quarta-feira, 1 de novembro de 2017

VIVIANE DE SANTANA PAULO | Nietzsche, “a lhama” e a vontade de poder


Friedrich Nietzsche foi internado em um sanatório, de onde recebeu alta meses depois com o diagnóstico: incurável. O resto de seus dez anos de vida Nietzsche passou apático e delirando, alojado na casa da mãe e da irmã, completamente isolado. Elisabeth Förster-Nietzsche adotou como missão de vida os cuidados com o irmão solteiro. Entretanto, neste período, cresce o reconhecimento das obras do filósofo que até então recebera pouca atenção do público. Agora seus livros são publicados em grande número de exemplares. Entre as publicações está a obra póstuma, Der Wille zur Macht (A vontade de poder) que levará o filósofo à polêmica fama. Adolf Hitler definiu-a como a mais audaciosa e importante obra da época. A vontade de poder serviu para a glorificação do Herrenmesch (o super-homem). Uma propaganda que possuiu consequências brutais e impregnou a imagem de Friedrich Nietzsche por muito tempo. Ele foi considerado o filósofo da vontade de poder, o filósofo do Übermesch (o homem supremo, o super-homem, o além-do-homem), o filósofo propaganda do Terceiro Reich. Mas foi realmente Friedrich Nietzsche que escreveu A vontade de poder? Ele não dispunha mais de capacidades mentais para escrever o que quer que seja, não possuía conexão com a realidade, não reconhecia as pessoas, não pronunciava palavras legíveis, quase não falava e delirava. Nos laudos médicos consta: incurável, paralisia mental por consequência da sífilis. Portanto, impossível que Nietzsche tenha escrito algo coerente depois de seu colapso, em 1888. Talvez ele tenha elaborado a obra anteriormente, neste caso, o manuscrito deveria estar entre a enorme quantidade de documentos que Nietzsche organizava cuidadosamente. Mas nenhum manuscrito de A vontade de poder foi encontrado, em vez disso, seis cadernos de anotações fragmentadas e sem relação, algumas com a letra ilegível que permanecem indecifráveis. Isso prova que o filósofo possuía a intenção de elaborar uma obra com este título, tratando deste tema, mas com certeza jamais concretizou este objetivo. Mas se não foi Nietzsche, quem escreveu a obra? A suspeita recai sobre a sua irmã mais nova. Todos os documentos e manuscritos estavam em mãos de Elisabeth Förster-Nietzsche, ela controlava rigorosamente todas as publicações que eram lançadas no mercado, toda ideia e pensamento que levavam o nome do irmão. Através das anotações avulsas ela falsificou a obra que o irmão não conseguiu escrever. Mas por quê?
A história dos irmãos Nietzsche começa em Röcken, uma cidadezinha na Saxônia-Anhalt. Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em Naumburgo, aos 15 de outubro de 1844, e foi batizado pelo próprio pai. Therese Elisabeth Alexandra Nietzsche nasceu dois anos depois, aos dez de julho. Aos quatro anos de idade, Nietzsche passa a ser o centro da família quando o seu pai falece, e deve se tornar padre como todos os ascendentes homens. Entretanto, já na juventude, ele duvida da existência de Deus e dos dogmas da igreja. Enquanto isso, Elisabeth frequenta uma escola para mulheres onde aprende a ser uma boa dona de casa, esposa e anfitriã. Com vinte e cinco anos, por meio de recomendação do seu professor, Nietzsche ocupa o cargo de professor honorário na Universidade da Basileia, sem jamais terminar os estudos de filosofia. Elisabeth é contratada pelo irmão para ajudá-lo com a casa. A vida na cidade nobre da Basileia lhe oferece o que ela aspirava. Porém, ela não é levada a sério, o irmão a chama de "a lhama" (das Lama), apelido que fica conhecido entre os intelectuais e professores de Nietzsche. Os irmãos encontram a informação sobre o animal sul-americano no livro da escola, o lhama carrega pacientemente as cargas mais pesadas, mas ao ser mal tratado, ele se deita e quer morrer. Para Nietzsche, “a lhama” era alguém que o auxiliava nas tarefas práticas, domésticas, mas não possuía nenhuma relação com a sua intelectualidade. Nos seis anos vividos na Basileia, Elisabeth apreciava os jantares, as festas e a vida cultural da cidade. Nietzsche possuía dificuldade de cumprir com suas obrigações como professor e no meio social, ademais, sofria de fortes dores de cabeça e ataque de pânico.
