sábado, 28 de abril de 2018

CLAUDIO WILLER | Alguns livros da Sol Negro


1. Arp e Huidobro: parceria luminosa


Hans Arp e Vicente Huidobro, III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes: tradução, nota preliminar e ilustrações de Floriano Martins, Sol Negro Edições, de Natal, RN; Edições Nephelibata de São Pedro de Alcântara, SC; 2012. Tiragem limitada de exemplares numerados; pode ser encomendada às editoras através de suas páginas de internet, solnegroeditora.blogspot.com.br ou edicoesnephelibata.blogspot.com.br.
Embriaguez poética, é o que provoca essa edição tão bem preparada por Floriano Martins. Dá a impressão de cada frase com metáforas inusitadas de Os cantos de Maldoror de Lautréamont abrir-se, caixinha misteriosa, para dela saltarem novas imagens que, por sua vez, se multiplicam. Resultado da parceria de dois artistas exponenciais, o franco-alemão (ou alemão naturalizado francês) Hans Arp e o chileno Vicente Huidobro. Em 1931, passavam férias juntos e resolveram escrever as três “novelas exemplares” (o título é alusão à série de relatos de Cervantes).
Basta citar o começo, para dar uma ideia:

Era um dia de Natal, o 1º de maio. Do céu caiam homens de neve e tonéis cheios de trovões. Sobre o mundo, flutuavam os três últimos corações calafetados: a Liberdade, a Igualdade, a Fraternidade. Era o último dia do ano novo. A árvore do idealismo, essa árvore sentimental na qual se balançavam os ninhos dos filósofos materialistas, foi abatida pelo golpe de um só trovão de hélio.

O restante segue assim, na mesma fusão de lirismo e ironia. Lembra as escritas automáticas de Benjamin Péret. Surrealismo? Huidobro, autor de poderosas prosas poéticas e de uma epopeia moderna, Altazor – sua atualização do Corpus Hermeticum dos primeiros séculos d.C –, foi o iniciador e a meu ver o poeta de maior peso dos vanguardismos hispano-americanos; e um paranoico, polemista desenfreado que não poupou Breton e seus parceiros (além de haver acusado Pierre Reverdy de plagiá-lo e das recorrentes brigas com Neruda): sua biografia aventuresca o torna interessante como personagem, e não só como autor.
Arp, famoso por sua contribuição às artes visuais, também foi um excelente poeta; artista completo. Teve participação no surrealismo. Ambos se encontraram no movimento Dadá, por volta de 1918. Independentemente do mapeamento em grupos e tendências, as três prosas em parceria e as duas séries de poemas reunidos por Floriano Martins exibem um espírito surrealista pelas imagens poéticas, pela criação espontânea e coletiva, e pelo inconformismo e rebeldia de seus autores. Celebram a imaginação criadora.
Em vez de comentar e interpretar, prefiro transcrever trechos de poemas de cada um, Arp e Huidobro. Leitores entenderão do que estou falando:

HANS ARP:

Ela desaparece, desaparece
em sua própria luz.
Ela desaparece, desaparece
Em sua pureza, em sua doçura
Sonhaste sobre o índice do céu
entre os dois últimos flocos da noite
A terra se cobriu de lágrimas de gozo.
O dia despertou em uma mão de cristal.

VICENTE HUIDOBRO:

As viagens dos sonâmbulos em luz de finura
Respiram minhas divagações
Quando chegam os poetas com os rios amigos
Para levar as almofadas da ternura
Ponho sapatos novos em minhas canções
Os ladrões buscam pirâmides nos olhos em calma e sem música
Nos belos olhos dos dromedários
Ou nas espirais de ar
Que deslocam as bailarinas geográficas

Não dá vontade de ler mais?
Da mesma editora Sol Negro, também saiu Abismanto, série de poemas de Viviane de Santana Paulo e Floriano Martins: intensa, mostra algo da melhor poesia contemporânea brasileira. E outra leitura necessária, Visões das Filhas de Albion de William Blake, em tradução impecável de Márcio Simões, criador dessa editora.
Impressiona, neste começo de 2013, o volume de matérias com bobagens recorrentes sobre vendas de livros. Deveriam dar atenção às edições de qualidade, como estas; que, não obstante, acharão seus leitores.


