Todo poema, con el tiempo, es una elegía. (…)
No hay otros paraísos que los paraísos perdidos.
Jorge
Luis Borges (“Posesión del ayer”)
Há certos momentos em nossa existência nos quais mergulhamos
em uma contemplação abismal, no desespero pela busca de sentidos complexos, talvez
definitivos. São os momentos em que, despertos, parece que recém
saímos de um pesadelo, desses pesadelos ricamente ornados de detalhes sinistros
dos quais retemos apenas uma pequena parte, o que permite que nosso despertar seja
amargo, um alívio bastante pobre. Nesses momentos, pensamos em certas abstrações,
talvez em nossa mortalidade (ou na mortalidade de todos os seres, ou daqueles que
eventualmente amamos), mas nossos pensamentos se concentram, com especial intensidade,
no caráter fortuito da existência e de certa noção
de justiça
e de lógica. A causalidade caótica surge, aos nossos olhos,
como diabólica; pois buscamos um entendimento que escapa de nossas mãos,
impiedosamente, de forma que um novo mundo surge em nosso horizonte, um mundo mais
triste, ríspido. Gostaríamos que o mundo obedecesse ao ordenamento mais benéfico possível, mas esse pensamento feliz é apenas isso: um fantasma
gerado pela ansiedade em controlar a devastação de nossa tristeza. Posso dizer que
essa sensação vertiginosa, tão complicada de se definir
e que parece conduzir nossa consciência a contínuos becos sem saída, foi a que
senti ao saber da morte de Avalon Brantley, jovem e brilhante talento que não estava
limitado ao universo literário que os franceses denominam littérature fantastique, mas que se expandia por múltiplas e diversificadas paisagens.
Mas, talvez, esse sentimento que eu tentei descrever acima, neste
caso, possa ser classificado apenas como uma leviandade de minha parte. Pois, de
fato, eu não era aquilo que se denomina um amigo próximo, ou querido,
de Avalon Brantley. Sequer a conheci pessoalmente: nossa comunicação pode ser resumida
à troca de mensagens eletrônicas – algumas delas relacionadas à participação dela da coletânea
Booklore – e
a uma excelente entrevista que ela me concedeu e que está publicada em meu blog.
Embora, seja necessário destacar, essa minguada comunicação direta me passou a impressão de que Avalon
era uma pessoa de boa vontade, sensível e de bom coração. De qualquer forma, eu
pouco sei de sua aparência
física, dos gostos pessoais, das opções políticas ou dos seus
dramas cotidianos. Eu não fazia parte de seu círculo mais íntimo de amigos e familiares,
tampouco conheço a dor dos membros desse círculo, especialmente quando da descoberta de sua morte. Contudo, de
fato, havia uma ligação possível, a única nesses casos,
aquela ligação que se estabelece desde um passado,
remoto ou recente, entre o criador de uma história e aquele que
a aprecia. Pois os extraordinários escritos de Avalon possibilitam uma experiência incrível ao
leitor – portanto, uma comunhão peculiar e intensa. Lembro-me da impressão vívida
causada pela leitura daquela que considero – do meu ponto de vista como leitor –
como a primeira obra-prima de Avalon, a tragédia
Aornos. Guardo lembranças muito queridas
dos pequenos livros dessa série, dos poucos que consegui adquirir, tão preciosos
e belos e que foram fundamentais em muitas decisões posteriores de minha vida. Mas
devo voltar, contudo, a Aornos: trata-se de uma tragédia,
de uma peça teatral mas que, de fato, dirige-se diretamente ao leitor, propondo
uma experiência extremamente requintada e ousada, uma forma visionária de
teatro para a mente, complexo na evocação de seus elementos e no efeito de sua ironia.
A fluência nos elementos mitológicos e religiosos da Antiguidade
é inebriante; parece que estamos diante de alguma criação perdida, particularmente perversa
de algum
autor da Grécia antiga. É muito difícil escapar da sensação
de inevitabilidade destrutiva do destino quando, ao final da peça, nos deparamos
como esse coro de cigarras que conjuram a presença de uma temível figura feminina,
em uma catástrofe funcional por ser alimentada pelo amor verdadeiro.