Neste período, ele conhece Richard Wagner. O compositor intencionava regressar à Alemanha, após o exílio na Suíça, e planejava construir um teatro fenomenal, em Bayreuth, o primeiro teatro de ópera nacional. Nietzsche deveria ajudá-lo nesta empreitada encarregando-se da divulgação. Assim surgiu a chamada: abaixo com as igrejas, são as catedrais da arte que devem ser erguidas. Wagner acreditava que a sua arte tinha muito mais a oferecer do que as igrejas, do que a religião, e assim ele poderia contribuir para a grandeza máxima do Império Alemão (Kaiserreich). É recíproca a admiração entre os amigos e ambos são críticos em relação à igreja. Inspirado no talentoso músico, Nietzsche escreve O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (Die Geburt der Tragödie aus dem Geiste der Musik, 1872), em que ele trabalha os pensamentos de Wagner e Schoppenhauer. Na inauguração do teatro, em 1876, o ciclo de quatro óperas épicas, O Anel do Nibelungo (Der Ring des Nibelungen), é apresentado durante três dias, com a presença de muitos convidados ilustres. O festival deveria acontecer anualmente, entretanto, a dívida adquirida com a inauguração permitiu que somente a partir de 1882 isso se concretizasse. A "segunda inauguração" foi o auge do ano, até o imperador
Bismarck compareceu. Elisabeth não queria perder esta oportunidade por nada neste mundo. Mas enquanto todos os proeminentes se dirigiam ao teatro, Nietzsche permaneceu em casa. Interrompeu a amizade com Wagner e distanciou-se do amigo. Para Nietzsche, Wagner o havia traído ao encenar Parsifal, o batismo de um cavaleiro, um mistério cristão. A peça é repleta de símbolos religiosos. A obra Humano, Demasiado Humano (Menschliches, Allzumenschliches, 1878), composta de mil aforismas, é também uma resposta à divergência entre eles, alguns aforismas são diretamente contra Wagner. Mais tarde, em 1888, surgiriam as obras O caso Wagner (Der Fall Wagner) e Nietzsche contra Wagner (Nietzsche contra Wagner), nas quais as críticas se reforçam. Nietzsche repete várias vezes ser Wagner o artista da "decadência".
Em uma viagem à Itália com o amigo Paul Ree, em 1882, Nietzsche conhece a escritora Lou Salomé. Ambos se apaixonam por ela. Entretanto, Salomé está interessada nas discussões filosóficas, nas leituras e na vida em conjunto, não em casamento. Eles planejam um grupo de trabalho que não dá certo em razão do ciúme dos dois. Em uma visita a Tautemburgo, Elisabeth percebe o quanto ela é supérflua no meio deles, com as infinitas conversas sobre filosofia e psicologia as quais ela não consegue acompanhar. Da aversão contra Lou Salomé surge o ódio. Quando o irmão lhe conta que Lou estaria pronta para viver com ele em um casamento informal, Elisabeth começa a tecer intrigas entre Lou, "este verme de pessoa", e o irmão. Ela escreve cartas para a mãe e a família de Ree, criando maldosas fofocas, e faz todo o possível para remover Lou da vida de seu irmão, até conseguir.
Em 1883 e 84, o filósofo procura o retiro nas montanhas de Sils Maria, na Suíça. No meio da paisagem repleta de pinheiros e lagos Nietzsche caminha longas horas anotando seus pensamentos e questiona os temas atuais daquela época: a moral cristã e o poder autoritário do Estado. "No que eu devo acreditar senão posso acreditar em nada, em nenhuma salvação, nenhuma vida eterna, erramos no cosmo como um vazio… Deus está morto. Deus permanece morto e tudo vacila. Mas se Deus está morto no que devemos acreditar? Se não existe salvação, se não existe vida após a morte no que devemos acreditar?" A mensagem de Nietzsche é simples: acredite em você mesmo, no seu poder próprio, não espere nenhuma salvação do além, salve-se você mesmo, não siga nenhuma religião, nenhuma ideologia, nenhum dono do poder, livre-se de toda a moral dominante, seja aquele que você é (werde der du bist). A filosofia de Nietzsche é pessoal, seu estilo é a imagem do pensamento na forma de aforismas. Em Sils Maria, ele proíbe a irmã de visitá-lo, sobretudo, após descobrir as intrigas. Aqui ele alcança a sua fase mais produtiva, e escreve Além do Bem e do Mal (Jenseits von Gut und Böse, 1886), O Crepúsculo dos Ídolos (Götzen-Dämmerung, 1888) e O Anticristo (Der Antichrist, 1888). E os irmãos agora seguem caminhos diferentes.
