O princípio de qualquer
poesia ou pulsão poética válida na Austrália data deste século. Anteriormente,
o processo de urbanização que resultou do declínio dos dias da corrida do ouro,
com seu influxo populacional gerou uma atmosfera de “clube” literário nas cidades
do Leste da Austrália. As “baladas sertanejas” (“bush-balladry”, no original)
desse período não eram, de forma alguma, reação espontânea e dramática ao meio
ambiente selvagem do sertão australiano. Pelo contrário, eram nostálgicas e
pelo tom, senão pela temática, parte integrante do romantismo esfrangalhado dos
tempos vitorianos. Assim como muitas canções sobre cowboys são, sem dúvida,
obra de compositores comerciais de Nova York, também esse florescer das baladas
“sertanejas” era de tom europeu e artificial em sua temática.
O país só produziu poesia de primeira categoria
quando um escritor australiano retomou um romantismo espontâneo e reconheceu as
influências técnicas do corpo contemporâneo do método poético europeu. Era o
saudoso Christopher Brennan, que, acima de tudo, foi profundamente influenciado
em sua imagética e visão pelos simbolistas franceses.
Este pequeno fato da história literária é
enormemente relevante para qualquer quadro que se queira pintar da poesia
australiana contemporânea. Isso porque a situação na Austrália exibe contornos
bastante bem definidos de três escolas poéticas distintas, operando com um grau
de intensidade jamais visto nesta terra tão notavelmente inculto e apoético.
São elas a dos poetas nacionalistas, a dos poetas “Reportage” e a dos “Pinguins
Irados” (“Angry Penguins”), ou modernista. Os poetas nacionalistas proveem
organicamente do romantismo “baladeiro sertanejo”, com a diferença de que cada
um dos diversos grupos agita sua bandeira nacionalista política com diferentes
graus de fervor. São escritores altamente urbanizados, organizados em clubes ou
assemelhados, que produzem um romantismo decadente que se assemelha à nostalgia
pela mata australiana e pelos aborígenes, por um lado, e, por outro, encara com
desgosto o arcabouço social capitalista e os valores urbanos. (Valores humanos,
como o amor, enquadram-se no padrão intelectual de alguma maneira subsidiária,
mas não surgem como material poético). Uma dessas escolas cercou o Movimento
Australia-First (o equivalente local ao seu par americano, o falar irlandês).
Ela incluía, entre outros, escritores Nacionalistas Extremistas como Ian Mudie,
Rex Ingamells e outros membros do “Jindyworobak Club.” Em Queensland, um
movimento mais forte e mais válido surgiu atrás de Clem Christesen e o órgão do
grupo, o “Meanjin Papers,” é um jornal forte, com um programa cultural
ostensivamente liberal. Os valores de seus escritores são mais verdadeiros e
menos decadentes do que os de “atavismos” como Rex Ingamells, ou Flexmore
Hudson, editor de “Poetry”, mas ainda se pode perceber uma perspectiva irreal
da função da poesia, assim como o pior de todos os erros, a morosidade
linguística. Não produziram poetas poderosos, nem comoventes.
A escola “Reportage School” é a menos definida
dentre as forças atuais da poesia australiana. Opera, quero crer,
principalmente numa insularidade geográfica de Sydney e se reflete no
“Southerly”, o jornal da English Association. Seus escritores guardam a mesma
relação com os “Angry Penguins” que os colaboradores da “Chicago Poetry” com a
escola inglesa de Treece e Tambimuttu. Não há em seus escritos nada da atual
preocupação com o personalismo, reflexões sociológicas os permeiam, e
percebe-se um vigoroso esforço para incutir reação personalizada e iluminadora
sobre os campos da experiência social. Penso que os dois poetas americanos aqui
presentes, Karl Shapiro e Harry Roskolenko, compartilham desse idioma, mas sua
reportagem é bem sucedida ao emergir do braseiro de uma linguagem fortemente
pessoal, em vez da visão pessoal. Na Austrália, os dois poetas mais fortes do
tipo são Muir Holburn e Elisabeth Lambert. Em um poema de fôlego e bem sucedido
“Courthouse,” Elisabeth Lambert transmite sentimento sociológico intenso e
válido; o movimento e a fluidez do humor são, a um só tempo, sinuosos e sutis;
e, ainda assim, procura-se em vão por uma imagem clara, original, iluminadora;
não se encontra linguagem memorável. O todo é poesia significante vigorosa e
quase bem sucedida, apesar da linguagem. As forças da imaginação não mais
dominam por meio da linguagem e, com esses autores, retornamos à visão de
Auden, mas em uma versão empobrecida e disciplinada.