2. Aldo Pellegrini, o grande poeta surrealista argentino, é publicado no Brasil


Em comum a usuários de drogas e leitores de poesia de qualidade: para achar bons produtos, é preciso ter conexões, bons contatos. A observação, em uma entrevista recente, foi a propósito das editoras à margem do mercado como a Sol Negro de Márcio Simões, de Natal, RN, – com o luminoso III novelas exemplares & 20 poemas intransigentes de Hans Arp e Vicente Huidobro. Da Nephelibata de São Pedro de Alcântara, SC. A Lumme, de Bauru, SP, com o provável melhor lançamento de 2013, Poesia reunida de Radovan Ivsic. Os novos poetas brasileiros pela Patuá, Dobra, Kazuá. O ensaio A arqueologia do resíduo: os ossos do mundo sob o olhar selvagem de Marcus Rogério Salgado, Antiqua, São Paulo: Flávio de Carvalho tratado como merece (voltarei a comentar).
Abulia da crítica e mercado: lançamentos como esses e, agora, dois livros de Aldo Pellegrini – Construção da destruição, poemas, tradução de Rodrigo Barbosa, e Sobre surrealismo, organização, tradução e prefácio de Floriano Martins, ambos pela Sol Negro, mais uma vez em edições visualmente sedutoras – terem como principal divulgação este blog (sorte de meus assinantes).
Com Aldo Pellegrini (1903–1973), chega a nós a grande poesia argentina do século 20. Inclui, além de Pellegrini, Enrique Molina, Alejandra Pizarnik, Francisco Madariaga, Oliverio Girondo (único com livro publicado aqui, Masmédula pela Iluminuras). Todos com imagens, tocados ou inspirados pelo surrealismo. Pioneiro, Pellegrini descobriu o surrealismo em primeira mão, em 1924. Em 1926, já lançava a revista Qué e liderava o primeiro grupo surrealista em língua espanhola. Além de outras publicações, fez com Molina e Madariaga a revista A partir de cero em 1952. Traduziu Lautréamont. Preparou antologias e publicou outros poetas, como Girondo. Muito apropriado o paralelo, por Floriano Martins, do pensamento de Pellegrini sobre poesia em Sobre surrealismo e aquele de Octavio Paz em O arco e a lira.
A seguir, dois excertos de Construção da destruição. Quem desejar mais, acesse http://solnegroeditora.blogspot.com.br/.

O LIMITE DO DIÁLOGO

Rua de duendes de primavera que atrai os homens sedentos e sacode sua poeira à direita das respirações, por um caminho de olhares furtivos, oh brancos seios, em que esquecimento de horas de perigo os encontrei?
Ardendo até que nos detém uma frágil muralha de calma, um despertar de ruídos e perfumes.
Já não quero retroceder nos caminhos, acossado pelas migrações das medusas.
Para o oriente as mãos apontam a partida do sol da gravidade.
Já não quero envelhecer nos hotéis carcomidos pelas proibições, onde os transeuntes se imobilizam envoltos em seu sonho enquanto os cipós crescem ávidos até a vertente dos pássaros.
Um mar distante e o próximo sangue travam o diálogo da frieza e do ardor. Os teatros estão desertos.
Os passos se afastam na solidão que tu respiras e os rostos balançam.
Os desconhecidos se saúdam profundamente até o limite da petrificação.
Aspirando a um retorno de outros climas em que a vegetação se acende e o desejo faz ferver sua surda potência até consumir-se a si mesmo sem chamas, sem cinzas.
Voracidade do hálito ao atravessar impávido o fosso que a tudo separa.
Estamos no limite do diálogo refugiados nos portais onde um sol sem esperança renuncia a iluminar a amarga quietude. Moendeiros da moleza suportando incrédulos a consagração da inocência.
Estamos no limite do diálogo, ali onde se alcança o coração do conhecimento. Assim se logra arrebatar sua mercadoria dos traficantes do mistério e da solidão, assim se afugenta os mercadores do silêncio.

OS PERIGOS DA DANÇA

[…]
Uma chuva de formas nascentes
restabelece o mundo dos objetos
tuas mãos chamam em vão para o coração das coisas
tuas mãos ávidas do dinheiro que compra a pureza
Tuas mãos ávidas do dinheiro que compra a beleza
hoje recolhem apenas o martírio do ar, a névoa das respirações
conserva no oco das mãos
o tempo de teu cansaço
Quando os olhares se consomem
quando se recolhem as coisas familiares em seu vazio e sua sombra
neste limite da terra onde as horas não passam
a espera
como um grande vento gelado te despoja.


