa curva ou noutra. Feito assim um
Novalis: Estamos próximos do despertar, quando
sonhamos que sonhamos; ou bem colado a um C. Ronald: O sonho é o acúmulo do que temos; / o sonho é antecedente do resultado.
/ A estrela não se tranca em si mesma para se mostrar. / Dou um salto e… pronto!
Com largueza de voo, lá adiante, as palavras transeuntes do sonhar atiçam a memória
de Floriano Martins: A poesia é uma caravana
cuja beleza é terrível e a agonia é uma joia calcinada. Tão poucas coisas escondem-se
da aventura poética: uma brisa, talvez; uma lua, quem sabe; um sol, porventura,
pudera; um continente, jamais: poesia, tirante as fronteiras, é o todo do tudo –
mundo sem donos, alternâncias das rotas. Surge assim, um livro maximamente fundamental,
esse, pensado, sonhado, vivido e ofertado por Floriano Martins, Um Novo Continente – Poesia e Surrealismo na
América.
A obra de Floriano Martins
é um sol poético a alumbrar mares de desejos e rios de sonhos. Uma curvatura da
lua cravejada por filamentos de liberdade a cintilar na ossatura inebriante da criação.
Um livro mutuamente interpenetrado por múltiplos lances de beleza: o tempo refinado
da poesia, eis a travessia do ensaísta-poeta-artista determinado a entender as metamorfoseadas
larguezas da poesia e do surrealismo em nosso continente.
Um Novo Continente traça e retraça o percurso clandestino
da América tatuada pela força da mestiçagem – essa espécie de colagem de culturas
a gerar perplexidade no fremente coração do tempo; a mestiçagem, irmã hipnotizante
do maravilhoso traçado da poesia, povoa os horizontes cognitivos do humano como
espécie de tecido de interações. Cada parte desse carnudo continente forma uma frondosa
árvore com vastos galhos experimentalistas e subvertedores. Mestiçagem, no espaço
da América, em caudalosas latitudes, coabita com fraturas, transgressões e estranhezas
e, desse modo, extravasa os entrechos, os enredos e os modelos que entorpecem a
viva transparência do real por meio da onírica clarividência das ações. Em resumidas
palavras, a mestiçagem continental da América é o impulso vitalista que materializa
o espaço de um povo.
Floriano Martins, em Um Novo Continente, move-se pela palavra
suprema, lâmina ungida unanimemente pelo sentido das coisas e dos seres, entendimento
que suscita novos sopros para um renovado tempo poético. A feitura tríplice da obra
propicia ao leitor-viajante farto material de navegação: ensaios, enquetes/depoimentos
e entrevistas constituem um todo desse arquipélago
desafiador que é o continente prismático, caleidoscópico da América em sua total
grandeza, tantas vezes mero rosto despercebidamente figurado. Certo, pois, está
o autor ao asseverar: A América ainda hoje
é um precipício cujo fim se desconhece. Sem titubeios, que tal embarcar, com
mapa na mão e ciente das ondulações do tempo e do espaço, nesse livro de viagens
que Floriano Martins tão intenso e inventivamente construiu com poesia e arte, prazer
e saber? Ao livro, então.
Cada parte de Um Novo Continente é um regalo para o espírito
livre de todas as amarras. O texto é uma concentração aguda e enérgica de conhecimento
e devir poético. A palavra crivada de beleza perfila uma a uma as cartografias do
gozo e os alvores do onírico: a semeadura das páginas desse atávico continente condensa
o pleno sentido da poesia como bem comum e da liberdade como ambição irrefreável
do homem. No primeiro portal do livro tem-se a esclarecedora e reluzente “Celebração
da memória: Notas de acesso” – um raro, radiante e indispensável guia para se chegar
fortalecido às terras da poesia, da mestiçagem, da invenção delirante do surrealismo
e do tempo espaçado do amor. Essas notas, densa, minuciosa e profunda carta de navegação
cuidadosamente tecida, desenhada e elaborada por Floriano Martins, são uma espécie
de senha que abre todos os portais do Continente.
A porta primeira, Diário
de bordo, destrincha confusões, desfaz mistérios e ata as pontas das diferenças:
um sem o outro é nada, um país é sempre a extensão de outra margem, terceira, quarta,
quinta… paragens de universos assemelhados em suas alternadas alteridades. Uma voz
delirante e vertiginosa move o acaso das estações e fecunda outras vozes de timbres
diferentes: um cardume de sonhos é mais que uma reles realidade. Por isso mesmo,
pelos desvãos do surrealismo, na amurada do silêncio, o poeta e ensaísta Floriano
Martins prepara esse diário que se alberga na exata expressão da matéria explícita
da memória: um continente é sempre uma galáxia de errâncias, candeeiro das contendas.
