sábado, 14 de julho de 2018

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Paula Rego na capela do Palácio de Belém, em Lisboa



APRESENTAÇÃO DA SÉRIE | Na edição de 9 de Novembro de 2002, o semanário português O Expresso anunciava:

Paula Rego pintou uma série de oito pequenos quadros sobre a Virgem Maria, que se destinam à capelinha do Palácio de Belém. A ideia partiu do Presidente da República, Jorge Sampaio, na viagem oficial que realizou ao Reino Unido, em Fevereiro, durante a qual visitou o atelier da pintora, em Kentish Town, no Norte de Londres. A capela do Palácio de Belém - que é um espaço minúsculo situado num local semi-escondido da morada presidencial - foi palco do batismo do último Rei de Portugal, D. Manuel II. Paula Rego pensa que nenhum dos quadros é chocante, mas a obra retratando Nossa Senhora grávida vai causar alguma controvérsia.

A pequena nota, acompanhada da reprodução da tela intitulada “Natividade”, suscitou de imediato farto correio de leitores. Alguns protestavam contra o que lhes parecia escândalo e blasfêmia.
Três meses mais tarde, o Diário de Notícias, do sábado 15 de Fevereiro de 2003, publicava nova reportagem sobre a visita oficial do presidente de Portugal, Dr. Jorge Sampaio, agora à capela para ver os quadros já instalados. O texto assinado por Ana Marques Gastão constitui uma primeira leitura, forçosamente muito breve pelo seu caráter jornalístico, mas sensível e inteligente da série.
No verão do mesmo ano, a revista Aprender a olhar (n.º 7, de Jun.-Jul. 2003), com nítido carácter didático e dedicada ao público infanto-juvenil, voltava a apresentar a série de oito quadros acompanhada de notas e comentários sobre a pintora portuguesa. Os dois textos principais eram assinados por Sandra Lourenço e Inácio de Santamaria[1].
Foi ainda publicada, em Abril de 2003, na revista Grande Reportagem, uma entrevista realizada por Richard Zimmler com a pintora, intitulada “Paula Rego. A outra face de Maria”[2]. Na conversa, muito bem conduzida pelo escritor norte-americano, judeu de origem azkenaze, residente há vários anos no Porto, Paula Rego revela suas intenções, seu amor pela pintura e também o seu já conhecido e, por vezes, não-intelectualismo. Por vezes a simplicidade das suas respostas a qualquer interpretação sobre um certo simbolismo chega a ser tocante: quando Zimmler lhe propõe uma explicação para a figura do tigre na tela “A Adoração dos pastores, ela apenas responde: “não sabia disso. Tenho de me lembrar disso!” (ibid., p. 61) A apresentação assinada por Zimmler resume o ciclo:

Paula Rego, na sua mais recente série de obras, encarregou-se do desafio que é contar a história da Virgem Maria a partir do ponto de vista da mãe de Jesus. [….] Os quadros de Paula Rego, solicitados pelo Presidente Jorge Sampaio e oferecidos pela artista ao Palácio Presidencial, enfatizam a corporeidade da mulher Maria. Ela atravessa a dor lancinante do parto, as alegrias da maternidade e a tristeza de ver o seu filho torturado. Não nos surge como uma pálida e romântica contempladora passiva nem como a santificada Mãe de Deus já prestes a receber as nossas preces, mas sim como a mãe de um filho frágil apanhado numa história que iria desmembrar a sua família e mudar o mundo. É uma rapariga em apuros cumprindo um destino com que nunca sonhou e que decerto não pode controlar - e a fazer o melhor que pode. Como trabalhos profundamente religiosos, estes quadros mostram Maria como alguém relevante no nosso quotidiano, em grande parte por nos lembrarem que ela e o seu filho são mulher e homem - tal qual como nós - muito antes de serem qualquer outra coisa. “Estes são quadros portugueses” explica ainda Paula Rego, sobre referências reconhecíveis à sua terra natal na maior parte dos seus trabalhos. (ibid., p. 58)

 Para Richard Zimmler não há qualquer dúvida: a série é religiosa. Profundamente. E para a pintora, os quadros são, também, essencialmente portugueses. Voltaremos, na análise de cada tela, a algumas das respostas da artista.
O conjunto de Belém foi aberto ao público: a série não suscitou ainda uma leitura sistemática do ponto de vista iconológico tal como Panofsky o definia, o que buscamos esboçar aqui. Assim, tentaremos analisar, mesmo de forma sucinta, a técnica empregada, cada tela, isolada e na sua articulação às restantes, dentro de um ciclo de caráter religioso para, no final, tentar destacar a parte de inovação e de respeito à tradição, do conjunto pictórico. Para isso é necessário referir por um lado, as fontes textuais sobre a vida da mãe de Jesus que explicam a diversidade das iconografias através do tempo e por outro, descrever a técnica empregada por Paula Rego.

O EMPREGO DO PASTEL POR PAULA REGO | Comecemos pelos problemas técnicos e pelas soluções adotadas pela artista.
O pastel, esse pó colorido com nuances extremamente variadas, cuja intensidade permanece intacta ao longo do tempo, apresenta-se sob o aspecto de um giz ou de pequenos bastões, utilizados a seco ou diluídos. Distinguem-se pastéis secos (tenros e duros) e gordos (com cera ou óleo).
Pode-se trabalhar o pastel com os dedos: ele permite ao mesmo tempo a rapidez da emoção e da escrita plástica, a anotação da ideia, a facilidade de apagar (o que os italianos chamam de pentimento), privilegiando o aveludado da matéria e a luminosidade do colorido.
Teria sido inventado, em França e na Itália, no final do século XV: Leonardo o utiliza, por exemplo, para realçar o seu desenho de Isabella d’Este. Ou ainda Antoine Clouet (1510 – 1572) nos seus retratos. No século XVIII, o pastel é utilizado sobretudo por Quentin de la Tour; Chardin et Liotard exploram e aprofundam as suas qualidades intimistas. A tradição do pastel continua com os impressionistas (Degas ou Mary Cassatt) e os Nabis (Vuillard) assim como Odile Redon. Mais próximo de nós, Paul Klee, Masson e Picasso o retomam, desenvolvendo novas técnicas com intervenções sobre o material (raspagens, superposições etc.).
Os artistas usaram no passado e continuam a usar o pastel de diferentes maneiras. Uns põem em evidência suas qualidades expressivas de vaporoso, de esfumado; outros sobrepõem as cores em camadas mais espessas. Outros ainda, depois de aplicarem o pastel em camadas, raspam-no, criando uma espécie de crispação. A justaposição das cores, a variedade das texturas e a diversidade das possibilidades formais dependem da personalidade de cada artista. O pastel pode ainda ser utilizado juntamente com outros materiais: óleo, fusain, lápis, acrílico, guache, tinta da China, aguarela etc.
A primeira obra de Paula Rego totalmente a pastel data de 1994: é a primeira das Mulheres-cão. A seguir pinta “Branca de Neve brincando com o troféu do pai em pastel sobre platex (1995). No final dos anos 90, realiza toda a série O Crime do Padre Amaro (1997 - 1998) em pastel sobre papel, montado sobre alumínio.[3] O compromisso é novo: a artista retoma o suporte tradicional (o papel) mas cobre superfícies cada vez mais extensas, tornadas rígidas pela presença do alumínio, material mais leve, extraindo do pastel uma força robusta absolutamente invulgar. As 14 telas, criadas a partir da narrativa de Eça, algumas muito grandes, constituem a comprovação da sua mestria na nova técnica. O que era inicialmente experimentação transforma-se rapidamente em competência, depois em pleno domínio do material e em virtuosismo.
Na capela de Belém, Paula Rego reutiliza a mesma técnica e o mesmo suporte. Mas as dimensões são agora mais reduzidas: os quadros devem adaptar-se às dimensões modestas da capelinha. Todos têm as mesmas dimensões (52 cm x 54 cm), quase quadrados, e funcionam como uma via sacra feminina em torno Maria.
Na entrevista com Ricahrd Zimmler, a artista refere: “Eu não usei o pastel como habitualmente as pessoas fazem. Não estão esfregados. São desenhados e desenhados… Demora muito tempo fazer as mãos. Sofrem muitas mudanças” (Grande reportagem, p. 61). Ela acaba por afirmar: “na verdade o pastel é uma extensão das minhas mãos” (ibid., p. 61). Dez anos depois da sua primeira obra totalmente em pastel, Paula Rego vê e sente o pastel como seu. Tornou-se a sua técnica dominante.

LENDO O CONJUNTO DA CAPELA DE BELÉM

A distribuição das telas no espaço da capela | As telas sobre a vida de Maria de Nazaré na capela, bastante pequena, de Belém distribuem-se em duas paredes, face a face. O esquema abaixo apresenta a série tal como é vista pelo espectador à porta de entrada da capela, de frente para o altar:

a) Altar

4. “Purificação“5. “Fuga para o Egito”
3. “Adoração dos pastores”6. “Lamentação”
2. “Natividade”7. “Pietà”
1. “Anunciação”8. “Assunção”

