Um dos jogos linguísticos surrealistas mais
interessantes era/foi a desconstrução de provérbios. Há um desses jogos, muito conhecido,
de Eluard e Péret. Normalmente, diz-se il
faut battre le fer quand il est chaud
(o equivalente em português seria: é preciso malhar o ferro enquanto está quente,
ou seja, é aproveitar a ocasião oportuna para fazer o que se tem de fazer). Conselho
prático em nada subversivo, simples busca de eficiência. Paul Eluard e Benjamin
Péret pegam nesse provérbio e o transformam jogando com similitudes fonéticas: Il faut battre sa mère pendant qu’elle est jeune
(é preciso bater na sua mãe enquanto ela é jovem). Ou seja: as mães são tão poderosas
que é preciso domá-las enquanto elas são jovens; quando elas envelhecem, tornam-se
ainda mais assustadoras, como no filme de Woody Allen em que a mãe judia, do alto
do céu de Nova York, dá ordens, à vista de todos, ao filho apavorado e envergonhado.
Mas há expressões proverbiais
que parecem não precisarem de transformação. Elas já são por si, na sua forma canônica,
bastante estranhas. Há uma expressão em francês que repito sempre aos meus alunos:
ne pas avoir les yeux dans ses poches
(literalmente não guardar os seus olhos nos bolsos). Ou seja: quando se olha, deve-se
olhar para valer. Há ainda um outro provérbio francês que sempre me agradou muito
pelo seu aspecto de atrevimento descomplexado: un chien peut bien regarder un évêque. Tradução literal: um cão pode
muito bem olhar um bispo. Não fui eu que o criei nem o transformei. Ele existe.
O provérbio estranho aparece,
por exemplo, numa obra de Barbey d’Aurévilly, esse ultra-romântico admirável nunca
estudado na Universidade brasileira, num volume de novelas, Les diaboliques (1874): “J'avais sa voix qui me parlait au-dessus de ma tête et je n'osais guère me
retourner pour le voir, car, quoiqu'un chien regarde bien un évêque, ce n'est pas
un homme bien commode à dévisager.” A frase está num dos contos de Barbey d'Aurevilly, em L’ensorcelée.
Olhar de frente, eu inferior,
um personagem grande e importante como um bispo, é assumir a possibilidade de exercer
livremente o olhar. Portanto o espírito crítico.
Meu título, respeitoso e
admirativo, tenta ver, por um lado, a contribuição inestimável de Glissant para
a compreensão do meu entorno, - do nosso entorno americano -, destacando as várias
pistas que propõe a sua obra, ao mesmo tempo de ficção e de ensaio, como modelos
de análise. Isso corresponde à primeira parte do meu título. E também, sem que se
quebre a admiração pelo poeta e pelo romancista, lançar um olhar de cão que olha
um bispo sem saber que é um bispo, ou sem saber sequer o que é um bispo. E um bispo
é, no nossso Ocidente, mais do que uma vaca sagrada.
Creio que um dos problemas
da Universidade brasileira é a moda dos modelos de análise. Conheci várias. A moda
da análise marxista sociológica, dos estruturalistas (Propp, Greimas e o seu modelo
actancial), a da desconstrução etc., etc. Espero que Glissant não seja apenas uma
nova moda mas um real instrumento de conhecimento. Mas para tal é preciso olhá-lo
como um cão olha um bispo. E adaptar, caso necessário, o seu modelo à nossa realidade
cultural na sua complexidade de massa folhada (a expressão é de Lévi-Strauss). E
para adaptar é preciso descobrir as brechas por onde escorre/escapa a realidade
no seu modelo. Sem condescendência nem temor.
Eu diria que, em certos aspectos
talvez menores, é até fácil contestar Glissant. Assim, por exemplo, como muitos
já contestaram Freud e Freud continua como fermento vivo a inspirar novos ensaios.
É saudável contestar Glissant. Até eu, como cão que ousa olhar um bispo, já publiquei
três/quatro textos, na França e na Itália, fazendo reparos a alguns aspectos da
sua obra: um pela AUF,[1] outro num nº especial
sobre Glissant publicado pela revista Francofonia
(de Bolonha)[2], o terceiro numa revista
igualmente italiana, RIMe.[3] É fácil descobrir que
Glissant cita às vezes/muitas vezes de memória (e esta pode falhar) ou inventa simplesmente
citações de Césaire (último colóquio de Paris no final de 2012).[4] Ou enfim que suas traduções
do espanhol e sobretudo do português, reivindicadas explicitamente na sua última
antologia, revelam o desconhecimento quase total das duas línguas e das suas literaturas.[5] É preciso fazê-lo para
que o essencial da sua obra possa funcionar como fermento vivo.
Considero a presente comunicação
como um exercício crítico para suscitar um debate que poderá ser interessante. Este
é um dos casos em que é certamente necessário explicitar de onde falo: romanista
de formação, fui durante anos professora de língua e literatura francesa na UFRJ
e de francófonas na UFF, fui professora em Laval e em Paris III, resido há mais
de 20 anos em Lisboa onde trabalhei durante uma década como professora de cultura
portuguesa e de semiologia num curso de Ciências da Comunicação, publico em francês
e em português. Escrevi sobre tradução literária e publiquei pela EDUPS a primeira
tradução integral do Cahier d’un retour au
pays natal, de Césaire. Traduzo poetas nos dois sentidos: João Cabral, Manuel
Bandeira ou Césaire, Léon Damas.
A Universidade Federal de
Juiz de Fora publicará no próximo ano de 2014 nova tradução de Glissant em português,
La Cohée du Lamentin. O livro, saído em
2005, foi traduzido para o italiano em 2008 com o título Il pensiero del tremore[6]. No momento atual, ao
vertê-lo para o português, as tradutoras brasileiras, as professoras Enilce Albergaria
Rocha e Lucy Magalhães, resolveram juntar, com muita razão e alguma astúcia, o título
quase transparente O pensamento do tremor,
ao título original, intraduzível: este é um verdadeiro enigma até para um leitor
francês de França, como diria outro poeta antilhano, Léon-Gontran Damas.
O ensaio foi escrito por
um grande poeta já na sua velhice. Nascido na Martinica a 21 de setembro de 1928,
Glissant, aos 77 anos, retoma e repisa incansavelmente as suas ideias mestras de
forma, por vezes, alegórica ou alusiva, sem preocupação agora de datas nem de bibliografia.
O livro é ao mesmo tempo uma súmula poética e uma coda barroca ao conjunto da sua obra ensaística. Mas o livro é difícil
de ser lido e entendido na sua justa medida.
La Cohée du Lamentin prolonga o primeiro
ensaio do autor, Soleil de la conscience (Sol da consciência),
no qual Glissant meditava, em 1956, antes do seu primeiro romance, sobre o seu primeiro
encontro de nativo martinicano com a paisagem da França - ao mesmo tempo próxima
e longínqua, conhecida e nova -, que o fez descobrir sua identidade antilhana. Ou
melhor: o confronto coma paisagem francesa fez o escritor perceber a sua dupla e
problemática identidade de antilhano, nascido nas Américas negras e descendente
de escravos, e de francês, nascido numa ilha, hoje juridicamente um DOM (Département
d’Outre-mer, ou seja, Departamento francês de Além-Mar).
Glissant nos dá pistas extraordinárias
par analisar o nosso entorno: a noção de paisagem, a oposição entre poéticas naturais
e poéticas forçadas (que pode recobrir a noção de antropofagia cultural e marronnage), a presença da raiz única ou
de rizomas etc...
A antropofagia à solta só
pode acontecer em sociedades e culturas sem problemas de diglossia enquanto que
a presença, num determinado espaço (Martinica, Guadalupe ou Guiana francesa, por
exemplo), de uma hierarquização entre duas línguas, de uso corrente, pela coletividade
provoca uma discussão, para nós brasileiros quase que impensável: “em que língua
escrever ?” A diglossia provoca o nascimento de uma estratégia de desvios e de reescritura
meio sonsa da oralidade que pode inclusive passar pela OUTRA língua.
Mas Glissant ao analisar
as Américas aborda sobretudo as culturas de língua inglesa (Faulkner e o Deep South
dos Estados Unidos), as ilhas francófonas e Cuba.
Sobre a falta de intimidade
de Glissant - usando uma lítotes[7] - em relação à lusofonia
em geral, um dos seus ensaios mais importantes, Introduction à la Poétique du Divers (1996) é revelador. Primeiro indício:
Glissant retoma sua concepção da epopeia, citando os Gregos, a Eneida, Torquato Tasso, Milton, o Popol Vouh,
Dante, Les Tragiques de Agrippa d’Aubigné
mas esquece completamente a obra que permanece a maior realização épica da época
moderna, Os Lusíadas. Por outras palavras:
ignora-o simplesmente.
Na página 35 do mesmo ensaio,
Glissant desenvolve suas ideias sobre a epopeia moderna sem que o nome de Camões
seja sequer mencionado. Ora o poema camoniano seria o exemplo perfeito do poema
de filiação ou do sonho da raiz única. Os
Lusíadas constituem o exemplo de uma epopeia dos Colonizadores sem equivalente
nas outras língua ocidentais e permanece um extraordinário poema do Humanismo ocidental
com conotações líricas e eróticas. Outro indício do pouco conhecimento em mesmo
texto: Glissant afirma que o processo de abolição da escravidão nas Américas – fora
do caso haitiano – vai de 1830 a 1868 [8]: ele não considera portanto
o Brasil que só abolirá oficialmente a escravidão 20 anos mais tarde, em 1888. Não
considera nem mesmo Cuba que só aboliu a escravatura dois anos antes, em 1886, o
decreto sendo ainda assinado pelo rei de Espanha. Ainda no mesmo texto, a frase
“há países em que a negritude é operatória”
(“il est des pays où la négritude est opératoire”,
p. 115) acompanhada dos exemplos do Panamá, do Brasil e da Colômbia só pode surpreender.
Quando se tenta aplicar o conceito de negritude à literatura brasileira (o conceito
é claramente literário e muito marcado do ponto de vista ideológico) a aplicação
parece estranhamente capenga ou não abarcante. A noção de antropofagia cultural,
que precede aliás a negritude de quase vinte anos, conceito lançado por Oswald de
Andrade e reivindicado pelo Movimento de 22, é mais operatório. E de certa forma,
a noção continua viva no Brasil. Enfim, não sei imaginar como Glissant consegue
separar a produção literária do Panamá da produção da Colômbia.
Entretanto Glissant tem razão
quando afirma que a ideia da Relação é mais facilmente aceita por um brasileiro
do que “quando se é Quechua ou descendente
de Huron, porque nestes o peso do atavismo se opõe ao disperso do compósito”
(Poétique du Divers, p. 100).
