segunda-feira, 14 de agosto de 2017

JACOB KLINTOWITZ | Público e Privado: o percurso de Claudio Tozzi


Um observador desatento não reconheceria na obra atual de Claudio Tozzi o mesmo autor das obras de algumas décadas anteriores. A transformação formal da obra do artista tem sido notável e, mais até do que isto, a aparência, a visualidade das obras, dá a sensação de que a alteração se deu no próprio cerne desta obra, na concepção que o artista tem do mundo, na sua cosmovisão, na sua abordagem desta visão e no seu método de criação, na maneira como no seu espírito surge a imagem e se materializa no suporte. Da maneira de ser do artista à sua expressão. E, no entanto, esta conclusão estaria longe da verdade.
Certamente é uma contradição em termos, um observador desatento. Ainda que, por comodidade de espírito, muitas pessoas permaneçam muito tempo com os mesmos juízos de valor. Para nós é útil este observador imóvel e indiferente ao tempo histórico e ao tempo pessoal, pois evidencia o caráter dinâmico do percurso do artista, as transformações de seu trabalho e nos estimula a expor o núcleo permanente, o elemento unificador da ação e do método de Claudio Tozzi. O processo contínuo e ininterrupto de transformação, de criação inovadora de suas formas, demanda um observador igualmente flexível.
A produção atual da obra de Claudio Tozzi emerge de profundas questões estéticas e filosóficas e ajuda a iluminar o passado do artista. E, de muitas maneiras, é tal a sua transformação em relação ao passado, que evidencia o sentido da produção inicial de sua geração e as questões das décadas de 60 e 70, em boa parte respostas ao impacto causado pela nova sociedade de produção e consumo em massa e a espetacularização de todos os processos e narcisismos patologicamente infantilizados em razão do formidável desenvolvimento dos meios tecnológicos de comunicação que acompanhou e possibilitou este inicio de globalização da vida planetária.
A sociedade de produção e consumo em massa, por sua própria natureza, tende a homogeneizar as pessoas pelo padrão médio ou, em certos casos, pelo menor padrão possível, como se pode ver na manipulação de opinião e engajamento político. E a sociedade do espetáculo não só conferiu aos indivíduos a possibilidade de protagonismo, mesmo que efêmero, como avançou até a criação de protagonismo em grupos restritos, desde grupos de opinião, grupos profissionais, grupos políticos, até a montagem de veículos tecnológicos de controle pessoal. A previsão é de que estes recursos tecnológicos continuem a evoluir em alta velocidade.
E o processo de globalização acentuou a interdependência econômica dos países, tornou mais imediata e evidente a influência cultural de alguns países sobre outros, cultura em seu caráter antropológico, o de cultura em seu sentido totalizante dos processos de linguagem e não apenas como concepção de formas. Boa parte da produção de formas culturais está atrelada ao desenvolvimento tecnológico e à capacidade do mercado consumidor de ampará-la, o que já indica quais os países dominantes. Entende-se facilmente, portanto, como a produção estética deste período está fixada em objetos industriais, em figuras carismáticas nacionalistas em oposição nacionalista à globalização e em visões do urbanismo predatório.
O fetiche do objeto é resultado direto desta situação social. A arte trouxe este objeto para dentro do seu espaço e o glorificou. A banalidade do objeto industrial evidentemente chocou o mundo de repertório culto. A imprensa de muitas maneiras pretendeu ver uma posição crítica nesta glorificação que transformou o objeto vulgar em protagonista. Mas é difícil acreditar nesta postura crítica. Talvez na origem, no ponto de partida, em especial em Marcel Duchamp com os seus “Ready made” ou “Objet Trouvé” – objetos industriais trazidos para o espaço artístico, como “A fonte” – se encontre este caráter crítico e o verdadeiro surgimento da “anti-arte”.
Não é possível esquecer que Duchamp era um enxadrista de nível internacional e, portanto, afeito, ao planejamento de muitos lances de antecedência. Mas nas colagens de Pablo Picasso e Georges Braque, anteriores à experiência de Duchamp, a incorporação de elementos do cotidiano (papeis, tecidos, etc.) na pintura tem uma função eminentemente formal e os torna equivalentes ao pigmento e a sua presença confere à pintura um caráter tridimensional. Nos seus sucessores, até os nossos dias, é muito difícil encontrar uma posição crítica em relação ao objeto industrial e ao objeto-ícone de consumo de entretenimento: a opção mais frequente é a glorificação do objeto banal. Não é por acaso que a principal parte destas formas artísticas se aproxima das formas publicitárias ou se confundem com elas, pois existe o desejo de estetizar o objeto. A aceitação feérica destas formas artísticas pelo mercado demonstra à saciedade que esta é uma maneira de criar produtos.