b) Porta de entrada

Para ler a série, segundo a cronologia dos episódios representados, o visitante deverá deambular no interior da pequena capela, ao longo da parede à sua esquerda e depois voltar ao longo da parede à direita, em direção à porta de entrada.
A deambulação ritual é uma antiga forma de peregrinação simbólica num espaço sagrado. A exiguidade das dimensões da capela reduz a deambulação à sua forma mais simples: cada espectador vê quase ao mesmo tempo cada par de telas à sua esquerda e à sua direita se caminhar simplesmente em direção ao altar.
Assim, a distribuição das telas nas paredes, além de expressar uma sequência temporal (telas de nº 1 à de nº 8, ou seja, a história de Maria de Nazaré da Anunciação do anjo à “Assunção” ao céu), cria um conjunto de pares complementares e/ou opositivos: “Anunciação” – “Assunção”; “Natividade” – “Pietà”; “Adoração dos pastores” – “Lamentação”; “Purificação” – “Fuga para o Egito”.
Por outro lado, a presença ou ausência da figura do anjo com asas, sugere dois subconjuntos, cada um com quatro telas: no primeiro, caracterizado pela presença do anjo, três anjos claramente femininos, fortes, adultos e vestidos de branco (em “Visitação”, “Natividade”, “Fuga”) opõem-se ao belíssimo anjo menino, frágil e desnudo (da “Assunção”); no segundo subconjunto, sem anjo, duas telas de festa (“Adoração” e “Purificação” embora, nesta, apareça a Pomba do Espírito Santo). Este segundo subconjunto alterna pois festa e dor, comemoração e pranto.
Enfim, a tonalidade do pastel cria dois outros subconjuntos: telas claras (as cinco primeiras mais a última, “Assunção”) e telas escuras (nºs 6 e 7). Veremos mais adiante que há uma nona tela, acabada, mas excluída afinal da capela, que fazia parte do paradigma das telas mais escuras, “A Agonia no Horto”. Esta, ausente da capela, pode ser vista na Casa das Histórias, em Cascais.
O ciclo suscitou de imediato admiração e algum escândalo. Mas pouca gente o viu de verdade. A série situa-se sem dúvida nenhuma a meio caminho, entre tradição e inovação. Sua iconografia enraíza-se fortemente numa tradição pictórica e ao mesmo tempo exprime, em toda sua complexidade, um imaginário individual, bastante peculiar, com marcas populares.
Na intra-textualidade de Paula Rego, a série articula-se com a produção anterior da pintora, inclusive com séries narrativas recentes como a do Crime do Padre Amaro. Assim, num esforço permanente de trançar fios, destacaremos tudo o que retoma e problematiza a extraordinária bagagem, acumulada ao longo dos séculos, da pintura religiosa (ocidental e oriental) e o que se imbrica numa intra-textualidade característica do fazer de Paula Rego. Dando dois exemplos muito simples para que se possa compreender: uma “Assunção” em que a Virgem precisa de ajuda para subir ao céu, apesar do seu aspecto, para muitos, hoje muito estranho, retoma uma velha questão teológica e uma determinada iconografia arcaizante presente ainda no barroco americano, em especial no barroco mineiro[4]; por outro lado, a figura da Madalena ao pé da cruz ocupa sem dúvida nenhuma um lugar canônico mas a sua postura de mulher-cão é totalmente inovadora. Dito de outra maneira: a Virgem Mãe, Assunta graças a uma força exterior, tem antecedentes ilustres na história da pintura religiosa ocidental e faz parte de uma tradição, hoje quase esquecida; Madalena, no seu lugar marcado ao pé da cruz, por um lado, adapta a velha iconografia muito conhecida da Madalena mundana e por outro, inova por estar de gatas (no Brasil, dir-se-ia, de quatro), a sua significação prendendo-se a outras telas da pintora portuguesa. Uma (“Assunção”) explica-se por um fio da tradição; outra (“Lamentação”), sobretudo, por uma temática pessoal.

Principais temas e paradigmas | Para que se possa avaliar a coerência do ciclo mariano de Paula Rego, destacamos a seguir alguns dos seus principais paradigmas.
Quantos e quais personagens aparecem em cada tela do conjunto mariano? Um certo número de pequenos inventários poderia ajudar a nos orientar:

“Anunciação”:2 personagens: Maria , Anjo feminino adulto
“Natividade”: 2 personagens: Maria, Anjo feminino adulto
“Adoração dos pastores”:5 personagens: Maria, o Menino, três pastores
“Apresentação”: 4 personagens: Maria com o Menino, Ana, criada
“Fuga para o Egito”:5 personagens: Maria, o Menino, Anjo feminino adulto, Ana, José
“Lamentação”:2 personagens: Maria, Madalena
“Pietà”:2 personagens: Maria, Jesus adolescente morto
“Assunção” :2 personagens: Maria, Anjo masculino menino.

Assim, temos: cinco telas com 2 personagens, duas com 5 personagens e uma com 4 personagens. Dos cinco quadros com apenas dois personagens, pode-se destacar dois subconjuntos: três com a Virgem e o Anjo, e dois com a Virgem e outro ser humano: Maria e Madalena, Maria e o Filho morto. Neste último subgrupo não há nunca diálogo: a Madalena olha para fora do quadro e Jesus jaz no colo da Mãe que levanta os olhos para o céu (vazio). Nos pares de Maria com o Anjo, este pode ser feminino ou masculino, exercendo junto a Maria funções diferentes: anunciador (anjo adulto feminino no lugar de Gabriel), parteira (anjo adulto feminino, em nova função ginecológica) e adjuvante da “Assunção” (anjo menino masculino). Note-se, enfim, que não há nenhuma tela com Jesus adulto. O Filho como Messias está ausente da série.
Já sugerimos anteriormente que, à esquerda e à direita do espectador ao entrar na capela, formam-se quatro pares opositivos e complementares, de telas. Assim temos sucessivamente:

“Anunciação” - “Assunção” : início e fim do ciclo: a escolha da Mãe - a glória da Mãe
“Natividade” - “Pietà”: nascimento do Filho - corpo morto do Filho
“Adoração” - “Lamentação”: reconhecimento do Filho pelos pastores - condenação do Filho ausente
“Apresentação” - “Fuga”: Menino no colo da Mãe - Menino com o Anjo

Considerando o primeiro paradigma proposto - quadros com Anjos -, temos quatro exemplos:

“Anunciação” - “ Natividade”- “Fuga” : grande anjo feminino adulto
“Assunção” : pequeno anjo masculino menino

No paradigma dos quadros sem anjos, temos igualmente quatro exemplos: “Adoração”, “Apresentação”, “Lamentação” e “Pietà” que, por sua vez, formam dois subgrupos, um eufórico, outro disfórico:

“Adoração” – “Apresentação”: festa (par eufórico) - corresponde aos mistérios gloriosos da Virgem
“Lamentação” – “Pietà”: dor (par disfórico) – corresponde aos mistérios dolorosos da Virgem

No paradigma que se caracteriza pela presença de Jesus, temos ainda quatro exemplos:

“Adoração dos pastores” , “Apresentação” e “Fuga”: Jesus infante (recém nascido)
“Pietà”: Jesus (corpo adolescente) morto nos braços da Mãe

Como Maria é a figura recorrente de todo o ciclo, vejamos como é apresentada do ponto de vista diacrónico, na sequência das telas da parede à esquerda e depois na parede à direita. Ela surge de diferentes maneiras e com diferentes atitudes:

“Natividade”: tímida rapariga de escola, sentada
“Natividade”: adolescente grávida deitada, pernas abertas
“Adoração”: jovem mãe, o Filho ao colo, sentada, de perfil
“Apresentação”: mãe, longo vestido branco, Filho ao colo, de pé e de frente
“Fuga”: mãe vestida de escuro, de costas , a cavalgar um burrico
“Lamentação”: camponesa pobre, lenço à cabeça, de joelhos, apoiada nos calcanhares
“Pietà”: jovem mãe, cabeça nua, sentada, os olhos para o alto
“Assunção”: longo vestido preto, de costas, braços abertos

Outros personagens, além do Anjo e do par Mãe-Filho, aparecem no ciclo da capela de Belém; são eles:

“Adoração”: pastores (duas mulheres e um homem)
“Apresentação”: Ana e criada sem nome
“Fuga”: Ana e José
“Lamentação”: Madalena

Observe-se que todos esses personagens humanos são, de certa forma, secundários, com excepção da Madalena que ocupa o primeiro plano e olha para fora do quadro mas o seu olhar permanece vazio, não sendo uma testemunha a puxar o espectador para dentro da cena representada. Enfim, há uma nítida predominância, em toda a série, de figuras femininas: além de Maria e dos três Anjos femininos, temos seis outras representações; assim:

“Adoração”: duas mulheres (camponesas)
“Apresentação”: Ana e criada
“Fuga”: Ana à janela como uma vizinha
“Lamentação”: Madalena (mundana moderna)

Em consequência, além de Jesus e do Anjo-menino, temos, comparativamente, pequeno número de personagens masculinos, quase anónimos:

“Adoração”: pastor
“Fuga”: José no plano de fundo, apenas entrevisto, abrindo a caminhada para o Egito.

Se criarmos um paradigma das telas que apresentam animais, temos:

“Natividade”: dois bois (cf. manjedoura do presépio natalino tradicional)
“Adoração”:uma serpente e uma cabeça de tigre
“Apresentação”: uma pomba e um cordeiro morto, sangrado, seguro pelas patas por uma criada
“Fuga”: um burrico (cavalgado por Maria)

Os animais com forte carga simbólica são os que estão presentes na “Adoração dos pastores” e na “Apresentação”. Neste último, a pomba e o cordeiro imolado são de leitura imediata para qualquer espectador; naquele, a serpente e o tigre exigem maior reflexão para compreendê-los. Já os bois e o burrico são figuras comuns em cenas de presépios ou de fuga para o Egito.
Vejamos ainda que a representação do espaço de cada tela tende para o abstracto; assim:

“Anunciação”: espaço sem qualquer indicação precisa
“Natividade”: estrelas no céu nocturno e dois bois numa manjedoura ao fundo
“Adoração” : fundo bipartido (dourado/cor de terra) sem qualquer perspectiva
“Apresentação”: espaço neutro que junta roupa de festa e trabalho de cozinha
“Fuga”: o único a esboçar uma paisagem: um caminho, o muro e um fundo
“Lamentação”: espaço neutro sobre o qual se projeta a sombra (parcial) do pé da cruz
“Pietà”: espaço neutro e luminoso de crepúsculo
“Assunção” : espaço neutro com a sugestão de um abismo escuro no primeiro plano.

Todos esses paradigmas reforçam duas características gerais: a extraordinária coesão do ciclo e o inequívoco esforço da pintora para uma visão sintética e humana da vida de Maria.

Lendo as telas do ciclo de Belém | A leitura da série considera cada tela segundo a ordem cronológica da narrativa: da “Anunciação” à “Assunção”. A referência aos textos será constante mas não se deve esquecer que, para um pintor, a referência básica é sempre a pintura. Um pintor pensa inicial e fundamentalmente por cores, por linhas e por imagens. Isto significa que, mesmo em Paula Rego que vem dando tanta importância ao suporte narrativo das suas telas (como o comprovam os seus ciclos narrativos anteriores: O crime do Padre Amaro, Jane Eyre etc.), o seu conhecimento dos temas provém, - acreditamos - , sobretudo da contemplação de outras telas, de muitas outras telas. Telas às vezes sobre outros temas, totalmente diferentes. O que perdura na memória de um pintor é a lembrança de um gesto, a disposição das figuras num determinado espaço, a presença de um fundo neutro, uma sugestão de paisagem, um determinado tipo de perspectiva, a junção de algumas cores, em suma o que importa a um pintor é a visão.

