INTRODUÇÃO | Depois do desaparecimento prematuro do rei D.
Sebastião no Norte de África, em Alcácer-Quibir em 1578 e da morte do seu sucessor,
o velho cardeal D. Henrique, em 1580, Portugal viveu cerca de 60 anos sob o domínio
do ramo espanhol dos Habsburgos. O período também é conhecido como o da união das
duas coroas.
A monarquia dualista da dinastia filipina, inaugurada
oficialmente com as Cortes de Tomar (Abril de 1581), confirma as pretensões de Felipe
II de Espanha, entre outros pretendentes, como rei de Portugal, sob o título de
Felipe Iº. Seus sucessores, Felipe III e IV de Espanha, serão denominados respectivamente
Felipe II e III de Portugal e como tal entram em várias galerias dos Reis de Portugal
(por exemplo, Galeria dos Reis, nos jardins episcopais de Castelo Branco, do século
XVIII)[1].
O período da união ibérica acumulará aos poucos
descontentamentos que resultam na instauração da casa de Bragança como quarta dinastia
reinante, a 1º de Dezembro de 1640 com o início do reinado de D. João IV e abrem
a chamada guerra da Restauração portuguesa.
Durante 28 longos anos, portugueses e espanhóis
permanecerão em guerra com sucessivas invasões do pais ao Norte (Trás-os-Montes)
e ao Sul (Alentejo), hostilidades que só cessarão com a assinatura do tratado de
paz de 1668 entre os dois países, já com D. Pedro[2] como príncipe regente
do reino.
Em meados do século XVII,
precisamente em 1645, é publicado em Londres, num belíssimo volume ilustrado, o
texto de um jurista, Dr. António de Sousa de Macedo, intitulado Lusitania liberata. A obra, escrita em latim,
defende a causa portuguesa perante o público culto e as cortes estrangeiras. Alguns
exemplares da obra pertencem a coleções portuguesas: os 6 exemplares da Biblioteca
Nacional de Lisboa e o do Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
O exemplar pertencente à
Misericórdia está em muito bom estado e é sobre ele que redigimos o presente texto.
No Catálogo das obras impressas no século XVII da Coleção da Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa[3], o volume é descrito,
sob o nº 369, como se segue:
MACEDO, António de Sousa de, 1606 - 1682.
Lvsitania liberata
ab injusto Castellanorum dominio restitvta, legitimo Principi Serenissimo Ioanni
IV. Lusitaniæ, Algarbiorum, Africæ, Arabiæ, Persiæ, Indiæ, Brasiliæ &c. Regi
potentissimo; Summo Pontifici, imperio, regibus, rebus-publicis, cæterisq[ue] orbis
christiani princibus/ demonstrata per D. Antonium de Sousa de Macedo Lusitanum,
aulæ generosum Regij Ordinis Cristo Equitem …; Opvs historice-juridicum, materiarum
varietate jacundum; Complectens ultra principale institutum omnes Lusitaniæ notitias
(quoad terram, gentem, potentiam & eventus ab orbe condito) notatu digniores
nec non plurimas aliarum provincarum; Cum duplici indice altero capitum in principio
voluminis altero rerum in fine … - Londini: in officinâ Richardi Heron, 1645. -
3 v. em 1 t.; 2º (30 cm). - Barbosa Machado 1 p. 401, NUC NS 0744931. - V. 1: [3
br.], [27], 467, [1 br.] p. - Na p. [1] o retrato de D. João IV. - Na p. [2] o fronstipício
alegórico representando o triunfo do dragão da Casa de Bragança sobre o leão de
Castela. - Na p. 58 o retrato de D. Afonso Henriques. - Na p. 93 a visão de Ourique.
- Na p. 143 o retrato de D. João I. - Na p. 165 a árvore genealógica dos descendentes
de D. Manuel I. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Assin.: [ ]6,
A34, A64, A2, B-Z4, Aa-Zz4, Aaa-Nnn4, Ooo2. - V. 2: [2], 540 [i. é 70]p. - Na p.
[2] a fénix renascida. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Paginação
e assin. contínuas; paginado a partir de 471. - Assin.: [ ]2, Ppp-Yyy4, Zzz2. -
V. 3: [2], 794 [i. é 252], [22]p. - Na p. [2] gravura alegórica a representar o
dragão da Casa de Bragança. - Na p. 560 a sagração de D. João IV. - Na p. 650 o
triunfo de D. João IV. - Grav. John Droeshout. - Na p. 708 o dragão e a esfera armilar.
- Na p. 764 o escudo das armas reais de Portugal. - Na p. 792 alegoria a D. João
IV. - Grav. John Droeshout. - Notas impr. marginais. - Paginação e assin contínuas.
paginado a partir de 543. - Assin.: [ ]2, Aaaa-Ssss4, Tttt6, Vvvv-Zzzz4, Aaaaa-Iiiii4,
Kkkkk-Nnnnn2.
Algumas folhas manchadas
e rasgadas e encadernação rasgada e com a pasta posterior solta.- Falta a folha
"A2" da primeira sequência.- Pert.: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.-
Encadernação portuguesa do século XVIII em pasta de papelão revestida em pele castanha
e decorada com dois frisos gravados a seco e lombada decorada com frisos gravados
a seco e motivos florais em dourado e o título em dourado.- Cota antiga: Est.13.C.5.L.15.-
Documentação iconográfica: estampa 1, 24 e 25.
L.A.XVII.0609 1-3
A obra possui importante
iconografia, tanto do ponto de vista plástico como histórico, em parte ainda pouco
conhecida. São 13 gravuras sobre figuras e acontecimentos históricos, antigos e
contemporâneos. Das gravuras, apenas 5 foram republicadas em trabalhos recentes:
as nº 1, nº 3, nº 4, nº 9 e nº 11. Na internet, encontram-se facilmente quatro gravuras:
a Figura alegórica final (nº 13), o Dragão e a esfera armilar (nº 11), o escudo
de Portugal (nº 12) assim como o Frontispício (nº 1), bastante conhecido.
A notícia acima, da autoria
de Júlio Caio Velloso, faz a listagem não só de toda a série como propõe uma primeira
identificação dos temas, sem esgotar-lhes evidentemente a significação.
Note-se, por um lado, que
três gravuras da LL são reproduzidas no
próprio Catálogo da Misericórdia de 1994,
anteriormente citado: a estampa 1 com a
sagração de D. João IV , a estampa 24 com o triunfo de D. João IV e estampa 25 com
a visão de Ourique. Por outro lado, o retrato de D. Afonso Henriques reproduz um
modelo iconográfico bastante difundido. A tradição criou um modelo plástico do Fundador
: um guerreiro de longas barbas que corresponde, de certa forma, à imagem de Carlos
Magno, "l'empereur à la barbe fleurie"[4], da Chanson de Roland. Enfim, duas outras estampas
da LL servem de ilustração ao número 30/31
da revista Oceanos[5] com as seguintes legendas:
a) na p. 91, D. João coroado
pelas figuras alegóricas da Justiça e da Paz (imagem correspondente, no Catálogo da Misericórdia, à sagração de D.