No Brasil, devido a tradição da cultura humanística e as peculiaridades políticas do país, especialmente os largos períodos de autoritarismo civil ou militar aliado ao pouco desenvolvimento tecnológico, a pop art teve um caráter crítico onde se denuncia o abastardamento das cidades, o consumismo e as falsas ideias. Também a performance, o happening, o hiper-realismo, a arte conceitual, a land art, o graffiti, têm no Brasil, em parte, um posicionamento crítico e reflexivo em relação às realidades estética, social e política.
Em Claudio Tozzi os objetos e as imagens do cotidiano registrados na sua pintura sofrem uma espécie de congelamento, de estratificação arqueológica, e se tornam peças exemplares de uma civilização num imaginário museu etnográfico. O artista os qualifica e os isola como se se tratasse de um sinal de uma civilização desaparecida. A história em quadrinho, o astronauta no seu habitat, o parafuso, Veneza, o cérebro isolado do corpo como objeto dominado, o papagaio como ave símbolo dos trópicos, a notícia policial, o herói anti-imperialista Che Guevara, as escadas transformadas em “Piranesis” contemporâneos para indicar a ausência de saídas, todos são fósseis de uma estranha civilização. Não só estes signos da civilização estão imóveis, como a própria civilização parece se mover num labirinto. O artista nos indica de maneira intensa e interminável os desenhos murais nas paredes internas deste labirinto do qual nunca conseguimos ver a totalidade. Trata-se de fragmentos de um mural que parcialmente conta a história de uma sociedade fragmentada, com a qual entramos em contato através de aparências fugazes. Estas formas muralísticas, tão próprias da arte pública desde sempre, nos oferecem vislumbres da mais intrínseca realidade.
Estas formas são da nossa época, é claro, mas estão evidenciadas e isoladas como objetos de estudo. De muitas maneiras, no seu trabalho, Claudio Tozzi faz as anotações visuais dos signos que serão os futuros símbolos de uma civilização. 
Do pop ao conceitual, temos o universo triunfal, efervescente e temporário americano. Em contraposição, as imagens fragmentárias e atuais, congeladas num instantâneo, petrificadas, permanentes, de Claudio Tozzi.
É notável a distância formal entre o passado do artista e o seu presente. E o fiador deste percurso estético tem sido o próprio artista com a sua atuação permanente, severa, autocentrada e, de certa maneira, distante das demandas de comunicação jornalística, da crítica de arte universitária fundada em descrições objetivas e da mercadológica do circuito artístico. A tácita união do mercado de arte e do jornalismo, uma vez que é a atuação mercadológica o verdadeiro assunto com a projeção do artista em exposições, certames, feiras de arte e de sua tabela de preços, artificial ou não, torna previsível a maioria da criação artística, pois que ela se metamorfoseia em elaboração de um produto. É evidente que nesta conjuntura a crítica de arte, como exercício intelectual e sensível de avaliação da produção cultural nos veículos de comunicação, cede lugar às resenhas de serviços que descrevem o evento, as celebridades, e os dados estatísticos do acontecimento. O trabalho de Claudio Tozzi desconsidera estes fatores como estimulo.
É possível saber o que Claudio Tozzi estará fazendo daqui a 100 anos, caso ele seja Matusalém. Existe um fio condutor na ação artística de Tozzi que pode explicar este percurso. O parâmetro é ele mesmo e não o exterior, o que é curioso, dado algumas aparências do assunto tratado, mas verídico, pois o seu movimento inicial é identificar nele mesmo o que o emociona  - isto é interessante do ponto de vista do processo – e como estas marcas psíquicas correspondem a marcas do mundo. Na aparência tratamos de semelhantes. Entretanto, significam coisas diferentes.
O artista está no centro do panorama e este é o seu mirante. No seu caso, o mundo que Tozzi observa e registra é o seu próprio conjunto de relacionamentos, este universo de densidades, planos, intersecções, paralelismos, geometrias: o mundo em Claudio Tozzi.
