sábado, 14 de julho de 2018

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | A História no teatro barroco do mundo: Lope de Vega e Juan Bautista Maino


INTRODUÇÃO | A América impõe-se ao imaginário europeu desde o momento do "descobrimento" e por muito tempo. Pretendemos aqui abordar um episódio da História do Brasil - a ocupação da Bahia pelos holandeses em 1624 e sua retomada, no ano seguinte, por forças luso-espanholas – tal como aparece na celebração barroca do teatro do mundo que articula literatura e pintura, numa peça de Lope de Vega e no quadro correspondente de Juan Bautista Maino.
A relação entre o literário e o pictural, entre a peça teatral e a tela não constitui artifício crítico mas articulação explícita e reconhecida no próprio Siglo de Oro espanhol. Por outro lado, a referência ao texto de Lope tornou-se lugar comum da crítica de arte quando se trata de analisar a pintura de Maino ou o conjunto do Salón de los Reinos. Parece-nos, entretanto, que o lugar comum merece ser revisto para que se possa distinguir diferenças, claras, entre a mensagem da peça de 1625 e a do quadro de 1635.
A comédia histórica de Lope, El Brasil restituído (de 1625) - uma das menos conhecidas e representadas da sua enorme produção – consta de três jornadas e apresenta grande número de personagens: portugueses, espanhóis, holandeses e judeus, além de figuras alegóricas como o Brasil, a Religião Católica, a Heresia, a Monarquia, Apolo e a Fama. A tela de Maino, La Recuperación de Bahía, pintada dez anos mais tarde, tem como referente primeiro a obra de Lope. Executada em 1635, destinava-se a figurar no conjunto de batalhas do Salón de los Reinos, criado por Velázquez, à glória de Felipe IV, o rei-planeta. Ela faz parte de uma sintaxe complexa de telas – batalhas (navais e terrestres), quadros mitológicos e retratos equestres – já muito bem conhecida, mas talvez ainda não suficientemente explorada do ponto de vista iconológico. Aqui, a análise das duas obras e de sua relação nos permitirá:
a) exemplificar um tipo de teatro histórico sobre as lutas travadas nas colônias americanas contra os invasores holandeses ou ingleses;
b) analisar a ideologia da honra, discrição e limpeza de sangue (limpieza de sangre), sobretudo quanto aos adversários protestantes e aos judeus, e sua evolução;
c) apreender o impacto, no imaginário europeu, dos índios gentios e antropófagos;
d) avaliar a integração das artes tal como a promove a estética barroca do teatro do mundo;
e) compreender, enfim, as relações entre teatro e poder na Espanha dos Habsburgos no século XVII e
f) propor uma nova leitura iconográfica da tela de Maino.

A PEÇA DE LOPE, EL BRASIL RESTITUÍDO | Uma breve apresentação da peça[1] nos fará melhor entender sua problemática histórico-ideológica. A ação se desenrola em Salvador, em 1624 - 1625, durante o período dito de união das Duas Coroas (1580 - 1640). A primeira cena aborda o rompimento de um casal de amantes: o fidalgo português, Don Diego Meneses, justifica não cumprir as promessas de amor feitas à jovem Guiomar por não poder manchar seu nome unindo-se a uma judia. Grávida do fidalgo português, a moça é dada pelo seu pai, em casamento, ao holandês Leonardo Vinch; é a união, segundo o gracioso da peça, Machado, da hebreia com o herege. Mais: o pai judeu, Bernardo, "vende" a praça aos holandeses que invadem a Bahia. É sobre essa torpe e indigna "traição dos judeus" ou da gente da nação como se dizia então, que Lope constrói a história épica do Brasil restituído.
Na última cena da peça, todos os invasores holandeses são perdoados, em nome do Rei espanhol, pelo comandante vencedor, Don Fadrique de Toledo Osorio, segundo o código cavalheiresco de honra, mas não os judeus. Guiomar compra a peso de ouro o pedido de clemência que o gracioso faz ao herói por ela. Estabelece-se, assim, uma hierarquia do mal na qual os combatentes holandeses, invasores e hereges porque calvinistas, podem ainda ser perdoados quando vencidos em combate leal, mas não os judeus que são o mal absoluto. De forma reveladora, o episódio em que Machado recebe escudos de ouro de Guiomar, não é conotado negativamente: ele podia ser visto, hoje, como cena de clara e flagrante extorsão do mais fraco (a jovem judia) pelo mais forte (o combatente português). E do filho gerado por Guiomar, filho também do nobre português, não se faz sequer menção na peça: bastardo e filho de uma hebreia, ele não é recuperável do ponto de vista ideológico e dramático. Como seu avô Bernardo igualmente, e sua mãe, apesar da sua beleza e do engano de que foi vítima. Aliás como vítima, somos nós, leitores de hoje, que a vemos como tal. Assim, os judeus entram em cena para justificar a tomada da praça de Salvador pelos holandeses. Eles são coletivamente o pharmakos, a ser rejeitado e morto.
Entre a primeira cena (rompimento dos amantes por motivo de honra) e a última (perdão dos holandeses e condenação dos judeus), acontecem vários embates e diálogos entre personagens e figuras alegóricas. Várias figuras alegóricas - o Brasil, a Religião Católica, a Monarquia e a Heresia - fornecem o arcabouço teológico e moral da ação enquanto duas outras - Apolo e a Fama - estabelecem o elo com a tradição clássica. Antes de analisarmos algumas das suas falas, consideremos as didascálias que apresentam a Monarquia como uma dama da corte e o Brasil como uma índia, retomando aparentemente a oposição cultura vs natureza[2]. Mas a terra do Brasil como índia escapa à barbárie e à selvageria graças à religião católica, isto é, ela ascende a um plano superior de humanidade porque participa, pela sua conversão à lei de Cristo, da obra divina da salvação. Desse ponto de vista, é interessante notar que a própria índia revela sua origem maléfica e impura: ela descende do dragão que também sustenta a Heresia. Num diálogo, o Brasil se define para a Heresia:


Hija del mismo dragón
que en sus hombros te sustenta,
mal conoces que me alimenta
la verdad y la razón.[3]

Assim, o Brasil passa a ser alimentado pela verdade e pela razão a partir da sua conversão, podendo opor-se então à Heresia.

AS PERSONAGENS FICCIONAIS E A IDEOLOGIA DA LIMPIEZA DE SANGRE | As personagens humanas da peça poderíamos dividi-las em dois grupos: ficcionais e históricas. Dentre as ficcionais, já aludimos ao par nefando formado pelos judeus Bernardo e Guiomar, pai e filha, ao fidalgo português Don Diego, ao gracioso Machado e ao marido holandês da moça judia, desposada apesar de judia e grávida de outro[4]. Com exceção de Leonardo Vinch, note-se que os tipos[5] são quase todos portugueses de certa forma: a Espanha já se livrara dos seus judeus. É em Portugal e nas suas colônias que os judeus participam ainda da vida social, traindo a religião e a monarquia católica. No não-dito do texto fica a insinuação de que, na terra colonizada pelos portugueses, há algo de podre. Que é a presença ainda dos judeus. No Brasil, segundo o fidalgo Don Diego, os judeus são mais idólatras que os índios gentios; ele diz à amante para justificar o fato de abandoná-la:

 vivis de manera aquí
que aun la fe que vive en mi,
con el honor se agraviara.

