segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

ISIS ROST | Navilouca, revista de inversão


Em vez de filme, revista.

Torquato Neto

Há pouco menos de um século, o modernista Oswald de Andrade nos advertia “uma revista é uma instituição séria, muito séria em meio a balbúrdia das cidades modernas, em que a gente só abre caminho a gritos roucos e apitos esquisitos” (Klaxon. Jornal do commercio, São Paulo, 30 de maio de 1922). Como já foi dito, vanguardas sem as revistas, não são vanguardas. Basta correr a vista na literatura do século XX para este fato ser óbvio, da Inglaterra de Blast à Argentina de Proa, percorrendo a Alemanha de Der Blaue Reiter à França com La Révolucion Surrèaliste. O Brasil não é exceção, e não teria como tecer uma compreensão do Modernismo, por exemplo, sem passar por este projeto tão vital aos movimentos: desde Klaxon à Revista de Antropofagia, chegando ao Noigandres do Concretismo. Então alcançamos a contracultura, com a Flor do Mal, a Navilouca, e tantas outras. Contudo, na contracultura a revista difere num aspecto essencial: ela é concebida como obra coletiva, onde a voz do autor individual dá lugar ao coro do grupo, no caso um coro de descontentes. Na cultura subterrânea, as revistas supõem estratégias culturais e sociais coletivas, não obstante o caráter recorrentemente efêmero, e comportando ao mesmo tempo uma constituição individual e coletiva. O escritor e poeta Paulo Leminski escreveu em artigo para jornal ainda na década de oitenta um ensaio onde comenta acerca das “revistas de invenção”, publicações ousando inventar um novo caminho para a reflexão num momento crítico, levando em consideração a transição do nosso campo cultural. Leminski coloca em evidência a revista Navilouca, como emblemática ao movimento de contracultura marginal insurgente.
A vida e a obra do poeta e jornalista Torquato Neto apresentariam as diferentes dimensões na relação entre a contracultura e a loucura, evidente no transcorrer das práticas pessoais e na produção cultural do cara. A proximidade com o poeta Waly Salomão possibilitou diversos trabalhos, entre estes, o surgimento da revista Navilouca, considerada peça crucial para o entendimento da divulgação e produção da imprensa alternativa na contracultura brasileira. Instigado pelas transformações ocorridas, no início de 1971, Torquato planeja e começa a organizar a revista Navilouca. Reunindo para zarpar os trabalhos da nata da contracultura artística brasileira, Torquato idealizou este trabalho como “um almanaque dos aqualoucos”. Porém, com o suicídio prematuro em 1972, o projeto acabou sendo atrasado por dois anos, vindo à tona apenas em meados de 1974, graças à reunião dos esforços de Waly Salomão e o financiamento de Caretano Veloso. Não é novidade que Torquato estava envolvidíssimo com a produção da revista Navilouca, sempre citando em cartas a necessidade de circular uma revista como estas naqueles tempos...
Com uma produção gráfica sofisticada, capa policrômica e plastificada, a revista Navilouca possuía 92 páginas, no formato 36,2 cm x 27,4 cm. Navilouca transmutaria as ‘imagens da loucura’ da época em manifestações artísticas, construindo um mosaico, composto de imagens, poesias, cinema e música, num caldeirão antropofágico, disposta a traduzir as peculiaridades culturais da contracultura, podendo ser percebida como enciclopédia da cultura subterrânea, por reunir os principais artistas e agitadores culturais da época, como Hélio Oiticica e Augusto de Campos, além daqueles artistas ainda não tão conhecidos, como o poeta Chacal, por exemplo. A proposta da Navilouca seria “quebrar” com a ‘normalidade’ estabelecida (durante a ditadura), assumindo o experimentalismo e privilegiando a imagem além do texto, onde inclusive o corpo poderia ser percebido como instrumento de revolução através do modo de viver e de se comportar. Privilegiando a invenção e a desconstrução dos limites impostos, ataca de maneira direta a ordem sancionada e revela as facetas culturais, artísticas e intelectuais da época, onde a imagem é uma espécie de categoria estruturante dos textos.
A revista traduziria a viagem experimental embarcada pelos artistas após o momento revolucionário proposto pela Tropicália, abarcando justamente o período emblemático da contracultura no Brasil, entre 1969 e 1974. Neste momento, os textos de Foucault acerca do poder entravam “na moda” aqui no Brasil, sendo amplamente difundidos na revista “Oficina”, e entre determinada parcela da intelectualidade brasileira, incluindo Torquato, com acesso aos escritos de Foucault, supostamente inspirado nestas leituras para a proposta da revista Navilouca, retratando perfeitamente esse processo de marginalização proposto por Foucault, bem numa época onde a cultura brasileira se transformava em algo “sujo”: aí cessa a utopia, dando início a uma realidade sem inocência, tragada pela produção de uma arte buscando perder-se entre a realidade e a ficção.
Neste contexto,

                       a loucura seria uma perspectiva
                       capaz de romper com a logica racionalizante
                                 imposta pela "direita" e pela "esquerda".