João IV) e
b) na página 146, os astros
auguram bons sucessos ao Portugal restaurado (imagem correspondente, no mesmo Catálogo, à gravura do escudo de Bragança
e a esfera armilar).
Restam assim quatro gravuras,
respectivamente: nº 5 (retrato de D. João I), nº 6 (Árvore genealógica de D. Manuel
I), nº 7 (A Fénix renascida), nº 8 (O dragão de Bragança junto à árvore) hoje quase
totalmente desconhecidas.
O volume de António de Sousa
de Macedo constitui um texto importante no debate sobre a Restauração de Portugal
e sustenta a ascensão à coroa do duque de Bragança, apresentado pela propaganda
espanhola como um rebelde e usurpador. É materialmente, sem dúvida, o mais belo
volume publicado sobre Portugal no século XVII.
Consideramos aqui as 13 gravuras
na ordem do seu aparecimento em confronto com o texto que as acompanham. Assim,
em cada gravura buscamos fazer uma leitura articulada da mensagem icónica e linguística.
A relação do texto com a imagem é, na maioria das vezes, complementar e ideológica.
Diante da polissemia (ou ambiguidade) da imagem, as inscrições em latim ancoram,
no espírito do leitor, um determinado significado que se torna, assim, predominante
e privilegiado. As inscrições latinas criam uma teia simbólica de significados que
buscamos destacar.
Observe-se por fim que as
gravuras distribuem-se de forma irregular no volume: seis gravuras no Livro I; uma
no Livro II e seis no Livro III.
No Livro I, as duas primeiras
gravuras ligam-se a acontecimentos contemporâneos: o retrato do novo Rei português
e o frontispício alegórico com a luta dos dois animais simbólicos, o dragão e o
leão, representando respectivamente Portugal e Espanha. Seguem-se os momentos fortes
da evolução do reino lusitano até a crise dinástica de 1580: Afonso Henriques, considerado
o fundador da nacionalidade e o primeiro rei da dinastia dita de Borgonha; os antecedentes
da batalha de Ourique contra os muçulmanos (25 de Julho de 1139), combate decisivo
na luta para a Reconquista do território; D. João I, o primeiro rei da dinastia
de Avis, vencedor da batalha de Aljubarrota contra os espanhóis (14 de Agosto de
1385) e conquistador de Ceuta (1415); a árvore genealógica de D. Manuel I, verdadeiro
Jessé bíblico.
No livro II, a imagem da
Fénix renascida faz a transição entre o passado de Portugal e a Restauração de 1640.
No livro III, todas as gravuras
sem exceção dizem respeito, direta ou indiretamente, ao novo rei português, D. João
IV, da casa de Bragança.
UMA PALAVRA SOBRE O ARTISTA GRAVADOR,
JOHN DROESHUT OU DROESHOUT | John Droeshut ou Droeshout (1596 – 1652) é
o filho mais velho de um outro artista gravador, Martin Droeshut, responsável, segundo
se acreditava, pelas gravuras do primeiro fólio de Shakespeare.
A família, originária dos
Países Baixos, compõe-se de vários artistas gravadores, uns mais conhecidos do que
outros. Recentemente June Schlueter[6] mostrou que o pai, dito
Martin o Velho, trabalhou igualmente em Madrid e que deve-se atribuir a um outro
filho, também chamado Martin, dito o Moço, a paternidade das gravuras de Shakespeare.
O conhecido dicionário Redgrave
dá as seguintes precisões sobre o nosso John Droeshout:
John Droeshout (1596–1652),
who may be identified with the John Droeshout mentioned above as an elder brother
of Martin Droeshout. He was employed by booksellers, for whom he engraved portraits
of Arthur Johnston, John Babington, Richard Elton, John Danes, Jeffrey Hudson, and
others, besides other frontispieces and broadsides. He also engraved a set of plates
to ‘Lusitania Liberata,’ by Don Antonio de Souza, including some portraits of the
kings of Portugal. In his will, dated 12 Jan. 1651–2, and proved 18 March 1651–2
(P. C. C., Somerset House, 55, Bowyer), he describes himself as ‘of St. Bride's,
Fleet Street, London, Ingraver,’ and mentions his wife Elizabeth, his nephew Martin,
his two sons-in-law, Isaac Daniell and Thomas Alford, and his servant or apprentice,
Thomas Stayno.
[Redgrave's Dict. of
Artists; Nagler's Monogrammisten, iii. 2243, iv. 1733; Granger's Biogr. Hist. of
England; Bromley's Cat. of Engraved English Portraits; Lowndes's Bibl. Man.; information
from Mr. W. J. C. Moens, F.S.A.; authorities cited above.]
Como contextualizar a publicação
do volume da LL em Londres? D. António
de Sousa de Macedo faz parte da embaixada portuguesa enviada a Londres desde 1641
em busca de apoio internacional para o movimento português: tem o cargo de secretário.
A Inglaterra é a grande aliada tradicional de Portugal desde o reinado de D. João
I.
O rei inglês, Carlos I, exigiu inicialmente um
documento em que se declarassem as causas e as razões da revolução de Portugal,
sem o qual, nem ao menos queria admitir os embaixadores. António de Sousa de Macedo
enviou então, a 12 de Março, ao secretário de estado do rei de Inglaterra, uma carta
em que largamente expunha todos os acontecimentos que tinham restabelecido a independência.
O volume da LL constitui o desenvolvimento
das suas teses e dirige-se a todas as cortes estrangeiras.
No mesmo período envia igualmente
uma Carta ao papa Urbano VIII sobre o
mesmo assunto. Respondeu também, em espanhol, ao manifesto em favor do rei de Espanha,
publicado em 1641 pelo seu cronista D. José Pellizer.
Assinado o tratado de aliança
entre Portugal e a Inglaterra, a 29 de Janeiro de 1642, D. Antão de Almada e Francisco
de Andrade Leitão voltaram a Lisboa, ficando António de Sousa de Macedo como ministro
português, residente na corte inglesa.
A SÉRIE DAS GRAVURAS DA LUSITANIA
LIBERATA: IMAGENS E TEXTOS
As
gravuras do Livro I | Com exceção das duas imagens do Frontispício, as
gravuras do Livro I cobrem o passado de Portugal, da fundação do reino à árvore
genealógica de D. Manuel. Esta será uma maneira de ilustrar a crise de 1580.
Gravura nº 1, Livro I, p. [1]: Retrato de
D. João IV | Retrato em busto de D. João IV.
A moldura do retrato é composta
por um ouroboros[7]. A imagem da serpente
com a cauda na boca situa-se acima da cabeça real e as letras dispostas sobre o
corpo do animal compõem a palavra ÆTERNITAS.
Nos quatro cantos da gravura,
em abreviatura, aparecem: o nome do soberano, IOAN IV REX 18 LVSIT. (João IV, 18º
Rei da Lusitânia), sua idade (Æ 40) e o ano (An. 1644).
