segunda-feira, 14 de agosto de 2017

FLORIANO MARTINS & JACOB KLINTOWITZ | Antonio Bandeira: uma árvore verde para o novo homem

 

Bandeira foi um artista iluminado por quatro sóis e que nos deixou uma obra na fronteira de vários rios submersos que, hoje, emergem nas principais questões atuais da arte e da cultura. Visionário, de intensa atividade, a sua obra está no limiar, pertence à sua época, mas poucos, como ele, construíram uma iconografia tão projetada no vir a ser. Ele é o profeta das cidades de luz.
Bandeira fertilizou a arte brasileira, a partir do Ceará, criando novas vertentes para a arte moderna. O Ceará tem uma tradição cultural rica. Do grupo dele, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, destacaram-se nacionalmente o Aldemir Martins, o Inimá de Paula e o Bandeira. Na Europa, junto com Wols, o Bandeira foi importante também na renovação de ideias, a partir de uma abstração lírica, com forte passado figurativo. Não apenas a gestualidade da abstração, mas a concepção de novas formas de marcado passado figurativo. Lirismo com título, o gesto e a poética verbal.
Ninguém, como ele, projetou a ideia de cidades contemporâneas feitas de luz. É uma visão antecipadora, pois as cidades tendem para isto e serão, cada vez mais, menos fabris e mais conceituais. A vida humana não como produtora, mas como exercício do sonho. Antonio Bandeira foi um extraordinário pintor de vida curta, pois morreu numa mesa de operação, em Paris, de uma banal intervenção na garganta.
É um artista da luz, justamente quando o homem saia das trevas homicida. O pintor da cidade lírica geradora de ideias, conceitos e da construção de um novo homem impregnado de intuição estelar. É significativo isto, uma vez que ele é oriundo de uma região iluminada pelo sol, dotada de grande claridade. E que a sua vida transcorreu em duas outras cidades solares, o Rio de Janeiro e Paris, a própria cidade luz. O quarto sol de sua vida era a sua própria alma, manifesta num labor sem fim e na concretização de imagens únicas que marcam a utopia do século XX.
A sua arte sempre foi impregnada de um alto lirismo. Pintor-poeta. Antonio Bandeira acreditou que a tradição pictórica era suficiente para expressar o futuro. Não desejou outro veículo, outro suporte, outra linguagem que não fosse a pintura e a arte. O artista da luz. O homem na fronteira, entre o passado e o futuro, o abstracionismo e a figuração. É uma abstração que nomeia! É, neste sentido, um artista de acentuada tendência espiritual.
A luz em Bandeira é interna, feita de visões, e não sabemos, seguidamente, se é dia ou noite na sua pintura. É um visionário na melhor tradição do século vinte, a de quem percebe a luz como manifestação complexa da matéria e da metafísica. Nele o espiritual não está personificado no contorno da figura humana, mas na visão.
Com a chegada dos anos 1950, Bandeira, em definitivo, deixa para trás figuras e paisagens mais expressionistas. Como um alquimista mistura paisagem, figura e abstração em uma mesma paleta e dali começa a expandir uma poética firmada essencialmente na mestiçagem. Ele próprio dirá:

Quero fazer um mundo novo, misturar o céu com a terra; dizer aos homens que eles são todos irmãos na batalha das raças, apontar a paisagem visionária das grandes massas urbanas; tirar uma pintura da natureza que já foi, que já se está elaborando, e que ainda vai prosseguir. Quero preparar o terreno para a minha humanidade que virá depois, a humanidade feia que hoje sofre, presenteando-a com uma paisagem digna, uma paisagem nova, uma árvore verde, um ser em germinação. Enfim, quero criar seres que não existem, misturar, falar ao homem numa nova linguagem, ou não falar língua nenhuma; enviar uma mensagem aos contemplativos.

Até sua morte, em 1967, são 17 anos de safras ininterruptas, estações perenes, desentranhando cidades das manchas e sombras do abstracionismo. Mistura igualmente suas classificações internas (lírico, binário, geométrico etc.). Bandeira tem um sentido extraordinário do humano em si. A tal ponto que tamanha generosidade o conduz a um excesso de doação. Tinha a mais plena consciência de que não se produz grande arte de outra maneira. Foi ao desgaste de tudo. Levou uma vida de lúcida deriva.






Antes que a morte o surpreendesse rabiscou um roteiro desenhado do que viria a ser um filme autobiográfico. Em um dos quadros fala de Paris em um sentido que se aplica a qualquer espanto lúcido no convívio com uma cidade:

A imensa cidade do dia e da noite, entre atormentada e tranquila, próxima e distante – para sofrimento e alegria nossas –, essa mesma cidade que às vezes de tão grande que é vira uma pequena província.

Fortaleza, Rio de Janeiro, Paris. As cidades referenciais de Bandeira, embaralhadas ao ponto de constituírem uma só urbe visionária. Evidência de uma luminosidade que não se detinha diante de nada.
Todos nos sentimos habitantes desta humanidade outra que Bandeira evoca com a mestria de seus traços e cores, sim, porém essencialmente com a convicção de sua utopia. Este pintor-poeta nos deu a todos uma pequena quimera que ainda não soubemos criar.
O homem está presente em todas as paisagens de Bandeira, habitante primordial de sua utopia: vilas, favelas, cais: cidades. As suas árvores estão plantadas em um contexto urbano: a grande cidade com seus campos queimados. A luz agindo sobre cores e formas como uma crônica de vislumbres. Mesmo a selva, o agreste, a marinha: poética povoada por sua humanidade contemplativa. Bandeira povoa o abstracionismo, dá a ele uma condição humana antes desconhecida. Apesar da morte prematura, a intensa obra deixada afirma que não se envolveria com algumas das tendências futuras das artes: não dissecava a cor e sim o homem em sua conflitante condição social; não amontoava formas ou empilhava temas; era essencialmente um cronista da luz, do vislumbre, de sua ação sobre o tempo, um solitário agrimensor da alma humana.

Do que seria uma origem vista no Brasil com preconceito, de uma arte narrativa do nordeste, ele transformou a estória em uma linguagem situada entre a intuição e a referência iconográfica. O seu rosto forte, marcado, a cabeça grande, os olhos negros, é um contraste maravilhoso com a delicadeza do tratamento plástico. Visionarismo. Transposição poética. Esta era a mestria de Bandeira.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Página ilustrada com obras de Antonio Bandeira
Foto de JK © Pedro Sgarbi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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