Mas esse foi apenas o primeiro livro de Avalon, sua espetacular apresentação
ao mundo; outras criações surgiriam, tanto materializadas em livros quanto em contribuições
para coletâneas. Infelizmente, não possuo todas essas obras – não sou um colecionador
contumaz, especializado em completar dada coleção de borboletas literárias, como esses
editores escolhidos para prefaciar as edições completas dos autores escolhidos para
figurar na série “Bibliothèque de la Pléiade”. Mas algumas
delas, que merecem justo destaque, tive o prazer e a honra de ler. Todas essas obras
assinalam, de um ponto de vista forma, segura fluidez entre gêneros,
formatos e concepções diferenciadas mas também uma percepção aguda
das irônicas, cruéis armadilhas do destino, que a autora jia havia
tão bem representado em Aornos a partir da percepção trágica da existência
nutrida na Antiguidade. Assim, logo depois de Aornos, temos uma coletânea
de contos, Descended Suns Resuscitate. A capa, dourada, possui essa textura de mármore que é extraordinariamente tátil, enquanto um pequeno orifício circular aponta apenas uma
pista simbólica sobre certos elementos do livro, notadamente
certa
atmosfera de inevitável, dolorosa nostalgia.
Os contos, ambientados em paisagens históricas flutuantes, são dominados
ao mesmo tempo pela esmagadora percepção do destino e por um senso de ironia realmente
requintada. Nesse sentido, merece destaque uma narrativa como “The Last Sheaf”, que apresenta um balanço entre esses dois pólos que eram obsessivamente
revisitados pela autora. Já o último conto, batizado “Kali-Yuga”,
apresenta essa caracterização visionária que já transparecia
em Aornos e que ganharia uma sofisticação crescente nos escritos posteriores
de Avalon. Aparentemente insatisfeita com o fechamento trágico oferecido pelo destino
em suas ardilosas configurações, ela buscaria na imagem de criação/destruição,
crescentemente liberada de suas limitações, novas sínteses.
Com isso, chegamos a Transcensience, penúltimo livro
completo de Avalon, escrito em parceria com Lockett Hollis. Novamente, um livro
belo, luxuoso – a sobrecapa em tom neutro, gélido, creme, revelando
os traços finos e incisivos de Egon Schiele e as iniciais da autora e do coautor, na lombada, apenas AB/LH. No frontispício, muito adequadamente,
temos a um fotograma do filme Le Sang d’un poete, de Jean Cocteau. No livro, breves narrativas, poemas e poesia
em prosa se alternam, tornando o livro instável, um desafio a essa perene
busca de todo o leitor por uma forma constante, a segurança da estabilidade em termos
literários. Mas, por instabilidade não queremos dizer inconsistência, a fragilidade escondida
pela máscara da dança formal; ao contrário, o livro apresenta uma identidade temática
em torno da ideia da morte, da passagem, do limiar, do inevitável, da crueldade
irônica do destino. Existe uma flutuação constante,
aqui, na abordagem dessas percepções, entre subjetividade poética
e objetividade narrativa, entre o pathos da poesia e a necessidade
de verossimilhança eventualmente imposta pela narrativa. O coração da obra é justamente
a narrativa breve “A Far Rest”, título que carrega um
jogo anagramático com a “floresta” ameaçadora que assombra toda a trama. Ao quebrar
os limites entre a subjetividade poética e a objetividade narrativa,
Avalon atinge o paroxismo do desespero nessa breve narrativa, que culmina com uma
ânsia absolutamente visceral – que se expressa por uma linguagem fragmentada,
situada quase no limite da inteligibilidade – por um deus amável, imenso. Trata-se de um aprofundamento e uma subversão daquilo que vimos
até então em Avalon, desde Aornos; pois ela, ao mesmo tempo,
subverteu os limites gerais entre o narrativo e o poético da mesma forma
que recupera alguns dos anseios e angústias mais profundas da literatura do passado.
O que ela havia feito com a tragédia grega, realiza, em Transcensience, com a poesia romântica do século XIX. Mas a verdade
é que o aprofundamento imagético e a expressão
narrativa cada vez mais direta do desespero demonstravam, indiretamente talvez –
e de forma, agora, comovente – o terrível sofrimento pelo qual ela passava,
um sofrimento que ameaçava isolar sua subjetividade definitivamente, com o abandono
definitivo da escrita.
Mas não foi isso que aconteceu. Mencionamos as diversas contribuições
de Avalon para coletâneas publicadas por pequenas editoras no ano de 2016 e início de 2017, um ano particularmente
produtivo segundo as palavras da própria
Avalon. São
pequenas jóias não apenas no sentido da espantosa qualidade desse material,
mas também pela nobreza altruísta expressa nessa vontade em expor os próprios demônios, em exorciza-los,
sublimá-los em obras literárias de grande sentimento, que oferecia ao escrutínio
de um público pequeno, mas que pressentia igualmente sensível. Dentre essa produção,
quero destacar três criações extraordinárias, cuja leitura analítica
de fato poderia alimentar a pesquisa acadêmica se essa não estivesse
tão distanciada da realidade mais vanguardista da literatura pelos muros oblíquos
da auto-complacência. A primeira delas é “Nocternity”, peça singular que integra a
coletânea The Gift of the Kos'mos Cometh! A Homage
to Night and Kosmos. Editada por Geticus Polus e Damian Murphy e lançada pela Ex
Occidente Press, trata-se de um livro único, de intensa
beleza,
centrado exclusivamente no conceito de noite e de cosmo.