Abaixo está o texto:
Magnanimi, ostendit faciem pictura, IOANNIS,
At sola ostendunt inclyta
facta animum.
(De João, o Magnânimo,
a pintura mostra a face
mas só os ínclitos
feitos apresentam a alma.)
O retrato de D. João IV cumpre
a função de divulgar a efígie do novo soberano. Representado em busto, a cabeça
descoberta destacando-se sobre uma simples gola branca e a couraça com a cruz de
Avis atravessada por uma faixa de seda, João IV leva bigode fino e pequena pera
sobre o queixo.
A simplicidade da representação
é posta em realce pelo fundo de nuvens e raios e sobretudo por dois elementos: uma
filactéria e a moldura em forma de ouroboros.
A filactéria acima da cabeça
real leva a inscrição: Iustitia de cœlo prospexit.
O ouroboros a morder a sua própria cauda exprime um ciclo de evolução
que se fecha sobre si mesmo. O símbolo, muito conhecido, conjuga as ideias de movimento,
de continuidade, de autofecundação e, em consequência, de eterno retorno. Sua significação
é explicitada e reiterada pela inscrição: Eternidade (ÆTERNITAS). Por outro lado,
a forma circular da imagem da serpente deu lugar à outra interpretação: a união
do mundo terrestre, indicado pela serpente, com o mundo celeste, figurado pelo círculo.
D. João IV torna-se assim, ao mesmo tempo, filho da terra lusitana e eleito do céu.
Sua subida ao trono deve-se à justiça divina que o escolheu contra a tirania dos
Filipes.
O simbolismo da terra, como
veremos, reaparece em outras gravuras da LL (a de nº 8, em particular) e o carácter
messiânico do soberano virá a ser um tema redundante em toda a série da LL.
Gravura nº 2, Livro I, p. [2]: Frontispício
alegórico | O frontispício da LL
é particularmente interessante. O dragão coroado da Casa de Bragança derrota o leão
de Castela. Duas figuras femininas alegóricas ladeiam o título e o resumo da obra.
Na parte superior da gravura
aparece a inscrição:
Ungue Leo fisus credit tenuis∫e Draconen, Hoc docet
exemplu breviter violenta perire
sed, quia iustus, eum iam Draco fecit ouemsolagz
inæternum viuere iusta solent.
Ou seja:
O Leão fiando-se nas suas
unhas acreditou que tivesse o Dragão
mas, porque justo, o Dragão
já fez dele ovelha
Isso mostra, como exemplo,
que a violência depressa perece
e como consolação, que a
justiça permanece para sempre.
As últimas inscrições aparecem
nas bandeirolas nas mãos das duas figuras femininas; uma vez mais se confirma que
o justo com a palma vence a opressão:
Iustus ut PalmaOppressa crescit
HAECVICIT
Deixamos de fazer a transcrição
da cartela uma vez que reproduzimos, na nossa introdução, a notícia do Catálogo
da Misericórdia. O texto da cartela enumera os títulos do novo Rei (Príncipe Sereníssimo
de Portugal, Algarve, África, Arábia etc.), resume a obra e os seus propósitos.
O texto na parte superior
da gravura apresenta a luta dos dois animais, símbolos de Espanha e de Portugal,
como um apólogo ou fábula: o Leão de Castela, arrogante e fiando-se nas suas garras,
atacou o Dragão de Bragança. Este, por ter a justiça do seu lado, lutou vitoriosamente
e fez do leão uma ovelha. A moral do apólogo é consoladora: a violência fracassa
e as ações justas alcançam a palma da vitória.
Na LL, a escolha do dragão como elemento reiterado é significativa: a figura
simbólica voltará nas gravuras de nºs 8, 11 e 12. Ora quatro exemplos da imagem
do dragão numa série de 13 gravuras, compõem um paradigma que merece ser aprofundado.
Na verdade, aparecem dois tipos de dragão na LL: o dragão em ação, corpo erguido, de grandes asas abertas (gravuras
de nºs 2, 11 e 12) e o dragão deitado, aparentemente adormecido, sem asas (gravura
nº 8).
O dragão do ponto de vista
simbólico aparece essencialmente como guardião, muitas vezes com conotações demoníacas,
o que, no entanto, não é o caso na LL.
Em heráldica[8], o dragão tem origem
oriental; é uma forma compósita de leão (a cabeça), de pássaro (as garras), de réptil
(corpo e cauda), de morcego (asas) e apresenta muitas vezes uma língua dentada.
Como o basílico, o dragão é citado no Salmo nº 91.
Ora o que nos parece interessante
notar desde logo é que na LL, a forma
simbólica ligada à Casa de Bragança é sempre o dragão e não, por exemplo, a corda
com os nós, outro símbolo bastante comum, sobretudo em ornamentos de arquitetura.
A corda com os nós permite um jogo de palavras (“Depois de vós, nós”), jogo verbal
posto em cena, por exemplo, na capela bragantina em Évora ou nas muralhas do castelo
de Évora Monte mas que não é nunca referido na obra de António de Sousa de Macedo.
Os nós marcam a casa dos duques de Bragança como a mais importante do Reino depois da casa real, o que evidentemente
não aproveitava aos propósitos ideológicos da LL.
Animal simbólico dos Bragança,
o dragão aparecerá aqui na sua ambivalência: terrestre-aquático e celeste; princípio
ao mesmo tempo ativo e elã espiritual, guardião ctônico e regente acima dos astros.
No frontispício da LL, o Dragão vence o Leão. Assim como Portugal
vence Castela. Observe-se que o Dragão, na gravura, leva a coroa e o Leão, não.
O Leão espanhol perdeu a coroa lusitana.
Na parte inferior do frontispício,
quatro imagens formam uma barra e articulam-se com a frase: REGES LUSITANI, QVIA
PELICANI; IN HOC SIGNO VICERVNT ORBEM. O texto está disposto em segmentos de forma
a corresponder às quatro imagens. Assim o escudo português relaciona-se com o segmento
REGES LVSITANI; o ninho do pelicano com os seus filhotes relaciona-se com o segmento
QVIA PELICANI; a cruz relaciona-se com o segmento IN HOC SIGNO, repetindo o signo
de Constantino e finalmente o globo terrestre relaciona-se com o segmento VICERVUNT
ORBEM.
Assim a parte inferior da
gravura apresenta um duplo discurso: um par de imagens de cariz religioso é enquadrado
por uma dupla representação do poder monárquico português. Das quatro imagens, três
são perfeitamente transparentes: o escudo, a cruz e o globo (ou esfera armilar).
Seria talvez necessário insistir sobre o pelicano com os filhotes. O pelicano é
um símbolo tradicional do Cristo para inúmeros autores durante toda a Idade Média
e a iconografia é muito frequente. Dante chama o Cristo “il nostro Pellicano” (Par.,
XXV, 112). O pelicano é aquele que alimenta os seus filhotes com o seu próprio sangue.