E mais adiante, o fidalgo continua:

No vive un indio gentil
más idólatra, en razón
del sol, que otra nación
en su luz en el Brasil.[6]

Dessa forma, o nobre Don Diego, para não manchar "su sangre tan clara", se afasta sem remorso nem má consciência, ameaçando a jovem judia com o "tribunal que sabéis". Ou seja, a Inquisição.
A passagem, de forma talvez subliminar para nós, hoje, mas transparente para os contemporâneos, faz eco à discussão havida, na Espanha, por ocasião da anexação de Portugal pela coroa espanhola, sobre a Inquisição. A monarquia portuguesa sempre tivera uma posição mais flexível e conciliatória que a da sua poderosa vizinha em relação aos judeus. É sobretudo depois de 1580 que o Santo Ofício, nos moldes espanhóis[7], entra em terras portuguesas para zelar sobre a pureza da fé. Segundo Orlando da Rocha Pinto [8], em 1621 ou 1622, logo após sua ascensão ao trono espanhol, o jovem Felipe IV propõe a criação de um tribunal do Santo Ofício no Brasil: entretanto, "não se realiza a sua implantação devido ter a Coroa recebido fortes cabedais oferecidos por cristãos novos brasileiros". Mas já em 1624, ano da tomada da Bahia pelos holandeses, desembarca no Norte do país, no Maranhão, como primeiro custódio, visitador e comissário do Santo Ofício, frei Cristóvão de Lisboa, franciscano.
O texto de Lope reflete, pois, de certa forma, a pressão dos meios tradicionais espanhóis a favor da introdução da Inquisição no Brasil: para tal, nada melhor do que fazer dos judeus a porta sempre aberta à traição e à invasão de hereges. A obra teatral reforça a ideologia da limpieza de sangre, forma de racismo de cunho religioso institucionalizado que discrimina o mouro, o converso e o judeu uma vez que, na Espanha, para obter qualquer cargo é necessário fazer prova de "sangre limpia".
Dentre as personagens ficcionais da peça de Lope, uma merece destaque especial, o gracioso Machado, como vimos, meio português, meio espanhol. Ele, de certa forma, estabelece o elo entre as duas nações e, de forma reveladora, adota a postura ideológica espanhola em relação aos judeus. Funciona, como todo gracioso, como contraponto irónico e comentador mordaz das ações. É também ele que faz, em cena, a desmistificação da ilusão teatral. Em contexto de meta-teatro, ele diz ao arauto dos holandeses:

Habla recio
como en las comedias dicen
los que escuchan desde lejos.[9]

Machado estabelece, assim, conivência crítica com o público espectador. Por outro lado, ele não é um miles gloriosus cômico ou um soldado fanfarrão. Dotado de verdadeira coragem, quando, diante do próprio Don Fadrique, se recusa a marchar contra os holandeses no escuro, ele o faz porque sabe que a glória só vem do que se realiza à luz do sol. O episódio é revelador: ao receber a ordem de Don Fadrique de avançar, Machado responde-lhe:

No me mandes ir a mi
a puesto tan peligroso,
y donde de noche muera
sin que me vean morir,
porque el premio del servir
es el honor que se espera.[10]

Assim, embora aceite morrer, prefere que o vejam morrer em plena luz do sol. De dia e com espectadores. Logo a seguir, Machado narra uma historieta jocosa[11].
Diante do comentário de Don Fadrique: "nunca tienen más valor/ los que profesan donaire"[12] , Machado resolve provar ao comandante em chefe que donaire e valor não se excluem. Escala a muralha debaixo das balas e arranca uma bandeira inimiga da cidadela ocupada:

Recibe mi atrevimiento
¡Oh Príncipe generoso!
por ser agüero dichoso
de su breve rendimiento,
y no digas por desaire
a lo que llaman humor:
"Nunca tienen más valor
los que profesan donaire"
que con el valor que ves
si allí entonces estuviera,
como traigo la bandera
trajera al mismo holandés.[13]

A bandeira inimiga "aunque de poca importancia", reconhece Don Fadrique, é sempre bom sinal de futura vitória. O herói, comandante da expedição luso-espanhola designado pelo Rei, recebe pois a lição de Machado: é preciso ter apreço pelo homem de ideias, dos jogos de palavras, do humor, de donaire. Machado encarna portanto a ideia, cara a Lope, de que o homem de letras também é homem de valor e de coragem. É justamente esse aspecto nobre de Machado que dá maior peso aos seus ataques e críticas contra o povo judeu.
Em outro passo da Terceira Jornada, Machado intervém a favor da judia Guiomar. A cena é um modelo de ambiguidade curiosa. A rendição dos holandeses é iminente. Guiomar assoma em cena vestida com sombrero e espada: mais uma vez, aflora nela a tentação do suicídio. A jovem reavalia a sua vida: o verdadeiro pai do seu filho, Don Diego, agora morto, era nobre e português; o marido, vilão e holandês:

Mal casamiento intenté
pero en su ley y la mía
¿ qué fe ni verdad tendría
donde no hay fuerza ni fe?[14]

Guiomar pensa, um momento, em fugir para os montes "mas indios y negros temo"[15]. Nesse instante, intervém Machado com dados na mão. A sorte da judia está nas mãos do homem que gosta do jogo (jogo de palavras, jogo de dados, jogo da sorte, sempre madrasta). Amor e jogo se opõem: para Machado, a bela judia não é objeto erótico mas fonte de renda. Um breve diálogo, brutal na sua concisão, revela para o espectador o único acordo possível entre o gracioso e a judia. Ele vai direto ao que interessa: "¿Hay algún oro para darme?"; ela, surpresa, em resposta: "¿Luego no tratáis de amor?"
Guiomar, no jogo de viver ou morrer, descobre, pela primeira vez, que o seu corpo não pesa na balança, mas sim os escudos que carrega:

Quiomar:Yo tengo muchos escudos
que os dar porque me gardéis.

Machado:Si vos escudos tenéis,
¿que más defensa que escudos? [16]

É pois por interesse venal que Machado pede e alcança o perdão de Guiomar. A peça de Lope tem silêncios, sempre maldosos, para com o povo judeu. Da mesma forma que não se tem notícia do filho de Guiomar, esta não pensa em salvar seu pai com o ouro que carrega. Livre, por intercessão de Machado, ela sai de cena. Antes, porém, um último diálogo, brutal, com o gracioso:

Machado:¿Qué escudos tenéis ahí?

Guiomar: Mil en doblones.