Ora alguém de língua portuguesa,
ao ler os textos teóricos de Glissant não pode deixar de pensar sobre a contribuição
que os seus conceitos teriam dentro da lusofonia. O mesmo leitor não pode igualmente
deixar de considerar algumas especificidades de uma área que compreende: a) um velho
país (emprego o termo no sentido em que um habitante do Quebeque o utilizaria em
relação à França, un vieux pays) ou seja
Portugal; b) um país continental e sob certos aspectos imperial como o Brasil; c)
ainda países-ilhas ou arquipélagos (Cabo Verde, São Tomé e Príncipe) no Atlântico
e finalmente d) grandes países multiétnicos africanos que atingiram a independência
política muito recentemente e que mal saem de guerras civis devastadoras. No caso
dos países africanos oficialmente de língua portuguesa, Angola e Moçambique fazem
parte da grande área linguística das línguas bantos.
De modo semelhante, reflexão glissantiana – fundamental
– sobre o barroco parece esquecer/ignorar os criadores que marcam de forma muito
clara um processo autônomo de criação: penso não somente em certas igrejas mineiras
que se destacam dos modelos hispânicos mas também em criadores polimorfos como Aleijadinho
(arquiteto e escultor) ou ainda num pintor como Mestre Ataíde, o autor do teto de
São Francisco de Ouro Preto onde a perspectiva combina pesquisas en trompe-l’oeil, a perspectiva moderna e
formas arcaizantes de representação, ou ainda em criações mestiças (tanto do ponto
de vista da forma como da significação) como as do Bom-Pastor indo-português combinando
conscientemente elementos orientais e ocidentais. Glissant não faz nenhuma alusão
às diferenças entre o barroco da costa e o barroco de Minas, por exemplo, nem a
um pintor muito interessante, das Antilhas, José Campeche[9] que viveu e produziu
em Porto Rico.
Em resumo, Glissant cuja cultura parece espantosa
e cuja análise permanece fundamental para a compreensão das realidades americanas
e do mundo contemporâneo parece ver muito mal o universo de língua portuguesa. E
isso apesar do seu interesse inegável pela cultura brasileira. Glissant não lê português
e provavelmente seu conhecimento do espanhol não lhe permite ler obras literárias
no original. A sua última antologia o comprova sobejamente.
Para quem deseja trabalhar
do ponto de vista crítico, articulando francofonia e lusofonia, um outro grande
problema deve ser encarado com certas precauções, o das diferentes temporalidades
das literaturas americanas.
Sobre as relações entre a cultura portuguesa e
a cultura francesa, não insistiremos: elas foram descritas, num texto já clássico,
assinado por um grande critico português, Eduardo Lourenço, como uma comunicação
assimétrica que revelava uma fascinação duradoura, ocultando uma estrutura de ressentimento
claramente perceptível em textos de grandes escritores portugueses, entre os quais
Miguel Torga ou Fernando Pessoa.
Aqui também um outro desequilíbrio
me parece evidente. Se do lado francófono, o número de textos teóricos, de crítica
ou de reflexão, impressiona, a tal ponto que a regra já se impõe e certas precauções
oratórias fazem já parte da linguagem dos políticos (usa-se sempre o plural: estudos
francófonos ou então emprega-se sempre o adjetivo “plural” depois da palavra francofonia
e fala-se de uma francofonia plural encarnada na carne do mundo, por exemplo), do
lado lusófono, o próprio objeto de estudo – a lusofonia – parece menos delimitado,
menos visível, de um certo modo ainda inexplorado.
A criação oficial da CPLP
(Comunidade dos países de língua portuguesa) em 1996 não deu os frutos esperados
e o prédio do Instituto Camões (Casa da Lusofonia) no centro de Lisboa, no início
da avenida da Liberdade e na esquina da praça do Marquês de Pombal, permanece um
símbolo vivo de boas intenções iniciais. O clima de otimismo na fundação da CPLP
atenuou-se progressivamente: de um lado, pelas dificuldades da presidência (esperava-se
que a primeira presidência coubesse ao brasileiro Aparecido de Oliveira, seu grande
defensor); de outro lado, pelo sucesso relativo dos grandes colóquios sobre lusofonia
e enfim, provavelmente, por dificuldades econômicas crescentes e falta de política
cultural dos países da Comunidade. A critica de Antônio Tabucchi, esse português
aberrante, que fala de “neocolonialismo” cultural corresponde ao fato de dizer brutalmente
o que alguns pensam mas não dizem.[10]
No momento de um desses grandes
colóquios sobre a “lusofonia”, o jornal Le
Monde publicou dois artigos: um nº especial
punha frente a frente dois textos críticos, o do historiador brasileiro Luiz Felipe
de Alencastro e o do italiano António Tabucchi. O primeiro lembrava a evolução de
uma longínqua afeição: do lugar claramente secundário do Brasil num Império voltado
inicialmente para o Oriente (Camões faz apenas duas breves alusões ao Brasil) ao
nascimento muito precoce de sentimentos de desconfiança entre colonos instalados
no novo país e comerciantes e funcionários recém-chegados, sempre dispostos a voltar
a Lisboa uma vez terminado o seu período de trabalho, ou feitos os seus negócios.
Desde 1627, na história escrita por um franciscano baiano, Frei Vicente Salvador,
encontra-se a marca do nativismo dos residentes em oposição aos mercadores dos portos.
Depois da Independência, o antagonismo se manifesta com violência. No decurso do
século XIX, Alencastro cita um historiador brasileiro que escreve em 1864: “Em 1822, quando perdemos Portugal”. Durante
a revolução dos cravos em Portugal, um nativismo semelhante repercutirá em Angola:
Luandino Vieira nasceu, como se sabe, em Portugal.
No artigo em frente ao de Alencastro, na edição
especial do jornal Le Monde, Tabucchi
afirmava: “as autoridades institucionais de
Portugal começaram há alguns anos a promover o conceito de lusofonia que assenta
na ideia de língua como pátria ou como bandeira nacional” organizando para o
efeito “congressos faraônicos” que se
traduziram num “estrondoso fracasso”.
Tabucchi, como se vê, podia ser ou era radical e feroz.
Reencontramos nesse dialogo
encenado pelo jornal francês, as taras da francofonia oficial dentro dessa lusofonia
que se quer promover. Resta, é claro, o pragmatismo de Mia Couto que, irônico, pretende
que o escritor moçambicano, ou angolano, aproveita desses colóquios para se fazer
ver e ouvir. Melhor do que ninguém Mia Couto soube exprimir o enraizamento de portugueses
em Moçambique.
Esteve em exibição em Lisboa,
na sala principal do Teatro da Comuna, uma versão teatral do romance A Varanda do Frangipani (Caminho, 1996, p.
48 - 49):
Quando veio a Independência,
faz agora vinte anos, a minha mulher se retirou. Voltou para Portugal. E levou-me
o miúdo que já estava em idade de tropear. Na despedida, minha esposa ainda me ralhou
assim:
- Você fica e eu nunca mais
lhe quero ver.
Me sentia como se estivesse
entrado num pântano. Minha vontade estava pegajosa minhas querências estavam atoladas
no matope. Sim, eu podia partir de Moçambique. Mas nunca poderia partir para uma
nova vida. Sou o quê, uma réstia de nenhuma coisa?
Lhe conto uma história. Me
contaram, é coisa antiga, dos tempos de Vasco da Gama. Dizem que havia, nesse tempo,
um preto velho que andava pelas praias a apanhar os destroços de navios. Acontece
que uma dessas tábuas que ele espetou no chão ganhou raízes e reviveu em árvore.
Pois, senhor inspector, eu
sou essa árvore. Venho de uma tábua de outro mundo mas o meu chão é este, minhas
raízes renasceram aqui. São estes pretos que todos os dias me semeiam. Controverso-lhe,
lengalengo-lhe? Vou chegando perto como o besouro que dá duas voltas antes de entrar
no buraco. Desculpe-me este meu português; já nem sei que língua falo, tenho a gramática
toda suja, da cor desta terra. Não é só o falar que já é outro. É o pensar, inspector.
Voltemos ao Brasil e olhemos
o ensino das literaturas lusófonas de um outro ponto de vista. O número de cursos
universitários sobre literaturas africanas de língua portuguesa não cessa de aumentar
no Rio, São Paulo, Bahia, Minas, etc. E em Minas: Belo Horizonte e Juiz de Fora.
Em suma por todo o Brasil. A nova disciplina ganhou lugar na maioria das Universidades
brasileiras mas esse ensino se faz, de um modo geral, no contexto da língua materna.
Trabalha-se em torno da língua portuguesa.
O que se pretende avaliar
aqui é o interesse de uma área comparatista lusófona e francófona no contexto ao
mesmo tempo de língua materna e de língua estrangeira.
Um texto interessante assinado por Eduardo Lourenço
[11] considera o espaço
cultural da lusofonia. Desse texto faço um resumo das ideias centrais antes de discutir
outras consequências. O critico português descreve a lusofonia através da imagem
de três círculos concêntricos ou de três anéis, as culturas portuguesa e brasileira
correspondendo hoje aos anéis mais afastados. Cito:
Se do nosso ponto de vista de portugueses figurarmos
as nossas relações com o antigo espaço colonial, o Brasil, e o conjunto que com
eles continuamos a formar, em termos não só de passado comum ou presença colonizadora
por três anéis, aquele que representaria melhor uma proximidade, uma mútua presença
nos nossos imaginários e culturas respectivas como sendo de ordem de uma Comunidade seria o que nos une ao Brasil.
Já o foi, mas não é vivido assim no presente. Por mais estranho que pareça é a África,
onde fomos colonizadores no sentido mais imperial que estava ao nosso alcance, que
hoje vivemos com mais familiaridade.
Leitura de um inconsciente
ainda banhado de colonialismo? Corro esse risco. A "parte de África em nós"
(…) e, não apenas por causa da guerra na Guiné, em Angola e Moçambique, pois já
era assim antes, é hoje muito mais forte e mais interiorizada em termos afectivos
e culturais do que a "parte do Brasil em nós", que todavia está presente quotidianamente nas nossas casas.
(ibid., p. 38)
A observação me parece justa e posso confirmá-lo
sem hesitação. Por experiência de vida e por ter trabalhado durante 10 anos com
alunos portugueses, de 1996 a 2006, num curso universitário.
Brasil e Portugal afastaram-se culturalmente
sem qualquer dúvida. No início do século passado, tudo o que era publicado, por
Machado de Assis ou por Eça de Queiroz para dar um só exemplo, era imediatamente
conhecido do outro lado do Atlântico. A comunicação durou provavelmente até a Segunda
Guerra Mundial, depois os ventos mudaram. E o público disso começa a ter consciência
aos poucos, se bem que se possa lamentar o afastamento. É o presente da cultura
brasileira que falta em Portugal da mesma forma que é o presente da cultura portuguesa
que falta no Brasil, apesar da admiração e do interesse suscitados pelo Nobel de
José Saramago entre nós.