Talvez a definição mais aproximada da revista tenha sido feita na página 73 do livro Impressões de viagem, de Heloísa Buarque de Hollanda, e merece destaque: “Navilouca recolhe também a intelectualidade desgarrada, louca, cuja marginalidade é vivida e definida por conceitos produzidos pela ordem institucional; seus viajantes estão, portanto, fora mas ao mesmo tempo dentro do sistema. Essa ambiguidade é evidente no próprio projeto da revista.” [Lançado em 1980, Impressões de viagem, CPC, vanguarda e desbunde, se transformou em referência fundamental a respeito da contracultura brasileira.] Heloísa Buarque de Hollanda aponta nas pesquisas que o fator técnico da revista Navilouca, é preservado, mas, simultaneamente, subvertido, estabelecendo desta maneira o estranhamento e tensões no padrão.
Sintetizando a crise vivida por toda uma geração, a revista ao mesmo tempo representaria o nascimento e o epitáfio da contracultura no Brasil. Com uma apresentação em “edição única”, decreta desde o início o próprio fim, rompendo a lógica da continuidade imposta pela mercadoria. Encontra aí uma saída genial para burlar a censura da época, onde era comum após o segundo ou terceiro fascículo, uma revista ou jornal serem proibidos: ser planejada para ser apenas UMA! Articulando o rigor técnico e a ‘loucura desgarrada’, representaria a intelectualidade marginalizada durante a ditadura. Numa revista feita de imagens, memórias e montagens, seria a figura de mosaico a mais proxima de defini-la.
Ninguém viveria de forma agradável em tempos políticos difíceis, tais implicações desaguariam no processo de formação de novas identidades, favorecendo a perspectiva de revolução comportamental e a politização da subjetividade. Em busca de alternativas àquela situação opressiva, a loucura se apresenta como o outro lado da moeda em relação à racionalidade estabelecida durante a ditadura.
A revista é múltipla, pois a própria contracultura como um mosaico desdobra-se em diversas vertentes na literatura, artes, música, cinema, moda, estética e, claro, na imprensa alternativa. Aqui, a Navilouca figura como peça fundamental na busca de espaços marginais de comunicação. Assim como um despertar nos arrancando da ilusão, considerar a hipótese das imagens na revista Navilouca conterem significados assumidos como loucura passa a ser questão de ordem para o entendimento das transformações da cultura brasileira na época. É exatamente esta a posição da revista, entre a subjetividade percebida como sinal de loucura e a transgressão às normas estabelecidas pela racionalidade autoritária da ditadura. É deveras interessante a revista Navilouca ser concebida como a síntese refletindo a expressão da radicalidade assumida pela cultura, através da postura marginal dos artistas frente a indústria cultural integrada e racionalizada dominante dos espaços de produção e criação artística no início da década de 1970.
Mas hoje, quando vemos novamente as nuvens negras ameaçam pairar sobre o solo brasileiro, este pode ser o filão onde reside nossas melhores inspirações, sem comentar nossas maiores esperanças. Como a pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda nos esclarece, na década de 1970 a estética de recortes se faz guerrilheira, e além “... da Navilouca – seu carro-chefe – a sucessão de publicações do pós-tropicalismo, como Polém (74), Código (75), Corpo Estranho (76), e Muda (77), demonstram sua continuidade como tendência viva na produção de hoje. (...) aqui, o experimentalismo vem “sujo” pela marca do vivenciado, pela procura de coerência entre produção intelectual e opção existencial, pelo que chamam de ‘nova-sensibilidade.’”
No livro, Heloísa afirma a relevância da revista, já nascendo como referência, desenvolvendo nos trabalhos apresentados estudos culturais, em específico a contracultura marginal, acusando uma dificuldade de avaliação da contracultura, por absorver qualquer tipo de atividade criadora com
características autônomas. Justamente esta autonomia é denominada de marginal, com relação aos meios de comunicação e distribuição em massa. Essa marginalização da contracultura brasileira, porém, não calaria suas possibilidades de divulgação. Valorizar a produção marginalizada implicaria numa crítica ao mercado e à indústria cultural, remetendo à discussão proposta por Adorno acerca da autonomia da própria arte. Esta dificilmente existe numa forma pura, pois está marcada por conexões causais, mas poderia ser alcançada através da “não vinculação ao mercado”. Neste sentido, a contracultura marginal funcionaria como forma de resistência e busca de uma identidade própria, refletida na proposta da revista Navilouca. A contracultura, a princípio negada pelo mercado, se reveste desta mesma negação para afirmar-se marginal.
Considerado guru da contracultura brasileira, Carlos Maciel comenta como a contracultura teria caracterizado uma crítica bastante contundente ao predomínio da racionalidade. A “ênfase na linguagem verbal” como parte dessas “manifestações da racionalidade” encontraria alternativa, onde se “propunham imagens, o corpo, a música, a arte, a emoção, o místico, o lúdico”. Partindo deste raciocínio, a pesquisadora Patrícia Barros aponta a Navilouca como a expressão pura do  contexto da época, numa “preocupação de veicular discutir e experimentar textos estritamente ligados aos dados de emergência contracultural, assim como todos os símbolos a ela ligados à realidade política e social brasileira”. Através desta extensa teia de comunicações e referências nacionais e estrangeiras, é indubitável a contribuição da Navilouca para a formação do discurso da contracultura no Brasil.


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ISIS ROST (Brasil). Pesquisadora e ensaísta. Formação em Ciências Sociais (UFMA). Autora de O Risco do Berro – Torquato Neto morte e loucura, uma viagem através da vida de Torquato, tendo como eixo a aproximidade dele com os temas da morte e da loucura, tão presentes também naquele momento. O preente texto, cedido pela autora, é o último adendo do livro referido. Página ilustrada com obras de Paulo Aguinsky (Brasil), artista convidado desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 105 | Dezembro de 2017
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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