Os artistas têm sido móveis
desde a antiguidade, quando escultores e pintores autônomos se deslocavam pela
costa do Mediterrâneo à caça de encomendas.
Foi, sem duvida, o que aconteceu na Renascença, quando o alemão Albrecht
Dürer, por exemplo, visitou Veneza e documentou a jornada em uma série de
aquarelas geniais. A tradição clássica que encontrou na Itália transformou a
maneira como realizava suas imagens.
Um par de séculos depois, era comum que artistas do norte europeu
viajassem, muitas vezes através da França e pela Itália, no chamado Grand Tour, para familiarizar-se com as
obras-primas da antiguidade.
Foi exatamente o que fez Jean-Étienne Liotard, artista suíço do século
18 especializado em retratos a pastel imaculados e magníficos que podem ser
vistos em uma nova exposição na Royal Academy of Arts de Londres – e chegou a
Nápoles pela primeira vez em 1735, antes de prosseguir até Roma e Florença.
“Como faziam todos os artistas dignos do nome no século 18, Liotard foi
à Itália para ter acesso à tradição antiga, e também à renascentista,” explica MaryAnne
Stevens, uma das curadoras da exposição doa RA. “Mas ele foi, também, porque
havia ali uma fonte em potencial de encomendas, já que todos estavam fazendo o Grand Tour.”
Por “todos”, Stevens se refere aos nobres, cortesãos, diplomatas, poetas
e tantos outros que consideravam o Grand Tour um elemento essencial para a
formação de um cavalheiro. Em 1738, Liotard acompanhou uma dupla de ‘milords’
da aristocracia inglesa em uma jornada até Constantinopla, onde permaneceu por
quatro anos. Pelo restante de sua carreira, vendeu – com considerável sucesso,
sua imagem como a d’O Turco.
No século 19, o grande pintor romântico francês Delacroix ficou
extasiado com suas experiências no Norte da África, no Marrocos e na Argélia. As
vistas que encontrou o inspiraram por toda a vida: “A cada passo há quadros
prontos”, escreveu da cidade de Meknes.
O modernista francês Matisse também encontrou sustento estético no
Marrocos, que visitou por duas vezes entre 1912 e 1913. Matisse, aliás, muitas
vezes recorria às viagens quando se sentia travado no trabalho de pintor. “Em
frente à tela, não tenho ideia nenhuma”, escreveu em carta à filha Marguerite, em
1929.
Para reabastecer seu patuá artístico, programou uma viagem ao Taiti no
ano seguinte – talvez em homenagem ao pós-impressionista Gauguin, que vivera e
trabalhara na Polinésia Francesa.
“Não se pode viver em uma casa bem cuidada demais, uma casa mantida por
tias do interior,” disse Matisse a um amigo pouco antes da viagem ao Taiti. “É
preciso ir à selva para encontrar maneiras mais simples de fazer coisas que não
sufoquem o espírito.” Durante a última década de sua vida, enquanto produzia
seus magníficos recortes de papel, Matisse recorreu frequentemente às suas
memórias do Taiti.
Mas aventuras longínquas nem sempre são necessárias quando se trata de
criar arte de qualidade – como prova a biografia do mesmérico artista americano
do século 20 Joseph Cornell, tema de uma nova retrospectiva no Kunsthistorisches
Museum de Viena.
Cornell é conhecido por suas caixas-vitrine, que mesclam objetos
disparatados como cachimbos de cerâmica, rolhas, bolas de gude e selos, além de
elementos de colagem de papel, resultando em dioramas fantásticos e poéticos.
Passou a vida toda nos Estados Unidos, indo poucas para longe de Manhattan
ou da área que cercava sua casinha no bairro do Queens. Mas viveu embriagado da
cultura e da história europeias, que pesquisava avidamente, devassando as
livrarias da Quarta Avenida durante o intervalo para o almoço em seu emprego
entediante de vendedor de tecidos.