O fato de viver e trabalhar há duas décadas
em Lisboa me permite confirmar o afastamento entre os dois países. Quando o brasileiro
Autran Dourado recebeu o prêmio Camões em 2000 pela sua obra, foi evidente para
mim a dificuldade que o público português, mesmo culto, tinha em ter noção de quem
se tratava. Ninguém, entre os meus conhecidos e amigos, tinha lido nem Os Sinos da agonia nem o admirável Novelário de Donga Novais:
Ora o destino da Comunidade
- sobretudo no domínio intercultural - é no tempo presente e próximo que se joga
para poder corresponder às boas intenções anunciadas. E nessa contemporaneidade,
o anel que une Brasil e Portugal circunscreve um espaço cultural menos vivido do
que o que nos une e nos torna presente a cultura africana de expressão portuguesa.
(ibid., p. 39).
Haveria assim uma desfasagem temporal admiravelmente
analisada por Eduardo Lourenço: a África de hoje ocupa o lugar que era do Brasil
no século XVIII nos três círculos. Mas há sobretudo nesses círculos concêntricos
nós no sentido lacaniano da palavra.[12] Por outras palavras:
bloqueios internos.
Os três anéis a que se podem
assimilar as relações de Portugal com África e Brasil no domínio cultural, revelam
não só temporalidades diversas como explicitam modelos culturais de funcionamento
diferente, determinados pelo jogo subtil entre as similitudes e as dissemelhanças
que caracterizam as relações entre eles. Essa especificidade dos três campos culturais
é, em si, uma fonte de relacionamento dinâmico, ou devia sê-lo, se não tivesse gerado,
como gerou, aquilo que em termos lacanianos se chama nós, quer dizer, situações
de bloqueio interno, mais difíceis de analisar ou de ter solução à maneira expedita
de Alexandre. Porque esses "nós" são de algum modo nós mesmos, ou criados
pela intenção e finalidades próprias que cada um dos nossos espaços culturais representa.
E o nó dos nós relaciona-se precisamente com o lugar que a referência cultural portuguesa representa nesse jogo intercultura dos
três anéis. (ibid., p. 39)
Por outras palavras: somente a cultura portuguesa
se autorrepresenta, se bem que de maneira diferente, as suas relações com os dois
outros círculos “com uma espécie de transparência
angélica”, ironiza Eduardo Lourenço. Do ponto de vista mítico, o imaginário
português inclui na sua órbita – pelo menos a título de passado histórico – a imagem
da cultura brasileira e a imagem das culturas africanas de língua portuguesa. Mas
essa mitologia não é mais partilhada pelo Brasil. Eduardo Lourenço enuncia um paradoxo
verdadeiro:
Nós vemos demais - em termos
de mero onirismo - o Brasil, e o Brasil ou não nos vê, ou tem uma dificuldade enorme
em imaginar-se veiculado a uma matriz percebida, aceite ou celebrada como portuguesa.
Em suma, qualquer coisa que esteja inscrita efectivamente no seu código identitário
como a romanidade está em nós que já nem latim falamos. (ibid., p. 39)
Eduardo Lourenço acaba por detectar uma outra
dissimetria (comparável – acrescento eu – à da comunicação assimétrica detectada
na relação tradicional entre a cultura portuguesa e a cultura francesa):
Na verdade, esta lógica de
dissimetria estava inscrita no processo de formação do Brasil, quase desde a origem.
Cedo os portugueses do outro lado do Atlântico e seus descendentes se perceberam
outros e esta diferença só podia crescer através da impregnação profunda da vida
brasileira pela sensibilidade e cultura africanas, mais decisiva para aquilo com
que o Brasil se tornou que o elemento matricial representado pela cultura índia,
só mais tarde incorporado, a título mítico, na imagem que a grande nação se fará
de si mesma. De tudo isto resultou um magma cultural de estrutura muito diversa
do que suporta a cultura portuguesa e a sua mitologia própria, quer dizer, um prodigioso
e multiforme coro de vozes e de códigos onde enraíza um imaginário hoje sem medida
comum com aquele que nos é próprio. (ibid., p. 39)
Basta consultar qualquer manual de literatura
brasileira, qualquer ensaio sobre as raízes da cultura nacional, para perceber a
que ponto, no discurso cultural brasileiro, Portugal funciona muitas vezes como
o seu negativo.
Essa análise do crítico português me parece
muito interessante. Ela reafirma com força o que as pessoas parecem esquecer: a
língua portuguesa num espaço gigantesco, nas duas margens do oceano Atlântico, cobre
temporalidades, realidades culturais e imaginários muito diferentes.
Voltemos ainda uma vez à imagem inicial dos
três círculos ou três anéis concêntricos. Proponho aqui uma modificação sobre os
três anéis: ao invés de vê-los como círculos concêntricos, o que provoca sempre
a ideia de um núcleo duro, proponho que os círculos sejam representados uns ao lado
dos outros, com zonas de interpenetração: da esquerda da direita, teríamos o anel
de Portugal, o dos países lusófonos de África e o do Brasil. O anel intermédio –
que faz a mediação entre o primeiro anel (Portugal) e o anel mais afastado (Brasil)
– é de longe o menos estudado, o mais recente e o mais problemático, uma vez que
o português coexiste em regime de diglossia com o crioulo (situação semelhante à
das Antilhas francesas), de fricção com várias línguas étnicas (situação semelhante
à de vários países francófonos da África negra: é o caso do Senegal, por exemplo,
onde o wolof[13] funciona como língua
franca). Diglossia e multilinguismo estão ausentes grosso modo dos dois outros círculos (Portugal e Brasil) em que a unidade
linguística não cessa de impressionar os linguistas.
Com a África lusófona, estamos diante de países
que acabaram de sair da guerra colonial e da guerra civil, que não constituem ainda
nações. A África lusófona não parece ter consciência de que ocupa o lugar intermédio,
pois vive uma relação – imaginária, importante – de um cordão umbilical com a cultura
brasileira. Basta considerar o impacto que tiveram sobre jovens romancistas angolanos
ou moçambicanos dos anos 30 a 60 mas sobretudo as experiências – com sucessos inigualáveis
– da reescritura literária da oralidade tradicional de um Guimarães Rosa ou de um
Manuel Bandeira.
Vejamos rapidamente como as novas literaturas
se autorrepresentam. Volto ainda à época dos grandes colóquios e para um volume
preparatório de um colóquio para professores de português em Lisboa. Num grande
colóquio internacional organizado pela Gulbenkian, distribui-se aos professores
de português participantes, um volume publicado pelo Ministério da educação para
as comemorações dos descobrimentos portugueses [14]. O volume intitulava-se
Novas literaturas africanas de Língua portuguesa.
Não se usava o termo lusófono nem lusofonia. Mesas-redondas foram organizadas para
apresentar um panorama de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé
e Príncipe. De Angola estavam presentes: David Mestre, José Eduardo Agualusa, Ricardo
Manuel, Manuel Rui e Paula Tavares. De Cabo Verde: Germano de Almeida, Manuel Veiga,
Orlanda Amarilis e Vasco Martins. Da Guiné-Bissau: Abdulai Sila, Carlos Lopes, Carlos
Vaz e Tony Tcheka. De São Tomé e Príncipe: Albertino Bragança, Carlos Neves, Fernanda
Pontífice, Fernando Macedo e Luís Cupertino. Enfim do Moçambique: Eugénio Lisboa,
Luís Carlos Patraquim, Malangatana, Mia Couto, Paulina Chiziane e Virgílio de Lemos.
Ou seja, cinco dias de colóquio, um para cada
um dos cinco países africanos, distribuídos por ordem alfabética. No fim do colóquio,
um debate dirigido por Salvato Trigo, reunia o que se chamava no programa os escritores
dos “cinco”. Uma preocupação de equilíbrio e de justiça (aparente) pondo em cena
o que se sugeria ser implicitamente literaturas nacionais diferentes. Era, de um
modo geral, a mesma solução adotada há muito pela revista francesa Notre librairie que publica nºs especiais
sobre a literatura do Togo, do Congo, da Costa do Marfim, do Senegal etc. Mesmo
se um grande poeta recentemente falecido como Tony Labou Tansi escreva num poema
“J'ai un fleuve entre mes deux jambes”
e que este rio seja nada menos que o rio Congo. O escritor congolês era filho de
pais de uma mesma etnia, nascidos no entanto em aldeias separadas pelo rio imenso
e situadas, do ponto de vista da geografia política, em dois países diferentes.
Labou Tansi, através dessa frase emblemática, exprimia uma certa unidade, negada
ou ocultada pelos avatares da politica colonial. No grande anfiteatro da Gulbenkian,
em cada uma das apresentações, voltavam os mesmos assuntos a cada novo dia. Guerra
colonial, literatura e engajamento, a posição do português na dialética da colonização
e descolonização, importância da oralidade e da cultura tradicional, e em todos
os casos, sem exceção, a descoberta dos modelos brasileiros, na prosa e na poesia.
E os mesmos “mestres” voltavam a cada dia: Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins
do Rego, e para os escritores mais jovens como Mia Couto, Guimarães Rosa.
Nesse caso, a imagem dos três anéis concêntricos
era substituída por uma outra metáfora: a das margens do Oceano que dialogam. Nessa
perspectiva, o discurso de Pepetela no momento em que recebe o prêmio Camões em
Brasília, em 1997, é uma excelente ilustração:
Esta cerimônia, num dia de
tão grande significado, acaba por refazer a nível simbólico uma actividade que e
se processou durante séculos e que ficou conhecida como o comércio triangular entre
a Europa, América e África, infelizmente nem sempre de boa memória, por também de
tráfico de homens se ter tratado, mas que marcou definitivamente as culturas dos
dois lados do oceano, e por vezes de maneira que nem suspeitamos, por ainda não
se ter feito um estudo sistemático e exaustivo dos produtos, técnicas, conhecimentos,
artes, ideias, que foram transitando durante os séculos de uma margem para outra.
(…)
A minha literatura muito
tem a ver com esse triângulo no que toca a aprendizagens e influências. Minha e
de outros escritores africanos, pois todos aprendemos a escrever, lendo os escritores
portugueses e brasileiros, casando essa raiz com os mitos, contos, fábulas e vivências
da tradição africana. Nestas insuspeitadas mestiçagens se vão constituindo arquétipos
que depois podem ser considerados originais e raízes de cultura. (Novas literaturas, p.13)
De modo revelador, o escritor africano se
autorrepresenta ligado ao mesmo tempo à matriz lusitana e a uma outra matriz, brasileira.
E Pepetela se afirma de saída como fruto de uma mestiçagem cultural. Essa raiz no
discurso de Pepetela não é mais uma raiz única mas um rizoma gigantesco e submarino.
Em resumo: três círculos que se conhecem mal
em que a mediação é feita, no duplo sentido, pelos escritores africanos, ainda mal
estudados, uma língua que cobre imaginários, temporalidades e culturas diferentes,
sem que haja mais a noção de um centro, mesmo virtual. Desse ponto de vista, o batismo
da lusofonia com a criação da CPLP se fez sob os melhores auspícios. Mas como dizia
claramente Eduardo Lourenço, uma lusofonia sem um mínimo de mitologia cultural partilhada
não é viável. E se não vivemos conscientemente esse mínimo cultural comum, deveria
existir a partilha de uma história comum (rasurada e desperdiçada (como diz Glissant:
raturée et éperdue) e de uma língua.