Machado:¡San Pedro!
Yo soy Marqués del Brasil
por librarte del brasero.[17]

Na rendição dos holandeses, Leonardo Vinch (o marido holandês de Guiomar) vem, como arauto, entregar ao vencedor as condições dos sitiados. Don Fadrique rasga o papel sem ler. Leva o emissário frente ao retrato do Rei Felipe IV na sua tenda: esta é a cena transposta picturalmente por Maino na sua tela e a que todos os comentadores, sem exceção, fazem alusão. Raras vezes encontramos, no século XVII espanhol, melhor exemplo da correspondência, tantas vezes afirmada, entre poesia e pintura. Don Fadrique dirige-se ao retrato do seu soberano:

No pienso
admitir yo condiciones
de paz ni de otros conciertos
en hacienda de mi Rey,
porque tanto atrevimiento
me ha enviado a castigar,
que no para usar con ellos
la piedad que no merecen.
Mas porque conozco el pecho
de aquel divino Monarca,
que cuanto es juez severo
sabrá ser padre piadoso
reconociendo su imperio,
desde aquí le quiero hablar,
y porque en mi tienda tengo
 su retrato, mientas le hablo
pon la rodilla en el suelo.

Descúbrese el retrato de Su M. Felipe IV, que Dios guarde, amén.

Magno Felipe, esta gente
pide perdón de sus yerros:
¿quiere Vuestra Majestad
que esta vez los perdonemos?
Parce que dijo sí.[18]

A graça é pois concedida aos vencidos. Os holandeses, desarmados, retiram-se da cidade de Salvador. Machado está vigilante para, dentre os retirantes, apontar os judeus para impedir que escapem:

Peor en pasado judíos,
que, en fin, los traídores fueran,
advierte que los conozco.[19]

Machado denuncia Bernardo, pai de Guiomar, a Don Fadrique: "es este pícaro hebreo el que te vendió". Para o judeu não há salvação. Para limpar o mundo é preciso que o pharmakos morra, condenado.
A peça de Lope, encharcada pela ideologia da limpieza de sangre, retira do humano o judeu. A judia Guiomar é um dos exemplos desse atroz exílio para além do humano: jovem e bonita, é abandonada pelo nobre português que a seduziu mas o fidalgo justifica o seu abandono como único meio de preservar sua honra e sua fé; casada com o holandês Vinch, seu marido dela se afasta também sem que esse segundo abandono apareça como infamante para ele; enfim, ela tem de comprar a sua salvação ao gracioso sem que a extorsão de pagar-lhe mil dobrões seja vista como negativa. Muito pelo contrário: numa inversão sistemática e prenhe de significado, a vítima torna-se armadilha para incautos: ela se deixou seduzir pelo fidalgo português Don Diego para que seu pai, "en su sangre", tivesse honra em Portugal e na Espanha[20]; casou-se com o holandês para vingar-se do amante português. Desse ponto de vista, prudente é Machado que não se deixa tocar pela beleza da jovem e só lhe tira ouro. Guiomar - a que guia para o mar, seu corpo atraindo os homens para o abismo e os enganos do amor - possui o poder que lhe advém da sua beleza e do ouro: Machado, letrado e gracioso, indica, de certa forma, aos espectadores, o que se pode/deve aceitar dos judeus: dinheiro apenas.

AS PERSONAGENS HISTÓRICAS E A EXALTAÇÃO DAS DUAS NAÇÕES IRMÃS | Consideremos agora as personagens históricas da peça, isto é, os atores do feito militar, a Retomada da Bahia; eles são citados pelos seus nomes, famílias, passado e ações de bravura. E também pelos ferimentos e baixas. Algumas tiradas da peça constituem o necrológio das perdas portuguesas e espanholas, com evidente preocupação de exaltar as duas nações hispânicas. Existe, assim, na peça de Lope, uma hábil celebração da união das duas nações que, como irmãs, na emulação de suas glórias, parecem contrárias:

porque fuera Lusitania
única, a no haber Castilla,
por las letras y las armas,
y si Portugal no hubiera,
Castilla por Fénix rara
se celebrara en el mundo.[21]

O elogio das duas nações é igualmente paralelo na voz dos adversários:

¡Notable es la arrogancia portuguesa!
¡Terrible la soberbia castellana! [22]

Mas existe, igualmente, na obra de Lope, uma série de ocultações que fazem da sua peça uma obra, senão de circunstância, pelo menos de partido: o nome do descobridor da terra do Brasil e sobretudo a linhagem portuguesa da casa de Aviz, reinante em Portugal até 1580. Implicitamente, parece que o primeiro dono do país foi, desde sempre, o Rei espanhol e no discurso da personagem Brasil, a índia, evoca Carlos V e seus portugueses.
Sem insistir em cada uma das personagens históricas, é necessário destacar o herói do feito, Don Fadrique de Toledo. Sua figura permitirá melhor compreender o funcionamento do aparelho barroco espanhol, sobretudo ao analisarmos a sua presença na tela de Maino.
Na peça de Lope, encontramos: a) sua ascendência; b) seu passado; c) suas vitórias precedentes à da Bahia; d) a admoestação que lhe faz o gracioso de que valor e donaire não se opõem, único episódio em que o tom geral de idealização da sua figura sofre alguma inflexão; e) seu diálogo com os vencidos e f) sobretudo, a cena em que, diante do retrato de Felipe IV e em seu nome, perdoa aos holandeses, mas não aos judeus.
Não nos esqueçamos de que Don Fadrique, no momento da publicação e da representação da peça de Lope (1625), estava no auge da sua glória, o que não se dá no momento da realização do Salón de los Reinos onde se insere a tela de Maino. Voltaremos portanto ao assunto mais tarde.

AS PERSONAGENS BRASILEIRAS DE LOPE | Resta-nos enfim considerar as personagens brasileiras. No quadro de Maino, aparentemente, os populares que rodeiam o ferido, em primeiro plano, seriam brasileiros; na peça de Lope, certamente, os índios o são igualmente. Entretanto, na tela de Maino, como o primeiro referente é, como veremos adiante, não a batalha travada em terras e no mar do Brasil, mas a sua representação num teatro, a gente do povo que, compassiva, rodeia o ferido, constitui, na verdade, um grupo de atores num cenário de papel cartão. Na peça de Lope, no entanto, aparecem índios brasileiros: quase nada falam, mas estão presentes na ação. Entre a Primeira Jornada e o restabelecimento da ordem na Terceira Jornada, decorreram vários meses: passa-se do ano 1624 a 1625. Parte desse período, Machado o vive entre índios. Nos montes em que se refugiou depois do ataque dos invasores, fez mais penitência que nos desertos de Tebas e viu os índios assarem e comerem os holandeses:

por aquestos indios son
de aquella cruel nación
de quien hay cosas tan nuevas.
A los indios del Brasil
llamaron antropófagos,
que entre estos montes y lagos
vivieran vida gentil,
y enseñados a comer
carne humana, la ocasión
deste holandés escuadrón
los ha dado bien que hacer.
Allí los he visto asar;
allí, en jigote deshechos,
pechos sepultar en pechos;
pero no os quiero cansar
con las venganzas de gente
bárbara…[23]