O romantismo é obra dos poetas da escola modernista, ou “Angry Penguins”. Falo, aqui, não como crítico, mas como expositor e defensor. Espero que, nesta edição, vejam exemplos do trabalho de Ern Malley, do saudoso D. B. Kerr e de Geoffrey Dutton. A escola australiana moderna tem origens bastante autônomas e, portanto, são notáveis seu paralelismo com os, e suas distinções em relação aos, autores ingleses mais jovens, os apocalipsistas e os personalistas. O movimento em direção a uma poesia romântica pessoal e vigorosa estava bem encaminhado quando a poesia de crítica social de Auden atingiu seu auge. Estava bem adiantada uma formulação intelectual da função do mito.
O poeta Ern Malley veio a este país depois da
última guerra, junto com a mãe e a irmã. Aqui, cresceu anonimamente. Aos 14
anos abandonou a escola e tornou-se mecânico em uma oficina em Taverner’s Hill,
Sydney. Aos 17 anos, deixou abruptamente o emprego e foi para Melbourne, e
pouco se sabe de suas atividades ali. Viveu nas favelas de Melbourne, ganhando
algumas libras como vendedor de seguros e relojoeiro. Até esse ponto, não se
sabe se demonstrou grande interesse em literatura ou cultura. Quando eclodiu a
guerra destes dias, foi convocado para um exame militar que revelou que sofria
de doença de Graves. Uma operação o teria curado, mas o jovem solitário e
anônimo recusou qualquer tratamento.
A doença de Graves é uma disfunção da tiroide,
uma das piores e mais debilitantes doenças que há. Seu efeito é fazer a máquina
humana operar cada vez mais rapidamente, até explodir e parar, por assim dizer.
Seus efeitos podem ser adiados com doses de iodo em quantidades crescentes, até
que cesse a eficácia. Malley faleceu em maio de 1943. Durante seus meses
finais, temos uma descrição do caos que a doença infligiu sobre sua
personalidade, da tensão diabólica, a irritabilidade nervosa do aflito tudo
consome. A desintegração do indivíduo é quase certa. É à luz desses fatos e da
terrível natureza de sua morte que o experimento de Malley com a morte pode ser
examinado. Ciente de que encarava a morte quase certa antes de seu 25º
aniversário, Malley debruçou-se sobre seu experimento. Ao longo de três ou
quatro anos, acumulou um corpo diverso, mas maravilhosamente integrado, de
erudição, de tal sorte que sua poesia é dotada de impressionantes riqueza e
amplitude de vocabulário. Abandonou quase tudo que pudesse enfraquecer sua luta
para produzir uma interpretação fria e desapaixonada do conflito entre sua
mente e sua visão e do prospecto da morte imediata. Deixou Melbourne e uma
jovem por quem estava apaixonado. Ao morrer, deixou para trás um manuscrito de
16 poemas intitulado “The Darkening Ecliptic”, com o seguinte subtítulo:
“Não fale de assuntos secretos em um campo
repleto de pequenas colinas...”
—Antigo Provérbio.
Os dezesseis poemas são predominantemente
autobiográficos. Trazem um estranho desligamento e, mesmo naqueles escritos cerca
de um mês antes da morte, um tipo de humor pacato, como quando o autor fala do
“Direito inalienável do homem de estar triste no
próprio funeral.”