“Nocternity” apresenta o lado mais visionário de de Avalon já em seu título,
estranha fusão entre “Nocturnal” e “Eternity”. As tendências
de Transcensience tornam-se ainda mais radicais: a alternância entre verso e prosa constrói menos uma dança entre poesia
e prosa e muito mais uma espécie de hino litúrgico, a evocação multifacetada
de novos e velhos deuses. Ou seja, uma construção
única
por sua complexidade, que mergulha o leitor no mito de forma direta, abandonado
as convenções usuais de gênero literário. Mas esse mergulho seria
o prelúdio para uma obra ainda mais ambiciosa: “Corpus”, publicada no imenso grimório contemporâneo, And
the Whore is This Temple, editado igualmente por Damian Murphy e Geticus Polus para a
Ex Occidente Press. Segundo a própria autora, a inspiração
de “Corpus”
(o subtítulo, bastante significativo, é “A
Mandala of Anatomy and Metaphysiology”) veio de certas obras de Andrei Biely, como
Kotik Letaev e Glossolalia. Trata-se da versão
da autora para o Gênesis bíblico, uma união
entre a perspectiva ampla do universo e o desenvolvimento íntimo da consciência
em uma forma única de sincronia, em que a própria linguagem se
fragmenta em pedaços correspondentes a sensações, ao potencial enlace entre o universal
e o mais profundamente pessoal. O peso dessa peça, tão original e única, levou os
editores a adotar, apenas no caso dela, não apenas outro formato (em duas colunas),
mas até mesmo empregar imagens específicas para ilustrá-la. De certa forma,
é o ápice do trabalho visionário
e da subversão de formas e gêneros literários de Avalon, iniciado
em Aornos e continuado a partir das mais variadas perspectivas. Seria de
se esperar que a autora, posteriormente, adotasse formas mais e mais radicais de
rompimento com as estruturas narrativas e poéticas e mesmo com
a linguagem. Mas eis que a personalidade multifacetada de Avalon surge e pressiona
em um outro caminho, até certo ponto surpreendente. De certa forma, esse
caminho parece indicado por Avalon ao final de sua extraordinária mandala, ao afirmar que “deus deixou a casa” (“god left the house”).
Esse caminho começa a ser indicado na terceira peça que selecionamos,
“A Dead Man’s House”, publicado em outra
coletânea extraordinária (tanto na forma quanto no conteúdo), Booklore. Após as experiências
nos limites da linguagem e da subversão das estruturas literárias usuais desde Transcensience, Avalon retorna ao conto fantástico,
gênero que abordou com tanta destreza em seu Descended Suns Resuscitate – trata-se de um conto a respeito da possibilidade de existência
de livros considerados definitivamente perdidos. A imaginação do leitor é espicaçada com a reconstrução
imaginária
de tais volumes desaparecidos que,
ao final, ganham um destino ao mesmo tempo terrível e libertador, um espetacular auto
de fé, nos moldes de rituais anteriores executados por Elias Canetti em Die Blendung e por Jakob Wasserman em El hombrecillo de los
gansos. Esse retorno renovado às fontes narrativas marca, por outro lado, o último livro de Avalon,
o romance The House of Silence. Trata-se, à primeira
vista, de uma homenagem a William Hope Hodgson, especialmente ao seu The House of the Borderland. Mas o último romance (que, coincidentemente
ou não, seria seu primeiro) de Avalon é bem mais que isso;
trata-se de uma história
visionária,
embora bastante simples, que retoma com muita liberdade os tropos do gênero.
A radicalidade visionária dos trabalhos anteriores da autora, que
buscam uma ruptura nas relações entre a própria linguagem e
a realidade objetiva/subjetiva, ainda se manifesta aqui (também
havia algo dessa quebra no papel da narradora em “A Dead Man’s House”) mas de uma maneira bastante
sutil e controlada. É no universo onírico e nas percepções sensoriais
(mesmo as mais simples) do protagonista e dos outros personagens que percebemos
a potencialidade dessa quebra na tessitura do real. Ao revelar para o leitor
o horror dos limites da percepção e da racionalidade em um ritmo cadenciado, por
suas bordas perceptíveis, Avalon revelou uma consciência e um controle
extraordinários na construção dessa longa e fascinante narrativa – sua última, infelizmente.