“Anunciação” | A iconografia da “Anunciação” é extremamente variada. Artistas orientais e ocidentais encontraram, ao longo do tempo, muitas soluções plásticas para representar o anúncio feito pelo Anjo à Virgem sobre o futuro nascimento de Jesus. Do tipo da Virgem humilde, Ancilla Dei, até a explosão do sagrado nos maneiristas (Beccafumi ou Lorenzo Lotto, em particular), da sacra conversazione com a Virgem do Livro à perturbação da adolescente diante do inesperado. Também o Anjo anunciador tem incontáveis variantes.[5]
Em tratados teológicos do século XV, subdividiu-se a “Anunciação” a Maria em vários estados de alma que corresponderiam às diversas reacções da Virgem perante a mensagem divina. Segundo estes textos, situa-se no início a conturbatio de Maria, ou seja, a sua inquietação, seguida pela reflexão, depois do questionamento e, por fim, pela submissão da jovem (ancilla Domini) aos desígnios de Deus. Nas telas da época, os pintores escolhem um desses momentos para a sua representação.
O texto de Lucas é a fonte da maioria das representações por ser o mais completo:

No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de David; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo.” Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: “Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado filho do Altíssimo, e o Senhor deus lhe dará o trono de David, seu pai: ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim. Maria, porém, disse ao Anjo: “Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?” O anjo lhe respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra, por isso o santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, tua parente, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível” Disse então Maria: “Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” E o anjo a deixou. (Luc., 1, 26-38)

A novidade, em Paula Rego, surge já na figura da Virgem mas concentra-se sobretudo na do Anjo. Maria, vestida como uma colegial de colégio de freiras no Portugal dos anos 40, é representada sentada, os pés virados para dentro como uma miúda tímida. Apenas as asas brancas denunciam o Anjo anunciador. Maria ergue os olhos para a figura do Anjo, forte matrona vestida de branco que, pelo posição das mãos, parece ter ao colo uma criança (inexistente ainda). O gesto tem dupla significação: por um lado, é a posição do fazer “arrotar” um recém-nascido que acabou de mamar e por outro lado, as mãos direita e esquerda pousadas respectivamente sobre o ventre e o coração, sugerem uma gestação do amor. A mensagem passa pois pela mímica o que os teólogos do século XV não haviam sequer previsto. A postura do Anjo lembra a de Dionísia na tela intitulada “A Neta” da série O Crime do Padre Amaro. Maria recebe a nova de que terá em breve um filho ao colo. A cena tem um cariz claramente quotidiano.
A pintora comenta na entrevista a Richard Zimmler:

mais difícil de todas foi a primeira, a “Anunciação”. [...]
Tenho cinco versões desse quadro, pois não o conseguia agarrar. Fiz as figuras e pu-las no cenário, que lembrava as pinturas religiosas indianas, aquelas com cores muito brilhantes. Depois disse que era isso mesmo! Marcou a cor e o ambiente para todos os quadros. Conto-lhe como aconteceu. Por vezes as pessoas de Hare Krishna dão panfletos e pequenos livros de orações. Eu estava num táxi e o condutor deu-me um livro de Hare Krishna, que tinha ilustrações coloridas de forma muito brilhante. Um mistério existe tanto em cores brilhantes como existe em luz e sombra. E fica tão mais interessante se a cor for pálida. E pensei que devia fazer assim. Usei-a em todos os quadros. (Grande reportagem, p. 62)

“Natividade” | A mesma matrona de grandes asas e vestida de branco reaparece na cena da “Natividade”, tela que esteve - e continua a estar - no centro da polémica em Portugal. Sobre ela concentram-se todas as críticas dos que se sentem ofendidos na sua fé, sendo considerada fonte de escândalo.
O fundo do quadro, com as estrelas brilhantes no céu azul profundo, lembra muitos presépios portugueses. Já o primeiro plano, em oposição, surge com iconografia totalmente nova. Num espaço pobre e cor de terra, sem dúvida uma manjedoura por causa da presença mansa de duas vacas, é representada Maria, de pernas abertas, em trabalho de parto. Descalça, assim como o grande Anjo feminino, a mão sobre o ventre enorme, ela descansa a cabeça nas coxas do Anjo que a assiste, antes do nascimento do Filho.
Paula Rego comenta na entrevista a Zimmler:

Todas sabemos que estar grávida tão jovem é inquietante e assustador - e no entanto ela aceita-o. Tem também um anjo muito prestável. O seu Anjo da Guarda, é o que ele é. Dizem que é Gabriel, mas eu penso que é o seu Anjo da Guarda. Gabriel é um agente, mas este é o guardião dela! […]
Na história que li [Paula Rego refere-se a Voragine e aos Evangelhos apócrifos], José chama uma parteira chamada Salomé e quando ela toca na Virgem as suas mãos envelhecem. O anjo desce e diz-lhe para não se preocupar, se ela tocar no bebé após ele nascer as suas mãos voltarão ao normal. O anjo ajuda-a. (in Grande reportagem, p. 62)

A representação da Virgem grávida não deveria ser fonte de surpresa em Portugal. A imaginária medieval portuguesa tem incontáveis exemplos da Virgem do Ó: o Museu de Arte Antiga, de Lisboa, exibe um belo exemplar dessa iconografia em que uma jovem grávida pousa a mão sobre o seu ventre bem redondo. A graça e o encanto dessas imagens são comoventes. O que chocou certamente foi a Virgem parturiente e talvez ainda a sola do pé suja[6] do grande Anjo feminino. O lado concreto das figuras e o realismo da cena incomodaram o público, que protestou. As cartas dos leitores ao Expresso dão testemunho do mal-estar inequívoco.
Lembremos inicialmente a tradição medieval a respeito da gravidez da Virgem. Do ponto de vista textual, há inúmeros exemplos de autos religiosos com cenas cômicas sobre os ciúmes de José e as suas dúvidas sobre a fidelidade de Maria, tanto em textos espanhóis como em textos franceses Do ponto de vista literário, os homens da Idade Média não hesitavam em rir, no seu teatro, de elementos cômicos introduzidos nas cenas do nascimento de Jesus, como, por exemplo, José derrubar a lanterna e deixar o lugar do nascimento às escuras. Nada, no entanto, que pusesse em causa a santidade da Virgem Maria: José, graças ao Anjo, acabava por aceitar o nascimento maravilhoso. De certa forma, a santificação de S. José é algo tardio na Europa, o que os cristãos de hoje ignoram de um modo geral: Louis Réau o afirma explicitamente e Sta Teresa de Ávila é importante nesse movimento de renovada veneração.
Do ponto de vista plástico, temos exemplos em França e na Alemanha de telas, também medievais, que representam Jesus no interior do ventre da sua mãe. Réau dá uma lista dessas imagens que virão a ser censuradas pelo Concílio de Trento, ou seja, no século XVI. Além disso, temos as famosas vierges ouvrantes denominadas “virgens abrideiras” em Portugal: estátuas da Virgem Maria em madeira, que se abrem, e no interior das quais podemos encontrar o menino Jesus ou uma representação da Trindade[7].
A inovação está na representação de Maria em postura ginecológica. Duas observações impõem-se. A primeira articula a “Natividade” com as cenas, também surpreendentes, primeiro do nascimento de Ismael e depois do nascimento de Isaac, assim como aparecem na Bíblia. Não podendo ter filhos, Sarai (a futura Sara, aquela que virá a ser, na sua velhice, a mãe de Isaac) aceita que a sua escrava Agar, seja fecundada pelo seu próprio marido, Abrão (futuro Abraão), praticamente entre os seus joelhos:

A mulher de Abrão, Sarai, não lhe dera filho. Mas tinha uma serva egípcia, chamada Agar, e Sarai disse a Abrão: “Vê, eu te peço: Iahweh não permitiu que eu desse à luz. Toma, pois, a minha serva. Talvez, por ela, eu venha a ter filhos. E Abrão ouviu a voz de Sarai. (Gén., 16, 1-2)

Por outro lado, os anjos visitam mais tarde Abraão e anunciam o nascimento de Isaac, de Sara que já tem 90 anos. Em dois momentos distintos, tanto o pai como a mãe, riem. Isaac é literalmente o riso dos seus pais.
A segunda observação: nessa tela, Paula Rego retoma alguns desenhos e quadros de uma série anterior sobre o aborto, mais ou menos contemporânea à série do Crime do padre Amaro, o que significa que, do ponto de vista plástico e humano para a artista, é o parto sem assistência “médica” que lhe interessa. No fundo, em Paula Rego, o Anjo feminino da “Anunciação” é não só aquela que anuncia como a que ajuda o nascimento do Filho divino. Ou seja, a parteira. Para Paula Rego, é o Anjo da Guarda de Maria.

“Adoração dos pastores” | Nada mais idílico do que a Adoração dos pastores na tradição pictórica. É o momento em que os humildes, pastores e animais, adoram o Menino. A cena está presente ainda em todos os Natais, nos presépios, no burro e na vaquinha, na palha da manjedoura, na doçura da Virgem protegida pelo olhar do pai, São José. Portugal, como Espanha e Nápoles igualmente, têm uma tradição do presépio muito rica e variada, nascida da sensibilidade sentimental franciscana, o primeiro presépio sendo referido como o de Greccio, em 1223.
Para Paula Rego, esta foi a tela que acabou por ser a mais distante da concepção original “por conter de início pastores e muito espaço exterior”. Acrescenta:

Acabei por fazer o quadro com pessoas e objectos que tinha em torno de mim, O tapete de tigre - que estava no meu estúdio - tinha-me sido dado. Improvisei muito tudo mais como um quadro do que como uma ilustração de uma história. (Grande Reportagem, p. 59)

A tela de Belém apresenta uma cena compacta com os personagens dispostos em frisa, representados sem perspectiva, cena bipartida sobre um fundo dourado que lembra Bizâncio (para a Virgem e o Menino) e um fundo cor da terra (para os humildes). Os personagens juntam-se todos num primeiro plano sem profundidade. A Virgem vestida de azul (azul sobre ouro) exibe o menino louro envolto num manto dourado. Uma forma estranha a volta do Menino e sobre as mãos cruzadas da Mãe lembra claramente uma serpente.
A explicação de Paula Rego a Richard Zimmler é bastante simples, quase simplória:

quando se misturam animais com figuras humanas fica sempre muito mais interessante a nível visual, pois a identificação que fazemos com cada criatura é diferente. É importante a variedade de formas. A minha neta, que serviu de modelo para Maria, estava a brincar - por acaso - com uma cobra de madeira que eu tenho no meu estúdio, e então eu decidi incluí-la (Grande reportagem, p. 61)