Com trinta e cinco anos ele demite-se do cargo de professor, também por questões de saúde, e não possui mais residência fixa. Elisabeth busca se aproximar de Wagner para obter benefícios e a partir de então ela integra o fã clube do compositor, passa meses na casa de verão da família trabalhando como ajudante na casa ou com as crianças. Richard Wagner, o artista mais influente da época era declaradamente antissemita. O conhecido "círculo de Bayreuth" inicia um movimento antissemita e neste meio Elisabeth conhece o ativista Bernhard Förster. Elisabeth não hesita em apoiar a petição, liderada por Förster e outros, para que os judeus sejam forçados a deixar a Alemanha, demitidos do serviço público, e demais medidas antissemitas (Bismarck recusou-se a aceitar a petição). Depois do casamento, em 1885, o casal segue para o Paraguai, onde pretende construir
uma colônia puramente ária, no meio da selva, a "Neu - Germania". Por sua vez, o irmão tenta criar uma boa impressão do cunhado, mas não consegue. Em uma carta ao amigo Overbeck, Nietzsche escreve: "… o maldito antissemitismo … é a causa de uma ruptura radical entre mim e minha irmã". Para Nietzsche, o antissemitismo era baseado em ressentimentos, que se alimentava da inveja e do preconceito e isso era o que ele abominava e procurava superar.
Ainda em Sils Maria, Nietzsche passa por uma forte crise existencial, toma medicamentos e drogas, experimenta ópio e brinca com a ideia de suicídio. Sente-se traído pela irmã, pelo amigo Wagner, e sente-se solitário. As fortes dores de cabeça agravam-se, acompanhadas de vômitos e dias passados na cama. Doente e com o aumento da cegueira ele escreve Assim Falou Zaratustra (Also Sprach Zarathustra, 1883). Em seis semanas o filósofo levou Zarathustra a descer da montanha do conhecimento, um sábio eremita que dialoga consigo mesmo, um andarilho que comemora a morte de Deus como uma libertação pessoal, que desistiu da necessidade de procurar a verdade absoluta, o eremita que superou o ódio e o ressentimento, que vive em harmonia consigo e com o cosmo, o Übermensch. Nietzsche estava convencido de que em cem anos Assim Falou Zaratustra substituiria o Novo Testamento. Muitos elementos estilísticos nesta obra baseiam-se nos escritos da Bíblia. O filósofo considerava ser essa a sua obra prima e a denominava de “o quinto evangelho”. E nela ele propaga o inverso das ideias da irmã e do cunhado.
Em 1889, Bernhard Förster se suicida. Elisabeth segue mantendo as aparências e escreve ao irmão informando ter o marido sofrido um acidente de cavalo e morreu. Em 17 de dezembro de 1888, em Turim, Nietzsche sofre um colapso nervoso, e abraça o cavalo que acabara de ser chicoteado na rua e não o larga mais. As pessoas se detém curiosas com a cena. Seu locador, que acaba de passar, consegue levar Nietzsche para casa. Em 1890, parcialmente paralisado, quase cego, e sem poder ficar de pé e nem falar, Nietzsche recebe alta do sanatório sendo diagnosticado como incurável, e é levado para a casa da mãe, em Naumburgo. A mãe falece em 1897. Elisabeth regressa do Paraguai, viúva e sem nada, em 1893, e logo trata de criar a imagem da irmã fiel que se sacrifica para cuidar do irmão, e de seu testamento literário, em determinados casos, sem escrúpulos. Elisabeth viaja pela Europa a fim de resgatar todos os manuscritos, as cartas e os documentos em posse de amigos e professores, qualquer bilhete ou esboço. Em 1894, ela inaugura o arquivo Nietzsche que se torna também um local de culto ao filósofo, seus discípulos vêm de diversas cidades europeias visitá-lo, e Elisabeth torna-se a sua grande sacerdotisa.
A industrialização, a tecnologia e a velocidade transformaram as perspectivas das pessoas e Nietzsche passou a exercer uma influência decisiva como nenhum outro filósofo da modernidade. Os socialistas, as mulheres emancipadas, os jovens liam Nietzsche. A energia, a radicalidade e a importância da visão pessoal, elementos característicos de sua filosofia, atraíam muitos leitores.