Em sua obra, Avalon Brantley demonstrou os limites da linguagem
e da percepção, a enganosa separação entre o microcosmo individual
e o macrocosmo coletivo, as armadilhas sutis e sádicas do destino, a vertigem abismal
e evocativa da Visão, essa forma de apreensão do conhecimento universal que acossou
Swedenborg ou Blake ou tantos outros antes dela
(e muitos outros depois, espero). A releitura de sua obra
torna-se um exercício doloroso e comovente à luz
de sua morte, mas devemos interpretá-la para além
disso, pois a morte não é o fim. Pier Paolo
Pasolini entendia a morte como um corte final no longo plano sequência
da vida, um corte final que concatenava os atos anteriores em uma montagem plena
de sentido. Poderíamos ir além (inspirados mesmo na própria morte terrível de Pasolini): o filme da vida cortado pela morte é em
alguns casos um produto enigmático, cujo sentido aparentemente claro guarda tantas
possibilidades quanto enigmas. Seguindo essa linha de pensamento, embora o choque
da perda possa existir, Avalon deixou uma longa e enigmática narrativa representada
por suas obras e pelos mistérios de sua infelizmente breve existência.
E, mesmo lamentando não tê-la conhecido melhor,
sei que poderei revisitar sua brilhante existência em suas obras.
Não por acaso, um dos últimos testemunhos escritos por Avalon
torna bem claro que ela, como Blanqui e Nietzsche (ou Borges), acreditava na pluralidade
infinita dos mundos, das existências, das vidas. Em um desses mundos plurais,
ela prossegue construindo sua obra, repetida por rapsodos e outros vagabundos e
poetas como os cantos de um seu irmão próximo, Homero.
Estruturas gigantescas, infinitas como o Oceano ou Cosmo, a História
e o Mito permanecem equidistantes, independentes, embora próximos. A densidade e
a complexidade dessas duas formas que pairam acima da cabeça de cada ser humano,
vivo ou morto, no planeta Terra pode sugerir que seja tarefa vã tentar aproximá-las,
que haja perigo eminente no choque de ambas. Mas o ritual e a ficção fazem esse
exatamente isso: aproximam Mito e História, de modo que haja confluências, mesclas,
colisões. As narrativas únicas de Avalon Brantley – seja a releitura da tragédia
e da ironia aristofânica em Aornos, os contos de Descended
Suns Resuscitate ou a homenagem a Pessoa na
coletânea Dreams of Ourselves – ao mesmo
tempo ritual e literatura, retomada historiográfica minuciosa e reconfiguração pessoal
de mitologias, testemunham os efeitos únicos da infinita e arriscada arte combinatória
do Mito e da História.
ADM | Sua magnífica peça – ou talvez narrativa – teatral, Aornos, possui certa ressonância em As rãs de Aristófanes,
coisa que fica clara a partir da epígrafe do livro (uma citação do grande comediógrafo
grego que serve como referência premonitória ao nome do protagonista, Alektor),
o tema da descida submundo dos mortos e o coro de cigarras que pontua a trama como
o coro de rãs que acompanha a descida de Dioniso e Caronte em As rãs. Fale a respeito
desse seu trabalho refinado, de ourives, empregado na invocação da tragédia e da
comédia produzidas na Antiguidade grega.
AB | Bem, creio que Aornos deve ser considerada minha primeira
publicação de fato, embora não seja nem de longe minha primeira composição. Para
mim, contudo, trata-se definitivamente de um dos trabalhos mais pessoalmente satisfatórios
que realizei. O que me surpreende ao dizer isso é que eu escrevi essa peça em uma
semana, quando a história que eu pretendia que estivesse em minha primeira publicação
de fato – uma coletânea de contos para a Ex Occidente [Press] – foi colocada em
outra antologia. Pretendia preencher essa lacuna, mas não havia nada que, em minha
percepção, se encaixava naquela coletânea, de modo que me apressei com minha ideia
para Aornos. As sementes dessa obra estavam
em um estado vago, em um ponto obscuro da minha mente por anos, aliás; penso que
por vezes algumas obras amadurecem em adegas subterrâneas da mente com mais frequência
do que seus criadores conseguem perceber antes de gerar a forma definitiva delas.