A sugestão da serpente, imediatamente censurada pela maioria dos espectadores de hoje, não espantaria nenhum fiel das cidades mineiras do ciclo do ouro, São João del Rei, Diamantina, Ouro Preto ou Tiradentes: o barroco mineiro, no Brasil, conservou a memória da relação do Cristo com a Serpente de bronze e inúmeros crucifixos de altar em Minas exibem ainda a cruz com a serpente. Mas a iconografia mineira é muitas vezes arcaizante e para os fieis de hoje é necessário explicitar a articulação que lhes parece escandalosa, saída da mente de uma mulher ímpia ou desvairada. Simplesmente por esquecimento da tradição tipológica.
Articular o Menino com a Serpente é articular o Novo Testamento com o Velho Testamento do ponto de vista da significação; por outras palavras, trabalhar a partir de uma forma de pensar que dominou toda a arte sacra europeia da Idade Média até pelo menos o século XVII, a tipologia. Recordemos o episódio bíblico da serpente de bronze, ou se quisermos, nos termos em que Gilbert Durand analisa, não propriamente o tema mas o processo simbólico que o caracteriza, no seu livro fundamental, Les structures anthropologiques de l'imaginaire. Em suma: o processo imaginário, tantas vezes analisado do ponto de vista antropológico, da inversão da inversão. Ou seja, por exemplo, invocar a morte para nos salvar da morte. No caso, invocar a serpente para nos salvar da mordida da serpente que no Gênesis provocou a queda dos primeiros pais.
Se a cristandade hoje, de um modo geral, só identifica a face maldita e negativa da serpente, os textos sagrados do Cristianismo dão testemunho de dois aspectos do símbolo. Assim, nos Números, se as serpentes terrestres enviadas por Deus como punição fazem morrer a muitos de Israel, o povo eleito recobra vida graças à serpente, segundo as instruções que o Eterno dá a Moisés:

Então partiram da montanha de Hor pelo caminho do mar de Suf, para contornarem a terra de Edom. No caminho o povo perdeu a paciência. Falou contra Deus e contra Moisés: Por quê nos fizeste subir do Egito para morrermos de fome neste deserto? Pois não há nem pão, nem água; estamos enfastiados deste alimento de penúria.
Então Deus enviou contra o povo serpentes abrasadoras, cuja mordedura fez perecer muita gente em Israel. Veio o povo dizer a Moisés: “Pecamos a falarmos contra Iahweh e contra ti. Intercede junto de Iahweh para que afaste de nós estas serpentes”. Moisés intercedeu pelo povo e Iahweh respondeu-lhe: “Faz uma serpente abrasadora e coloca-a em uma haste. Todo aquele que for mordido e a contemplar viverá”. Moisés, portanto, fez uma serpente de bronze e a colocou numa haste; se alguém era mordido por uma serpente, contemplava a serpente de bronze e vivia. (Núm., 21, 4 - 9).

Segundo João 3:14, “E do modo por que Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem seja levantado”. Assim, Jesus é a serpente que nos salva, no alto da sua haste. A leitura do episódio bíblico como prefiguração do Crucificado foi desenvolvida por teólogos e posta em cena por inúmeras telas e miniaturas religiosas. Mas o desconhecimento progressivo da ligação Cristo-serpente de bronze perdeu-se com o desconhecimento progressivo dos textos. Ficou apenas a memória nos crucifixos barrocos em Minas Gerais e algumas telas em museus.
Ficou ainda um doce na gastronomia italiana da Toscana e de toda a Itália central onde a “serpente” (la serpe) é uma guloseima tradicional da época de Páscoa[8].
Mas se pensarmos bem, o que é a lampreia de ovos[9], doce conventual português, senão outra imagem da serpente? Assim, a lembrança da serpente de bronze de Moisés migra para crucifixos e também para os ceias festivas que terminam a Semana Santa. No caso dos crucifixos mineiros, a memória da articulação do Cristo com a serpente de bronze, salvadora e benéfica, está ainda presente; no caso dos doces populares, esqueceu-se a significação mas a forma continua nas mesas de festa.
Ora, o que faz a tela de Paula Rego, consciente ou inconscientemente, exibindo o Menino no colo da mãe com um brinquedo que é a serpente, foi reactualizar uma articulação feita, durante séculos, pela iconografia e pelos textos. Ela nada tem de blasfemo nem mesmo de inovador.
A serpente com o Menino provavelmente provocou o surgimento da fera aos pés da Virgem. Trata-se, na verdade, de um tapete de tigre no atelier da pintora, presente em várias das suas telas e desenhos. Aqui está a verdadeira inovação iconográfica: os animais domésticos da quinta (a vaca e o burro) que emigraram para o presépio popular são substituídos pelo animal selvagem, o tigre que se curva manso diante do Filho. No fundo, esse tigre, com suas riscas plasticamente muito mais interessantes do que o burro e a vaca sempre de cor indefinida, pode ligar-se, do ponto de vista simbólico, ao tema de Orfeu amansando as feras. Ele reaparece, aliás, em outras telas de Paula Rego, faz parte dos objectos e acessórios do seu atelier londrino.
Sobre o fundo mais escuro, destacam-se três figuras (duas mulheres fortes e um campónio louro): são os pastores. A fonte textual evangélica do episódio está em Lucas. Logo após o nascimento de Jesus, os pastores recebem um aviso do Anjo do Senhor:

Na mesma região havia uns pastores que estavam nos campos e que durante as vigílias da noite montavam guarda a seu rebanho. O Anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor envolveu-os de luz; e ficaram tomados de grande temor. O anjo, porém, disse-lhes: “Não temais! Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo. Nasceu-vos hoje um Salvador, que é o Cristo Senhor, na cidade de David. Isto vos servirá de sinal: encontrareis um recém-nascido envolto em faixas deitado numa manjedoura.” E, de repente, juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste a louvar a Deus dizendo:
“Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que ele ama”.
Quando os anjos os deixaram, em direção ao céu, os pastores disseram entre si: “Vamos já a Belém e vejamos o que aconteceu, o que o Senhor nos deu a conhecer”. Foram então às pressas, e encontraram Maria, José e o recém-nascido deitado numa manjedoura. Vendo-o, contaram o que lhes fora dito a respeito do menino; e todos os que os ouviam ficavam maravilhados com as palavras dos pastores. Maria, contudo, conservava cuidadosamente todos esse acontecimentos e os meditava em seu coração. E os pastores voltaram, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham visto e ouvido, conforme lhes fora dito. (Luc., 2, 8 - 20)

Normalmente, os animais presentes à adoração dos pastores são os animais da quinta doméstica ou do pastoreio. Paula Rego introduz a cabeça rajada de um tigre. Este evoca, de um modo geral, ideias de força e selvageria, poder e ferocidade. Sua atitude de submissão recorda, repetimos, a submissão das feras diante de Orfeu. A articulação de Cristo com o personagem mítico de Orfeu, inspirou certos autores cristãos dos primeiros séculos: eles viam em Orfeu, vencedor das forças brutais da natureza, um ser podendo ser comparado a Jesus, triunfador de Satã.[10] O teatro escrito nos conventos barrocos da Península ibérica desenvolve esse tipo de comparação não só sob a pena de freiras e de monges: como se sabe, um dos autos sacramentais de Calderón, intitula-se El divino Orfeo (1663).

“Purificação” | É a segunda tela, na série, sem a presença do anjo: num espaço simbólico e neutro, semelhante ao da “Penitente” na série do Crime do Padre Amaro, temos três mulheres. Duas mulheres no primeiro plano à esquerda, ambas de pé, vestidas com as suas melhores roupas: a avó (Santa Ana), vestida de preto, bolsa e sapatos de verniz preto, chapéu com uma “voilette”; a mãe, com seu vestido longo branco de noiva, segurando o menino. Um laço nos cabelos substitui o véu de noiva e a adolescente mãe tem ainda uma vela acesa na outra mão. Um pouco mais atrás, uma criada de pernas abertas faz correr para um balde o sangue de um cordeiro que acabou de matar. Sobre ela paira uma pomba branca de asas abertas.
Muito simplesmente poderíamos ler a tela da seguinte maneira: é a retomada modernizada da iconografia das Santas Mães, tão característica da imaginária portuguesa, a que se junta uma figura de criada que reúne os símbolos da mulher forte, da ancilla Dei, do Agnus Dei e do Divino Espírito Santo. Com a presença ainda da vela acesa na mão de Maria, vela da festa da Candelária, segundo o rito católico. Esta primeira leitura não é incorrecta mas não esgota o tema representado.
A tela, no entanto, chama-se “Purificação”. A junção do título de cariz claramente judaico (Purificação da mãe depois do parto) e da festa católica do ano litúrgico (a Candelária) é um exemplo a mais da fusão, tão característica na pintura de Paula Rego, de significações não exactamente equivalentes mas muito próximas. Entre os judeus, a purificação é a da mãe para que, depois do parto que acarreta um período de impureza, ela possa retomar a vida conjugal com o seu marido. Entre os cristãos, a festa da Candelária (que tem lugar no dia 2 de Fevereiro) é a festa da purificação da Virgem e a apresentação do Menino ao templo. Poucos fiéis serão capazes, hoje, de identificar a cena corretamente e tenderão a identificar o episódio representado, apesar do título, como uma cena de renovação das promessas do batismo. Mas o batismo cristão não é apenas uma purificação mas a “lavagem” simbólica no recém-nascido da mancha do pecado original, implica num morrer e renascer simbólicos.
Na verdade, a festa católica da Candelária (lat. festa candelarum, festa das velas) retoma o rito judaico da purificação da Mãe depois do nascimento do Filho. Para que não haja dúvida sobre esta nova camada de significado da cena, recordamos o texto do Lev. 12, 1-7:

Iahweh falou a Moisés e disse: fala aos filhos de Israel e diz-lhes: Se uma mulher conceber e der à luz um menino, ficará impura durante sete dias, como por ocasião da impureza das regras. No oitavo dia, circuncidar-se-á o prepúcio do menino e durante trinta e três dias, ela ficará ainda purificando-se do seu sangue. [….] Quando tiver cumprido o período da sua purificação, quer seja por um menino, quer seja por uma menina, levará ao sacerdote, à entrada do Templo da Reunião, um cordeiro de um ano para holocausto e um pombinho ou uma rola em sacrifício pelo pecado. O sacerdote os oferecerá diante de Iahweh, realizará por ela o rito de expiação e ela ficará purificada do seu fluxo de sangue.