Como não ver nos seus astronautas, supremo signo da sociedade tecnológica, a manifestação da solidão absoluta? O homem sideral, ligado à máquina por fios, no vazio entre corpos celestes. A sua ligação literalmente visceral com a máquina que o contém e alimenta e a sua indagação sobre a conquista da individualidade diferenciada do coletivo. As escadas que conduzem ao nada. Os pássaros destacados da natureza, declaradamente pictóricos por pinceladas reticulares, afastados da exuberância, são pedaços de vida que nos contemplam. E a geometria feita de estruturas, marcadas por sua rigorosa concepção, com o seu cromatismo harmônico e de tons baixos, as suas relações de planos e linhas tão estruturados e originais, são uma meditação sobre a presença do existente e das relações possíveis entre o espaço e o ser. Na intersecção de planos e linhas encontra-se o registro de uma sensação do universo e na contemplação deste infinito relacional feito de densidades, paralelismo e encontros, está o olhar do homem e a imaginação criativa do homem que traça na contingência terrena o diagrama do incógnito.
É preciso notar que a obra de Tozzi destinado aos pequenos espaços, aos espaços privados, tem uma escala, uma proporcionalidade, que permitiria que ela fosse executada em grandes espaços; e a sua obra destinada ao espaço público tem um detalhamento tão preciso, é tão elaborada na sua possibilidade unitária, que certamente resistiria se o seu formato fosse menor. Na verdade, a obra de Tozzi, a feita para espaços privados e a feita para espaços públicos, possui o mistério ancestral da escala que permite a sua percepção seja em que circunstância for.
À semelhança do próprio perfil pessoal do artista, a sua obra diz muito porque fala pouco. Outras obras, de outros artistas, talvez a maioria da produção estética da nossa época, dizem pouco porque falam muito. A arte acontece entre silêncios, nas pausas, nos intervalos, no espaço entre dois corpos, entre duas formas. Não foi o nosso sábio Lúcio Costa que descreveu a escultura como a arte do silêncio? A arte, toda a arte, dispensa a estridência. Essa essencialidade tão necessária ao artista e à sua arte, tão indispensável para o contemplador e a sua percepção, à sua possibilidade de vivenciar a elevação da linguagem, é o constante atributo da arte de Claudio Tozzi, tanto a que se situa no espaço privado, quanto a que é planejada para o convívio público.
A arte contemporânea, desde o século vinte, teve receio do óbvio. O óbvio não é a verdade, mas a aparência. E, às vezes, o óbvio é a simples indicação da existência de alguma coisa, corpo, espaço ou situação. É constante entre os artistas o medo de sua produção ser considerada banal e insignificante, o que é similar à falta de originalidade, sintoma de ausência de originalidade. Muitas das extravagâncias, dos deslocamentos da criatividade para o gesto tolo e escandaloso, é apenas expressão da ausência de originalidade e tem origem neste pânico mórbido de ser comum e óbvio, Na obra de Cláudio Tozzi não se verifica este receio, certamente porque os seus temas e os seus assuntos emergem da correspondência entre o exterior e o interior, do encontro entre o sentimento e a intuição e signos que podem ser reelaborados. Um aspecto constante no trabalho do artista é sua obra ter um caráter emblemático, o que se manifesta na sua visualidade na qual o tema se apresenta como único, exemplar, original.
Considerado este momento do artista, já na faixa dos sessenta anos, a sua obra adquire de maneira mais incisiva ainda, a particularidade e a identidade. Tudo tem a sua marca pessoal, o seu modo de ser, o seu método de elaborar, o seu processo de transformar esta complexa gama de emoções e relações em uma obra singular. Esta maturidade do artista se manifesta no domínio dos meios expressivos e principalmente no domínio e  conhecimento de si mesmo. Certa vez Katsushika Hokusai (1760-1849), o grande mestre japonês do Ukiyo-é, do período Edo (Tóquio), ao completar setenta anos, declarou que a sua obra só deveria ser considerada a partir daquele momento, pois, agora, já conhecia a estrutura ou essência das coisas. E que, aos oitenta anos, pintaria melhor ainda. E que, aos cem anos, pintaria como os Deuses. 
A identificação da obra, a associação visual imediata entre o artista e a sua obra, o reconhecimento da imagem, é uma característica artística que as pessoas consideram extremamente emocionante. Não só o público, alguns artistas também valorizam esta espécie de marca ou carimbo. Claudio Tozzi, como Pablo Picasso, como exemplo histórico e paradigmático, abdicou desta possibilidade. Preferiu ser reconhecido pelo impulso criativo e por sua fidelidade ao seu processo de elaboração. Esta sim é uma característica contemporânea real da arte, provavelmente impossível em outros períodos históricos.