A visão de mundo subterrâneo da Grécia Antiga influenciou a literatura
e a poesia ocidentais, bem como várias etapas da teologia cristã. Nada parecido
pode ser encontrado, por exemplo, na Bíblia (Sheol e Gehenna não são o mesmo que
o inferno) até que surge a loucura anômala do Apocalipse de João, quando já estávamos
contando quase cem anos de era cristã e tal livro quase descartado como apócrifo.
Assim, todas as visões tradicionais do inferno usadas para aterrorizar os pecadores
e tantalizar os poetas provavelmente procedem, em grande parte, das tradições pagãs.
Trata-se de uma enorme porção de nossa herança literária e me fascinou como um plano
de criação possível por anos; mas eu desejava recuperar algumas de nossas raízes
culturais, de modo que iniciei a leitura de diversas obras comparativas e fui sugada
através de outros materiais tanto literários quanto acadêmicos para que eu pudesse
trabalhar com os aspectos mais sombrios, difíceis e esquecidos do Hades.
Aristófanes certamente é um autor fascinante para mim, em parte
porque, a despeito dele ser um dos primeiros satiristas do mundo antigo cuja obra
sobreviveu, manteve profunda reverência a certos aspectos sacros de sua própria
cultura, como em relação aos mistérios eleusinos (motivo pelo qual muitos críticos
modernos o criticam diretamente, claro). Mas, tendo em vista seu universo e contexto,
percebo que esse fato é notável, um traço cativante do trabalho e das intenções
de Aristófanes. Como estudante de história, reconheci exemplos de escritores inescrupulosos
e extremamente imaginativos cujos trabalhos dificultaram uma abordagem mais confiável
do passado; ainda assim, por outro lado, existem aqueles que estão em uma espécie
de caminho contrarracional e que auxiliam em trazer seus leitores até a mentalidade
mais acertada para o seu tempo pelos mesmos meios não conformistas, um contexto
de cultura e sua própria dinâmica, poética, cuja capacidade de drenagem a história
não alcança. Não apenas Aristófanes, mas também no caso de “historiadores” como
Heródoto e Plutarco. Eu apreciei bastante a leitura de Tucídides (incluindo a história
que ele escreveu sobre o seu homônimo, Alcebiades) mas as histórias dele não desempenharam
nenhuma papel importante na construção daquilo que podemos chamar, essencialmente,
como cheguei a descrever em outro lugar, uma “peça teatral encenada na mente”, talvez
uma representação poética de uma estrutura teatral, semelhante (como você astutamente
indicou em sua próxima pergunta) Purgatory
de Yeats. Descobri, todavia, que a história de Heródoto poderia ser diretamente
útil – por exemplo, a Ponte de Medea a qual Alektor descobre, estranhamente, em
meio à névoa das águas no local em que estava vagando veio direto de Heródoto. O
ponto, na verdade, é o fato de que enquanto Heródoto é um dos nossos primeiros “historiadores”,
e Aristófanes um de nossos primeiros “comediantes” (ao menos no que tange à influência
subsequente que teve; há outros autores, mais antigos em cada um desses campos),
ambos me auxiliaram na conexão com uma mentalidade extinta tempos atrás. Eu não abjuro completamente a Era da Razão ou
o Iluminismo nesse sentido, mas a poesia e a literatura fantástica podem demarcar
uma fronteira além dos fantasmas da assim chamada “realidade” e da razão tornam-se
mais opacos e incertos. O trabalho de historiadores como Tucídides ou [Edward] Gibbon
ainda será útil para mim, mas onde predomina o processo passivo, intelectual de
leitura para o qual esses trabalhos foram imaginados, quando estamos aquém do revolutear
dinâmico e criativo da poesia e da loucura.
ADM | Os momentos finais de Aornos – notadamente após a aparição da extraordinária
figura da Stettix – torna-se clara a intuição que o leitor deve ter percebido desde
o início da leitura: sua peça é praticamente não representável. Como em certas peças
de Ionesco (em O rinoceronte) e William
Butler Yeats (Purgatory), as cenas descritas
em Aornos dialogam melhor com a imaginação pelos delicados e sutis jogos e imagens
sugeridas pelas palavras do que com a cenografia construída no cinema ou no teatro.
Como você alcançou tal síntese imaginativa e visionária? Haveria alguma obra que
você encara como precursora, nesse sentido?