Note-se o involuntário humor da tirada de Machado: "peitos sepultos em peitos". Os índios antropófagos brasileiros são também evocados no discurso de várias personagens: eles constituem ainda o Outro inimaginável e incompreensível. Sua alteridade radical por comerem carne humana século e meio depois do "descobrimento" da América, ainda não foi assimilado pelo imaginário europeu e pelo texto de Lope, cujo não-dito parece insinuar que esses bárbaros, no entanto, só comem holandeses. O que confere, nova forma de humor, um certo tom positivo à sua antropofagia e, num confronto irreverente e atual, nos confirmaria a visão irónica de João Ubaldo Ribeiro, no seu Viva o povo brasileiro, de que os índios e caboclos brasileiros, depois de provarem a tenra e macia carne flamenga não podiam mais tolerar a dura e áspera carne das Espanhas [24].
Em Lope, o Brasil, como índia aculturada e convertida, recita Apolo e envia a Fama à corte espanhola para dar notícia da invasão da terra por "gente desleal"[25]. Uma longa tirada sua na Primeira Jornada é particularmente interessante: ela evoca sua história, sua ociosidade "entre las olas de la mar sentada" antes da chegada de "aquel portugués" que cortou de naves o mar profundo: note-se, ao mesmo tempo, que o trabalho só aparece em terras do Brasil depois do descobrimento e a ocultação do nome do descobridor. Num claro exemplo de reescritura da História pela ideologia dominante, as terras encontradas pelo descobridor anônimo são referidas ao soberano Carlos V: "sus portugueses conquistaron fuertes/ mi tierra y mar"… Os descobridores e navegadores portugueses são portanto os portugueses de Carlos V. Segue-se então a evangelização e a conversão; o Brasil conta:

Entonces recebí la fe de Cristo
y supe que era Dios único y solo
..............................................
y limpia del antiguo barbarismo
me baño en las corrientes del bautismo.[26]

Note-se o adjetivo limpia: quem nunca poderia ser limpio é o judeu porque, sobre ele, pesa o seu sangue manchado desde sempre. Estabelece-se assim uma diferença entre dois tipos de bárbaro, um recuperável (o gentio, o índio), outro irrecuperável (o marrano, o cristão novo, o judeu). A expressão "bárbaro hebreo" aparece em diferentes passagens da peça El Brasil restituído.
É interessante observar como a diferença luso-espanhola, na América, se inscreve no teatro de Lope. A peça, da primeira metade do século XVII, metaforiza ainda as dissemelhanças que os colonizadores ibéricos, apesar da união tão exaltada dos dois povos do ponto de vista oficial e da "virtuosa emulação" entre portugueses e espanhóis, tentam ocultar e revelar: a colônia portuguesa é aquela onde ainda existem judeus, que ainda não foram eliminados ou expulsos, como nos territórios espanhóis, purificados.


A TELA DE MAINO, LA RECUPERACIÓN DE BAHÍA (1635) | A peça de Lope retrata, em 1625, sucessos do mesmo ano; a tela de Maino retoma, dez anos depois, o mesmo feito histórico já transposto para o teatro. Já abordamos, em artigo publicado em Colóquio-Artes [27], os problemas de leitura deste quadro esplêndido e original a partir do procedimento de encaixe de um quadro dentro do quadro. Mais precisamente: de uma tapeçaria dentro do quadro. Na época da sua realização, de todos os quadros do Salón de los Reinos, é aquele que alcança os maiores elogios:

… teniendo en conta hasta qué punto Olivares se sentía identificado con el proyeto de la Unión no debe sorprender que el cuadro de Maino sea el único de la serie que incluye la figuras del rey y de su ministro. (…)
La presencia de estas dos figuras en la Recuperación de Bahía explica por qué, de entre todasla escenas de batallas, ésta fué la que los contemporáneos siempre escogieran para colmarla de elogios. [28]

Sem retomar a análise feita e para a qual remetemos o leitor, buscaremos aqui destacar alguns aspectos da articulação entre literatura e pintura no barroco espanhol, mais precisamente entre El Brasil restituído, de Lope e La Recuperación de Bahía, de Maino.
Na tela, três cenas diferentes se sucedem do fundo para o primeiro plano: no fundo, tropas desembarcam da frota luso-espanhola e descem nas praias da baía de Todos os Santos numa representação plástica, de certo modo, de cunho arcaizante; no plano médio, à direita, o vencedor espanhol Don Fadrique de Toledo Osorio perdoa os vencidos ajoelhados diante de um tapete que representa o Rei Felipe IV e no primeiro plano, à esquerda, um ferido é assistido por populares que o cercam, atentos e compassivos.
O quadro de Maino oferece ao espectador, aparentemente, diferentes momentos do feito histórico: o desembarque dos aliados, socorro ao ferido e cerimônia de homenagem e vassalagem ao soberano espanhol representado em efígie. Uma leitura cronológica e ingénua encadearia os episódios assim: desembarque, socorro ao ferido e cerimônia diante do tapete. Na verdade, as diferentes cenas constituem episódios no teatro do mundo e, desse ponto de vista, pertencem todas ao mesmo espaço teatral, em que acontecem praticamente em momentos e espaços concomitantes.
Nem o desembarque na praia, nem o socorro ao ferido, como tais, fazem parte do texto de Lope. Eles são narrados pela Fama ou Apolo: constituem narrativas do passado.
O arcabouço alegórico da peça de Lope reaparece, modificado, na tela, no quadro dentro do quadro, que constitui o tapete exposto. Neste, a deusa Palas Atenas e Olivares coroam o rei de louros e Felipe IV, como príncipe da paz triunfante, tem aos seus pés três figuras, identificadas como a Fraude, a Traição e a Heresia. Acima da cena en abyme[29] , a frase latina SED DEXTERA TUA retoma o texto do Salmo de Davi como Rei. A realeza do rei espanhol é portanto equivalente à de Davi, rei de Israel, cabeça da estirpe messiânica. Esta é a maior glória imaginável na história do povo eleito: no político e no guerreiro, como unificador do reino; no artístico, como protetor das artes; no religioso, como crente e anunciador do Salvador.
Aceita a tese de que a cena no plano médio do quadro é a transposição plástica do perdão de Don Fadrique aos vencidos diante da imagem do Rei[30] (cf. "Magno Felipe, esta gente/ pide perdón de sus yerros"), busquemos as diferenças temáticas das duas obras, que são essencialmente: a) a ausência, na tela, de judeus e índios brasileiros e b) a presença, ao lado do Rei, do seu Ministro todo-poderoso, Olivares, o conde-duque. A personagem de Atenas, no tapete, pode ser homologada às personagens de Apolo e da Fama em Lope.
Apresentando nossa hipótese de forma resumida, teríamos: a peça de Lope, que se baseia toda na ideologia da limpieza de sangre e onde os judeus constituem o bode expiatório, é transposta para a tela, em 1635, com modificação de sentido. Este passa a ser a glorificação do Valido ao lado do Rei e uma reflexão humanista sobre o poder e o herói.
Devemos, aliás, distinguir entre o herói do feito (Don Fadrique de Toledo Osorio) e seu Destinador-Herói (o Valido). Completando ainda a identificação de Valbuena-Prat para o plano médio, poderíamos ver a cena do ferido do primeiro plano como a transposição, para a tela, de outros episódios de Lope: ferimento ou morte de vários combatentes aliados, cuja bravura não é mostrada mas exaltada pelo próprio Apolo. Mas, novamente, com diferença, de gênero e de tonalidade: na peça, o tom predominante é o da narração épica; em Maino, na cena do ferido, o tom predominante é o sentimental. Em Lope, Apolo termina seu panegírico dos caídos com um apelo às Musas, que é a negação do sentimental:

No os estristezeáis, ¡oh musas!
veréis la venganza presto;
que morir con honra es vida
que vive a pesar del tiempo.[31]

Para compreender a evolução ideológica ocorrida entre as duas obras, seria necessário articular de maneira mais clara a ausência de certas personagens e a presença de nova personagem. A tela de Maino como que apaga um dos eixos de significação da peça teatral, ou seja, a reflexão sobre os bárbaros, recuperáveis (os gentios quando convertidos à fé de Cristo) e irrecuperáveis (marranos e judeus), introduzindo nova figura, totalmente ausente da obra do dramaturgo, a do conde-duque Olivares, representado em efígie ao lado do Rei e da deusa Atenas.
Gaspar de Guzmán, conde-duque de Olivares, é o Valido de Felipe IV, exercendo o poder de 1621 a 1643, datas que abarcam a produção das duas obras que nos interessam. É o protetor de Rubens, Velázquez, Murillo, do próprio Lope. Sua ambição e talvez o seu sentido da grandeza espanhola o lançam a empreendimentos ousados: por causa da sua política militar (guerra nas Províncias Unidas, participação da Espanha na Guerra dos Trinta Anos), toma medidas fiscais que provocam desordens internas. Por outro lado, seu esforço de equilibrar as finanças do Reino o levam a abrandar as leis contra os cristãos-novos, em particular na comprovação da "limpieza de sangre" para obtenção de cargos oficiais.
Na peça de Lope, não há uma única referência ao Valido, já em exercício, repetimos. Na tela de Maino, ele se torna elemento central na significação da obra, como elo necessário entre o herói e o Rei. Mais ainda: o poder real não se dissocia do Valido. No quadro, sua importância aparece, explícita: ele é representado em efígie, no mesmo espaço do Rei, fazendo par com a deusa grega, no tapete diante do qual se ajoelham os vencidos. Por outro lado, a representação en abyme supõe certos jogos, ao mesmo tempo, verbais e visuais: Olivares é o duplo masculino e humano da deusa Atenas, a Sabedoria armada; ele tem ao ombro a espada nua do conquistador ornada de oliveira (planta[32], com significações diversas, todas nobres, que retoma o seu próprio nome: Olivares) e coroa o Rei de louros.
O estudo do Salón de los Reinos é assunto para trabalho muito mais extenso: ele foi brilhantemente iniciado pelo livro, capital, de Jonathan Brown e J. H. Eliott [33]. O conjunto pictórico criado por Velázquez, em 1635, articula três séries ou paradigmas de quadros: doze batalhas, dez telas mitológicas e cinco retratos equestres de membros da família real numa trama complexa de significações sintagmáticas e paradigmáticas. La Recuperación de Bahía retoma sub-repticiamente o diálogo explícito, em outras batalhas, entre vencedor e vencido, mas aqui o espectador não identifica o vencido entre as pessoas, representadas ajoelhadas e de costas. Entretanto, única entre todas as batalhas do Salón de los Reinos, o vencedor aponta para o Rei e o Valido. O seu dedo indica o próprio cerne da representação.
Exaltação do rei. Exaltação do Valido também, que forma com a deusa armada da Sabedoria, como vimos, o par coroante. Sustentáculo do trono, duplo do Rei (a atitude dos dois homens é semelhante no tapete), Olivares é representado com uma espada nua, gigantesca, apoiada sobre o ombro. Don Fadrique venceu os holandeses na Bahia, Olivares derrotou as forças que ameaçam a Monarquia espanhola: a Fraude, a Traição (ou a Guerra) e a Heresia. Se sobre a cabeça do Rei há louros, a espada de Olivares está adornada também.
Observe-se ainda que há, entre o Rei e o Valido, entre Felipe IV e Olivares, uma relação implícita passivo/ativo: o Rei é coroado pelo Valido e a mensagem é reforçada, fora do tapete, pelo gesto indicador e o discurso (do qual conhecemos o texto, graças a Lope) de Don Fadrique à multidão de joelhos. O sujeito da frase o Rei é coroado é, de facto, o objecto direto de um verbo ativo numa frase subjacente. Assim, o Rei é coroado sai da frase subjacente: Atenas e Olivares coroam o Rei. Se Atenas é uma figura alegórica e portanto retórica, Olivares é um homem vivo em 1635 e exerce o poder em nome do Rei. É Olivares que ergue a coroa sobre a cabeça do seu Rei, é ele que porta a espada nua, que derrotou a Fraude, a Traição e a Heresia etc. Por outras palavras: o Rei é Rei por direito de nascença, mas Rei vitorioso graças a Olivares. Este é o herói sobre-humano, espécie de Nicomède ou de Suréna, que permite ao Rei mostrar-se como Rei. Aliás, as relações entre o Herói e o Rei postas em cena por um outro dramaturgo na mesma época, Pierre Corneille, sobretudo na fase final do seu teatro, não estão longe da problemática das relações entre Rei e Valido na Espanha do século XVII.[34]
Há na Espanha uma delegação de poder que merece ser aprofundada e que a tela de Maino põe em cena de maneira admirável. O Rei é Rei e concede o exercício do poder a um valido que o exerce em seu nome, o soberano sendo rei literalmente em pintura e no teatro. A expressão aliás está na boca de uma das heroínas de Corneille: "Puisque le roi veut bien n'être roi qu'en peinture" (Nicomède, V) [35].
Que Olivares, destituído depois do desastre de Rocroi (1642) contra os franceses, morra louco é compreensível depois que um tal poder lhe foi retirado. Na Espanha, Olivares não é a eminência parda, o poder por debaixo dos panos, mas exerce o poder à vista de todos: ele coroa o Rei na tela de Maino e se faz representar sobre um cavalo en courbette por Velázquez [36]. Seu título espanhol, el Valido, exprime sua situação, para nós, hoje, paradoxal: ao mesmo tempo, adjetivo ("recibido, apreciado o estimado generalmente") e substantivo ("el que tiene el primer lugar en la gracia de un príncipe o alto personaje. Primer ministro"), a palavra é, na verdade, o particípio passado do verbo valer. O Valido é o que recebe o valor de outro, fonte de valor e da ação de valer . Aqui a relação passivo/ativo entre Rei e Valido, antes referida, se inverte: o Rei imóvel é fonte de valor e da ação de valer exercida pelo seu delegado que age e fala em seu nome. Lumen solis, "a luz do sol", define Quevedo ao Valido[37]. Seu poder (ou sua luz) tem portanto um aspecto lunar. O Rei é o sol ausente (que se quer ausente) e envia sua luz a outro que o representa, por procuração.