O texto do Antigo Testamento parece fornecer-nos os elementos essenciais para compreender a cena representada, justificando inclusive a presença do cordeiro e da pomba. No entanto, nada é simples; houve, na tela de Paula Rego, uma elipse fundamental: desapareceu o sacerdote masculino, assim como o Templo da Reunião, ou seja, a Sinagoga. No lugar do homem sacerdote, quem imola o cordeiro é uma criada que recolhe o sangue do animal morto. Por outro lado, a mãe com uma vela acesa na mão parece lembrar o batismo cristão, como já se indicou.
Do ponto de vista plástico, a cena comporta um par feminino festivo em torno do menino (mãe e avó, ou mãe e avó/madrinha): vestido curto vs vestido longo, preto vs branco, chapéu severo e negro vs fita branca juvenil no cabelo.
A terceira mulher - criada ou camponesa rude, vestida com suas roupas de trabalho - a recolher o sangue de um cordeiro ainda não esfolado, seria vista inicialmente como uma prática de cozinha (o molho à cabidela[11]) sem a pomba branca que remete imperiosamente para a representação do Divino, como diria um açoriano. Ainda mais: do ponto de vista da cozinha judaica, segundo o cacherout, o sangue deve ser retirado da carne do animal abatido, regra absoluta da Torá uma vez que não se deve comer sangue, “pois o sangue é a vida, e não se consome a vida com a carne”.
O espaço neutro e abstracto coloca-os a todos no espaço simbólico da fusão dos ritos (judaico e cristão) e do prenúncio do sacrifício que virá. O menino engalanado no colo da jovem mãe é o Cordeiro que será imolado e sangrado na Páscoa (ao mesmo tempo judaica e cristã). Se voltarmos uma vez mais ao Levítico - e aconselho o leitor a fazê-lo (Lev, I, 1) - veremos que, na imolação da vítima, o que se oferece em primeiro lugar é o sangue. Jesus será o cordeiro de Deus. Agnus Dei.

“Fuga para o Egito” | O anjo feminino aqui volta de forma espectacular, levitando no centro da tela. Anjo pesado, matrona robusta, vestida de branco, que faz sombra sobre o chão e que devolve o menino à sua Mãe montada num pequeno burro. Ou segura momentaneamente a criança. Este anjo é o personagem fundamental, o único visto de frente. Todos os demais: José que abre a marcha, quase uma sombra de velho com um cajado de caminhante; a vizinha[12] que, à janela, observa a partida do trio para o exílio que lhes salva a vida; Maria sobre um burrico e de costas para o espectador, todos parecem atores secundários. A relação primordial é entre o Anjo e o Menino. De proteção, ajuda e bênção.
A fonte textual evangélica sobre a fuga para o Egito é Mateus, 2, 13 -15. O episódio segue-se à adoração dos magos. Estes, avisados em sonho que não voltassem a Herodes, regressam por outro caminho para sua região:

Após a sua partida, eis que o anjo do Senhor manifestou-se em sonho a José e lhe disse: “levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito. Fica lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para o matar”. Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito. Ali ficou até a morte de Herodes, para que se cumprisse o que dissera o Senhor por meio do profeta: Do Egito chamei o meu filho. (Mat., 2, 13 - 15)

Do ponto de vista plástico, na tela de Paula Rego, o muro traça uma diagonal que indica o caminho a seguir e separa dois planos: o primeiro, religioso, da partida para o Egito; o segundo, quotidiano e profano, o da testemunha da partida.

“Lamentação”

A apóstola dos apóstolos.

Voragine, in A lenda dourada.

As prostitutas vos precederão no reino dos céus.

Mt., 21, 31.

Note-se que não há, na série de Paula Rego, uma Crucifixão nem a representação de Jesus adulto. Passa-se sem transição de um episódio da infância de Jesus (“A fuga para o Egito”) para uma cena post mortem. (“Lamentação” ao pé da cruz). O maior drama de toda a cristandade não é representado. A elipse faz desaparecer cenas como Jesus entre os doutores; as Bodas de Caná em que intervém a Virgem segundo os Evangelhos; o ministério de Jesus com a suas parábolas; a sua Paixão; o Noli me tangere e ainda o encontro de Jesus com sua Mãe, que Paula Rego conheceu sem dúvida nenhuma nas procissões do Encontro, em Portugal, da Quinta Feira Santa.
Na série de Belém, as cores escurecem pela primeira vez. Assim, ao pé da cruz, num espaço neutro e quase abstracto, duas mulheres. A da esquerda, de joelhos dobrados sobre o chão escuro e sentada sobre os pés, de frente para o espectador, é a Virgem Mãe. Maria envelheceu. Descalça e com um pano à cabeça, parece uma pobre camponesa portuguesa. Mais para frente, de gatas (ou de quatro), Madalena, saia justa e bem curta, braços nus e botinas negras, lembra as mulheres-cão da pintora. Tem os cabelos longos e olha para o vazio sem ver. A cena é de dor muda, sem grandes gestos. A cruz, que não aparece inteira, projeta sobre o solo uma sombra. Dá-se uma extraordinária elipse, a do corpo morto que pende acima das duas mulheres. Mas o espectador sabe que esse tronco tosco em que se encosta Maria é a cruz no alto da qual o seu Filho agonizou e morreu.
A Richard Zimmler que supõe (erradamente, parece-nos) que o fato de Maria Madalena ser retratada como uma prostituta contemporânea, com mini-saia, poderia provocar resistência, a pintora comenta: “É uma rapariga da vida, mas isso não a torna menos santa. É a redenção através do sofrimento e do pecado” (Grande reportagem, p. 61). O comentário de Zimmler é típico de que recebeu uma educação anglo-saxã ou de judeu askenaze, não católica[13].
A representação de Maria de Nazaré não levanta problemas de leitura. A representação da Madalena deverá ser explorada. Ela é problemática mas não por ser uma antiga prostituta. Antes de articulá-la com a produção anterior da pintora e suas mulheres-cão, vejamos o que representa a Madalena na tradição cristã católica e as suas diferentes imagens.
Segundo Louis Réau, para compreender os diferentes tipos de representação da santa pecadora e penitente, o problema inicial é saber se Maria de Magdala, a Madalena, é a mesma pecadora anónima do Evangelho de Lucas (7, 36-50) e ainda se corresponde à Maria de Betânia, irmã de Marta e de Lázaro. Os teólogos muito discutiram sobre o tema - de tribus aut unica Magdalena . Para Santa Teresa de Ávila não há dúvida: existe uma única mulher, pecadora arrependida e encarnação da via unitiva em oposição à sua irmã Marta, exemplo de vida ativa. Bossuet, no século XVII, ao contrário, defende a existência de três figuras distintas. Na França ainda, o breviário do erudito cardeal de Noailles estabelece, no século XVIII, duas festas: uma em 19 de Janeiro para Maria de Betânia, outra em 22 de Julho para a figura tradicional da Madalena, pecadora arrependida. Nos nossos dias, uma nota da Bíblia de Jerusalém, que utilizamos, comenta a passagem de Lucas acima referida nos seguintes termos: “Episódio peculiar a Lucas, diferente da unção de Betânia (Mt 26, 6-13). A pecadora desse episódio não deve ser identificada nem com Maria de Betânia, irmã de Marta (Lc, 10, 38-39; cf. Jo 11, 1s; 12, 2s), nem tampouco com a Maria Madalena ( grifos nossos) [14].
Não nos cabe aqui discutir a questão teológica, mas a produção iconográfica. Para os cristãos, tradicionalmente e desde sempre, há uma única Madalena, santa que se festeja a 22 de Julho. “Porque muito amou, muito lhe foi perdoado”, é o resumo da sua vida. Por outro lado, Voragine a chama “a apóstola dos apóstolos”. Assim, do ponto de vista da imaginária, a Madalena é, desde os primórdios do cristianismo, uma figura compósita, fusão expressiva de mulheres distintas.
Na liturgia católica, Madalena não pertence nem ao grupo das virgens nem ao das mártires. Na iconografia evangélica do Cristo, há várias cenas em que a Madalena se relaciona com Jesus; são as seguintes:
a) a ceia em casa de Simão quando unge os pés do Senhor depois de lavá-los e secá-los com seus cabelos;
b) a visita de Jesus à casa de Betânia onde é recebido pelas irmãs Marta e Maria;
c) as duas irmãs alcançam do Cristo a ressurreição do seu irmão Lázaro;
d) sua presença ao pé da cruz no Calvário e
e) a primeira aparição do Cristo, depois da sua morte, num jardim (a cena do Noli me tangere).
Na iconografia da Madalena de origem não-evangélica, isto é, ligada à tradição e aos apócrifos, observa-se uma diferença entre a arte cristã do Oriente e do Ocidente, devida às diferentes versões da história da pecadora arrependida.
Segundo a versão greco-oriental mais difundida, após a Ascensão do Senhor, Madalena se refugia, em companhia da Virgem e de João Evangelista, em Éfeso, onde vem a morrer: suas relíquias são então levadas para Constantinopla para serem veneradas.
No Ocidente, Voragine difunde, na sua Lenda dourada[15], outra versão que justifica a presença e autenticidade das relíquias de Santa Madalena no Sul da França e em Vezelay, na Borgonha. No seu relato, os três irmãos de Betânia - Marta, Maria e Lázaro - juntamente com outros cristãos, viajam, em companhia ainda do bispo Maximino, num barco, sem leme nem vela, que aporta milagrosamente a Marselha, no Sul da França. Depois de converter à fé o príncipe pagão permitindo-lhe ter o filho varão desejado, que morre e é ressuscitado numa longa peripécia da narrativa, Maria Madalena se retira em penitência para a solidão de uma gruta (chamada ainda hoje de Sainte Baume) durante trinta anos. Segundo Voragine, todos os dias, anjos levam-na aos céus para ouvir o concerto celeste. Perto de morrer, eles a transportam, numa última viagem, a Aix-en-Provence para receber a última comunhão. A versão da Lenda dourada, difundida em todo Ocidente por monges, peregrinos e diferentes autores, é a principal fonte da iconografia ocidental. Segundo Louis Réau:

Tout ce supplément provençal de la pénitence de Marie-Magdeleine à la Sainte-Baume a été calqué sur la légende de sainte Marie l'Égyptienne: de sorte que la Madeleine qui, aux premiers temps chrétiens, était déjà un composé de trois personnes différentes, devient au Moyen-Âge un amalgame de quatre personnes: car la Madeleine provençale serait une religieuse du VIIIe. siècle, appelée sœur Ssainte Madeleine, qui, après la destruction de son couvent par les Sarrasins, aurait vécu 17 ans dans la grotte de la Sainte-Baume et serait morte à Saint-Maximin. (Iconographie de l'art chrétien. T. III, Les Saints, p. 847)