O que importa ressaltar é
a articulação permanente do rei português (numa série de reis, no plural) com a
figura do próprio Cristo, tema que percorre todo o volume.
Gravura nº 3, Livro I, p. 58: Retrato de D.
Afonso Henriques | A gravura tem a marca P gótico (Princeps) no canto inferior direito. O retrato
reproduz a iconografia tradicional do fundador do Reino de Portugal e apresenta
uma dupla inscrição:
a) a primeira, em maiúsculas,
na moldura que reza
HENRICUS FVNDATOR
REGNI LUSITANI
( Henrique, fundador
do reino lusitano)
b) a segunda, em cursiva,
na parte inferior, que reza:
Principium regno dando tollo mihi finem
Cum vita in regno, sit sine fine mihi
(Dando início ao
Reino, realizo o meu fim
Mas[9] a minha vida no reino
será sem fim)
Afonso Henriques, o fundador,
é representado de cabeça descoberta e armado de couraça. Leva a espada sobre a qual
pousa a mão revestida com guante de ferro. O Reino português fundou-se na luta e
conquista contra os mouros. Com longos cabelos e barba ao peito, o primeiro rei
português aparece como a origem da linhagem real. A inscrição ressalta a perenidade
da linhagem: “minha vida no reino será sem fim”. O texto veicula a ideia que a vida
do Fundador (isto é, o seu sangue e a sua ação) será sem fim porque continuará na
sequência dos reis portugueses. Veremos mais tarde de que forma, através de uma
dupla linhagem: uma masculina, outra feminina.
Do ponto de vista iconográfico,
sua espada voltada para o chão opõe-se, numa relação paradigmática, à espada erguida
de D. João I (cf. gravura nº 5). Afonso Henriques cravou no solo a espada
marcando o território lusitano; D. João I ergueu a sua salvando o Reino da
invasão espanhola. Um delimitou um espaço, o outro restaurou o Reino no século XIV.
Os dois gestos heroicos estão ligados do ponto de vista simbólico.
Gravura
nº 4, Livro I, p. 93: Visão de Ourique | A gravura, de tamanho ligeiramente
menor, representa a visão do primeiro rei de Portugal antes da batalha de Ourique.
De todas as gravuras da LL é sem dúvida
a mais ingênua do ponto de vista da composição e a mais ideologicamente marcada.
Está assinada (Drœshout ∫culp) no canto
inferior esquerdo.
Quatro textos a acompanham:
a) o primeiro, no alto da
página, glosa de certa forma o título do volume:
Ad Lusitanima liberatam
(à Lusitânia liberta)
b) o segundo identifica o
personagem ajoelhado e de mãos postas ao centro:
ALPHONSUS. HENRICVS.I.REX.
LVSIT.
(Afonso Henriques,
1º Rei da Lusitânia)
c) a frase em diagonal estabelece
a ligação entre a visão celeste e a cena terrestre, ou seja entre o Cristo crucificado
e o Rei de joelhos, súdito de Deus:
uolo in te et in semine tuo
imperium mihi stabilire
O texto em diagonal corresponde
ao discurso divino: é o próprio Cristo que assume o sentido da História de Portugal. Trata-se de uma alusão transparente à linha masculina de descendência
dos Reis de Portugal.
Olhemos
com atenção o discurso de Cristo ao rei de joelhos. Nossa primeira leitura era:
femine. Femine, aqui, seria então o ablativo da palavra femen, feminis, cujo significado é fémur,
coxa. Ou seja: quero em ti e no teu fémur estabelecer o meu império. Olhando a gravura
com mais atenção, parece-nos – a fala do Cristo passa por cima dos anjos da auréola
em torno da cruz, o que dificulta a sua leitura – que a melhor leitura é: semine.
Consideremos
por um instante as duas leituras: femine
ou semine.
O fémur é considerado
muitas vezes como o "osso do Pai". O simbolismo do osso desenvolve-se
segundo dois eixos principais: o osso é o arcabouço do corpo, seu elemento permanente;
por outro lado, o osso contém a medula, de que fala Rabelais: "la substantifique moëlle"[10] (Gargantua, de 1534). No primeiro caso, o
osso é símbolo de firmeza, de continuidade viril, de força. O Génesis nesse caso
refere-se ao osso dos meus ossos (Gên., 2, 23).
Por outro lado,
femen, feminis é também a coxa. A coxa
de Zeus, no interior da qual, segundo o mito grego, Dionísio conheceu uma segunda
gestação, foi objecto de inúmeras análises simbólicas: essa outra gestação transforma
o deus como o duas vezes nascido, saído ao mesmo tempo do corpo da sua mãe e do
seu pai. Femine tem portanto claramente
uma significação sexual e dinástica. A gravura relacionar-se-ia ainda claramente
com a gravura de n.º 6 que apresenta D. Manuel como Jessé bíblico. O projeto divino,
para Portugal, é capaz de usar ora o osso do Pai (ou seja a coxa de D. Afonso Henriques),
ora a mulher, nova Eva. Veremos mais adiante quem será essa figura – salvadora –
feminina.
Se a melhor leitura
é semine ,
o significado sexual é ainda mais claro: do sémen do primeiro rei de Portugal nascerá
uma linhagem messiânica.
Mais adiante,
quando se fizer necessário, falar-se-á da linhagem feminina tão importante na crise
de 1580. Na gravura n.º 4 que se refere aos primórdios de Portugal e aos antecedentes
de Ourique, o que importa sublinhar é a linhagem masculina da primeira dinastia.
d) o quarto é o texto da inscrição abaixo da gravura
propriamente dita:
Quid mea miratur mundus, quid facta meorum:
Non ego, non illi, sed, sibi,
Christus agit.
(Que o mundo admire
os meus feitos, quer os feitos dos meus:
Não eu, nem eles,
mas Cristo age por si mesmo).
O último texto corresponde
ao discurso atribuído à personagem: o Rei afirma que o que fez e o que fizeram ou
ainda farão os seus, foi (e será) efeito da ação divina.
A passagem retoma e glosa,
de certa forma, S. Paulo (II Cor., 4, 4-9): “Por conseguinte, se o nosso evangelho
permanece velado, está velado para aqueles que se perdem, para os incrédulos, dos
quais o deus deste mundo obscureceu a inteligência, a fim de que não vejam brilhar
a luz do evangelho da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. Não pregamos a nós
mesmos, mas a Cristo Jesus, Senhor”.
A imagem é composta por duas
cenas: uma visão celeste, no alto à esquerda e uma cena terrestre no primeiro plano
à direita. Na visão, o Cristo crucificado surge numa mandola cercado de nuvens e
de anjos. A Virgem está em destaque. Na cena terrestre, o Rei despojado de suas
armas (espada e escudo) e de seus ornatos (chapéu de plumas, "talons rouges" à francesa, gibão de
laços), de joelhos e mãos postas, vê a cena divina e ouve/recebe a
mensagem do Cristo. Observe-se o fato - curioso e deliberado - de o Rei inaugural
trajar à moda do século XVII: o anacronismo no traje reforça a identidade – desejada
- da figura do guerreiro medieval (D. Afonso Henriques) com o soberano seiscentista
(D. João IV).