A problemática do Rei/Sol não está ausente da Espanha mas ela trabalha o imaginário de uma forma mais oculta e não menos poderosa do que na França de Luís XIV. Como o mostra Rosa López Torrijas[38], a identificação do Rei espanhol com o Sol é antiga e assim, Ruscelli, nas suas Imprese illustri de 1580, dedicadas a Felipe II, representava o soberano como Sol conduzindo um carro de quatro cavalos com o lema latino "iam illustrabit omnia", o que significa que, como o Sol ilumina tudo, o Rei espanhol ilumina com a lei de Deus o nosso mundo.
Voltemos ainda por um momento, antes de avançarmos, à inscrição já referida por debaixo do dossel: SED DEXTERA TUA, fragmento do Salmo 43, 3 que reza: Neque enim gladio suo occupaverunt terram, nec brachium eorum salvavit eos, sed dextera tua et brachium tuum, Domine, quoniam salvavit eos. A crença no providencialismo[39], ou seja, a proteção divina sobre a política dos reis que lutam contra a heresia e a vitória da fé católica.
A hierarquização do poder na Espanha está presente na tela de Maino: o comandante das tropas, aquele que retomou Salvador e a Bahia, dirige-se aos vencidos que, de joelhos e de costas para o espectador, prestam vassalagem à efígie do Rei coroado pelo par alegórico/humano: Atenas/Olivares. Este, que não tomou parte na batalha, é representado como Herói vitorioso, espada desembainhada sobre o ombro[40], derrotando a própria essência dos inimigos da Monarquia (a Fraude, a Traição, a Heresia). Em qualquer batalha, em qualquer canto do mundo[41], o comandante terrestre ou naval é um delegado do Herói (Olivares), que assegura o trono, como delegado do Rei. Em outros termos: se o general espanhol ou a serviço de Espanha vence inimigos (= homens: holandeses, hereges, ingleses etc.), o Valido vence a essência do inimigo (= Fraude, Traição, Heresia) enquanto o Rei existe, como Deus vivo, para receber a coroa de vencedor e pacificador, para ser honrado, fonte secreta de todo valor. Para ser coroado para sempre, espectador imóvel, fascinado e fascinante, talvez enfastiado, representando o papel de Rei.
Entre a peça de Lope e a tela de Maino, entre 1625 e 1635, um salto foi dado. Na obra do dramaturgo, o Valido ainda não aparece embora já esteja em exercício: a vitória sobre os holandeses foi alcançada graças ao "ánimo belicoso del joven Felipe" que põe "espíritu animoso en su gente" [42].
O primeiro ministro espanhol tinha ainda outra designação, el Privado. Literalmente: o que tem a privacidade. A privacidade com a Monarquia encarnada. Com o Rei. É este privilégio exorbitante que será retirado a Olivares quando cai em desgraça. El Privado será privado do seu cargo que era, antes de mais nada, olhar o verdadeiro Sol e refleti-lo, como a Lua reflete o Sol. Ofuscante demais para simples mortais.
Exaltação do Rei, exaltação do Valido, exaltação também de Don Fadrique. Fato também relevante a ser observado: na Espanha, ao contrário da França de Luís XIV, um homem, uma vez caído em desgraça, não tem a sua imagem apagada nem destruída. Porque a sua queda, no caso do Valido, é a condição mesma do funcionamento da monarquia espanhola e no caso de um comandante, como Don Fadrique, fonte de reflexão sobre a roda da Fortuna em seus altos e baixos.
O herói da Bahia, no momento em que é criado o Salón de los Reinos por Velázquez (1635), acaba de cair em desgraça e morrer exilado da corte[43]. Mas Don Fadrique aparece em duas batalhas do conjunto: Bahia e San Cristóbal. Para os discretos da época, os comandantes vitoriosos das diferentes batalhas deviam fornecer ao espectador do conjunto, um painel sobre diferentes sortes: vida e morte, ascensão e queda, glória e desgraça. A figura de Don Fadrique introduz na série de batalhas um tema interessante: o do herói já morto (caso de Espínola, representado em duas batalhas) mas caído em desgraça (caso de Don Fadrique). Percebemos, assim, um novo elemento que deveria picar os contemporâneos e seu interesse: a frase de Lope, atribuída ao vencedor da Bahia ("Magno Felipe, esta gente/ pide perdón de sus yerros") podia também aplicar-se ao próprio Don Fadrique. Por outro lado ainda, o vencedor de Bahia exibe diante dos holandeses derrotados um tapete no qual é seu inimigo, o conde-duque, que coroa o Rei de louros.
Elementos da biografia desse marinheiro excepcional, morto um ano antes da inauguração do Salón de los Reinos, exilado da corte e prisioneiro, permitem melhor apreciar as alusões.
Don Fadrique de Toledo Osorio (1580 - 1634), filho do quinto marquês de Villafranca, serviu muito jovem nas galeras de Nápoles. Nomeado capitão general do mar oceano em 1618, venceu a esquadra holandesa em frente ao cabo São Vicente em 1621, bloqueou a costa inglesa em 1623 e expulsou os holandeses da Bahia, tema da peça de Lope e da tela de Maino. No regresso à Europa, dedica-se à proteção das esquadras das Índias de 1626 a 1629. Em 1630, no mar das Antilhas, vence ingleses e franceses que se tinham estabelecido na ilha de San Cristóbal, tema de outra batalha do Salón de los Reinos, do pintor Eugenio Caxés. Mais tarde, passa a Flandres acompanhando o cardeal-infante Don Fernando. Essa carreira vitoriosa é interrompida quando Don Fadrique conquista a inimizade do conde-duque de Olivares; o Valido consegue desterrá-lo, exonerando-o dos seus cargos e funções. Don Fadrique morre aos 54 anos, antes de partir para o desterro. Caindo Olivares, em 1643, Felipe IV reabilita a memória do ilustre homem do mar.
Mas antes dessa reabilitação póstuma, que só virá anos mais tarde, Don Fadrique, caído em desgraça, expulso da corte e já morto, aparece em duas batalhas do Salón de los Reinos, como objecto de meditação sobre a glória e a queda dos homens. Sicut transit gloria mundi. Mas essa meditação está oculta para os desatentos ou desinformados. No quadro de Maino, Don Fadrique está de pé, junto à efígie do seu Rei e do Valido, que o condenou. Assim, a simples proximidade de figuras complementares e/ou opostas cria inflexões de sentido para os contemporâneos: a História e sua reflexão estão presentes no teatro do mundo. O Salón de los Reinos era o teatro dessa encenação.