Embora a historicidade da Madalena seja discutível, ela é de longe a mais conhecida e popular entre as pecadoras arrependidas, grupo de mulheres que se tornaram santas como Maria Egipcíaca, Taís, Pelágia. Essas quatro penitentes aparecem aliás no texto de Voragine como variações de um modelo único, a mundana de má vida, que se regenera por amor do Cristo.
Não nos cabe aqui desenvolver as similitudes e diferenças entre as quatro figuras. O relato de Voragine sobre a Madalena é o mais longo e o com maior número de peripécias. Ela é aquela que conheceu, amou e serviu a Jesus e este teria tido por ela a mesma predilecção que por S. João Evangelista. Segundo Louis Réau[16], ela era chamada, na França, durante a Idade Média, “la très sainte Demoiselle pécheresse”, “la bienheureuse Amante du Christ” ou ainda, em latim, “Beata Dilectrix Christi”: era venerada como modelo de penitência e, mais tarde, como modelo de vida contemplativa.
O par de irmãs Marta-Maria acaba por incarnar a dupla via da santificação, ativa e contemplativa, que desemboca nos textos conhecidos de Teresa de Ávila.
Durante a Idade Média, Madalena é padroeira de várias corporações. Dos fabricantes de perfumes: em lembrança do vidro de perfume derramado sobre os pés de Jesus; dos fabricantes de luvas: os elegantes da Idade Média, homens e mulheres, até o século XVI, usam luvas perfumadas; dos mercadores de água: por causa do vaso que carrega enquanto mirófora; dos cabeleireiros: pelos seus longos cabelos; dos jardineiros: na cena do Noli me tangere, o Cristo ressuscitado lhe aparece como jardineiro num horto; dos prisioneiros; sobretudo das prostitutas e pecadoras arrependidas. Segundo Réau ainda, no Tirol, o nome de Madalena era dado tradicionalmente às filhas naturais, nascidas fora do casamento [17].
Madalena não era uma santa que cura. Sua lenda a liga, no entanto, a nascimento e ressurreição de várias crianças. Enfim, seu travesseiro de pedra em Sainte Baume, “conservado na abadia de São Vítor de Marselha, curava a febre”.
À diferença de vários santos e santas cuja devoção diminui depois da Reforma protestante e da Contra-reforma católica, a popularidade da Madalena persiste durante os séculos XVII e XVIII com abundante iconografia e literatura em prosa e verso. O culto à Madalena perdura em toda a Europa tomando, à vezes, conotações interessantes; Réau o sublinha para a França do século XIX:

A Paris, l'église Sainte-Madeleine dans l'île de la Cité prétendait posséder un fragment de la peau de son front prélevé à l'endroit où la toucha le Christ ressuscité. Une seconde église lui fut consacrée au XVIIIe. siècle dans le quartier de La-Ville-l'Évêque. Transformée par Napoléon en Temple de la Gloire, elle fut rendue par Louis XVIII au culte catholique et consacrée à la mémoire de Louis XVI. La pécheresse repentie devint sous la Restauration le symbole de la France repentie du martyre de son roi. (RÉAU, op. cit., p. 848).

Também em Portugal, o culto de Santa Madalena conheceu grande difusão. Do ponto de vista popular, segundo Lopes Dias [18], ela é conhecida pelo breve título “A Santa”. Haveria na difusão do seu culto, como supõe Moisés Espírito Santo, a lembrança das prostitutas sagradas?

Pode-se encarar este facto por dois aspectos: por um lado, este culto está sem dúvida relacionado com reminiscências de prostituição sagrada, que foi uma notória particularidade das religiões semitas e, por outro, com as atenções religiosas tradicionais que se atribuem a certos tipos de pessoas marginais também muito valorizados nas religiões orientais e no Magrebe. Um dos aspectos mais interessantes do cristianismo primevo é a sua relação com os marginais, ladrões, adúlteros e outros excluídos pela ou da classe e moral dominantes. É neste contexto ideológico libertário que se inscrevem os cultos populares da prostituta Madalena, dos “bons ladrões” e dos Zés do Telhado do Evangelho, do Magrebe ou do Minho. [19]

Em Portugal ainda, a imaginária indo-portuguesa criou a partir do século XVI um tipo belíssimo de iconografia: nele, a Madalena é a mulher do Livro, representada reclinada no fundo da gruta, no sopé de uma peanha que representa simbolicamente um monte santo. Vejam-se os exemplares dos Bons Pastores indo-portugueses em marfim ou dos Calvários, também em marfim, do Museu de Arte Antiga, de Lisboa ou do Museu Histórico Nacional, do Rio de Janeiro.
As características e os atributos tradicionais da Santa fazem que seja facilmente reconhecida pelos fiéis. Seu atributo mais antigo é o vaso de perfume que derrama sobre os pés de Jesus em casa de Simão ou o que carrega na cena do Sepulcro. Corresponde ao tipo de Madalena mirófora.
Seus vestidos variam antes ou depois da penitência. No período da sua vida mundana, ela veste-se como cortesã: penteado alto, grande decote, luvas, brincos, anéis, mangas bufantes. Corresponde ao que chamam Madalena mundana. Num belíssimo Caravaggio, ela é representada, do ponto de vista do Cristo, sentada sobre um banquinho baixo, no momento em que abandona o seu colar de pérolas e uma lágrima silenciosa lhe escorre pela face. Vista numa perspectiva do alto para baixo, ela é representada como a vê o Cristo, ou seja, o olhar do espectador confunde-se com o olhar do Senhor.
Na sua penitência, Madalena é representada ainda seminua ou vestida unicamente pela longa cabeleira. Na Idade Média alemã, há um tipo de Madalena totalmente nua coberta apenas pela longa cabeleira, figura que corresponde à sua “Assunção” para ouvir o concerto celestial: um exemplar em exposição no Louvre, em 1991, é o melhor exemplo desse tipo de “beatitude”. No exemplar em questão, Gregor Erhart, escultor alemão do século XV, representa Madalena como uma bela mulher jovem totalmente despida, coberta por longos cabelos louros anelados: apenas o rosto tranquilo e grave assim como as mãos em prece a diferenciam de Eva, no Éden. A imagem inspira-se sem dúvida da gravura de Dürer, fonte da obra de Gregor Erhart [20].
Assim, as representações isoladas da Madalena no Ocidente podem ser agrupadas em quatro tipos: a) a Mirófora (com o vaso de perfume), b) a Penitente (com a caveira e disciplina), c) a Mundana (com jóias e adereços) e d) a Assunta (elevada aos céus, nua ou vestida, ainda em vida ou post mortem).
Voltemos à Madalena de Paula Rego, na tela da “Lamentação”: a sua representação pertence, sem dúvida nenhuma, à categoria mais que tradicional da mundana. Mas uma mundana contemporânea, de negras botas lustrosas, de braços nus, mini-saia, o corte moderno do cabelo em fio reto, curto na nuca e comprido perto das faces. A mundana que se pode encontrar à saída de uma discoteca em Londres ou na madrugada de Alcântara, em Lisboa. Sem jóias nem adereços, que não se usam mais. De gatas (de quatro, como diriam os brasileiros), nova mulher-cão. Esta nova iconografia, pessoal e inconfundível, não pode chocar. Ela simplesmente retoma a tradição, adaptando-a aos nossos tempos.

“Pietà” | Logo a seguir à tela da “Lamentação”, a “Pietà” é mais despojada ainda. As cores são as de um crepúsculo: cair ou nascer do sol. A representação da cena reduz-se ao essencial. Até a sombra da cruz desapareceu. Sobre a terra escura e nua, contra um céu avermelhado, duas figuras espantosamente jovens. A Mãe sentada no chão com o Filho morto nos seus braços. Maria ergue a cabeça e os olhos para o céu. Tem os cabelos soltos, como uma portuguesa do povo. O Filho jaz inerte, os braços da Mãe erguem-no pelas axilas. O morto traça uma diagonal discreta: corpo hirto, mas limpo, sem marcas nem cicatrizes, sem chagas nem sangue, sem traços de coroa de espinho, ferida aberta ao peito ou buracos explícitos de cravos. Apenas uma pequena mancha vermelha sobre o pé direito. Vestido pudicamente com cuecas brancas. Imaculadamente brancas. As tonalidades predominantes são quentes e brilhantes: castanho, roxo, laranja em baixo. Contra elas destacam-se tons de azul, de céu transparente e puro. Os corpos brilham, apesar da dor, na sua beleza jovem. É um cadáver jovem abraçado pela Mãe em desespero mudo. A natureza é um belo cenário vazio. Sem transcendência nem pathos mas infinitamente comovedor. “A natureza não tem dentro; senão não era a natureza”, diz Fernando Pessoa (O guardador de rebanhos, XXVIII).

“Assunção” | Na entrevista com Ricahrd Zimmler, Paula Rego comenta:

…no final, para o último da série, quis algo que estivesse violentamente inclinado e que tivesse de certo modo um movimento exagerado. Ela está a subir ao Céu mas está espantada. E está talvez com um pouco de medo também. Por baixo do anjo um grande buraco negro. Há um quadro maravilhoso de Mantegna em que Cristo desce ao Inferno. É o quadro mais maravilhoso do mundo. Visto por trás, é a figura de Cristo em frente de uma espécie de portada. Depois há o negrume por baixo e quase sentimos o ar a soprar de lá, e o cheiro a enxofre. Tem um tipo particular de mistério e ocorreu-me quando estava a fazer a “Assunção”. A Virgem Maria está a ascender ao Céu, mas debaixo dela, debaixo deles, pode estar um vazio negro. (Grande reportagem, p. 59)

Como não ver que o último anjo da série da capela de Belém, jovem e desnudo, tem o mesmo rosto de Jesus morto? É talvez ainda mais jovem mas com o mesmo cabelo, o mesmo corpo frágil. Parece ainda não ter entrado na adolescência. A Virgem, representada cinematograficamente em plano contrapicado, vestida com um longo vestido escuro de folhos (azul quase negro), de costas para o espectador, vira-se para o céu e abre os braços. Não lhe vemos o rosto de frente, apenas o perfil. Do ponto de vista plástico, a sua posição lembra a de Saulo que cai do cavalo no quadro de Caravaggio, também de costas para o espectador. Apenas uma diferença: os braços de Paulo estão erguidos, os de Maria mais abertos. Mas a “Assunção” da Virgem corresponde à queda de Saulo no caminho de Damas. O mesmo espanto e o mesmo tipo de inovação iconográfica. Um momento de revelação. Fulminante. Só o personagem representado vê o que não vemos, isto é, a face de Deus.
Momento de espanto para a Virgem (o seu corpo morto revive ao iniciar a sua “Assunção” ), momento de esforço também para o anjo menino no primeiro plano. Não há aqui nada que possa ferir a fé de qualquer cristão. A solução encontrada parece inédita mas não o é. Essa “Assunção” de Paula Rego retoma, no fundo, do ponto de vista da significação, uma outra antiga questão teológica, muito provavelmente com o seu total desconhecimento dela. Se Maria sobe ao céu com o seu corpo terreno, este tem peso. Aliás a “Assunção” não é uma Ascensão: Cristo subiu ao céu pelo seu poder, Maria é levada ao céu. Por outras palavras: Cristo ascende ativamente; sua Mãe, passivamente. Ataíde, o Mestre do barroco brasileiro, no belíssimo teto da igreja de São Francisco de Assis, de Ouro Preto, resolve o problema de forma explícita: um anjo com uma espécie de alavanca em diagonal ajuda a erguer a Virgem que sobe ao céu sentada (e não de pé) sobre as nuvens. Mas não se trata também de uma solução original de uma produção periférica. Há muitos outros exemplos, hoje mais ou menos esquecidos. O problema é mais de desconhecimento da tradição do que de inovação.