A paisagem, em tonalidade
mais apagada, tem cariz simbólico: árvores à direita e ao fundo; à esquerda, um
grande mosteiro. D. Afonso Henriques aparece, em bom número de gravuras, do século
XVII e sobretudo do século XVIII, como aquele que manda construir uma igreja em
agradecimento ao milagre de Ourique.
A visão de Ourique retoma
e nacionaliza, de certa forma, a visão de Constantino. Melhor ainda: “lusitaniza”
a visão de Constantino. A tradição afirma que a Afonso Henriques, antes da batalha
de Ourique (25 de Julho de 1139), apareceu o Cristo na cruz. Não era só a vitória
que Cristo prometia ao Rei cristão; era também a proteção do Reino recém-criado,
glórias futuras, a fundação de um império. Desse modo, a independência portuguesa
assenta na vontade expressa de Deus e o povo português assume o carácter de povo
eleito.
No século XIX, Alexandre
Herculano refuta o milagre de Ourique a partir das fontes que a ele se referem[11]. É no final do século
XV, provavelmente através do relato de Vasco Fernandes de Lucena, embaixador de
D. João II junto ao papa Inocêncio VIII, que surge a primeira menção explícita ao
milagre. A aparição do Cristo passará a fazer parte integrante da História de Portugal.
Mais tarde, no século XVII,
com Bernardo de Brito, na Chronica de Cister,
a lenda ganha em precisão e prestígio. O monge cisterciense dá-lhe nova importância,
conferindo a Portugal e aos seus Reis uma missão divina.
Podemos, pois, considerar
dois momentos na “história” ou “lenda” de Ourique: sua invenção por Fernandes de
Lucena e sua reinvenção ao tempo do frade de Alcobaça. Note-se o paralelismo das
conjunturas que levaram ao seu aparecimento no século XV e a sua reinvenção no século
XVII. Em ambos os casos, num momento de crise nacional, afirma-se a autonomia de
Portugal, o carácter da sua eleição pelo próprio Cristo e a impossibilidade de sujeição
do reino lusitano a soberanos estrangeiros.
Mas o conjunto de gravuras
da LL vai mais além: mais adiante, ele
afirmará o papel fundamental da mulher no projeto divino. É da mulher, Dona Catarina,
esposa do 6º duque de Bragança, que descende o novo Rei. Como se sabe, a duquesa
D. Catarina desenvolveu grande e persistente atividade no momento da crise dinástica
de 1580 para que lhe fosse reconhecido o direito ao trono, por ser neta de D. Manuel
I. Mas só em Dezembro de 1640, seu neto D. João, 8º duque, filho do 7º duque, D.
Teodósio, é reconhecido como Rei. É esse direito ao trono que defende a LL.
A casa de Bragança sobe pois
ao trono no final de 1640 no meio de grande debate jurídico sobre quem é o Rei e
quais as suas funções. O Direito exerceu grande influência na defesa da nova dinastia.
Impunha-se demonstrar à Europa que, no momento da crise dinástica de 1580, face
aos diferentes candidatos ao trono português, a coroa devia, por “benefício da representação”,
ter cabido a Dona Catarina, duquesa de Bragança. Como filha do infante D. Duarte,
a ela pertencia com justiça o trono de D. Manuel I, levando em conta ainda que a
invasão de Filipe II de Espanha, pretendente pelo lado materno, violara os foros
autênticos do reino antes da decisão oficial. A partir desta base “ilegal”, o governo
dos três Filipes podia ser considerado ilegítimo e não aceite pela consciência dos
Portugueses. O 8º duque de Bragança limitava-se, pois, a exercer o princípio jurídico
da pertença à mais antiga casa senhorial do reino. Um grupo de jurisconsultos de
1640, como Francisco Velasco de Gouveia, António Pais Viegas, João Pinto Ribeiro
e o nosso António de Sousa de Macedo, defendia assim a tese da “restituição” da
coroa a D. João IV. Assim se justificava a designação de Restauração.
Uma segunda tese contemporânea
justificaria a Restauração por outro caminho. Baseava-se no princípio da alienação
do poder, que permitia aos povos expulsar os soberanos que desrespeitassem o pactum subiectionis, acordado com os súditos.
Deste ponto de vista, a soberania não era pertença dos reis, que apenas a exerciam
por obra de um pacto natural: detinham assim os Reis o poder in actu, enquanto o povo o recebera in habitu. A doutrina é sustentada pelo jesuíta
Francisco Suárez, o célebre Doctor eximius,
que ilustra com a sua docência a Universidade de Coimbra. Assim sucedera com os
três Reis espanhóis, o que tornava legítimo a ação do povo ao lutar e sagrar pela
força do direito natural a realeza de D. João IV.
Como o indica Joaquim Veríssimo
Serrão, no seu livro O Tempo dos Filipes em
Portugal e no Brasil (1580 - 1668)[12],
os diplomatas lusitanos tiveram que defender estes princípios nas diferentes missões
no estrangeiro. Contra a corrente espanhola que afirmava ter o duque de Bragança,
como vassalo, cometido um ato de rebeldia e de usurpação, merecedor de punição,
foi preciso sustentar a razão do movimento aclamatório, como a vontade de povos
livres que, ao longo de sessenta anos, não haviam perdido o sentimento da sua autonomia.
Um tema reiterado impõe-se
portanto em Portugal no século XVII, que se pode “semantizar” como profecia, oráculo
ou promessa. O tema foi glosado de diferentes modos. Em 1641, António Pais Viegas
descreve-o assim:
Este foy aquelle venturoso a
quien Cristo baixando del Cielo dio le investidura y corona de um reyno, que dixo
escogia para si quando le hablo en la Cruz, honrandole desta manera darle tal Reyno[13].
No momento inicial, é o sémen
do Pai ou o osso do Pai (o fémur, a coxa) que propiciará a linhagem da primeira
dinastia. Resta-nos considerar mais adiante o papel da mulher no projeto divino.
Como D. João IV descende de D. Manuel I pelo lado feminino, será necessário exaltar
o papel da mulher.
Uma iconografia corrente
na época implica numa paráfrase indireta ao papel de Maria, como nova Eva, na ordem
da Salvação. O mesmo tema reaparecerá, mais tarde, de forma paralela, na oratória
do Padre António Vieira quando se trata de justificar a substituição de Afonso VI
pelo seu irmão D. Pedro e o casamento deste com Dona Maria Francisca Isabel.
Essa concepção da História
vista como um projeto divino marca todo o século XVII português: ela reaparece de
forma transparente na LL nas gravuras
sobre os reis que precedem D. João IV.
O génio de Fernando Pessoa,
em A Mensagem (publicado pela primeira
vez em 1934), foi, entre outras coisas, dar forma poética a tal ação subterrânea.