No fim do seu ensaio, Eduardo Lourenço numa
coda aparentemente solta do contexto atual, evoca o renascimento vivido no fim da
Idade Média, no desabrochar do humanismo:
Nos fins da Idade Média os
ocidentais já quase se tinham esquecido de que passado - ou passados - se alimentavam
as suas ficções e os seus sonhos. Quando os descobriram pensaram renascer. Ninguém
vive suspenso - ou dissolvido - na pura luz do presente. Seria utópico - e mesmo
pouco interessante - esperar que os três anéis do espaço lusófono se fundissem num
só. Já será milagre, e não pequeno, que não se percam de vista uns dos outros, ou
que cada um, julgando salvar-se, derive para paragens donde nem sequer se possam
dizer adeus e falar de tempos em que mesmo as disputas e os mal-entendidos entre
eles tinham ar de família. (ibid., p. 39).
Ora a memória dessa família linguística e
cultural, espalhada no tempo e no espaço, são os escritores africanos de língua
portuguesa que a põem em cena. Essa memória se fragiliza por falta de atenção e
de pesquisa. Explorá-las é reencontrar os nós que são os nós obscuros de nós mesmos.
Os nós que somos nós. Todos nós.
Retomemos ao interesse que pode haver em articular
do ponto de vista critico os dois espaços culturais de língua francesa e de língua
portuguesa.
Indicamos sem condescendência
nenhuma, os pontos em que um leitor brasileiro tropeça ou se surpreende ao ler os
ensaios de Glissant. E no entanto, que riqueza de conceitos que iluminam zonas particularmente
obscuras das culturas americanas! Por exemplo: a dupla via da transparência e da
opacidade, a explicitação através da análise da poesia de Saint-John Perse de procedimentos
ocultos de reescritura da oralidade tradicional (que não é simplesmente recitação
de fórmulas fixas orais, nem o uso, aqui ou ali, de palavras em crioulo), a força
hermenêutica da poesia, o ultrapassar das diferenças dos gêneros literários, a distinção
entre língua e linguagem, a descrição da irrupção na modernidade, a unidade subterrânea,
a presença de duas poéticas diferentes (uma “natural” de tipo “brasileiro” acrescento
eu; outra, opaca e tortuosa, quase uma contra-poética), a importância da paisagem.
Mas é preciso ler Glissant com olhar do cão que não sabe que olha um bispo, sem
esquecer a bagagem da sua cultura e a memória do universo luso-brasileiro, pelo
menos.
Há uma especificidade americana
– a partilha de um espaço e de um tempo comuns que não se pode esquecer. Por outro
lado, a América não é uma unidade mas talvez pelo menos três: a) a Meso-América
incorpora o testemunho dos grandes impérios pré-colombianos; b) a América das Plantações,
nascida do ventre do barco negreiro e que se espalha do Sul dos Estados Unidos até
o sul do Brasil passando pelo grande arco das ilhas das Antilhas e c) a América
do transbordo voluntário de populações que se enraízam e fundam o Novo Mundo. Esses
espaços não são estanques e se sobrepõem. No interior de cada um desses espaços
culturais que se interligam, é preciso considerar ainda as principais línguas de
colonização (espanhol, francês, inglês, neerlandês, português, por ordem simplesmente
alfabética).
As literaturas francófonas
da América se inserem num conjunto cultural complexo. A articulação crítica das
literaturas francófonas da América com as outras literaturas do Continente se realiza
ainda de modo canhestro pelo desconhecimento de uma ou duas outras línguas de produção,
e sobretudo pelo esquecimento da diferença das temporalidades internas. Primeira
exigência para quem pretende fazer estudos comparados nessa área: ser capaz de ler,
no mínimo, três línguas. Melhor ainda se for capaz de ler quatro línguas. Mas ler
significa ler de verdade, não um menu de restaurante, mas um texto literário consultando,
é claro, quando necessário, um dicionário. Não se pode ou não se deveria trabalhar
com traduções. A análise de obras, lidas em tradução, em dissertações de Mestrado
me parece simplesmente absurdo.
Minha intervenção, muito
breve, pretende fazer um resumo critico da perspectiva glissantiana aplicada a um
enorme conjunto cultural, destacando por um lado, a sua contribuição fundamental
mas igualmente os seus limites (deveríamos dizer: dúvidas, reticências, problemas?)
que os seus textos, sem algumas precauções podem suscitar. Seus textos devem ser
lidos com olhar de cão.
Meu ponto de partida é o
ensaio glissantiano, mais precariamente o impacto que podem ter os ensaios de Glissant,
sobre o ensino dos textos francófonos no Brasil e sobretudo sobre a exploração da
perspectiva comparatista da francofonia americana na sua relação com as produções
de língua espanhola e de língua portuguesa.
Das quatro línguas ocidentais – espanhol, francês,
inglês, português – que colonizaram a partir dos séculos XVI e XVII as Américas
e se transformaram no Novo Mundo, - línguas às quais Glissant toma exemplos de crioulização
– aquela que permanece, em todos os seus escritos, a menos citada é o português.
E em segundo lugar: o espanhol.
Nos seus grandes ensaios
teóricos - Soleil de la conscience (Falaize,
1956), L'Intention poétique (Seuil, 1969),
Le Discours antillais (Seuil, 1981), Poétique de la Relation (Gallimard, 1990), Introduction à la Poétique du Divers (Gallimard, 1996), Faulkner - Mississippi (Stock, 1996), Traité du Tout-Monde (Gallimard, 1997), La Cohée du Lamentin. (Poétique V, Gallimard, 2005) - numerosos escritores
de língua inglesa e francesa, clássicos e contemporâneos são citados. Continuo a
achar que, ainda hoje, o grande ensaio de Glissant permanece Le Discours antillais.
Dos escritores de língua
portuguesa são citados nominalmente: Darcy Ribeiro como antropólogo e não como escritor
e de passagem Gilberto Freyre. Não encontrei um único escritor português, nem um
só brasileiro. Poucos ensaístas de língua espanhola. Nenhuma referência a Octávio
Paz. Glissant visitou duas ou três vezes o Brasil (a primeira vez em Junho de 1981
no contexto de um Congresso da AUPELF: sei-o porque fui eu que o convidei) e pelo
uma vez Portugal por ocasião de um grande colóquio realizado no Porto sobre a sua
obra. Sobre a produção americana de língua espanhola, faz quase sempre alusão à
produção cubana, como a maior parte dos escritores antilhanos francófonos aliás.
Fiz a confrontação da versão
em francês com o poema na sua língua original na sua famosa Anthologie du Tout-Monde. Glissant frequenta
sem dúvida nenhuma as literaturas de língua inglesa, muito mais do que as literaturas
neo-latinas, outras que a francesa. Pode-se afirmar olhando de perto suas traduções
do português e do espanhol. É o caso dos poemas de Gabriela Mistral (p. 83) e de
Pablo Neruda (p. 36) para o espanhol; é o caso praticamente de todos os textos em
português (do Brasil). As traduções a que me refiro são assinadas pelo próprio Glissant
ou por Glissant e seu filho Olivier: elas revelam desconhecimento evidente tanto
do ponto de vista sintático como semântico.
Sabe-se que uma grande poetisa religiosa do século
XVII mexicano, Sor Juana Inês de la Cruz, dialoga com um António Vieira, o maior
prosador de língua portuguesa da época, que estudou num colégio jesuíta da Bahia?
Esse dialogo “americano”, transversal, entre duas línguas diferentes, entre uma
mulher e um homem, é, - parece-me -, absolutamente inimaginável no contexto da língua
francesa no século XVII ou até mesmo no século XVIII. Não há nenhum escritor de
língua francesa do Canadá (seria um anacronismo escrever Quebeque) ou das Antilhas
dialogando com um Bossuet, por exemplo. Não há sobretudo nenhuma religiosa americana
francófona discutindo sobre o jansenismo em França.
Esquece-se que o movimento modernista de língua
espanhola nasce de um poeta americano cuja obra repercute em Espanha, Ruben Darío,
desde o final do século XIX? E que os surrealistas brasileiros precedem, de certa
forma, o Surrealismo em Portugal?
Tem-se consciência, que a
partir de 1939 e sobretudo de 1941, o surrealismo torna-se um fenômeno latino-americano?
Que revistas importantes surrealistas nascem em diferentes países da América: Tropiques, fundada por um grupo de amigos
na Martinica, não é o único exemplo? Outras revistas surrealistas floresceram no
Chile, na Venezuela, no Peru?
Sempre pensei
que não se pode escrever sobre literaturas caribenhas ou antilhanas sem conhecer
o que se faz ou se fez nas outras literaturas das Américas. O passado é tão importante
quanto o presente. Sem o passado não há presente. E para tal, é necessário ler os
textos, sempre que possível, na sua língua de origem, senão depende-se da política
editorial das traduções e ainda da qualidade das traduções. É raro encontrar hoje
um critico de língua francesa publicando sobre as Antilhas francesas referindo-se
aos textos originais quando se trata de estudos comparatistas. O uso das traduções
generalizou-se. Não era assim nos anos 30 ou 40, mas é assim hoje: o uso das traduções
tornou-se o mais frequente. É preciso sempre modular o grande eixo explorado pelos
estudos ditos pós-coloniais (eixo que trabalha antigas colónias/ antigas metrópoles
– com um eixo horizontal especificamente americano. Há aí algo que nos forçará a
repensar o problema complicado das temporalidades.
Cada uma das
literaturas americanas que nos interessam possui uma temporalidade que lhe é própria,
posta muita vezes entre parênteses. Uma temporalidade supõe uma tradição (por outras
palavras: uma continuidade) e rupturas sucessivas. Octávio Paz fala, de forma muito
feliz, da “tradição das rupturas”.
A temporalidade
mais recente seria a das literaturas do Caribe? Não se pode afirmar isso uma vez
que há uma clara diferença no espaço das ilhas entre literaturas de língua francesa
e literaturas de língua espanhola, estas ligadas a um imenso continente cujos grandes
centros culturais foram e são ainda México, Buenos Aires, Lima, Santiago ou Bogotá.
Do ponto de vista hispanófono, é preciso lembrar que o processo de Independência
é mais tardio em Cuba e em Porto Rico, se comparado ao processo propriamente continental.
Por outro lado, mesmo no interior das literaturas antilhanas de língua francesa,
o caso de Haiti é claramente diferente do das ilhas francesas (Martinica e Guadalupe)
ou da Guiana. O problema é tão importante que é necessário tratá-lo com precaução
e nunca tentar esquecê-lo.
As literaturas
de língua portuguesa e de língua espanhola, apesar das suas diferenças e do seu
metabolismo próprio, têm características comuns – digamos hispânicas: a mais importante
sendo talvez a profunda e intensa nutrição, mesmo nas obras mais eruditas, da oralidade
tradicional, com os seus romanceros/romanceiros.