Uma tela extra, a “Agonia no Horto” | Há ainda, na Casa das Histórias, de Cascais, uma última tela pintada para a mesma série, a de nº 9, e que foi excluída da capela de Belém. É do mesmo período, tem as mesmas dimensões e foi executada com a mesma técnica apresentando personagens já nossos conhecidos. Seu número impar (a nona) impedia sua entrada num programa que joga com pares.
Seu título, “Agonia no horto”, representa, não a agonia do Filho, mas a agonia da Mãe na noite anterior à prisão de Jesus. Faria parte do paradigma das “telas escuras” (“Lamentação” e “Pietà”) e cronologicamente, no eixo sintagmático da narrativa pictórica, situa-se antes destas duas. É a noite de agonia da Mãe.
A cena é totalmente inédita do ponto de vista iconográfico. Num espaço simplificado que lembra vagamente o espaço da “Agonia no horto” de El Greco, o Anjo feminino, que já conhecemos, representado en plongée e em primeiro plano, chora desconsolada e sem esperança, a cabeça entre os braços. Suas grandes asas brancas estão erguidas. Uma figura ao fundo, de perfil e de joelhos, reza, isolada: o espectador a reconhece pelo vestido negro de tafetá, o mesmo da tela “Assunção”, é Maria.
Paula Rego retoma o episódio evangélico e o transforma de forma radical, pondo-o no feminino e eliminando qualquer gesto ou símbolo de aceitação. As cores são brilhantes, como em toda a série: verde esmeralda e roxo com laivos róseos de nascer de dia, vestido amarelo dourado e vestido negro. Fim de noite de sofrimento e de desolação.
Como explicar a mudança de roupa de Maria? As vestes simples de “Lamentação” e “Pietá” situam Maria no tempo de hoje, simples e pobre mulher do povo. O longo vestido negro, de tafetá negro, põe-na no tempo mítico e do sagrado e revelam ainda a atitude ambígua da pintora diante do seu tema.

O ciclo: seus eixos de significação | Um ciclo narrativo supõe sempre dois tipos de relações: no eixo paradigmático que é o da substituição e no eixo sintagmático, da articulação.
Todo o conjunto da capela de Belém forma uma narrativa cronológica sobre a vida de Maria de Nazaré, da sua adolescência à sua “Assunção”. Neste eixo, há escolhas significativas do que é calado, ou seja, eliminado: o casamento de uma adolescente judia com José, da linhagem de David; o encontro com a prima Isabel, igualmente grávida, na Visitação; o massacre dos Inocentes; a adoração dos Reis magos; as bodas de Caná (o primeiro milagre público de Jesus) segundo os Evangelhos; o diálogo patético do Cristo crucificado com a sua Mãe; a ausência de personagens masculinos importantes como João Batista, Simão Pedro ou João Evangelista; a descida do Espírito Santo em Pentecostes numa sala com portas fechadas; a morte de Maria rodeada pelos apóstolos[21]. Sem falar no numerosíssimo elenco de iconografias,e criadas a partir da leitura dos apócrifos, da mística ou da leitura da Lenda dourada, de Voragine.
Da vida de Maria, Paula Rego escolhe os factos marcantes da existência de uma judia simples, análoga à vida de muitas mulheres de hoje: o nascimento do filho; a purificação da mãe no templo; num momento conturbado de grande perigo, a fuga para um lugar seguro; o lamento ao pé da cruz em que morre o filho condenado não se sabe por quem; o pranto mudo do corpo morto já limpo e pronto para ser enterrado. Apenas o início e o fim do ciclo, ou seja a “Anunciação” e a “Assunção”, de forma imperiosa e explícita, remetem para o sagrado. Sobretudo a “Assunção”.
O sagrado, no fundo, aparece através de alguns elementos, sempre problemáticos. Como as asas dos anjos: sem estas, mesmo a “Anunciação”, possuiria um carácter banal, quotidiano. Sem a pomba acima da criada, que recolhe num balde o sangue de um cordeiro, estaríamos simplesmente diante da justaposição de uma cerimónia pública e os preparativos de uma festa familiar em casa, num contexto cristão ou judaico, conforme o elenco de recepção. O mesmo acontece com a cabeça do tigre: sem a fera domesticada ou o fundo dourado, pouca coisa separa a “Adoração dos pastores” de uma visita a um nascituro pobre. A lembrança da serpente na “Adoração” articula-se com o cordeiro na “Purificação”: são os animais que sugerem discretamente o símbolo religioso.
Assim, é a presença do anjo alado que sacraliza a “Fuga para o Egito”, a “Natividade” e a “Assunção” ”. Na “Natividade”, Paula Rego toca um tabu muito profundo, a virgindade de Maria, verdadeiro mistério da fé para os católicos. Maria, a nova Eva, é parturiente, como todas as mães. Os olhos fechados, a mão aberta sobre o ventre crescido, as pernas seminuas afastadas, tudo representa um parto natural e solitário numa manjedoura pobre, à luz das estrelas. O mistério está na assistência do anjo feminino, na ausência explícita de dor ou de sangramento, e na vigília dos animais. O sagrado penetra pelas frestas do quotidiano mais banal. A série nada tem da subversão e da agressividade deliberada de um surrealista como Max Ernst, por exemplo, na tela “A Virgem corrigindo o Menino Jesus diante de três testemunhas”[22].
A meditação de Paula Rego - pouco importa se a pintora é praticante ou não: sua meditação banha num contexto religioso católico muito português e assemelha-se a outras meditações. Plasticamente, à meditação de dois pintores seiscentistas, um Georges de La Tour que destaca o concreto e o simples na sua tela “O recém-nascido” ou ainda um Caravaggio que renova toda a iconografia tridentina trazendo-a para a terra.
Por outro lado, o sentimento religioso que desponta na série mariana de Belém corresponde à simplicidade obscura de Maria tal como esta aparece nos Evangelhos. Não seria difícil encontrar na literatura contemporânea meditações semelhantes a esta: em Chesterton, em Péguy, em Bernanos, sobretudo, pela boca do seu Curé de Torcy[23], que, entre muitos outros, glosa a obscuridade da ancilla Dei. O mistério da corporeidade e da humanidade humilde de Maria. Esta nova via sacra, centrada sobre Maria de Nazaré, funda-se no humano.

À GUISA DE CONCLUSÃO | Num corpus bastante reduzido mas fortemente estruturado, dadas as condições da sua elaboração - oito quadros pintados por Paula Rego, por encomenda, durante um curto período, para uma pequena capela num palácio lisboeta, residência oficial do Presidente da República - buscou-se relacionar forma e significação num conjunto que, só aparentemente, tem características aberrantes. Assim o viu, ou sentiu, parte do público. Na realidade, o seu significado prende-se a uma tradição por vezes patente, por vezes latente, por vezes jacente.
O nível patente é o mais evidente: a série escolhe cenas da vida de Maria de Nazaré, presentes em textos canónicos e apócrifos, participa assim de forma evidente de uma temática de cunho religioso.
O nível latente, pulsa, lateja dentro deste primeiro nível de significação. Está presente no que se oculta - mas lateja - no não expressado. O discurso figurativo é, ao mesmo tempo, meio de expressar uma determinada verdade/realidade e ocultar outras. Nesse oculto, estão formas latentes de significação nem sempre imediatamente identificadas pelo espectador, mas perceptíveis intuitivamente e geradoras de efeitos tanto mais fortes quanto mais subterrâneos.
O nível jacente é de ainda mais nebulosa conceituação, embora actuante. É o que jaz, fundo, quase invisível, na mensagem. O “aqui jaz” dos cemitérios prejudicou o sentido do verbo jazer, conotando o jazer, passivo, de morte imóvel e definitiva. Mas jazer não é estar morto para sempre; jazer é permanecer em estado de funda vigília no estado aparente de morte, que permite transformações e metamorfoses. Poderíamos, assim, perguntar o que jaz neste ciclo mariano contemporâneo?
A exploração do latente permitiu-nos destacar, nesta série narrativa tão fundamente portuguesa, imbricada nela, uma evidente articulação com o Antigo Testamento de natureza tipológica. Paula Rego não é propriamente uma intelectual: basta ler as suas inúmeras entrevistas para ver como comenta às vezes de modo literal, quase ingênuo as suas próprias telas. Mas é uma verdadeira pintora, pensa e cria por imagens. Tem uma visão que lhe é própria, inconfundível, que vem sendo aprofundada a cada novo ciclo pictórico. Explorou técnicas, copiou telas de mestres, estagiou em museus, desenhou certos modelos, amontoou esboços preparatórios: essa prática diária e essencialmente formadora deu-lhe um repertório de imagens, gestos, temas, modelos que a artista interpreta e recria de acordo com o seu imaginário pessoal.
Em todas as suas entrevistas quando aborda problemas técnicos ou uma temática pictórica, o seu comentário torna-se logo denso e importante: assim, além da referência a Mantegna já citada, Paula Rego relaciona a sua maneira de aproximar o religioso do quotidiano da maneira de Stanley Spencer[24] ou do Caravaggio (Grande reportagem, p. 61). A família dos pintores que lêem e reinterpretam o sagrado através do quotidiano poderia ainda ser alargada. Que a ideia da pintora de trabalhar com cores pálidas e brilhantes tenha saído de um folheto sobre Hare Krishna que lhe é oferecido num táxi londrino, retoma a metáfora - tão importante - do animal que tudo devora, ou seja, o aproveitamento de tudo que a cerca para a sua obra. Metáfora, como se sabe, presente numa outra entrevista de Paula Rego sobre a sua série da National Gallery de Londres: ela se vê como um animal que pega alimento no piso superior e vem devorá-lo na cave. Victor Willing, num prefácio à obra da sua mulher, escreve com duplo conhecimento de causa (ele próprio pintor e testemunha da criação de Paula Rego)[25]:

… quando alguém pergunta a um pintor o que é que ele quer dizer, o que é que aquele quadro realmente significa, mesmo que ele respondesse (ou soubesse responder, acrescento eu), as suas palavras não nos satisfariam. É improvável que a percepção do pintor tenha atingido um ponto explicável - pelo menos em tais e tais palavras, e talvez nunca o atinja, mas uma certa perturbação, um certo mal-estar foram olhados de frente, perturbação e mal-estar sintetizados no quadro deixando o autor ou a autora com a sensação de que a questão ficou resolvida.