O fato é facilmente apreendido na apresentação sintética do antepassado do Fundador
(ou seja o pai do pai):
O conde D. Henrique
Todo começo é involuntário.
Deus é o agente.
O herói a si assiste, vário
E inconsciente.
À espada em tuas mãos achada
Teu olhar desce.
"Que farei eu com esta
espada?"
Ergueste-a, e fez-se.[14]
Assim, a força do herói,
instrumento de Deus, nasce do seu abandono confiante à vontade divina. Esta age,
apesar do herói e também graças ao herói. O objecto mágico (= a espada) aparece-lhe
nas mãos e o homem aceita ser o instrumento do verdadeiro agente superior.
A mesma concepção da ação
reaparece em outras gravuras da série.
Gravura nº 5, Livro I, p. 143: Retrato de
D. João I | Gravura pouco conhecida, não reproduzida em estudos recentes.
O Rei português é representado
com couraça completa e capacete, a espada nua erguida. Corresponde à mudança, ocorrida
na crise do século XIV, da primeira para a segunda dinastia: o Mestre de Avis torna-se
D. João I.
Os reis combatentes até agora
apresentavam-se de couraça e cabeça nua. Era o caso de D. João IV e de D. Afonso
Henriques. O primeiro não levava espada, o segundo tem a sua apontada para a terra.
O Rei aqui está armado dos pés (que não vemos) à cabeça e tem a coroa na espada
erguida. A espada é o seu cetro. De forma reveladora, as insígnias reais estão todas
presentes: a coroa, a espada-cetro-mão de justiça, o brasão de quinas sobre o escudo.
A gravura apresenta três
inscrições latinas:
a) uma no alto da página
Sou∫æ Prœmium II
(Proémio de Sousa)
b) a segunda, em cima da
imagem propriamente dita, identifica o personagem representado:
IOANNIS. I. REX.
X. LVSITANIÆ
(João I, Décimo Rei
da Lusitânia)
c) a terceira é o dístico
inferior:
Non minor est virtus, quam quærere parta tueri;
Ergo par cunctis, laudibus, unus ero.
(Não é menor virtude
contemplar do que buscar sua parte da herança
Assim eu, um só,
receberei igualmente ambos os louvores)
Na LL, a mudança de dinastia alicerçada em e por Aljubarrota não podia
faltar. A batalha, tornada mítica, decorreu no final da tarde de 14 de Agosto de
1385, entre dois exércitos reais: as tropas portuguesas com aliados ingleses, comandadas
por D. João I de Portugal e o seu condestável, Nuno Álvares Pereira, e o exército
espanhol e seus aliados comandados por D. Juan I de Castela. O encontro deu-se nas
imediações da vila de Aljubarrota, entre as localidades de Leiria e Alcobaça, na
região central de Portugal. Seu resultado: a derrota dos espanhóis[15], a resolução da crise dinástica de 1383-1385
e a consolidação de D. João I como rei de Portugal,
o primeiro da nova dinastia de Avis.
A aliança
com a Inglaterra sai reforçada dessa batalha e seria confirmada no ano seguinte,
com
a assinatura do Tratado de Windsor
e o casamento do rei D. João I com D. Filipa de Lencastre,
a mãe dos príncipes da “ínclita geração”
cantada por Camões (Lus., IV, 50).
Em agradecimento à vitória de Aljubarrota, D.
João I mandou erguer o Mosteiro da Batalha.
A paz com Castela só viria a estabelecer-se em 1411 com o Tratado de Ayllón,
ratificado em 1423. Aljubarrota fornecia assim ao autor da LL um
conjunto de paralelos a ser desenvolvidos mais tarde: a resolução de uma crise dinástica,
a escolha do pretendente oriundo da terra lusitana, a recusa da intervenção estrangeira
e da tentação de união com Espanha. D. João I é ao mesmo tempo o que procurou a
sua herança e a contempla, deixando-se contemplar no espelho do olhar dos seus súbditos.
A gravura tem fundo neutro.
Leva a marca P gótico no canto inferior esquerdo.
Gravura nº 6, Livro I, p. 165: A árvore genealógica
dos descendentes de D. Manuel | Imagem pouco conhecida e ainda não analisada
mas que serve de modelo a várias outras do mesmo período.
Gravura sobretudo fundamental
para se entender as relações dos pretendentes ao trono português no momento da crise
dinástica de 1580. A representação do Rei português toma de empréstimo o modelo
iconográfico da árvore de Jessé, antepassado humano do Cristo.
D. Manuel I, coroa à cabeça
e o manto de arminho, apresenta-se deitado por terra. Um braço dobrado sustenta-lhe
a cabeça. Do seu baixo ventre e próxima à coxa, ergue-se a árvore dos seus descendentes,
todos coroados e nomeados. Uns levam a coroa ducal, outros a coroa real. Cada descendente
leva uma cartela que o identifica: de forma para nós, hoje, talvez paradoxal, os
nomes masculinos inscrevem-se num círculo e os nomes femininos, num losango.
A função do texto aqui é
particularmente importante, sobretudo didática.
A legenda abaixo reza:
Mascule dum fuerit, seruat me, linea, viuum;
Subsidium extinetæ, fœmina, prolis, erit.
(Enquanto foi viva
a linha masculina serviu-me;
Extinta, será subsídio
meu, a feminina)
As pequenas legendas, lidas
de baixo para cima e da esquerda para a direita, indicam sucessivamente a descendência
do Rei:
a) na base da árvore: Manuel,
14º Rei da Lusitânia
b) na primeira linha: Beatriz,
duquesa de Sabóia; a Imperatriz Isabel, esposa de Carlos V de Espanha; João III,
15º Rei da Lusitânia; Luís, duque de Beja; o Cardeal D. Henrique, 17º rei da Lusitânia;
Eduardo, Duque de Guimarães, todos já mortos;
c) na segunda linha, temos:
Manuel Felisberto, duque de Sabóia (pretendente italiano); Filipe II, rei de Castela
(pretendente espanhol); D. João, príncipe de Lusitânia (já morto); António, prior
do Crato (pretendente português); D. Maria, duquesa de Parma (já morta) e D. Catarina,
duquesa de Bragança (pretendente portuguesa);
d) no alto: D. Sebastião,
16º rei da Lusitânia (já morto) e Rainulfo, duque de Parma (pretendente italiano).
A árvore permite ainda ao
leitor atento à sucessão dos reis portugueses, perceber a sequência que vai do 14º
ao 17º soberano: D. Manuel; seu filho, D. João III; seu bisneto, D. Sebastião uma
vez que o seu pai, o infante D. João (1537 - 1554), morre pouco antes do seu nascimento;
o Cardeal D. Henrique.
O texto latino retoma uma
vez mais a argumentação de exaltação da linha feminina quando se extingue a linha
masculina. O simbolismo aqui confirma a ideia de que uma figura feminina foi - e
continua a ser - necessária à Salvação. Da mesma forma que, do ponto de vista teológico,
Maria é a nova Eva porque permitiu o nascimento do novo Adão, isto é, o Cristo,
do ponto de vista político, D. Catarina de Bragança “salvou” Portugal, assegurando
o direito da linhagem da terra.