Para o par de nações hispânicas,
Portugal e Espanha, e para os países nascidos na América das suas colonizações,
ou seja o Brasil e toda a América latina que vai do México ao Chile, a presença
de uma oralidade tradicional, conjunto de textos anônimos e muito conhecidos, recitados
ou cantados, retomados e glosados, em variações sutis ou encantatórias, oratórias
ou satíricas, desde o século XVI até aos nossos dias por poetas eruditos e/ou populares,
quer seja Camões, Pessoa ou Bandeira para o português, Lope, Góngora, Lorca, Guillén
ou ainda Borges para o espanhol. Quero falar do romancero ou romanceiro. E
essa inutrição, ao mesmo tempo, extensa e profunda, trabalha a narrativa, ou seja
na prosa.[15]
A maior parte dos escritores francófonos (de França,
das Antilhas ou da África) não tem noção, salvo se é “hispanizante” de formação,
desse conjunto gigantesco de textos orais modulados pelos grandes poetas clássicos
e modernos, desde os séculos XVI e XVII. Um fenómeno semelhante não existe em França.
Assim a reescritura da oralidade tradicional é forçosamente diferente da que se
pratica em espanhol ou em português. Glissant fala com razão de poéticas naturais
e contra-poéticas, o que é perfeitamente justo sem desenvolver no entanto exatamente
toda a sua intuição. É um caso em que os seus ensaios são premonitórios mas devem
ser desenvolvidos com a leitura de um outro ensaísta: sugiro sempre aos meus alunos,
a leitura concomitante dos ensaios de Octávio Paz.
Outra diferença capital a considerar: as literaturas
contemporâneas da África lusófona dialogam com uma dupla matriz. Por outras palavras:
a lusofonia não tem centro único desde o fim do século XIX pelo menos. Releia-se
mesmo por alto e rapidamente o que escrevem os autores lusófonos de Angola, Moçambique
ou Cabo Verde: todos, prosadores e poetas, declaram ter uma dupla referência, portuguesa
e brasileira.[16]
O estudo da poesia negra é por vezes tratada, nas
Américas, como só houvesse um modelo possível, sendo este forçosamente, ou a Négritude à francesa ou a Negro Renaissance americana. Consideremos
um problema ligado à leitura para partir de um exemplo, uma vez mais.
Li recentemente um texto muito interessante assinado
por Daniel Maximin[17] sobre
La géo-poétique des Caraïbes: aprecio
o que escreve Maximin mas gostaria de comentar uma das suas análises de um poema
de Guillén, pois isso me permitirá retomar de modo exemplar minha tese aqui.
De um modo muito
geral, nas Américas, os países de língua espanhola e portuguesa conheceram desde
pelo menos a metade do século XIX, um veio, quase um género literário: a poesia
negra. Ela existiu vivaz no Brasil no momento da campanha abolicionista de Castro
Alves. Poetas, sem distinção de cor, escreveram poemas negros – negreros, negristas – em português, no Brasil;
em espanhol, no Equador, no Peru, na Colômbia, sobretudo nas Antilhas de língua
espanhola, em Porto Rico, na República Dominicana. Até um mesmo um poeta espanhol,
como Federico Garcia Lorca, quando visita a América no início dos anos 30, pratica
com mestria esse exercício e escreve, ele andaluz, também poemas negros. Não apenas
como um puro exercício, mas como uma maneira de alargar sua poética graças ao ritmo
popular do romancero.
Voltemos ao texto de Maximin. Quando ele cita a
famosa carta de Unamuno em resposta a Guillén que lhe envia o seu livro de poemas,
Maximin afirma com razão que o escritor espanhol apoia as experiências do poeta
cubano sobre o son.[18] Quando, na mesma carta,
Miguel de Unamuno envia ao cubano um dos seus poemas pessoais, Maximin sabe apreciar
o testemunho fundamental, mas não o coloca na diacronia hispânica. Unamuno pertence
à famosa generacón del 98[19], geração espanhola
que já sentira o impacto da poesia de Rubén Darío, exemplo sem contrapartida no
universo de língua francesa[20], da inversão do vapor
nas relações culturais entre antigas colónias e metrópole.
Constato ainda o seguinte:
pessoalmente, tenho tendência a ler a carta de Unamuno de um outro ponto de vista,
bastante diferente do de Maximin. Leio a declaração de Unamuno: “seus ‘sons’ tocaram em mim o poeta e o linguista”.
O filósofo e o poeta prestigiado de Salamanca, quando envia a Guillén versos semelhantes
aos que recebeu, anteriores ao do Cubano, está afirmando uma continuidade secreta
mas real entre as experiências presentes e passadas, entre a ilha caribenha e a
Espanha clássica.
Unamuno escreve explicitamente:
“j’aimerais vous faire connaître une petite
chose que j’ai écrite le 5 janvier de l’année dernière, en 1931, alors que je ne
connaissais pas votre livre” (Maximin, op. cit., p. 135; literalmente: “gostaria de comunicar-lhe uma pequena coisa que
escrevi no dia 5 de Janeiro do ano passado, em 1931, quando não conhecia ainda o
seu livro”). Infelizmente não tive tempo de procurar a “petite chose” de Unamuno em espanhol, mas
tenho certeza que esta se assemelha a um “romance”. Por outras palavras: onde Daniel
Maximin lê a novidade e a ruptura, eu, com a memória da redondilha maior ou menor
no ouvido, leio antes a continuidade e a tradição.
Em resumo: Daniel Maximin,
formado pela literatura francesa e trabalhando do ponto de vista espanhol a partir
de traduções, lê o Diverso; eu, ligada à cultura hispânica, leio antes o Mesmo.
Essa divergência de leituras mostra a que ponto uma noção pode ser problemática.
Assim quando
se canta através dos séculos a Mora Moraima “la mora morisca del bel cantar[21] ”, passa-se quase naturalmente
à gitana de Lorca, à negra ou à mulata
de Guillén, de Palés Matos ou Manuel Cabral, ou ainda a “essa nega Fulô ”, de Jorge de Lima. No caso,
seriam necessários estudos sistemáticos ao mesmo tempo horizontais e verticais.
Por outras palavras: sincrônicos e diacrônicos, no espaço e no tempo.
Seria ainda interessante
notar – Maximin não faz nenhuma alusão a isso – ao fato de que o espanhol Unamuno
ao escrever ao Cubano[22],
cita ao mesmo tempo poetas de língua inglesa e neerlandesa, o que confirma a sua
abertura de espírito devida, me parece, à velha familiaridade hispânica com os romances.
Cito:
…..je suis attentif au sens du rythme, de la musique verbale des Noirs
et des Mulâtres. Non seulement chez les poètes noirs américains, que je goûte avec
délices, mais même chez eux qui chantent en “papiamento”,langue que j’ai apprise et qui
est, comme chacun sait, le créole des Noirs de Curaçao. C’est l’esprit de la chair, le sentiment de la vie directe, immédiate, terrestre.
(op. cit., p. 135)
Quando se trata
de poesia de língua portuguesa, estamos às vezes em pleno contrassenso. Assim, no
caso brasileiro, é sobretudo a irrupção da poesia “negra” de reivindicação a partir
dos anos 70 que leva um poeta-crítico, Domício Proença Filho, a fazer uma reavaliação
da evolução da produção nacional sobre o tema negro. O texto de Domício Proença
Filho é importante de um duplo ponto de vista: ele conhece perfeitamente a diacronia
brasileira e trata-se de um poeta cuja crítica escapa à ideologia do politicamente
correto.
Por várias razões, a produção “americana” sobre
poesia negra é problemática do ponto de vista da produção e da recepção, da poética
e da crítica.
Outra lembrança reveladora: ouvi, há pouco, em
Fort de France a comunicação de uma jovem martinicana sobre a poesia negra brasileira,
marcada, acreditava ela, pela negritude de Césaire. É muito difícil prová-lo uma
vez que o Cahier só foi traduzido recentemente
em português. René Depestre estava igualmente presente e conhece perfeitamente o
português por ter vivido vários anos no Brasil depois de passar por vários países
de língua espanhola: no debate que se seguiu, ambos estávamos de acordo que faltava
toda a tradição vinda do século XIX a essa comunicação. A jovem martinicana, convencida
de que o poema de Césaire era de conhecimento “universal” comparava produções diferentes
como se as temporalidades, de língua francesa e de língua portuguesa fossem absolutamente
as mesmas.
Não encontrei uma única alusão a Octávio Paz em
Glissant, que no entanto escreveu muito sobre a América. Octávio Paz tem ainda uma
outra vantagem: não somente participou do movimento surrealista mas comenta muito
cedo a produção de língua espanhola e portuguesa. Numa obra de 1956, intitulada
Cuadrivio, Paz reúne 4 ensaios sobre Ruben
Darío, Ramón López Velarde, Fernando Pessoa e Luís Cernuda, destacando uma tradição
da ruptura. O oximoro é revelador.
É preciso contestar em bloco
Glissant? Não o creio, uma vez que ele é mestre incontestado de uma geração, aliás
brilhante. Mas é necessário que os críticos trabalhando sobre as Américas de língua
francesa numa perspectiva comparatista se abram a outras perspectivas criticas e
a outros modelos de análise. E sobretudo que sejam capazes de ler, no original,
os textos que pretendem analisar. Para tal é necessário ter, no mínimo, três línguas;
o ideal seria quatro línguas evidentemente. Glissant é um contemporâneo incontornável?
Sim, mas é preciso discutir as suas sínteses e a sua contribuição crítica com o
olhar do cão que olha o bispo.
Os escritores e criadores francófonos das Américas
– quebequenses, martinicanos, guadalupeanos, guianenses, haitianos – têm todo interesse
em serem visto/lidos no seu contexto americano. Suas poéticas e suas práticas de
criação deveriam suscitar verdadeiras análises comparatistas.
Mas para fazê-lo, é necessário compreender na medida
do possível a complexidade do real do ponto de vista espacial e temporal. Há um
bom número de questões a serem exploradas, do ponto de vista textual, é claro, mas
igualmente do ponto de vista histórico e simbólico, iconográfico e imaginário.
Cito ainda um exemplo: sem
o poema-túmulo escrito por Césaire para Astúrias, no momento do seu desaparecimento,
que crítico teria tido a ideia de ir ver em que medida um texto como o Popol-Vuh, essa epopeia que é igualmente
uma cosmogonia por etapas da Meso-América, faria parte da intertextualidade do Cahier? E no entanto o Popol-Vuh,- assim
como a leitura do Antigo Testamento -,
está lá, muito cedo, nas duas versões do poema de 1947: é ele que fornece o modelo
da dupla cosmogonia que caracteriza um poema como “Le Grand Midi”. A intertextualidade
de Césaire é muito mais complexa do que se pensa.
Não acreditemos demasiado nas entrevistas concedidas
por um poeta. Um escritor ou um poeta no fundo responde às perguntas que lhe fazem.