3. Enrique Molina, Vicente Huidobro, Dolfi Trost


Por uma editora alternativa, a Sol Negro de Márcio Simões. Edições artesanais, numeradas. Podem ser adquiridos em solnegroeditora.blogspot.com.br
O surrealista Enrique Molina é um dos meus prediletos. Representa a grande poesia argentina do século 20, junto com a alucinante Alejandra Pizarnik (quando teremos uma boa edição brasileira dela?), Aldo Pellegrini, Julio Llinás, Francisco Madariaga e Oliverio Girondo. Impressiona-me seu fluxo de imagens, do qual transcrevo a seguir um exemplo, “Mercado”, um dos poemas deste Costumes Errantes ou A Redondeza da Terra, traduzido por Floriano Martins, que organizou e prefaciou.
Vicente Huidobro é enorme. Sua obra não se resume a Altazor, paráfrase do hermetismo e um dos grandes livros de poesia do século 20. Tremor do céu é prosa poética “caminhando sobre o fogo das idéias e conceitos”, como observa Floriano Martins, que prefacia e traduz. Abre com um dos manifestos do criacionismo, “A poesia”, sobre a significação mágica da linguagem, “a única que nos interessa.” Huidobro completa o grande trio de vanguardistas hispano-americanos, com o também chileno Pablo Neruda e o peruano Cesar Vallejo (completa? inicia, penso). Há chilenos que não partilham essa opinião: acham-no demasiado europeu (viveu na Europa, escreveu parte de sua obra em francês). Quero ler uma biografia de Huidobro. Que aventureiro paranoico. Comunista roxo, reivindicou títulos de nobreza; esteve nos fronts da guerra civil espanhola e da segunda guerra mundial; foi sequestrado e espancado; protagonizou um duelo; polemizou com meio mundo, Neruda, Reverdy, surrealistas, disparando acusações de plágio. Poeta-personagem, intenso.
Uma excelente surpresa, o surrealista romeno Dolfi Trost. Não conhecia. Imagens fosforescentes foi preparado por Alcebiades Diniz Miguel, um especialista no assunto achado por Márcio Simões. Traduz, contextualiza, informa sobre o autor desta narrativa onírica, característica de um leitor de Raymond Roussel. Alcebiades também trata do surrealismo romeno de Gherasim Luca, Paulo Paün, Gelli Naum e Virgil Teodorescu. Edição que soma informação à fruição poética.
Macio Simões é um editor que não descansa. Envia também o volumoso e original )poemaIrio( de Eli de Araújo, reunião de cinco de seus livros. A ser comentado.
Antes de mostrar um dos poemas de Enrique Molina, duas palavras sobre o que, eufemisticamente, poderia ser chamado de “mercado editorial” no Brasil, neste momento. Isto, postei no Facebook:

Soube de livraria – grande rede – ameaçando incinerar livros (bons) se editor não pagasse o custo da remessa de volta da consignação. Aqui, alguns – muitos? – encaram doação como concorrência e não como estímulo e formação de novos leitores. Por essa e outras que alguns editores só operam por venda pelo próprio site.

E isto, já havia postado aqui, neste blog, junto com a chamada para o lançamento do meu A verdadeira história do século 20:

 … recentemente, ao dar palestra fora de São Paulo sobre Geração Beat, nenhum dos meus livros a respeito estava disponível em livrarias locais. Isso, pelo simples e raso motivo de que essas livrarias locais deviam acertos de consignações para minha editora, impossibilitando colocar novos exemplares. Então, PARA MIM CHEGA.

Aos alternativos, portanto. Através dos quais sai o que já recomendei a editores, sem resultado – a importante coletânea de Gregory Corso por Márcio Simões, agora publicada pela Nephelibata, ou Liberdade ou o amor! de Robert Desnos, traduzido por Eclair Antonio Almeida Filho e Odulia Capelo, idem pela Nephelibata, ou nada menos que Connaissance par les gouffres de Henri Michaux, sem que ninguém se tocasse… Etc.

ENRIQUE MOLINA

MERCADO

Música das colinas áridas
Em cujo som o vento permuta
Pedras por resinas de prata
Areia por legumes cálidos
Solidão por grãos ansiosos
Mantas por borboletas de asas ardentes como a cobiça
Tesouros errantes postos ao acaso da festa
Cujos chapéus de fogo protegem da sombra
Nos pátios abertos como a ferida eterna do desconhecido
Oculta por cabeças de leão e espelhos que lampejam
No sangue das estações

Oh estes grandes fogaréus sólidos plantados sobre pedras!
Estas caixas de luxúria estas presas de flancos devorados pela folhagem do sol!
Estas escadarias de saque!
Estas fúrias nascidas nos mais altos êxodos do ano!
Estes cueiros e avelórios e serpentes e ferros e cobertores e tinturas e sacos e comidas e cóleras!
Destilando o obscuro veneno da terra
As fórmulas mais puras do desejo
Que tão somente interroga o vagabundo de olhar tristíssimo
Sempre na beira da alma
Sempre molhando com seu sangue instantâneo as fauces do oráculo
O homem do coração às cegas
Sentindo desabar enquanto passa o poder de um país decapitado
Cuja enorme cabeça deslumbrante rola a seus pés
Com o negro estrondo da distância


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Agulha Revista de Cultura
Número 111 | Abril de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
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