Próximo da ciência, mas longe da ciência. Tozzi optou pelo símbolo e não pelo signo. Neste sentido se opõe ao caráter da indústria cultural. A história da forma é a história do homem, é a história da espécie humana. Para Claudio Tozzi o objeto de estudo é a densidade do espaço, a correspondência entre corpos e planos, a densidade do mundo que, de repente, se espessa e concretiza. A estrutura geométrica é este espessamento. Nele a aparência não é a realidade da arte, ao contrário, a arte desvenda essa ilusão.
O que hoje é a arte de Claudio Tozzi? Não é outra coisa senão a descoberta, a invenção e o registro da estrutura. E a estrutura é o cerne de tudo, o além da matéria, a origem da matéria, o aquém da matéria, Depois do mistério primeiro da criação, do princípio de todas as coisas, de que temos relatos em mitos e escrituras sagradas de várias civilizações, a estrutura é o começo de tudo o que é conhecido. É o núcleo central do qual se originam todas as formas, o eixo girante que ao circular gera a sua volta a ordem do universo.
Em razão da tecnologia e da ciência atuais o conceito de arte pública tende a se modificar. Os sistemas de armazenamento das imagens, o registro dos documentos, a possibilidade de solicitar a sua presença a qualquer momento, criou um espaço novo. O que doutrinas esotéricas e a literatura de antecipação nos falaram de um arquivo sideral ou dimensional capaz de guardar todas as informações tem na tecnologia contemporânea um sucedâneo terrestre. Está em seu começo é claro, mas indicia  uma materialidade mais sutil, uma tecnologia onírica na qual a informação não se perde ou corrompe, uma memória eterna de todas as coisas inventadas ou descobertas, o que provavelmente não são tão diferentes entre si. Também o conceito de arte popular tenderá a se modificar, pois os meios de comunicação são novos veículos desta manifestação e já substituem as praças da aldeia...
A arte para espaços públicos de Claudio Tozzi, ainda que de cunho muralístico, tem um caráter de permanência. A sua integração com a arquitetura lhe confere a vida histórica da cidade. Mesmo em civilizações desaparecidas, o permanente, o testemunho, é a pedra. Esta perspectiva também é a da nossa civilização. A quantidade de registros eletrônicos da obra deste artista, os documentários feitos do seu método e de suas obras, a qualidade destes registros, apontam para esta permanência mais sutil. E, mais do que isto, mostram a adequação de suas imagens para este novo espaço virtual que se torna, cada vez mais, em espaço coletivo e público.
A obra de Claudio Tozzi sempre teve interesse na cidade, no coletivo, sempre foi feita na proporção correta, na possibilidade de ser ampliada até a dimensão, o formato, na escala da cidade.
O tema deste ensaio sobre a obra de Claudio Tozzi são as esferas sociais do público e do privado onde ele atua e a sua obra está presente. Desde o início de sua carreira, este artista esteve preocupado com a originalidade de sua criação e com a recepção e participação do público. Para ele, procurar a comunicação com o maior número de pessoas, sempre mantendo o nível elevado de concepção, é parte integrante do seu trabalho.  A arte pública de Claudio Tozzi, e a arte pública de tantos artistas significativos de nossa época, juntamente com a arquitetura, retomam um diálogo que parecia impossível, o de rediscutir e retomar o papel espiritual da arte em todas as épocas, o diálogo simbólico com o totem e a Catedral.


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Organização a cargo de Floriano Martins © 2017 ARC Edições
Floriano Martins é poeta e ensaísta, editor de Agulha Revista de Cultura
Página ilustrada com obras de Claudio Tozzi
Foto de JK © Pedro Sgarbi
Imagens © Acervo Resto do Mundo / Acervo particular Jorge Mello
Esta edição integra o projeto de séries especiais da Agulha Revista de Cultura, assim estruturado:

1 PRIMEIRA ANTOLOGIA ARC FASE I (1999-2009)
2 VIAGENS DO SURREALISMO, I
3 O RIO DA MEMÓRIA, I
4 VANGUARDAS NO SÉCULO XX
5 VOZES POÉTICAS
6 PROJETO EDITORIAL BANDA HISPÂNICA
7 VIAGENS DO SURREALISMO, II
8 O RIO DA MEMÓRIA, II
9 ACAMPAMENTO MUSICAL

A Agulha Revista de Cultura teve em sua primeira fase a coordenação editorial de Floriano Martins e Claudio Willer, tendo sido hospedada no portal Jornal de Poesia. No biênio 2010-2011 restringiu seu ambiente ao mundo de língua espanhola, sob o título de Agulha Hispânica, sob a coordenação editorial apenas de Floriano Martins. Desde 2012 retoma seu projeto original, desta vez sob a coordenação editorial de Floriano Martins e Márcio Simões.

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