AB | Não pude mencionar na pergunta
anterior, mas sim, a Imaginação de fato é o teatro definitivo, ou deveria ser. Nesta
era de filmes abarrotados de CGI [Computer
Generated Imagery], efeitos de som Surround,
animação computadorizada, vídeo-games hiperrealistas, onde todos almejam a realidade
virtual de terceiros permanente, o que penso ser o mais trágico se concentra naquela
parte de nossa cultura que se tornou tão imaginativamente preguiçosa que suplica
as pedras de crack oferecidos pela alimentação forçada das mídias – gratificação
imediata de todos os sentidos – a partir do exterior! – que é poderosa, de fato,
mas fará com que a imaginação, que trazemos desde tanto tempo antes do despontar
da literatura, dos sonhos e das incertezas diante da vastidão do universo que nos
cerca, atrofie. Assim, para responder sua pergunta, eu devo dizer que para mim,
aquilo que antecipou as minhas formas de
escrita imaginativa está diretamente relacionado com todas as leituras de natureza
fantástica que cultivei na infância, quando minha ensurdecida imaginação desempenhava
seu papel com espontaneidade, agilidade e brilhante vivacidade, de modo que me viciei
nesse aspecto imaginativo da leitura e do devaneio, que alimentava constantemente.
Como adulto, em meio ao mundo empírico, tal atividade ficou bem mais difícil, como
costuma ocorrer com os exercícios físicos – é necessário manter os músculos tonificados
e as articulações flexíveis. Nem tudo o que escrevemos chegam rapidamente a esses
termos, mas alguns costumam se abrir se nos aproximamos com a mentalidade correta,
como uma canção que começa a fazer sentido dentro de você. Para mim, a música oferece
uma experiência bastante similar – trata-se de uma inexprimível magia no fato de
que uma série de ruídos estruturados pode resultar na explosão para a vida de mundos
inteiros atrás de nossos olhos fechados. Ou então simplesmente se deixar ficar em
um local no qual o genius loci começa
a falar com você, quando certos lugares especiais podem subitamente e inexplicavelmente
começar a sussurrar histórias – imagens engendradas em sua mente que parecem surgidas
das pedras e dos aromas e do céu. Essas coisas devem vir de dentro inicialmente,
não da sala de edição de um cineasta ou dos códigos de um programador, mas da própria
psiquê. Ou, se o oposto for verdadeiro, seria possível manter o útero da psiquê
pronto para receber tais transitórios gametas de inspiração.
ADM | Tanto Aornos quanto os contos
de Descended Suns Resuscitate trabalham
um inusitado cruzamento entre Mito, História, Cotidiano e Ficção. Nesse sentido,
há uma preocupação minuciosa com detalhes, que logo se desdobram em sofisticadas
tramas de linguagem (o argot local, termos específicos, etc.) que evocam o passado
(mesmo em seu pequeno detalhe cotidiano) ao mesmo tempo em que auxiliam na construção
de efeitos narrativos, da ironia, do mistério da trama. Qual seria a origem de sua
percepção dessas linhas de encontro entre Mito e História? Como solucionar ou relacionar
essa combinação aparentemente contraditória?
AB | Mas não vivemos nossas vidas
em um universo que aparenta ser contraditório? Qual percepção pode afirmar não ser
ao menos em parte uma falsa percepção, parte de nossas mitologias contemporâneas?
Ainda não temos uma Teoria da Grande Unificação na física, e não é verdade que muito
do que admitimos nas bases epistemológica e ontológica é subjetivo? O que me fascina
é como outras culturas, sem todos os nossos tabus e inibições intelectuais (ou,
nesta geração em especial, nossa miopia tecnologizada), como esses outros conseguem
interpretar o mistério que é estar aqui, que é interagir como esse poderoso, cruel,
incrível e misterioso universo. O que eu tento fazer (e talvez seja uma tarefa fútil
deste ponto de vista (ainda que, do ponto de vista poético, não acredito nisso,
embora intelectualmente sim)) é colocar a maneira de um personagem em um tempo-espaço
diferente. Ao menos esse é um dos aspectos de meu trabalho no qual pretendo me concentrar.
Outro tempo, lugar e cultura, através dos olhos que enxergam desde o interior de
um sistema de crenças, a maneira como o povo se expressa, como vivem suas vidas,
todos esses elementos desempenham um papel em como um fenômeno pode ser interpretado.
As mesmas limitações se projetam sobre nós, como os filhos de nossos filhos poderão
ver com mais facilidade, uma vez que nós mal conseguimos interpretar o mundo através
nossas limitações e preconceitos, tanto pessoais quanto culturais. O leitor deve
se sentir algo deslocado no passado, pois como disse L. P. Hartley, “Eles agem de
maneira diferente aqui”. É um mundo ainda mais diferente. Assim, considero o passado
um terreno altamente fértil para a ficção imaginativa. Da mesma forma, ao menos
poeticamente, não percebo o tempo como estritamente linear como tendemos a perceber
na vida cotidiana, mantendo nossos compromissos e rotina de sono.