Na confluência de vozes
e nos encadeamentos de expressões arrojadas da necessária poesia, Floriano Martins,
numa enfática visada crítica, munido por atraentes procedimentos de montagem artística
e tocado pela insubmissa palavra que revela os aspectos, os dialetos, as escritas
e o imaginário de todo um continente, ensaia, no esplendor do texto, a natureza
surrealista do universo americano, e o faz com tal refinamento que cada trecho-capítulo
dessa magnífica obra é uma avalanche de descobertas: uma cosmogonia poética do espanto
e da clarividência metafórica desentranhada da íntima beleza continental. As primeiras
visões, as visões do exílio e as visões da névoa se alargam e flutuam nas mais distintas
e precisas situações da América Latina & Caribe, dos Estados Unidos e do Brasil,
uma incomensurável tríade de estudos e rumores críticos, de afortunadas buscas e
oceânicas pesquisas.
O perdurável surrealismo,
típica névoa sem tempo prefixado, segue firme, abolindo falsas ilusões e ofertando
outras formas de ver o mundo, por isso mesmo, apresenta-se como uma arte tão controversa
e atemporal. Uma longa citação, apenas uma, desentranhada das páginas continentais
de Floriano Martins bem norteia o que aqui se assevera: A arte não é produto de um continuísmo e sim de uma ruptura. Essa ruptura
está essencialmente ligada aos fragmentos da multiplicidade existencial apontada
por ela mesma, não podendo descartar jamais o acidente, o imprevisível, o indeterminado,
o lance de dados, o acaso objetivo, o súbito desencanto, o amor traído e demais
picardias da essência humana. Não cabe discussão quanto à impossibilidade de haver
progresso na criação artística. Vivemos em uma espécie de vaivém frenético, onde
a cada momento corremos o risco de nos redescobrir como se jamais tivéssemos existido.
Diante de tal prisma, o espírito do Surrealismo segue em frente, alheio às contaminações
de triunfo e fracasso que amiúde determinam nosso tempo. Agora, depois desse
clarão, um salto, curto pulo, para o comentário seguinte.
A poesia surrealista se
desdobra no tempo em Um Novo Continente.
Desdobrado movimento que desconhece distâncias, desfigura preconceitos, devasta
mediocridades, afasta hipocrisias, decepa rótulos, inaugura linhagens e lança suas
bases, especialmente sua imprecisa estranheza criativa, seu deslumbramento aparelhado
por choques de novas razões – costura fortuita de alentadas reflexões – o surrealismo
funda uma nova era e revela um jeito, também, novo, de dizer as coisas entressonhadas
e rigorosamente importantes. Floriano Martins, habilmente poético e dotado de uma
versatilidade ensaística, escreve com lúcida paciência e penetrante acuidade reflexiva
a “Cartografia da inquietude” (o título é um achado, um tesouro e o que ele descortina
é mais uma alentada viagem quebrantada de maravilhas): tantos labirintos incessantes
povoados pelo conflito entre dois tempos, pelo convívio entre poetas surrealistas,
abordando as restrições ao surrealismo e a sua consequente atualidade.
De pérola em pérola, novo
achado: “Caravana de relâmpagos” (a formosura do nome remete igualmente para uma
ilha de magnetizante beleza): de Lautréamont por Juan José Ceselli, Enrique Molina
por Armando Romero, Juan Antonio Vasco por Rodolfo Alonso, Philip Lamantia por Neeli
Cherkovski, Roberto Piva por Floriano Martins, entre outros estudos. Logo, em seguida,
“A vida imaginária do surrealismo” e as brilhantes entrevistas – conversações substanciosas
e substanciais sobre o fazer artístico em todo o continente. Por essa avenida de
diálogos caminham pessoas e países tais como Enrique Gómez-Correa (Chile), Carlos
M. Luis (Cuba), Manuel Mora Serrano (República Dominicana), Thomas Rain Crowe (Estados
Unidos), Beatriz Hausner (Canadá), Ernest Pepin (Martinica) e Zuca Sardan (Brasil),
entre outros. Imprescindíveis falas de ousadas visões. Cabe, aqui, um rápido registro.
Floriano Martins, de há muito, estabeleceu um estreito vínculo com poetas, escritores
e artistas latino-americanos; em mais de mil páginas publicadas estão registrados
os elos fraternos da cultura – espécie de retrato falado de todo um continente ainda,
infelizmente, pouco conhecido. Pode-se ler Um
Novo Continente – Poesia e Surrealismo na América (2016) bem acompanhado pela
Trilogia dos Afetos, composta por Escritura
Conquistada – Diálogos com poetas latino-americanos
(Brasil, 1998) e os dois volumes que compõem Escritura Conquistada – Conversaciones
con poetas de Latinoamérica (Venezuela, 2009).