À GUISA DE CONCLUSÃO | Assim, um episódio da História do Brasil, no mesmo ano do acontecimento, é transposto para o teatro por Lope de Vega e do teatro para a tela de um pintor de corte, dez anos mais tarde.
A trama de significações da peça realça, além do feito histórico em si (a reconquista da Bahia aos holandeses), a celebração da recente união das duas nações hispânicas, a ideologia da limpieza de sangre e o exotismo do novo país, o Brasil. Este, como índia aculturada e conversa, se ergue no diálogo de cunho retórico e teológico, mas a terra, onde se vislumbra a presença inquietante de negros nos morros (quilombolas?) e de índios antropófagos, vive no limiar da barbárie. A presença ainda de judeus, introduz na peça, através do episódio só aparentemente de cunho sentimental e amoroso do par impossível por diferença de fé, o tema da traição inerente à gente judia. O Brasil, de certa forma, foi invadido por hereges porque conservava ainda os seus judeus.
Por seu lado, a tela de Maino, monge pintor, se insere em outra trama de significados ao mesmo tempo plásticos, teatrais e literários. Ela faz parte de um conjunto pictórico complexo ao qual, por falta de espaço, só fizemos breve referência. Deixando de lado a problemática da limpieza de sangre, ela se centra sobre as relações de poder entre Rei, Valido e herói, e a reflexão humanista e religiosa sobre a fugacidade da glória do mundo. Seu primeiro referente não é mais o acontecimento histórico mas a sua representação no teatro barroco: dessa forma, La Recuperación de Bahía constitui uma obra cheia de dobras, como diria Deleuze[44]: dobras da mise en abyme (o tapete dentro do quadro, isto é, a representação dentro da representação); dobras das referências ocultas a vários textos (religiosos e teatrais); dobras do contraponto com acontecimentos e figuras contemporâneos etc. Dobras ainda da retomada, sutil e modificadora, de temas pictóricos clássicos: o soldado ferido, no primeiro plano da tela, assistido por uma mulher ajoelhada lembra a figura de São Sebastião assistido por Santa Irene; a mulher com três crianças remete, de certa forma, à iconografia tradicional da Caridade; a mulher com uma trouxa de panos sugere uma das figuras das Obras de misericórdia: vestir os nus[45].