Relacionar a árvore de D.
Manuel com o tema de Jessé é esclarecedor. O tema iconográfico é importante em toda
a Europa entre o século XII e XVI, da Roménia a Portugal, passando pela Inglaterra,
França, Países Baixos, Itália, Espanha. Para os artistas, trata-se de reunir, numa
única imagem, os antepassados humanos do Cristo. Jessé é o pai de David, a cuja
linhagem pertence o Messias e corresponde às duas genealogias evangélicas de Mateus
e Lucas.
O público português conhece
em especial as esculturas nas igrejas franciscanas das cidades do Porto (Igreja
da Venerável Ordem Terceira) e de Guimarães (Igreja de S. Francisco). Apresentar,
na LL, o mesmo esquema iconográfico de
um antepassado deitado sobre a terra e sua descendência é reforçar o paralelismo
Cristo/Rei português e a continuação da função messiânica graças à nova casa reinante
portuguesa.
Como se sabe, a genealogia
no AT faz-se sempre pelos homens. Jesus, por José, faz parte da linhagem de David.
Os Evangelhos canônicos apresentam duas genealogias do Cristo: a de Mateus (1, 1-17)
e a de Lucas (3, 23-38).
A primeira, embora em três
passos sublinhe influências estrangeiras pelo lado feminino (Tamar, Raab, Rute),
limita-se à ascendência viril israelita de Jesus, destacando seus antepassados em
três séries de duas vezes sete nomes e terminando pelo versículo 17: “Portanto,
o total de gerações é: de Abraão até David, catorze gerações; de David até o exílio
na Babilônia, catorze gerações; e do exílio na Babilônia até o Cristo, catorze gerações”.
Enquanto a genealogia de
Mateus desce o rio do tempo, de Abraão a Jesus, a de Lucas (3, 23-38), mais
universalista, remonta de Jesus a Adão, fonte de toda a humanidade; ela começa assim:
“Ao iniciar o ministério, Jesus tinha mais ou menos trinta anos e era, conforme
se supunha, filho de José, filho de Eli, filho de Matat...”
As duas listas de ancestrais
do homem Jesus de Nazaré - cuja não-coincidência total não cabe aqui analisar -
tem José como fim (genealogia de Mateus que desce o rio do tempo)
ou como início (genealogia de Lucas que sobe o rio do tempo) mas,
em ambas, ele é apenas, do ponto de vista teológico cristão, o pai legal de Jesus:
“a razão está em que, aos olhos dos antigos, a paternidade legal (por adoção, levirato
etc.) basta para conferir todos os direitos hereditários, aqui os de linhagem davídica”.
“Naturalmente”, continua a nota que transcrevemos da Bíblia de Jerusalém[16], “não se está excluindo
a possibilidade de Maria também ter pertencido a essa linhagem, embora os evangelistas
não o afirmem”. Ora, é exatamente essa inserção da Virgem Maria, na linhagem de
David, que será explicitada pelos Evangelhos apócrifos e por toda uma longa elaboração
mítica.
Lembremos que a linhagem
de David é transposta, plasticamente, no tema iconográfico da árvore de Jessé.
Esta, do ponto de vista plástico, compõe-se de três elementos:
a) a raiz, isto é,
Jessé reclinado ou deitado sobre a terra, do qual nasce a árvore[17];
b) o tronco ramificado
cujos ramos carregam os reis e os profetas, antepassados de Jesus e
c) a flor que, inicialmente,
será o Menino Jesus e depois, sua Mãe, a Virgem.
Segundo Louis Réau[18], a partir do século
XVI, todas as árvores de Jessé tornam-se árvores genealógicas da Virgem[19].
A exaltação da Virgem está
estreitamente ligada ao desenvolvimento, a partir do século XIII, do culto marial.
Assim, a árvore de Jessé, imagem plástica da linhagem dos Reis de Judá de onde surge
o grande lírio branco da Virgem sem mancha, torna-se um dos símbolos mais constantes
da Imaculada Conceição, tema extremamente popular, do ponto de vista da arte ocidental,
até às vésperas da Reforma.
O tema feminino aparece igualmente
na árvore de D. Manuel I. É pela linhagem feminina que se assenta o direito dos
Bragança ao trono português.
A gravura do Livro II | O Livro II da LL
abre com a imagem do renascer de Portugal.
Gravura nº 7, Livro II, p.[2]: A Fénix renascida
| Imagem
pouco conhecida, ainda não analisada em estudos sobre o século XVII.
A gravura representa a Fénix
que renasce da fogueira sobre um monte de pedras e no meio das chamas. No canto
inferior esquerdo, aparece a assinatura John
Drœeshout ∫cu∫p.
Uma bandeirola acima da sua
cabeça leva a inscrição:
Ad Solem Justitiæ.
(Ao Sol da Justiça).
Na parte inferior, aparece
o dístico:
Mortalis moriar; sed, quo mihi vita perennis,
Ecinere insurgam morte redempta mea.
(Por ser mortal,
morrerei; mas por aquele que é para mim vida perene
Ressurgirei das cinzas
redimido da minha morte)
O pássaro Fénix, segundo
os relatos de Heródoto ou de Plutarco, é um animal mítico, de origem etíope. De
extraordinário esplendor, dotado de grande longevidade, tem o poder de renascer
das suas próprias cinzas. Quando chega a hora da sua morte, constrói para si um
leito de galhos perfumados e se consome no seu próprio calor. Os significados simbólicos
aparecem claramente: ressurreição e imortalidade, ressurgência cíclica, triunfo
sobre a morte.
Na LL, a Fénix representa a continuidade da linhagem real portuguesa identificada
à própria terra.
A imagem tem ao centro um
monte de pedras sobre o qual arde o fogo onde se imola e renasce a Fénix. Esta mira
o Sol no alto à direita: os seus raios incidem diretamente sobre o pássaro renascido.
Ao longe, dos dois lados, estende-se uma paisagem ampla de florestas e montes.
Na gravura, o Sol, representado
com rosto humano, é uma manifestação da divindade. Trata-se, por outras palavras,
de uma epifania uraniana (de Urano) em que o poder divino e real identificam-se
um ao outro.
O Sol como símbolo real e
divino justifica-se porque o Sol não tem igual (Sol quia solis). A imagem lembra aos contemporâneos a supremacia do
Sol entre os astros: tal como o príncipe está acima de todos (= seus súditos), o
príncipe aproxima-se de Deus.
O estudo de Ilda Maria Assunção
e Silva Soares de Abreu[20] sobre o simbolismo
e ideário político seiscentistas mostra a frequência com que é dada ao Rei o estatuto
de Sol e aos seus conselheiros o estatuto de Lua. O fato é corrente não só em Portugal,
em Espanha, como em França evidentemente.