Os poemas apresentam uma unidade formal e
técnica que refletem a atitude do autor de que um poema é um ato de existência
completo e autônomo. Sua imagética forte e definida mostra um senso infalível
para a linguagem. Ao ler a série como uma experiência singular, o leitor
adquire uma compreensão mais ampla de sua importância e sua meta. São
principalmente um ato, um desejo de visão, e por meio da própria pureza dessa
visão da relação da mente com a morte, sugere-se ao leitor o conflito titânico
subjacente. Está tudo ali, e de forma tão criativa que o incomunicável também
se comunica. O experimento do autor com a morte é também encarado como um
experimento com a verdade.
Donald Bevis Kerr, que foi morto na Nova Guiné
em 1942, foi, creio, o primeiro poeta notável do movimento moderno. Um de seus
poemas foi incluído aqui. A incidência lírica de determinadas experiências que
Kerr utiliza passa por uma ampliação da implicação através de sua filosofia
amarga e elegíaca. Todos os valores dos sentidos se realizam em termos trágicos
ao longo do tempo e na memória. A unidade que é o indivíduo como um todo preda
aquilo que Blake chamaria de “mínimos detalhes” (“minute particular”). Essa
atitude surge com vigor em um poema que encontrei entre seus escritos,
intitulado:
EPICENTRUM
The silent
thunder which applauds
The daffodils
destroys them,
The humor kindled
in the sea
For death goes
breaking later.
So is the rotten
water harbor of the lily,
And the body a
delight for the raven,
And apprehension born in rented poverty,
Which sees the purple bones a beggar shot.
Here is that adulteration we seldom fear,
The check in the circle, the urgent arc.
Yet less than that comfortable eunuch, freedom,
We devour beauty when most we need it.
|
EPICENTRUM
O trovão silente que aplaude
O narciso que os destrói,
O humor gerado no mar
Que depois a morte quebra.
Assim a água podre é o berço do lírio,
E o corpo o jantar do corvo,
E a apreensão nascida da pobreza de aluguel,
Que vê os ossos roxos que um mendigo lançou.
Eis a adulteração que raro tememos,
A quebra do círculo, o arco urgente.
E ainda menos que o amável eunuco, a liberdade,
Devoramos a beleza quando mais precisamos dela.
|
Kerr enxerga símbolos no mundo real símbolos que
representam suas trágicas transmutações internas. Com isso, escreveu sua obra
maior, um dos melhores poemas deste país “Oration for Austrália.” Nele, toda a
tipografia desta terra torna-se uma alcunha diversa, que tudo abrange, para a
estrutura nervosa e psíquica do próprio Kerr.
O último poeta que desejo mencionar é Geoffrey
Dutton. Sua linguagem é mais forte, mais apaixonada e mais febril do que a de
qualquer poeta contemporâneo que eu conheça. Ele ainda não é capaz do nível
sustentado de iluminação que denota controle sobre a própria linguagem. Às
vezes lhe escapa a fortuna com a linguagem, mas ele ataca as linhas complexas
de sua visão com bravura linguística. E mais, tem algo muito raro entre os
poetas, o brilho técnico. Seus ritmos e sua entonação pirotécnicos são muito
mais sadios do que a competência domesticada de muitos de seus pares
australianos.
Finalmente, gostaria de acrescentar que a
virilidade e a independência do movimento poético contemporâneo na Austrália
proporciona um nível de realização, uma força, no nível do que hoje se escreve
internacionalmente. Ficarei satisfeito em ver uma ligação mais forte entre os
mundos culturais dos dois países. Nesta terra, não há acesso a jornais de
poesia americanos.
MAX HARRIS (Austrália, 1921-1995).
Poeta, ensaísta, editor e agitador cultural, responsável pela difusão do
Surrealismo na Austrália. Artigo originalmente publicado na revista Voices (Vermont, EUA), Número 118, Verão
de 1944. Tradução de Allan Vidigal. Página ilustrada con obras de los niños mágicos
del Arte Amigo (Costa Rica), artistas invitados de esta edición de ARC.
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Agulha
Revista de Cultura
Fase II |
Número 23 | Janeiro de 2017
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