Do ponto de vista do significado jacente, foi necessário aprofundar elementos como por exemplo, o significado profundo da representação da Madalena como mulher-cão, ou da forma inquietante que serpenteia no braço do Menino Jesus. Ou ainda como um objeto exótico de um atelier londrino, um tapete de tigre, reata, de forma certamente inconsciente, elos muito antigos do Cristo com a figura de Orfeu, apaziguador da animalidade. As formas prenhes de significação, uma vez entrevistas e quase esquecidas, reaparecem, transfiguradas, com novos efeitos. Efeitos subliminares mas atuantes. Elas dependem do repertório de imagens de cada espectador para virem à tona, como a pequena “madeleine” de Proust.


*****

Agulha Revista de Cultura
Número 115 | Julho de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80






[1] LOURENÇO, Sandra e SANTAMARIA, Inácio. “As histórias fabulosas de Paula Rego”, in O Expresso, p. 12 -16 e SANTAMARIA, Inácio. “O sagrado e o profano”, ibid, p. 17 -20.
[2] Grande Reportagem, ano XII, 2ª série, Abril 2003, p. 56-63.
[3] Ver a análise da série já publicada in
[4] A Virgem de Mestre Ataíde, no forro da Igreja de S. Francisco de Ouro Preto, sobe aos céus com ajuda de uma alavanca que maneja um grande Anjo.
[5] Um estudo fundamental sobre os diferentes tipos de Anunciação na pintura italiana é da autoria de Daniel ARASSE. L’Annonciation italienne. Paris, Hazan, 1999, 256 p.
[6] Para nós, a lembrança do Caravaggio é evidente: os peregrinos ajoelhados ao pé da Virgem na tela “Nossa Senhora do Loreto” mostram os pés sujos em grande primeiro plano.
[7] O Museu de Arte Sacra, de Beja, possui um belo exemplar de “Virgem abrideira”, do século XIV. Ela abre-se em tríptico.
[8] Na verdade, há dois doces italianos, típicos do período de Páscoa: o “torciglione” e a “serpe”. O significado deste último é transparente do ponto de vista linguístico; no primeiro, do verbo torcere (torcer), há a sugestão dos anéis que se torcem. Reproduzimos abaixo dois comentários sobre os doces de Páscoa na Itália.
Torciglione (Perugia) - caratteristica ciambella aperta (cioè non chiusa su sé stessa) preparata con un impasto a base di mandorle dolci, pinoli e zucchero. Viene tradizionalmente preparata in forma di serpe, avvolta su sé stessa, con una mandorla sporgente a disegnare la lingua.
Serpe - Per antica consuetudine questo dolce veniva donato dai padrini ai cresimandi. Erano le monache di clausura dell’ordine delle Clarisse a produrlo. Il significato simbolico di questo dolce evoca il peccato originale, la tentazione di Eva, e consumarlo il giorno della cresima o a Natale vuol dire esorcizzare il peccato legato all’origine dell’uomo. Si tratta di un dolce di pasta di mandorle, a forma di serpente (diametro 20/25 cm circa), di consistenza croccante, superficie liscia e bianca. Particolarmente conosciuta quella di Apiro.
[9] Doce conventual das Clarissas de Coimbra.
[10] Um texto recente de MOATTY, Yves. Orphée crucifié, La voix que la lumière fit entendre (Les Deux océans, 2003), retoma esta articulação. A apresentação do livro destaca os pontos essenciais da relação entre Cristo e Orfeu:
Orphée fascine. Son mythe traverse les âges. Les premiers chrétiens en font un précurseur du Christ. Alors que Jésus apparaît comme un nouvel Orphée, lui-même est parfois représenté sous l'aspect du crucifié. Sur une amulette en hématite, du III° siècle de notre ère, on le voit cloué sur la croix. Dans le ciel brillent la lune en croissant et sept étoiles en arc de cercle. Orpheus Bakkikos : “ Orphée Bacchant “, dit la légende. Orphée devient Bacchus (Dionysos), c'est-à-dire qu'il accède par l'épreuve de la souffrance et de la mort à un état divin. Son calvaire n'est que le prélude à une renaissance qui en fait un Dieu. Comme Jésus, Orphée est Ressuscité.
Par sa lyre qui charme tout l'univers et enchante les puissances des enfers, Orphée symbolise le Verbe. Les commentateurs du Moyen-âge l'assimilent au Christ uni dès le commencement à l'âme humaine (Eurydice), qu'il sauve de la mort. Orphée anticipe la victoire du Christ qui, jouant de la harpe, tire des enfers les âmes condamnées par le péché d'Adam et d'Eve. De même que la Croix, la Lyre a pouvoir sur Hadès. Comme Jésus, Orphée est le Vivant.
[11] Cozinhar com sangue é um costume antigo de vários povos. Em Portugal a galinha à cabidela tem registos desde o século XVI, e igualmente pode ser preparada com outras aves ou animais (pato, peru, porco, cabrito ou caça). Na gastronomia francesa existem igualmente vários pratos em que usa o sangue do animal abatido (poulet en barbouille, canard au sang, coq au vin). Desse ponto de vista, a criada que recolhe o sangue numa vasilha é uma figura problemática, podendo ser lida de duas maneiras opostas: a que usa o sangue (e é uma criada cristã) ou a que recolhe o sangue para purificar o animal (e é uma judia).
[12] Paula Rego identifica-a como a mãe de Maria, portanto Ana ( Grande Reportagem, p. 62).
[13] Falta a Zimmler um conhecimento mais entranhado do imaginário católico português. Veja-se, por exemplo, o muito conhecido fado de Coimbra, “A Samaritana”, que explicitamente canta o amor de uma outra mulher pecadora por Jesus. A letra é de Álvaro Cabral (falecido no Porto, em 1918). O fado glosa o episódio da Samaritana a quem Jesus pediu de beber junto ao poço de Jacó. (Jo., 4, 4 - 30). O encontro é reinterpretado de forma explícita. A letra do fado, que se canta normalmente e de que há inúmeras gravações, põe as relações de Jesus num contexto de grande tolerância e de até aproximação com as pecadoras.
Dos amores do Redentor / Não reza a História Sagrada / Mas diz uma lenda encantada / Que o Bom Jesus sofreu de amor // Sofreu consigo e calou / Sua paixão divinal, / Assim como qualquer mortal / Que um dia de amor palpitou. // Samaritana, / Plebeia de Sicar, / Alguém espreitando / Te viu Jesus beijar / De tarde quando / Foste encontrá-Lo só, / Morto de sede / Junto à fonte de Jacob. // E tu, risonha, acolheste / O beijo que te encantou, / Serena, empalideceste / E Jesus Cristo corou. // Corou por ver quanta luz / Irradiava da tua fronte, / Quando disseste: - Ó Meu Jesus, / Que bem eu fiz, Senhor, em vir à fonte.
[14] Bíblia de Jerusalém. São Paulo, Edições Paulinas.
[15] VORAGINE, Jacques. La légende dorée. I et II. Traduction de J.-B. Roze. Chronologie et introduction par le Père Hervé Savon. Paris, Garnier-Flammarion.
[16] RÉAU, Louis. Iconographie de l'art chrétien. T. III. Paris, PUF, 1959, p. 847.
[17] RÉAU, Louis, op. cit., t. III, p. 849.
[18] LOPES DIAS. Etnografia da Beira, VII (1948), p. 126.
[19] SANTO, Moisés Espírito. Origens orientais da religião popular portuguesa. Lisboa, Assírio e Alvim, 1988, p. 195.
[20] Cf. Catálogo Sculptures allemandes de la fin du Moyen Âge. Paris, Réunion des Musées Nationaux, 1991, p. 203 - 208.
[21] Sobre a qual aliás, o Caravaggio faz uma tela que suscitou, na época, escândalo por ligar-se ao quotidiano. Veja-se a “Morte da Virgem”, c. 1606, Paris, Musée du Louvre. Por coincidência, a tela provocou escândalo porque Maria parecia envelhecida e com o ventre inchado.
[22] Na tela subversiva de Max Ernst, a “Virgem que dá palmadas nas nádegas nuas do Filho” (nádegas avermelhadas pela violência das palmadas), sugere o sado-masoquismo inerente a um determinado tipo de religiosidade (o cilício, os açoites, a exaltação da dor, a procura do sofrimento etc.).
[23] Personagem do conhecido romance Journal d’un curé de campagne (1936).
[24] Sranley Spencer (1891- 1959) é um pintor inglês contemporâneo, autor de várias telas de tema bíblico e evangélico.
 [25]Ensaio de Victor Willing no Catálogo da retrospectiva de Paula Rego na Fundação Gulbenkian, 1988, reproduzido in McEwen, John. Paula Rego. Tradução de Alberto de Lacerda. Quetzal Editores, 199 , p. 227. Ver ainda o artigo de ALMEIDA, Lilian Pestre de. “Do sentido enigmático das imagens ou A Pintura de Paula Rego entre tradição e inovação”, in Actas do I Simpósio Nacional de Teoria Estética e Filosofias da Arte. Jogos de estética, Jogos de guerra. Lisboa, Fundação das Casas de Fronteira e Alorna, 18 - 20 de Fevereiro de 1998, p. 118 - 133.

Nenhum comentário:

Postar um comentário