Algumas vezes, tento a mediação (e o amálgama) entre nossas realidades
e as realidades de algum outro de forma que seja possível alguma incursão no passado
mas que, também, mantenha as conexões e talvez desperte certas fagulhas no quadro
de referência do leitor, uma espécie de efeito deja-vu literário. Por isso, a resposta de Alektor à repentina aparição
da Stettix surge antes do retorno do barco é um fala parcialmente emprestada da
resposta de Lúcifer ao encontrar a monstruosidade da Morte no submundo de Milton.
Isto para mim é novamente o tempo poético, que se torna não-linear. As palavras
de Milton podem sair da boca de um personagem ambientado na Grécia Antiga uma vez
que elas chegaram na pena de Milton a partir de um local sem forma e sem tempo de
onde a voz de um demônio pessoal (na forma de um sapo rastejante, talvez?) sussurrou-as
no ouvido daquele autor.
ADM | O escritor japonês Ueda Akinari, em Contos da chuva e da lua – adaptados para o cinema de maneira bastante
inteligente e sensível por Kenji Mizoguchi no filme Ugetsu Monogatari (1953) –, trabalha constantemente com a decepção,
a percepção enganadora que desenvolvemos a partir daquilo que percebemos como realidade
(que inclui, em todo o caso, o sobrenatural). Muitos de seus protagonistas trabalham
com essa percepção falsa do universo que os cerca. Qual seria sua trajetória até
essa poética da decepção, bastante sofisticada em suas narrativas?
AB | O universo é circular, um
cíclico e emaranhado imenso de logros sem fim. Acredito que meus caracteres, como
nós, precisam reunir muitas peças de um quebra-cabeça conforme elas surgem no caminho,
perdendo algumas, rearranjando outras, conforme cambaleamos para qualquer direção
que tenhamos tomado. Não pretendo julgar todos aqueles que sejam mais enganados
ou equivocados que eu (ou, eu poderia arriscar, nós?), ao menos em termos. Cognição,
sentidos, percepção – são apenas meios aproximativos e falíveis, afinal. Mas todos
nós nos excedemos e, a despeito dos horrores, algumas vezes alcançamos vislumbres
de beleza nesse arranjo. Então, quando os horrores são belos…
ADM | Um dos contos de Descended Suns Resuscitate que mais me agradou foi “The Last Sheaf”. Existe
nessa trama uma curiosa e complexa relação entre efeitos alegóricos (os camponeses,
as noções conflitantes de sacrifício), prosaicos (a viagem turística dos dois estudantes)
e mesmo caricaturais ou grotescos (as páginas do livro, empregadas para limpar uma
diarreia causada pela abstinência de láudano). O desfecho me trouxe à mente o conto
“El Sur” (“The South”), o último da coleção Ficciones (1956) de Jorge Luis Borges. Quais procedimentos você empregou na construção
desse conto? Existe algum método usual ou cada narrativa possui sua própria gênese
e construção?
AB | Penso que cada narrativa
efetua um acúmulo de uma maneira própria. Algumas vezes, como no caso de “The Last
Sheaf”, uma narrativa pode surgir diretamente de certos materiais que envolvem aquilo
que estou lendo, algumas vezes enquanto meus olhos estão em uma determinada página,
algumas vezes logo após o livro já estar fechado, luzes apagadas e olhos fechados…
Outras histórias aparentemente surgem espontaneamente de uma contemplação da paisagem
vista da janela, ao ouvir uma música, visitar um local desconhecido… Fragmentos
de histórias surgem constantemente, em todos os lugares – nas ruínas de uma velha
casa no meio de uma planície que provavelmente foi no passado distante a casa de
sonhos de alguém; em velhas roupas ou fotos, ou em objetos em lojas de segunda mão.
Escutar essas histórias à espreita é tanto algo de ativo/criativo quanto um processo
passivo. É necessário trabalho para construir a coesão decisiva para elementos que
são apenas fragmentos e ideias vagas, mas nesse processo as ideias mais poderosas
muitas vezes amadurecem e se desenvolvem quase que por si mesmas.