Mas sabe-se sempre fazer as verdadeiras ou as boas perguntas? Ou seja: as perguntas
que interessam e que provocam revelações ou novas pistas. A leitura das entrevistas
feitas a Césaire nos últimos 30 anos é melancólica, quase desoladora. Salvam-se
talvez 2 ou 3 entrevistas. A maioria delas repete sempre as mesmas perguntas (o
que significa a África, o encontro com Senghor, a ruptura com o PCF, o projeto da
criação dos DOMs, por quê não escreve em crioulo?), às quais o poeta amavelmente
cria variações para não dizer sempre a mesma coisa.
A MODO DE CONCLUSÃO ABERTA | Glissant, mais do
que um teórico da literatura ou defensor teórico da “crioulização” do mundo, é um
grande escritor. Seria necessário fazer uma espécie de inversão. Fala-se demais
do teórico ou do autor de uma antologia, e não suficientemente do criador, romancista
e sobretudo poeta. É por vezes bastante fácil contestar o teórico a partir de algumas
das suas afirmações ou de algumas datações[23], de fazer correções
a algumas das suas traduções, mas que riqueza a explorar do ponto de vista da narrativa
e da poesia! A partir da sua obra de ficção, até mesmo naquilo que não foi percebido
nem explorado – por exemplo: era, no nosso caso, a relação entre reescritura literária
e oralidade tradicional em algumas literaturas neolatinas, que não a francesa –
pode-se tomar a sua prática poética como instrumento de análise para explorar ao
mesmo tempo a memória do escrito e do oral assim como a metamorfose do escrito e
do oral. Fazendo-o, joga-se Glissant contra Glissant dogmático. Melhor: contra Glissant,
tornado dogma por aqueles que o leem à la
lettre.
Lançamos um olhar de cão
que encontra e vê um bispo, por um lado. Esse olhar apaga/elimina/ignora o temor
de não ser respeitoso. E por outro lado, reconhecemos que pode-se utilizar Glissant
em consciência de causa como meio de exploração do nosso entorno cultural.
PREFÁCIO-EPÍLOGO[24] | Não é fácil apresentar
La Cohée du Lamentin, um dos últimos ensaios
de Édouard Glissant. Melhor: o seu último ensaio, o de número V, se considerarmos
apenas a série intitulada Poétique[25].
O livro, publicado em 2005,
foi traduzido para o italiano em 2008 com o título Il pensiero del tremore[26]. No momento atual,
ao vertê-lo para o português, as tradutoras brasileiras, Enilce Albergaria Rocha
e Lucy Magalhães, resolveram juntar, com muita razão e alguma astúcia, o título
quase transparente O pensamento do tremor,
ao título original, intraduzível: este é um verdadeiro enigma até para um leitor
francês de França, como diria outro poeta antilhano, Léon-Gontran Damas.
O ensaio foi escrito por
um grande poeta francófono já na sua velhice: Édouard Glissant. Nascido na Martinica
a 21 de setembro de 1928, Glissant, aos 77 anos, retoma e repisa incansavelmente
as suas ideias mestras de forma, por vezes, alegórica ou alusiva, sem preocupação
agora de datas nem de bibliografia. O livro é ao mesmo tempo uma súmula poética
e uma coda barroca ao conjunto da sua
obra ensaística.
Para entender La Cohée du Lamentin, a sua poética e o seu
alcance, seria necessário inicialmente retornar ao título original - intraduzível,
repetimos - e tentar perceber não só o que significa mas sobretudo o que sugere:
Cohée, Lamentin e, unindo subterraneamente
os dois topônimos estranhos, um terceiro elemento, forçosamente implícito e vibrando
sem cessar no não-dito do texto, La Lézarde.
Esta palavra feminina “cria”
literalmente os outros dois topônimos, Cohée
e Lamentin. Este é o nome do maior curso
de água da ilha natal, curso de água muito pouco “rio” para brasileiros ou para
os parâmetros de um país continental como o nosso com vários cursos caudalosos de
água com mais de 1000 km. Com a extensão total de apenas 33 km (tamanho que não
mereceria entre nós a denominação de rio, quando muito de ribeirão ou ribeira),
La Lézarde atravessa a comuna do Lamentin[27], no Centro-Oeste de
uma das pequenas Antilhas. Foi no Lamentin
que nasceu Glissant, não exatamente na planície de aluvião, mas num dos seus morros.
Hoje, para quem chega à ilha, é a região onde se situa o aeroporto internacional,
denominado Aimé Césaire, como o Galeão que passou a chamar-se aeroporto Antônio
Carlos Jobim, no Rio de Janeiro. Quem chega pela primeira vez à Martinica não vê
quase nada de diferente, ou de exótico, e atravessa de táxi uma baixada que se assemelha
à primeira vista, do ponto de vista da paisagem, à Baixada Fluminense ou à Baixada
Santista.
La Lézarde, - palavra que retoma lézard (“lagarto”, em francês) e o verbo
lézarder (“deitar-se imóvel ao sol como
um lagarto” ou então “rasgar algo provocando uma fissura”) – evoca o curso sinuoso
de um ribeirão que corta as terras baixas do Centro-Oeste da Martinica[28], até jogar-se no mar
do Caribe (ou das Caraíbas) num delta. O mar do Caribe a Oeste da Martinica é totalmente
diferente da fúria do Oceano a Leste. E o delta, outrora, estava coberto de mangues
(mangrove, outra palavra encantatória
na poesia das Antilhas francesas), hoje quase invisíveis a quem chega de fora.[29]
O primeiro romance de Glissant,
de 1958, chamava-se La Lézarde [30]: a narrativa, ponto
de partida de uma grande saga romanesca com várias linhagens negras e brancas que
vão se cruzando, progressivamente em inúmeras narrativas, cada vez mais intrincadas
no espaço e no tempo, recebeu no momento do seu lançamento, na França, o prêmio
Renaudot. A ação de La Lézarde, romance,
se passa nas semanas seguintes ao fim da II Guerra Mundial em torno de uma cidadezinha
denominada Lambrianne (nome inventado
pelos jovens protagonistas da narrativa que juntam Lamentin e Marianne, nome
este que encarna, como se sabe, a República francesa). Lambrianne, cidadezinha ficcional
como tantas outras, como a célebre cidade de Duas Pontes no centro obscuro da obra
de Autran Dourado, lembra Lamentin onde
o autor passou a sua juventude.
Quase 50 anos (1958-2005)
separam esse primeiro romance e o último ensaio, que é, mais uma vez, um retorno
ao lugar primordial. Como o poema de Césaire, Cahier d’un retour au pays natal.[31]
Mas ainda não se explorou
tudo do título enigmático. Lamentin (ou
lamantin) é ainda, para leitores de literatura
africana, um animal mítico porque retorna sempre à origem, à fonte primeira de onde
veio. Para explicá-lo, é preciso tomar um Desvio (Détour, em francês e sempre com maiúscula), como diria o próprio Glissant.
O nome erudito do animal, nos dicionários de ciências, é: Trichechus.[32] Faz parte da ordem
dos Sirênios. Se o leitor quiser sonhar,
esse grande animal “aquático” é parente imaginário das sereias. O lamentin corresponde, no fundo, ao peixe-boi
ou boto amazônico, ou seja, um tipo de grande mamífero herbívoro, de corpo afunilado,
vivendo em águas pouco profundas, nos iguarapés, na foz de rios ou nos pântanos
costeiros da zona tropical do Atlântico. São também chamados em português manatins. Exatamente como no caso do boto,[33] seu parente próximo,
sobre essas criaturas estranhas, les lamentins,
criaram-se muitas lendas. Uma dessas lendas data da primeira expedição de Colombo
à América, em 1492: o descobridor anota no seu livro de bordo referindo-se aos lamentins, “três sereias”.
Assim, uma baixada da Martinica
em torno do delta de um ribeirão que serpenteia como um lagarto, recebeu esse nome
Lamentin porque, segundo os cronistas
antigos, outrora os lamentins frequentavam
os seus mangues. Com a urbanização e os aterros, desapareceram animais e desapareceram
quase totalmente os mangues. Mas a memória de um posfácio célebre de Senghor, de
1954, no seu ensaio Liberté I – “Comme les lamantins[34]
vont boire à la source” (literalmente: como os botos ou manatins vão beber à
fonte) – anuncia a lembrança quase apagada de uma busca de identidade.
Resta-nos ainda uma palavra,
a primeira do título, talvez a mais obscura: Cohée. Inútil procurá-la nos dicionários ou mesmo na Internet. O seu
significado, vamos achá-lo num outro ensaio de Glissant: “camps et morne et ravine, monts et cohées! […] Une source en prison, un
delta tout en boue”[35] (campos e morro e ravina, montes e cohées
... Uma
fonte aprisionada, um delta de lama). Cohée
é assim uma pequena zona meio lamacenta, à beira-mar, intermédia entre terra e água,
entre água salgada do mar com suas marés e água doce do rio que transborda no momento
das chuvas, com uma vegetação em forma labirinto e árvores de raízes altas mergulhando
no mangue.
Esse título, ininteligível
para quem não conhece a Martinica, remete a um lugar bem preciso do país natal.
Eis como o autor tenta justificar a palavra da qual ignora inclusive a etimologia:
Cohée: só se encontra nessa baía dos Flamingos,
ao longo do mangue: a Cohée du Lamentin.
A palavra vem da língua crioula ou da língua francesa? Talvez de accorer? (p. 39)
O leitor respira enfim aliviado.
Accorer: o verbo pode ser encontrado num
dicionário. O dicionário da Academia francesa de 1835 registra:
ACCORER. Terme de Marine. Étayer, soutenir avec des accores un objet
quelconque. Accorer un navire échoué.
ACCORÉ, ÉE. Participe.
Ou seja: não só o verbo accorer é raro, como pertence à língua especial da Marinha à vela. Se
alguém quiser, no terreno de aluvião, incerto e mole da Cohée, escorar um navio com estacas para repará-lo, esse barco só pode
ser muito pequeno, barco de pescador.
O leitor, sem querer, ao procurar solucionar o
enigma do título, reencontra uma alusão (indireta) à piroga dos últimos movimentos
do Cahier d’un retour au pays natal, de
Césaire, que afronta o oceano em fúria a Leste. Uma primeira clivagem se faz, quase
invisível: Basse Pointe, o burgo natal
de Aimé Césaire, está situado a Nordeste da ilha, em face do oceano indômito numa
costa escarpada que contradiz o topônimo (a costa é selvagem e a montanha próxima
coberta de mata fechada); o Lamentin corresponde
a um outro espaço, terra de aluvião e de sedimentação no tempo da longa duração.
No Lamentin, os traços a ler estão ainda
mais apagados com o desaparecimento dos mangues.