Na verdade, seu conhecimento do mundo para além dos Estados Unidos
tornou-se tão detalhado que, ao conhecer o artista francês Marcel Duchamp,
Cornell travou longa conversa com ele, na língua materna do interlocutor, a
respeito de Paris – falando do Louvre e dos lobbies dos principais hotéis da
cidade. “Só ao fim da conversa é que Cornell observou que nunca estivera na
cidade, coisa que deixou Duchamp sem palavras,” escreveu no catálogo da
exposição de Cornell Jasper Sharp, um de seus curadores.
Naples (c. 1942) é típica do surpreendente cosmopolitismo das
composições do artista. Em uma caixa de madeira com frente de vidro e equipada
com uma alça metálica, vemos uma garrafa de vinho e uma concha em frente à
fotografia de uma rua da cidade italiana. Dentro da caixa, uma etiqueta de
bagagem com a palavra “Nápoles” pende de um fio preso à parte de cima da caixa,
de onde pendem, também, retalhos de pano pálido, como se fossem roupas no varal.
É uma obra de arte altamente urbana e que se apresenta como síntese
elegante da memória de uma visita a essa cidade encantadora. A não ser, claro,
pelo fato de que Cornell nunca estivera ali.
Quanto mais pensamos no trabalho de Cornell, mais evidentes as alusões à
Europa. Há muitas referências à arte europeia, inclusive ao famoso autorretrato
de Dürer aos 13 anos, assim como à tradição continental de baús de
curiosidades, aos quais suas caixas se assemelham.
Cornell também era apaixonado pelo ballet. “Se fôssemos reconstruir uma
biografia sua partindo apenas das obras que temos,” escreveu, certa vez, a
historiadora da arte Sandra Leonard Starr, “chegaríamos a uma conclusão confusa.
O artista pareceria um fanático belo ballet nascido na Europa em torno de 1800
e que tivesse passado muito tempo viajando pela Inglaterra, França, Itália e
EUA, testemunhando muitas das grandes apresentações da história do ballet; 150 anos
depois, ainda perseguindo ativamente a dana enquanto tema, pareceria se ter
estabelecido nos Estados Unidos até a morte, em 1972.”
A excentricidade da decisão de Cornell de não viajar, dado o tema de sua
arte, não passou despercebida entre seus contemporâneos. Em 1953 o pintor
expressionista abstrato americano (e admirador) Robert Motherwell escreveu: “Que
tipo de homem é esse, que, partindo de antigas fotografias em cartão colhidas
em sebos, conseguiu reconstruir o Grand
Tour europeu do século 19 em seu olho interno de forma mais vívida do que
quem de fato o percorreu, que não era nascido na época e nunca saiu do país,
que conhece o aspecto do Vesúvio numa certa manhã de 1879, e o das sacadas de
ferro fundido daquele hotel em Lucerna?”
A resposta: um homem simples e nostálgico de extraordinária
autossuficiência, alguém que se sentia afastado do próprio tempo, mas era capaz
de extrair alimento para a imaginação de livros empoeirados e fotografias
descartadas de outrora.
Cornell às vezes sentia algum arrependimento por nunca ter viajado: “Há
tantos lugares no mundo aonde eu deveria ter ido,” disse, certa vez. Em geral,
contudo, nunca estava tão feliz quanto quando garimpava sebos, brechós e
lojinhas de Nova York, procurando por suvenires de tempos e lugares distantes. Descreveu
um desses estabelecimentos, onde era cliente regular, como um “santuário e
retiro de prazeres infinitos”.
Era ali que se sentia ligado à antiga tradição dos artistas viajantes
porque podia dar-se ao luxo do próprio vaguear – pela mente.
ALASTAIR SOOKE (Inglaterra, 1981). Crítico de arte do The
Daily Telegraph. Este artigo data de outubro
de 2015 e aqui está traduzido por Allan Vidigal. Página
ilustrada com obras de Joseph Cornell (Estados Unidos), artista convidado desta
edição de ARC.
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Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 25 | Março de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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