ADM | Suas narrativas – é o caso, por exemplo, de "The Way of Flames”
e "Kali-Yuga: This Dark and Present Age” em Descended Suns Resuscitate – abordam pequenos e grandes apocalipses, instantâneos
de decadência e de esgotamento, sacrifícios voluntários e compulsórios. Nesse sentido,
talvez seja possível afirmar que sua visão se aproxime daquela de James Joyce em
Ulysses, de que a História “is a nightmare from which I am trying to awake”. A questão
da decadência, em suas narrativas, seria alimentada por reflexões filosóficas? Ou
sua preocupação situa-se de modo mais significativo no campo estético?
AB | Ambas, provavelmente na
mesma medida, dependendo do contexto. Sempre fui fascinada pelo terrível caráter
cíclico da existência, da história, da natureza humana. Aquilo que consideramos
usual em países desenvolvidos é bastante frágil e não se configura como norma na
maioria dos lugares e temporalidades. As preocupações da literatura decadente me
parecem um consistente à propos, e espero
que continuem a ser reconhecidas de modo intermitente, conforme o pêndulo da história
persiste em seu movimento oscilante e caprichoso…
ADM | A música ocupa, de maneira mais evidente, um espaço primordial
na própria construção narrativa em Aornos
e também no conto “Hognissaga” (embora o mesmo possa ser dito de todas as suas narrativas).
Qual sua relação com a música no que tange à construção de suas tramas? Existe algum
compositor ou estilo que lhe seja mais sugestivo, nesse sentido?
AB | Novamente, tudo depende
do contexto (uma vez que cada história se desenvolve de forma própria, separada),
mas há momentos em que a música é o cofator primário no processo catalítico no qual
a história procede seu desenvolvimento. Em outros momentos, a música se encarrega
de injetar suas próprias influências e ideias de maneiras que eu não conseguiria
imaginar ou prever. O ecletismo domina meus gostos e aprecio uma ampla variedade
de estilos musicais, e reconheço que algumas vezes certas canções e estilos que
considero repugnantes podem de uma forma irônica me fornecer auxílio no que tange
à inspiração ou intuição.
ADM | Tendo em vista que você já teve uma narrativa em formato dramático
e contos publicados, seria possível adiantar algum de seus projetos futuros? Está
trabalhando em uma narrativa mais extensa ou mesmo, com toda a poderosa carga visionária
de suas histórias, alguma criação visual e/ou audiovisual?
AB | Trabalhei em diversas coisas
que ainda não foram publicadas, algumas poderão não ser lançadas nunca por razões
pessoais (nem tudo o que escrevo é direcionado para publicação; algumas vezes é
apenas algo que devo fazer) e outras ainda preciso finalizar. Tendo a ser relapso
com o prazo de envio de meus trabalhos – trata-se da parte que considero menos agradável
de todo o processo.
Escrevi um romance extenso, uma espécie de resposta em forma de
tríptico ao House on the Borderland e
The Night Land de William Hope Hodgson.
Também trabalho com ideias e esboços para diversos projetos, embora no momento esteja
focada em uma novela breve, uma peça estranha e de grande amplitude, ambientada
em diferentes momentos e regiões da Rússia, embora o centro predominante seja os
Grandes Expurgos realizados por Stalin no final dos anos 1930. Quando eu finalmente
terminar esse trabalho (não tenho ideia de que quando exatamente isso ocorrerá),
há muitas outras áreas as quais desejo me dedicar, resultando provavelmente em coletâneas
de contos – uma envolvendo os povos celtas das Ilhas Britânicas (um assunto e universo
no qual já me dediquei por algum tempo durante a composição da homenagem a Hodgson)
e outra ambientada na Nova Inglaterra nos tempos coloniais.
*****
ALCEBIADES DINIZ MIGUEL (Brasil, 1975). Ensaísta, tradutor e pesquisador, sempre
interessado nas convergências e filigranas do fantástico (narrativa e poética, em
todo caso) tanto em seus mais ancestrais primórdios quanto nos desenvolvimentos
contemporâneos envolvendo múltiplas mídias. Ao invés da habitual reprodução de uma
fotografia do autor comentado, aqui optamos por estampar um detalhe da obra “The Beguiling of Merlin”,
de Sir Edward Coley Burne-Jones. Avalon
Brantley (na verdade, um autor que usava pseudônimo feminino) empregava heterônimos
inspirados em Pessoa e cometeu suicídio, o que inviabilizaria o uso da foto… Seu
último editor, em Dusseldorf, optou por usar a imagem de sua persona nas redes sociais para publicar um breve
obituário. Página ilustrada com obras de Ana Mendoza
(Venezuela), artista convidada desta edição de ARC.
*****
Agulha Revista de Cultura
Fase II | Número 26 | Abril de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS |
floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES
| mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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os artigos assinados não refletem
necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam
pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
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