Já próximos do fim – começo
de tudo – tem-se o terceiro capítulo: “Vanguarda clandestina”. Todo um continente
descoberto, revelado a tempo de tudo saborear: um mundo constituído por singulares
processos de identidades tão diferenciadas, todavia, irmanado por idêntico sopro
de liberdade. Num átimo, a cultura, mutuamente nômade, apaga divisas, desentorta
escudos, contorna estradas, reacende esperanças e pulveriza bandeiras. Mira-se no
outro para melhor compreender a si mesmo: um continente é a extensão palpável de
ajuntadas vontades, do contrário, pouco proveito tira-se dos encontros. O livro
de Floriano Martins, na magnética vertigem da poesia, celebra a memória do tempo
em horizontes de abundante plasticidade, é grandioso por todas as pistas, últimas
e primeiras celebrações da memória. Um Novo
Continente, sem favor algum, é uma obra ímpar, singular entre as singulares,
fundamental entre as fundamentais, indispensável entre as indispensáveis, única
entre as únicas, primeira entre as primeiras; um livro composto por muitos outros
livros, um cântico poético entre tantos cânticos, uma oferenda do tempo no sem limite
do tempo.
Um breve, brevíssimo,
derradeiro registro, para não perder a viagem: o monumental ensaio de Floriano Martins
pode figurar, dada a luminosidade da escrita e a versatilidade poética, com tamanha
importância e bem juntinho, em boa hora, a três magníficas preciosidades da escrita
ensaísta nacional. Cada uma, a seu modo, trata com especial carinho a palavra, o
verbo, o ser, o sonho, a poesia e as coisas do continente americano, são elas: Aproximações estéticas do onírico (1967)
de Fausto Cunha, A máscara e o enigma
– A modernidade da representação à transgressão
(1986) de Bella Jozef, e O continente submerso
– Perfis e depoimentos de grandes escritores
de Nuestra América (1988) de Leo Gilson Ribeiro. Por fim, nessas coisas de poesia
transportadas pelas representações do outro na vertente surrealista, melhor ser
aprendiz, sempre que puder e desejar: do começo ao fim, tal como, acertada e provocantemente,
registrou, com extrema perícia e honestidade Eduardo Peñuela Cañizal, em Surrealismo: rupturas expressivas (1986):
Afinal, não tive a pretensão de ir muito longe:
fiz, na verdade, uma viagem de principiante e retorno sem ter chegado ao rrealismo
[...] o que eu aprendi do surrealismo: uma
expressão que se rompe e um conteúdo que se afasta dos sentidos impostos pelo hábito.
Um Novo Continente de Floriano Martins,
por todos os ângulos da poesia lavrada, assuntada, trancafiada, encompridada e desarmada,
é a inteira aventura do tempo rompendo os mares da mesmice oferecidos pelas ondas
débeis e passageiras do hábito: um livro para mover sonhos e alterar rotas; uma
peça literária montada no coração sagrado da arte.
NOTA
Posfácio do livro Um novo continente – Poesia e surrealismo
na América, de Floriano Martins (Fortaleza: ARC Edições, 2016)
ÍNDICE
CARLOS RUVALCABA | Malcolm
Lowry y el infierno mexicano
DAVID CORTÉS CABÁN | La
casa amarilla, de Jorge Eliécer Ordóñez
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/11/david-cortes-caban-la-casa-amarilla-de.html
ENRIQUE JARAMILLO LEVI
| Tres ensayos breves en torno a la escritura
FEDERICO RIVERO
SCARANI | Julio Inverso, ¿un joven poeta maldito?
FLORIANO MARTINS &
JOSÉ ÁNGEL LEYVA | La inutilidad de las fuentes
GABRIEL JIMÉNEZ EMÁN | Diálogo
con José Lezama Lima
LAURINE
ROUSSELET | Sobre los poetas Serge Pey y Bernard Noël
PAULA VALÉRIA ANDRADE | City Lights Bookstore: uma livraria em meio às luzes da cidade
RICARDO GUILHERME | Uma conversa radiofónica com Belchior
TSHITENGE LUBABU M.K. | Negritud: Léon-Gontran Damas,
el tercer hombre
http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com.br/2016/11/tshitenge-lubabu-mk-negritud-leon_17.html
ARTISTA CONVIDADO | FRANCISCO BARATTI | Aventuras Máximas de Francisco
Máximo Baratti, por Nelson Screnci
*****
Página ilustrada com obras de Francisco Baratti (Brasil), artista
convidado desta edição de ARC.
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 20 | Outubro de 2016
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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