Anteriormente, suas obras possuíam tiragens pequenas. A quarta parte de Assim falou Zarathustra ele mesmo precisou financiar, um total de quarenta e cinco exemplares e apenas sete foram presenteados a amigos, com relação a Além do bem e do mal. Prelúdio a uma filosofia do futuro (Jenseits von Gut und Böse – Vorspiel einer Philosophie der Zukunft. 1886), somente 114 exemplares foram vendidos. Agora, suas obras são publicadas em grande número, o que significou influência e poder para Elisabeth. Além do arquivo, ela abre uma lucrativa editora especializada em Nietzsche, e escreve a sua biografia, publica suas cartas. A partir das cartas, ela denuncia o amor e o respeito entre os irmãos, porém, os documentos são falsificados, alguns deturpados e outros manipulados. Ela apaga o nome do destinatário com gilete, por exemplo, e direciona a mensagem para si, ou queima alguns trechos específicos, tornando-os ilegíveis, ou repica a carta e associa a outra também repicada. Ela deturpa o relacionamento e procura ressaltar a sua pessoa como a única mulher na vida do irmão e a admiração dele por ela. Ao examinar os originais das cartas chama a atenção os evidentes vestígios de manipulação deixados por ela. No caso de uma carta escrita à mãe, no lugar do destinatário, foi inserido o nome de Elisabeth, a carta à mãe era repleta de termos carinhosos e de grande respeito.
Passados sete anos, ao regressar do Paraguai, cuidando dos arquivos do irmão, Elisabeth Förster-Nietzsche conseguiu fama e dinheiro. Passados dez anos de sofrimento, o filósofo falece, em 25 de gosto de 1900. Um ano depois, Elisabeth publica A vontade de poder (Der Wille zur Macht), que logo se torna uma sensação. Provavelmente, o livro já estava pronto e ela aguardava a morte do irmão para publicá-lo. Nietzche pretendia escrever uma obra com este nome, deixou seis cadernos de anotações avulsas e desconexas cuja pesquisa perdura até hoje. Mas algo é indiscutível, Elisabeth usou as notícias como bem quis, suprimiu, alterou passagens, incluiu ideias que não eram as do filósofo, mas as suas próprias. Friedrich Nietzsche nunca teria publicado uma obra assim. E de repente, o filósofo se torna o defensor da cultura de supremacia germânica e antissemita — o oposto de sua filosofia. Em 1933, Adolf Hitler chega ao poder e nada mais a calhar do que um filósofo renomado para propagar a ideias nazistas de supremacia da raça ariana. O ditador visita a senhora Förster-Nietzsche várias vezes e as visitas são acompanhadas da imprensa, fotografias e artigos surgem abundantes nos jornais. Hitler conhecia a importância dos símbolos. Com a idade de 86 anos, “a lhama”, torna-se o centro das atenções, mais do que o seu irmão. Elisabeth Förster-Nietzsche falece em 1935, Hitler comparece ao enterro como um filho desconsolado.
Depois de quase um século de sua morte viria à tona a verdadeira dimensão deste crime. As pesquisas continuam e os resultados são categóricos. Por conseguinte, a irmã obteve grande influência na obra política de Nietzsche, o que contribuiu para prejudicar radicalmente a recepção de sua filosofia durante várias décadas. Friedrich Nietzsche não pode escrever este seu último trabalho, ele não é o autor de A vontade de poder, mas através de suas verdadeiras obras o filósofo deixou uma mensagem que se opõe à loucura que propagaram em seu nome.   

NOTA
Baseado no documentário de Hedwig Schmutte, Wahnsinn, Nietzsche! – MDR, Alemanha, 2016; livro: Friedrich Nietzsche, Sein Leben erzählt von Otto A. Böhmer, Diogenes – Verlag, 2007; texto de Friedrich Ekkehard Vollbach, Friedrich Nietzsche und seine Schwester Elisabeth, das Lama; texto de Ulrike Ackermann, Elisabeth Förster-Nietzsche, Eine fatale Emanzipation; livro: Carol Diethe, Nietzsches Schwester und der Wille zur Macht, Europa Verlag, Hamburg, 2001.


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VIVIANE DE SANTANA PAULO (Brasil). Poeta, romancista, tradutora e ensaísta. Em 2012, participa do VIII Festival Internacional de Poesia em Granada, Nicarágua, e em 2016, do XX Festival Internacional “Noites de Poesia” de Curtea de Arges, Romênia. Atualmente, vive em Berlim. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
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