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Agulha Revista de Cultura
Número 115 | Julho de 2018
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[1] LOPE DE VEGA. El Brasil restituído. Espanha: Ministerio de la Cultura, B. N., vol. 7
[2] A índia que representa o Brasil é assim descrita: " Brasil, en figura de dama índia, con una rueda de plumas y una flecha dorada como un dardo". (LOPE, op. cit., p. 267)
[3] LOPE, op. cit., p. 284.
[4] Machado, irônico, comenta sobre o casamento: ¡Lindo casamento harán / un hereje y una hebrea!  (LOPE, op. cit., p. 266). E, depois, ainda sobre a união da judia com o holandês: Dicen que preñada de él / y casada con Leonardo, / un capitán de Ricarte / que necio y enamorado, / con estar en cinco meses, / pensará que es suyo el parto. (LOPE, op. cit., p. 269). Aliás só a heresia, a tolice e o descontrole amoroso poderiam justificar o casamento com uma judia.
[5] Machado é filho de portuguesa com espanhol: "¿No sabe que soy Machado/ castellano y portugués?" (LOPE, op. cit., p. 267); "fué mi padre castellano/ y mi madre portuguesa" (LOPE, op. cit., p. 277); "soy castellano y portugués" (LOPE, op. cit., p. 288).
[6] LOPE, op. cit., p. 260.
[7] Cf., entre outros, KAMEN, Henry. A Inquisição na Espanha. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; SARAIVA, António José. Inquisição e cristãos-novos. Porto: Inova, 1969.
[8]PINTO, Orlando da Rocha. Cronologia da construção do Brasil. Lisboa: Livros Horizonte, 1987, p. 82.
[9] LOPE, op. cit., p. 293.
[10] LOPE, op. cit., p. 286.
[11] A historieta, verdadeiro encaixe cômico dentro da peça, é a seguinte: Cuentan que jugando estaba / un señor con su mujer, / más fea que Lucifer / y nás fea que la Cava, / y que entrando un cortesano, / "¿ Qué juegan?", les preguntó: / y el marido respondió: / "Besos, señor, mano a mano". / Viendo, pues, aquel retrato / tan feo, les replicó: / "¿ Besos juegan? Voyme yo / porque no me den barato." / Así yo, que viendo estoy / que juega balas el muro / porque no me dé a lo obscuro / tan mal barato, me voy. (LOPE, op. cit., p. 286). Em resumo ou moral da história: ganhar uma bala no escuro e morrer é não saber jogar, ou seja, mau jogo.
[12] LOPE, op. cit., p. 287.
[13] LOPE, op. cit., p. 289.
[14] LOPE, op. cit., p. 291.
[15] LOPE, op. cit., p. 292.
[16] LOPE, op. cit., p. 292.
[17] LOPE, op. cit., p. 297.
[18] LOPE, op. cit., p. 294.
[19] LOPE, op. cit., p. 295.
[20] LOPE, op. cit. p. 260. Através de Don Diego, Guiomar quis ligar seu pai à antiga nobreza de cristãos-velhos: De la palavra engañada / De Don Diego Meneses, / porque en su sangre tuvieses / parte en Portugal honrada, / y en España también, / empeñé todo mi honor / a los engaños de amor.
[21] LOPE, op. cit., p. 275.
[22] LOPE, op. cit., p. 276.
[23] LOPE, op. cit., p. 278.
[24] RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. Veja-se todo o capítulo da reinvenção da antropofagia pelo Caboco Capiroba, já meio negro, meio índio, a partir das narrações dos padres na Redução. Por outro lado, ele aprende, pela experiência, a apreciar a carne flamenga. A passagem é um modelo de ironia: são os jesuítas que ensinam que se pode comer carne humana; as carnes hispânica e holandesa são comparadas por alguém que se torna aos poucos um gourmet. "…até mesmo o caboco Capiroba, cujo paladar, antes rude, se tornou de tal sorte afeito à carne flamenga que às vezes chegava mesmo a ter engulhos, só de pensar em certos portugueses e espanhóis que em outros tempos havia comido, principalmente padres e funcionários da Coroa, os quais lhe evocavam uma memória oleosa, quase sebenta de grande morrinha e invencível graveolência" (op. cit., p. 44).
[25] LOPE, op. cit., p. 268. Na peça de Lope, não é apenas o gracioso que acusa os judeus de traição, mas o próprio judeu que justifica a entrega de Salvador aos holandeses por temor ao Santo Ofício. A confissão, mesmo no teatro, é a melhor das provas: Temiendo que el Santo Oficio / envía un visitador, / de cuyo grave rigor / tenemos bastante indicio, / los que de nuestra nación / vivimos en el Brasil, / que tiene por gente vil / la cristiana Religión, / por excusar las prisiones, / los gastos, pleitos y afrentas, / y ver deste yugo exentas / de tantas obligaciones / nuestras familias, que ya / a tal extremo han llegado, / porque dicen que enojado / Dios con nosotros está, / habemos escrito a Holanda / que con armada se apresta, / de quien tenemos respuesta / que sobre sus aguas anda, / juzgando será mejor / entregarmos a holandeses / que sufrir que portugueses / nos traten con tal rigor. (LOPE, op. cit., p. 290). Numa obra ideologicamente marcada pela ideología da limpieza de sangre, era necessário que o judeu confessasse e justificasse, em cena, a sua traição. Por outro lado, na luta contra os invasores, Don Fadrique acaba por admirar a bravura holandesa que dá, aos espanhóis, ocasião de honra. Ele dirá a um oficial dos seus: "No dan, Enrique, ocasión/ de honor, enemigos viles" (LOPE, op. cit., p. 285). No final, os holandeses decidem render-se por discrición: "que es de discretos tomar/ la fortuna como viene" (LOPE, op. cit., p. 290); o filho do coronel holandês, morto na batalha, concorda: "pues rendirse un hombre a España/ es darse merecimiento" (LOPE, op. cit., p. 290).
Holandeses e espanhóis admirando-se mutuamente, preparam portanto o espectador para a cena do perdão aos vencidos. Fora deste pacto de cavalheiros e fidalgos ficam os "inimigos vis", isto é, os judeus. O antisemitismo radical da peça de Lope é de uma extraordinária coerência.
[26] LOPE, op. cit., p.267.
[27] ALMEIDA, Lilian Pestre de. Pour l'étude de la mise en abyme chez Velázquez, in Colóquio-Artes, nº 73, Lisboa, Gulbenkian, jun. 1987, p. 42 - 51.
[28] BROWN, Jonathan y ELIOTT, J. H. Un palacio para el Rey. El Buen Retiro y la corte de Felipe IV. Madrid. Alianza, 1985, p.179.
[29] Para a definição do conceito de mise en abyme veja-se ALMEIDA, op. cit., p. 44 - 46.
[30] A referência à cena de Lope tornou-se lugar comum da crítica. Veja-se, por exemplo, VALBUENA-PRAT, in Varia Velazqueña. Madrid, 1960, p. 175 e sqq.
[31] LOPE, op. cit., p. 283.
[32] A oliveira é a planta de Atenas, seu presente à cidade que a havia consagrado; ela recorda os valores mais característicos da própria deusa: sabedoria, prudência, civilização. Por outro lado, a tradição cristã acrescenta a essa simbologia a da paz: Noé sabe do fim do dilúvio pelo ramo de oliveira que lhe leva uma pomba (Gên., 8, 11).
[33] O livro intitulado Un palacio para el Rey. (Madrid: Alianza, 1985), apesar da sua qualidade, não faz exatamente uma leitura iconológica do Salón de los Reinos mas fornece a base histórica fundamental para estudos posteriores.
[34] Uma análise mais extensa e de tipo comparativo entre teatro francês e teatro espanhol traria outros exemplos.
[35] Nicomède, V, 6, in CORNEILLE, Pierre. Théâtre complet. Pléiade. Paris: Gallimard, 1950, t. II, p. 454. É Laodice, rainha da Armênia, que diz a frase sobre Prusias, rei que deixa o governo a outros.
[36] Julián Gállego mostrou que, na Espanha do seeculo XVII, o cavalo é uma espécie de trono móvel. Consultar GÁLLEGO, Julián. Visions et symboles dans la peinture espagnole du XVIIe siècle. Paris: Klincksieck, 1968, p. 223. A postura en coubette é quase exclusiva dos Reis de Espanha: vejam-se os retratos equestres de Felipe III, Felipe IV e o Infante Baltasar Carlos, por Velázquez, no Salón de los Reinos.
[37] Quevedo, na peça Cómo ha de ser el Valido, compara o Valido ao átomo refletindo a luz do sol, imagem que, segundo Gállego (op. cit., p. 122), se relaciona com uma empresa de Saavedra Fajardo, Lumine solis. Assim, é perigoso olhar de frente o Rei, sol que cega. Nesse sentido, é o Rei espanhol uma espécie de Zeus cujo esplendor seria fatal aos mortais. Isso explica, em parte, a simplicidade do vestir de Felipe IV em oposição ao enfeitado Luís XIV de França. Veja-se o quadro de Jacques Laumosnier sobre o encontro dos dois Reis por ocasião da entrega da Infanta espanhola ao noivo francês, Entrevue de Louis XIV de France et de Philippe IV d'Espagne dans l'Île des Faisans en 1659. O rei espanhol, à direita, veste-se sobriamento de cinza; o rei francês, à esquerda, veste-se como personagem, hoje, quase de carnaval
[38] LÓPEZ TORRIJOS, Rosa. La mitología en la pintura española del Siglo de Oro. Madrid, Cátedra, 1985, p. 307. Por outro lado, GÁLLEGO, Julián, op. cit., ao tratar da obra de Ruscelli indica que seria esta a primeira vez que se atribui ao Rei espanhol a divindade solar.
[39] Crença que reaparece em textos portugueses do mesmo período como a Lusitania liberata.
[40] Iconograficamente, a atitude de Olivares lembra a de Hércules, clava ao ombro.
[41] No Salón de los Reinos, são representadas batalhas terrestres e marítimas, travadas na Europa e na América.
[42] LOPE, op. cit., p. 290.
[43] BROWN e ELIOTT, op. cit., p. 181 - 182, narram o desentendimento entre o Ministro e o comandante: "En octubre de 1633, más o menos por las fechas en que se proyectaba la decoración del Salón de los Reinos, tuvo un enfrentamiento con Olivares, quien pretendía que mandara una nueva expedición a Brasil. Sospechando que no dispondría de hombres ni de barcos suficientes, Toledo expuso con toda claridad que sólo tomaría el mando bajo unas condiciones que Olivares no podía de ninguna manera aceptar. La disputa entre los dos hombres llegó a su punto decisivo en una tormentosa entrevista en julio de 1634 en la que se intercambiaran insultos con voces tan desaforadas que se pudieran oír al otro lado de las puertas. (…) Como era de esperar, don Fadrique pronto se encontró en prisión acusado de desobedecer las órdenes del rey. La casa de Toledo, como un solo hombre, adoptó la causa de su pariente y expresó una protesta colectiva boicoteando las fiestas del Buen Retiro. El 12 de noviembre el Consejo de Castilla falló en contra de don Fadrique, cuya salud se deterioba rápidamente en el castillo en el que se hallaba prisionero: la setencia fué feroz, desterrándole a perpetuidad de Castilla, privándole de todos sus cargos y de los ingresos de sus posesiones e imponiendóle una multa de 10.000 ducados". O interessante é que este homem, punido, está presente no Salón de los Reinos. Pensando em termos da corte francesa, para que se possa compreender a diferença, capital, era como se Fouquet, punido e aprisionado por ordem de Luís XIV, pudesse figurar no conjunto de Versalhes à glória do rei.
Don Fadrique morre em 10 de dezembro de 1634. Quevedo lhe faz um soneto cujos últimos versos são: "Esto fue don Fadrique de Toledo./ Hoy nos da desatado en sombra fría/ llanto a los ojos y al discurso miedo".
[44] Sobre o conceito de dobras no barroco ver o texto de DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. São Paulo: Papirus, 1991.
[45] Cf. BROWN, J. e ELIOTT, J. H., op. cit., p. 197.


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