A palavra Cohée,
- com a sua carga de gestos perdidos (quem escora um barco hoje para repará-lo numa
ilha que se tornou um oxímoro, ou seja, uma colônia de consumo e de férias?), lugar
prenhe ainda de fantasmas, de histórias e de conotações quase esquecidas, - só existe
na toponímia local. Glissant ao retomar essa palavra perdida, totalmente opaca,
como título do seu ensaio, resgata-a com a sua memória que se esvai.
Primeira consequência dessa longa conversa não-vadia
em torno de um título enigma para a grande maioria dos leitores, até mesmo para
os que têm o francês como língua materna: a paisagem é fundamental na poética de
Glissant.
Começamos a frequentar as paisagens não mais unicamente
como puros cenários que consentem, propícios ou não, mas como verdadeiras máquinas
de induzir, muito complexas e às vezes inextrincáveis. Elas nos conduzem para além
de nós mesmos e nos fazem conhecer o que está em nós. São solidárias com as nossas
fatalidades. Vivem e morrem em nós e conosco. (p. 92)
Desse ponto de vista, La Cohée du Lamentin
prolonga o primeiro ensaio do autor, Soleil de la conscience (Sol
da consciência), no qual Glissant meditava, em 1956, antes do seu primeiro romance,
sobre o seu primeiro encontro com a paisagem da França – ao mesmo tempo próxima
e longínqua, conhecida e nova -, que o fez descobrir sua identidade antilhana. Ou
melhor: o confronto com a paisagem francesa fez o escritor perceber a sua dupla
e problemática identidade de antilhano, nascido nas Américas negras e descendente
de escravos, e de francês, nascido numa ilha, hoje juridicamente um DOM (Département
d’Outre-mer, ou seja, Departamento francês de Além-Mar).
Esse retorno ao país
natal, ao microcosmo de uma pequena região da sua ilha natal, serve de pretexto
a Glissant para revisitar e repisar alguns temas que lhe são caros: a digênese que
se opõe à gênese, o pensamento “arquipélico” (archipélique) que se opõe ao
pensamento de sistema, a identidade-relação que se opõe à raiz única, a totalidade
à unidade, as Américas à América, a mundialidade à mundialização etc, etc.
No momento atual, cresce
no Brasil o interesse em torno da obra ensaística de Glissant como instrumento de
análise do nosso entorno americano. Mas é preciso lê-lo criticamente.
Não é difícil, de certa
maneira, apontar, nos numerosos ensaios de Glissant, erros de datas, imprecisões,
a sua menor familiaridade com a produção “americana” de língua portuguesa e até
mesmo de língua espanhola, ou ainda a ausência de qualquer referência clara às diferentes
temporalidades das literaturas do continente.[36]
Já assinei alguns textos sobre o assunto[37]
mas é inegável que Glissant permanece um contemporâneo incontornável e a sua obra
pode ser um fermento estimulante para novas abordagens.
O que se defende aqui
é a necessária articulação das ideias de Glissant com outros modelos críticos das
Américas: a antropofagia cultural brasileira mas igualmente a noção de aculturação
de Fernando Ortiz ou a tradição da ruptura de Octávio Paz. Nenhum critico que pretenda
trabalhar a partir das ideias de Glissant sobre “L’Autre Amérique” deveria
deixar de considerar o belíssimo texto de Octávio Paz, escrito para o London
Times Literray Supplement intitulado simplesmente “Poesia latino-americana”.[38]
Um dos seus conceitos,
a meu ver, mais ricos e promissores é aquele que distingue, poéticas naturais e
contra-poéticas, estas ligadas a culturas que se exprimem e produzem em regime de
diglossia. Por outras palavras: há culturas – é o caso evidente das ilhas francesas,
Martinica e Guadalupe, e da Guiana francesa, território que pertence ao continente
– que vivem entre duas línguas, hierarquizadas, situação problemática de divisão
coletiva entre coração e mente, imaginário e ascensão social. A diglossia, que não
é simples bilinguismo, provoca o aparecimento de estratégias de “marronnage”
poético com referências (ocultas) à “outra” língua.
Resta-nos uma última questão
para terminar: a quê linhagem de pensamento poderíamos relacionar a obra ensaística
de Édouard Glissant? Ela não se prende evidentemente à linhagem de tendência generalizante,
do universal abstrato e transcendente, nem àquela dos que creem na essência e na
unicidade do Ser e do Mundo, mas à antiga linhagem dos Pré-Socráticos ou do relativismo
de Montaigne e de Diderot. Glissant coloca-se a favor de um universal[39] enraizado na carne
desejante do universo; afirma a especificidade das Antilhas - como a de cada um
dos inumeráveis lugares e recantos do mundo - na sua diversidade de línguas e histórias,
e sobretudo reivindica o direito, para cada comunidade humana, à opacidade contra
a transparência ofuscante e redutora do Ocidente, defendendo a necessidade imperiosa
da exploração do passado coletivo, rasurado pela História oficial e imposta pela
lógica do mais forte, passado não-perdido mas disperso e esgarçado a ser reencontrado
numa busca órfica da qual os poetas indicam o caminho, criando, por assim dizer,
a memória do futuro.
Não sou nem de Atenas nem de Corinto,
sou cidadão do mundo.
Sócrates
Quero ser chamado Cidadão do Mundo.
Erasmo
de Roterdam
Muitas homenagens recentes
a Edouard Glissant, no momento da sua morte em Paris (a 3 de fevereiro de 2011)
o apresentam como “cidadão do mundo”, como se esse título “allait de soi” àquele que
defendeu a Relação, o Caos-Mundo e sobretudo o direito à opacidade.
Atribui-se muitas vezes a Sócrates a expressão
de “cidadão do mundo”: ela está aliás impressa num painel de azulejos de uma das
estações do Metrô em Lisboa, a da Cidade Universitária. A frase seria, afirmam outros,
de Diógenes de Sínope, o Cínico, que possuía o talento do insulto e da derrisão.
Representa-se tradicionalmente Diógenes acompanhado de alguns pobres objetos: o
cajado, a tijela, a lanterna, a jarra. [40]
A filosofia estoica é sem ambiguidade a esse
respeito. Segundo ela, o homem é por nascimento (não se torna) um cidadão do mundo
e um filho, uma parcela do Deus-Mundo. Esse tema diretamente saído do estoicismo
antigo reaparece (implicitamente) em Spinoza e sobretudo no pensamento moderno (Russel).
Na verdade, pouco importa a quem pertence a revindicação
de ser cidadão do mundo, aos Cínicos, aos Estoicos ou unicamente a Sócrates. Erasmo
no alvorecer dos tempos modernos na Europa também o reivindicou. Mas a reivindicação só era possível no mundo coerente
e denso da grande bacia do Mediterrâneo e talvez um pouco mais. Era então mais fácil
imaginar-se cidadão do mundo. E para os cidadãos do mundo, haveria uma literatura
Todo-Mundo (Tout-Monde) em que os textos
se juntam, se reencontram, se articulam entre si, se entrecruzam ou se contradizem,
em novas e imprevistas combinações.
Mas os textos às vezes resistem, lançam raízes
muito profundas na terra de uma língua. Porque não seguir a lição do próprio Glissant,
no seu grande ensaio Le discours antillais
(O discurso antilhano, de 1981)[41]
sobre os perigos da busca incansável do Outro que desemboca às vezes no Mesmo?
Glissant, mais do que um teórico da literatura
ou o defensor da crioulização, é um grande escritor. Creio que seria bom proceder
a uma espécie de inversão. Fala-se demais do teórico ou do autor de uma antologia,
e não o suficiente do criador, do romancista e do poeta. Pode-se contestar o teórico
a partir de certas afirmações ou de algumas das suas traduções,[42]
mas que riqueza a explorar do ponto de vista da narrativa e da poesia! A partir
da sua obra pode-se tomar a sua prática poética como instrumento de análise para
explorar a memória do escrito e do oral assim como a metamorfose do escrito e do
oral. Assim fazendo-o, o leitor joga Glissant contra Glissant dogmático. Melhor:
contra Glissant, tornado dogma por aqueles que o leem ao pé da letra.
Conferência,
ainda inédita, feita no Instituto de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora,
no ano de 2013, durante um seminário organizado pela Profª Enilce Albegaria. Segue-se,
como anexo, um breve prefácio, apresentando a tradução em português do último ensaio
de Edouard Glissant, publicada pela editora da UFJF. As ilustrações pertencem à série "L'âme du Tarot de Thélème", de 1944, do artista chileno Roberto Matta.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 115 | Julho de 2018
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editor assistente | MÁRCIO
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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[1] “L’axe américain et les
littératures francophones”, in Littératures
au Sud (sous la direction de Marc Cheymol). Paris, Agence Universitaire francophone
– Éditions des Archives, 2009, p. 113 – 120. Afirmávamos então: “En somme Glissant, dont l’analyse reste fondamentale pour
la compréhension des réalités américaines et du monde contemporain, semble parfois
percevoir assez mal non seulement l’univers de langue portugaise mais parfois aussi
l’univers de langue espagnole, lorsqu’il ne s’agit pas uniquement des Antilles.
Il faudrait nuancer et affiner ses analyses lorsqu’il s’agit du monde lusophone
et hispanophone non-antillais. Il y a donc un problème central, qui est celui de nombreux
critiques francophones travaillant sur les Antilles ou sur l’Amérique en général:
ils ne prennent pas en compte la différence des temporalités, la mettant entre parenthèses
pour ainsi dire. Leurs analyses manquent parfois de perspective, car ils travaillent
surtout à partir des traductions et non sur les textes originaux, ou alors sur des
corpus limités dans le temps, ignorant le contexte à l’intérieur de la même culture.”
[2] “De la
ville de Christophe Colomb au paysan piémontais. A la recherche d’une trace italienne
dans l’œuvre d’Edouard Glissant”, in Francofonia,
nº 63, “Le frémissement de la lecture: parcours littéraires d’Edouard Glissant”,
sous la direction de Carminelli Biondi et Elena Pessini. Autunno 2012, p. 147 -166.
[3] “Réflexions sur les traces italiennes
pour et dans une poétique antillaise: Édouard Glissant”, in RIMe – Rivista dell’Istituto di Storia dell’Europa
Mediterrânea. nº 10, giugno 2013, p. 127 – 154.
[4] “Dans les interstices des textes: entre l’oral et lécrit ou La prolifération
des contes dans le récit d’Edouard Glissant”, texto apresentado no Colloque international
“Saint-John Perse, Césaire et Glissant: regards croisés”, 19- 21 setembro de 2012,
Institut du Tout Monde.
[5] Glissant assina em março
de 2007, ao lado de 42 outros escritores francófonos, o manifesto “Pour une littérature-monde
en français”. Em março de 2010, pouco tempo antes do seu falecimento a 3 de Fevereiro
de 2011, Glissant publica, na editora Galaade, La terre le feu l’eau et les vents. Une anthologie de la poésie du Tout-Monde.
É nesta última em que foram analisadas as traduções de Glissant.
[6] Il pensiero del tremore. Traduttore Restori E. Libri
Scheiwiller. Collana
L’Arte e le arti. Settembre 2008. ISBN: 887644579X.
[7] A lítotes é uma figura de
linguagem: consiste numa frase suavizada ou negativa para expressar uma afirmação.
É o oposto da hipérbole e pode conter alguma ironia.
[8] A frase no original é a
seguinte: “La Neo-America - que ce soit au
Brésil, sur les côtes de la Caraïbe, dans les îles ou dans le sud des États -Unis
- fait l'expérience réelle de la créolisation à travers l'esclavage, l'oppression,
la dépossession par les systèmes esclavagistes divers dont l'abolition s'étend sur
une longue période (à peu près de 1830 à 1868) ” (PD, p. 15)
[9] José Campeche (1751 – 1809)
mereceu uma exposição internacional em Nova York e produziu durante toda a sua vida
numa ilha das Antilhas. Produz telas de assunto religioso mas igualmente “civil”
que deveriam ser estudadas em confronto com os pintores do mesmo período no Brasil
ainda colonial.
[10] Antonio Tabucchi (Vecchiano,
província de Pisa, 24 de setembro de 1943 – Lisboa, 25 de março de 2012), professor
de literatura portuguesa em Pisa, escreveu alternativamente em português e em italiano
“Afirma Pereira” (1994), “Notturno Indiano” (1984), “Requiem. Uma alucinação” (1991), “Os últimos dias de Fernando Pessoa” etc.
[11] LOURENÇO, Eduardo. “Cultura
e lusofonia ou os três anéis", in Jornal
de Letras, 9 de Outubro de 1996, p. 38 - 39.
[12] Em 1972 Lacan tomou de empréstimo
ao amigo e matemático Guilbaud a noção de nó de Borromeo. Acreditou ter encontrado
algo que ia “comme une bague au doigt”
para por em evidência os três registros do simbólico, do imaginário e do real.
[13] O
wolof é a língua com maior número de falantes no Senegal, pela etnia wolof, cerca
de 45% da população, assim como por outras etnias. O wolof, empregado como meio
de comunicação igualmente na Gâmbia e na Mauritânia, conhece atualmente uma verdadeira
expansão cultural na África.
[14] Novas literaturas africanas de língua portuguesa. 1998.
[15] Para o português duas ou
três narrativas da literatura contemporânea o mostram: Macunaíma, de Mario de Andrade, Grande
Sertão: veredas, de Guimarães Rosa e O
novelário de Donga Novais, de Autran Dourado.
[16] “Lettre à Maurice Thorez
dans le contexte africain lusophone: essai de lecture comparative du point de vue
politique et littéraire. Avec un sous-titre, Étude d’un cas: Aimé Césaire et l’Angolais
Mario de Andrade.”
[17] MAXIMIN, Daniel. Les fruits du cyclone. Une géopoétique de la Caraïbe. Seuil, 2006.
[18] Cf. op. cit., p. 135-136.
[19] Na Espanha, a “generatión del 98” é
aquela que toma consciência em torno da data, capital e traumática, da perda das
últimas colônias espanholas: Porto Rico e Cuba na América; as Filipinas no Oriente.
É a geração que repensa Espanha, seu passado, sua História, discute a decadência.
A data é comparável à famosa data de 1890, em Portugal, do ultimatum inglês por
causa do “mapa cor de rosa”. Este projeto português que pretendia unir do Oeste
ao Leste, as colónias de Angola e Moçambique, entra em choque com o projeto britanico
de unir o Norte ao Sul, o Cairo ao Cabo. Com 8 anos de intervalo, um choque brutal
faz surgir, nos dois países ibéricos, a consciência da decadência.
[20] Talvez poderíamos falar
do impacto de Lautréamont (Les Chants de Maldoror)
sobre a literaura na França. Mas ele é tardio e só acontece 50 anos depois, graças
ao “descobrimento” do “Uruguaio” pelos surrealistas franceses.
[21] Eis a verso recolhida por
Menendez Pidal em Flor nueva de romances viejos:
Yo
me era mora Moraima,/ morilla de un bel cantar;
Cristiano vino a mi puerta/ cuitada por me engañar.
Hablóme en algarabía,/ comoaquel que la bien sabe:
Àbrasme la puerta, mora,/ si Alá te guarde de mal.
¿Cómo te abriré, mezquina,/ que no sé quién te serás?
Yo soy el moro Mazote,/ hermano de la tu madre,
Que un cristiano dejo muerto/ Trás mi venía el alcade:
Si no me abres tú, mi vida,/ aquí me verás matar.
Cuando esto oí, cuitada,/ comencé a levantar,
Vistiérame una almejía,/ bo hallando mi brial,
Fuérame para la puerta/ y abríla de par en par.
[22] Não deixa de ser interessante
lembrar que Unamunpo conhece bem literatura e cultura portuguesas. Ele escreveu,
em particular, um livro interessante, Por
tierras de España y de Portugal. É de Unamuno ainda a famosa frase para definir
Portugal: “un pueblo de suicidas”.
[23] Je l’ai fait moi-même avant
sa mort dans un texte publié par l’Agence Universitaire Francophone: voir en particulier
“L’axe américain et les littératures francophones”, in Littératures au Sud, sous la direction de Marc Cheymol. Paris, AUF-Editions
des archives contemporaines, 2010, p. 113- 120. Nous y affirmons: “En somme Glissant, dont l’analyse reste fondamentale pour la compréhension
des réalités américaines et du monde contemporain, semble parfois percevoir assez
mal non seulement l’univers de langue portugaise mais parfois aussi l’univers de
langue espagnole, lorsqu’il ne s’agit pas uniquement des Antilles. Il faudrait nuancer et affiner ses analyses lorsqu’il
s’agit du monde lusophone et hispanophone non-antillais. Il y a donc un problème central, qui est celui de nombreux
critiques francophones travaillant sur les Antilles ou sur l’Amérique en général:
ils ne prennent pas en compte la différence des temporalités, la mettant entre parenthèses
pour ainsi dire. Leurs analyses manquent parfois de perspective, car ils travaillent
surtout à partir des traductions et non sur les textes originaux, ou alors sur des
corpus limités dans le temps, ignorant le contexte à l’intérieur de la même culture.”
[24] Esse
pequeno texto, apresentado aqui como um anexo à conferência da UFJF, foi escrito
no final do mesmo ano, como prefácio à tradução das professoras Enilce Albergaria
Rocha e Lucy Magalhães do último ensaio de Édouard Glissant, publicado pela Editora
da Universidade Federal de Juiz de Fora.
[25] Soleil de la conscience (Poétique I, 1956); L’Intention poétique (Poétique II, 1969); Poétique de la relation (Poétique
III, 1990); Traité du Tout-Mone (Poétique IV, 1997).
[26] Il pensiero del tremore. Traduttore Restori E. Libri
Scheiwiller. Collana
L’Arte e le arti. Settembre 2008. ISBN: 887644579X.
[27] Le Lamentin é a segunda
comuna mais povoada da Martinica, depois da capital Fort-de-France: tem hoje cerca
de 40 mil habitantes.
[28] Há outros cursos de água
no espaço francês com o mesmo nome, La Lézarde:
um pequeno ribeirão do Departamento de Seine-Maritime que se lança no estuário do
Sena em Harfleur (Normandia); um riozinho próximo da costa de Basse-Terre na Guadalupe
que se lança no Atlântico perto de Petit-Bourg.
[29] O mangue foi preservado
muito melhor na Guadalupe do que na Martinica. Um passeio marítimo em barco pequeno
no interior do seu labirinto verde é inesquecível. Trajeto semelhante poderia ser
proposto aos visitantes no fundo da baía da Guanabara.
[30] Paris, Seuil, 1958, 250
p.
[31] Cahier d’un retour au pays natal/Diário de um retorno ao pais natal.
Edição bilingue. Com Posfácio, bibliografia e notas de Lilian Pestre de Almeida.
EDUSP, 2012.
[32] Há diferentes tipos de Trichechus: peixe-boi-marinho, peixe-boi-africano
e peixe-boi-amazônico.
[33] O verbete sobre o boto é
um dos mais extensos do monumental Dicionário
do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo.
[34] Senghor,
no seu ensaio, escreve lamantin com a.
[35]
In Le Traité du Tout-Monde, p. 75
[36] Há um problema recorrente
em vários críticos francófonos trabalhando sobre as Antilhas ou sobre as Américas
em geral: não levam em consideração a diferença de temporalidades, colocando-a de
certo modo entre parênteses. Suas análises pecam por vezes por falta de perspectiva,
uma vez que trabalham a partir de traduções e não a partir de obras nas suas línguas
originais. Ou então estudam um corpus limitado no tempo, ignorando o que precede,
no interior da outra cultura.
[37] Ver, por exemplo, três textos,
sendo que o último pode ser consultado facilmente por internet:
a)
“L’axe américain et les littératures francophones”, in Littératures au Sud (sous la direction de Marc Cheymol). Paris, Agence
Universitaire – Éditions des Archives, 2009, p. 113 – 120;
b) “De la ville de Christophe Colomb au paysan piémontais.
A la recherche d’une trace italienne dans l’œuvre d’Edouard Glissant”, in Francofonia, nº 63, “Le frémissement de la
lecture: parcours littéraires d’Edouard Glissant”, numéro special sous la direction
de Carminelli Biondi et Elena Pessini. Bologna, autunno 2012, p. 147 -166
c) “Réflexions sur les traces italiennes
pour et dans une poétique antillaise: Édouard Glissant”, in RIME – Rivista dell’Istituto di Storia dell’Europa
Mediterrânea. nº 10, giugno 2013, p. 127 – 154.
[38] PAZ, Octavio. Convergências: ensaios sobre arte e literatura. Rio de Janeiro:
Rocco, 1991, p. 161 - 173: Poesia latino-americana.
[39] Glissant abandonará progressivamente
o termo universal em favor do termo “totalidade-terra”. A viragem se dá entre os
seus dois mais importantes ensaios Le discours
antillais (Seuil, de 1981) e Introduction
à une poétique du Divers (Presses de l’Université de Montreal, 1995 e depois
Gallimard, 1996). Neste último, ele esboça uma articulação com outros teóricos da
América Latina, o que infelizmente não será aprofundado.
[40] No grande fresco do Vaticano
A Escola de Atenas, por Rafael (1509 -
1512), Diógenes de Sínope é aquele que está reclinado, semi-nu, ao centro, num dos
degraus da escadaria, abaixo do par central formado por Platão e Aristóteles.
[41] Creio que os três ensaios
fundamentais mais importantes de Glissant são Le Discours antillais (1981),
Poétique de la Relation (1990) e o já
citado Introduction à une poétique du Divers
(1995). Este último já foi traduzido para o português por Enilce Albegaria da Rocha
com o título Introdução a uma poética da diversidade
(UFJF, 2005)
[42] Ver em particular as traduções
reivindicadas por Glissant de poemas em português e em espanhol na sua antologia
La terre, le feu, l’eau et les vents. Une
anthologie de la poésie du Tout-Monde (Galaade, 2010).
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