Por outro lado, a Fénix como
símbolo de Majestade permite expressar a continuidade dos soberanos passados, presentes
e futuros. A Fénix que morre e ressuscita representa o Rei morto e o seu sucessor,
o Rei vivo.
As gravuras do Livro III | As gravuras do Livro
III dizem todas respeito, direta ou indiretamente, à nova dinastia dos Bragança
e colocam a independência restaurada do reino de Portugal sob diferentes focos.
Gravura nº 8, Livro III, p. [2]: O dragão
de Bragança ao pé da árvore | Talvez a mais bela (e obscura) gravura da
série. Ainda não reproduzida em nenhum estudo, ao que sabemos. Sem texto na parte
superior, leva apenas a inscrição:
In tempus, vigilo, simulans dormire; neg ullum
Iam timeo Alcidem, Lysius arma colens.
(Até o fim dos tempos,
alerta vigio, parecendo dormir;
Já não temo Alcides
nenhum: Lísio empunha as armas)
Ou seja: Como Lísio, em armas,
já não temo nenhum Alcides.
Vários arquétipos aqui se
unem: a lembrança da árvore de Jessé que assegura a permanência da linhagem dos
reis portugueses; a árvore do jardim das Hespérides com seus pomos dourados; o dragão
ctônico (oriundo da terra) protegendo a promessa de flores e frutos de Portugal.
Observe-se que, nessa gravura,
o dragão não tem asas e parece um enorme sáurio. O texto refere-se a duas figuras,
Alcides e Lisius, como antepassados míticos, respectivamente da Espanha e de Portugal.
Como lembra certamente o
leitor, Luso aparece várias vezes nos Lusíadas
(I, 39; III, 21; VIII, 2): é o filho e/ou companheiro de Baco que, segundo Camões,
fixou-se em Portugal. Os eruditos da Renascença relacionavam esse nome com Lusitânia.
O geógrafo latino Plínio fala de um filho de Baco chamado Lysias ou Lysa e o y dito
grego é transcrito em latim ora como i, ora como u. O próprio Camões faz alusão
à dupla grafia:
Esta
foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lysa, que de Baco
antigo
Filhos foram, parece, ou
companheiros,
E nela estão os íncolas primeiros.
(Lus., III, 21)
Por outro lado, Alcides é
um dos nomes de Hércules, descendente de Alceu. Camões assim se refere ao herói
em diferentes passos do seu poema: III, 137; IV, 49, 80; IX, 57. Os soberanos espanhóis
se apresentavam como descendentes de Hércules: esse antepassado mítico explica,
por exemplo, a série de telas de Zurbarán sobre os feitos de Hércules no grande
Salón de los Reinos, criado por Velázquez
em 1635.
Assim: por temor de Alcides,
ou seja, da invasão espanhola, Luso, identificado com o dragão da casa bragantina,
vigia sem dormir, defendendo a árvore da terra.
Deitado ao pé da árvore central,
como um anel protetor, o dragão lembra vagamente um ouroboros (cf. o ouroboros
que circunda o retrato do novo rei na gravura 1). A árvore apresenta-se vicejante
com folhagem e frutos. À direita, no segundo plano, uma outra árvore esgalhada e
seca ergue-se: sugere a linhagem de D. Manuel interrompida ou a morte simbólica
da linhagem dos Filipes em terras portuguesas.
A enxertia real viceja na
nova árvore. A paisagem de terra fértil lembra que o corpo do rei é o corpo da terra.
No universo tradicional, a saúde do rei é a saúde da terra e dos produtos da terra.
Um mau rei, ou um rei não legítimo, provoca a esterilidade da terra. Por outro lado,
a continuidade do sangue real permite compreender a frase tradicional “O rei está
morto, viva o rei”.
A oposição Alcides vs Lísio
presente no texto latino reaparece na oposição das árvores seca vs viva. Veja-se
sobretudo a importância do arquétipo da árvore nessa gravura. Para a árvore, Mircea
Eliade sugere sete interpretações no seu texto clássico Traité de l'Histoire des religions[21]:
elas se articulam todas em torno da ideia do Cosmos vivo em perpétua regeneração.
A árvore põe em contacto os três níveis do cosmos: o subterrâneo pelas raízes que
serpenteiam no solo, aprofundando-se; a superfície da terra pelo seu tronco e seus
primeiros ramos; as alturas, pelos ramos superiores e o seu cimo que se ergue em
direcção à luz do sol.
Essa árvore teve o seu cimo
cortado, símbolo das perdas sofridas e a sofrer durante a guerra com Espanha mas
o tronco mantém-se forte e verdejante. A árvore do dragão é uma árvore cósmica e
de vida, eixo do reino de Portugal. O dragão é o seu guardião.
Gravura nº 9, Livro III, cap. 3, p. 560: Coroação
de D. João IV | A gravura apresenta três legendas, sucessivamente,
de alto para baixo:
a) no alto a identificação
do personagem representado:
IOANNES IV. REX LVSITANIÆ
XVIII.
O número final corresponde
à sequência dos Reis de Portugal, de D. Afonso Henriques, incluindo os reis da crise
dinástica, o rei Cardeal e os três Filipes. Isso significa que a LL não corta os Filipes, como o fará, por
exemplo, o programa iconográfico da Galeria dos Reis de Portugal no Palácio Fronteira,
também do século XVII.
b) no dossel acima do trono,
o texto da inscrição refere-se aos dois putti que se abraçam e beijam sobre nuvens
e acima das armas de Portugal:
Justitia, et pax osculatæ sunt.
(A Justiça e a Paz
se abraçam)
c) sob o dossel, duas figuras
femininas identificadas como a Justiça e a Paz, à esquerda e à direita, erguem a
coroa sobre a cabeça do novo Rei. Este, sentado no trono e revestido com o seu manto,
ergue a mão de justiça. As duas figuras ostentam os seus atributos tradicionais:
a Justiça, a espada e a balança; a Paz, um ramo de oliveira.
Ao pé da gravura, um dístico:
Non Bellona ferox, sed te Pax
alma coronat;
Iustitiam melius pax comitare solet.
(Não a feroz Belona,
mas a santa Paz te coroa;
a Paz costuma acompanhar
melhor a Justiça)
Traduziu-se Pax alma por santa, uma vez que na liturgia
diz-se, numa das antífonas de N. Sra., “Alma
redemptoris mater”, confirmando que alma
, no caso, é adjetivo.
Minha amiga Maria Helena Kopschitz me fêz observar
que o texto colocado acima das armas de Portugal retoma ipsis litteris um versículo 11 do Salmo 84 (85):
Misericordia et veritas obviaverunt sibi;
Iustitia et pax osculatae sunt.
Na Vulgata, o Salmo 84 (85), tem a epígrafe: "Propinqua est salus nostra", que a tradução
de Matos Soares verte como: Oração pelo restabelecimento completo de Israel.
A utilização desse versículo
confirma uma vez mais a cultura clássica e teológica do autor, que articula Israel
e Portugal. Assim, o domínio espanhol em Portugal corresponde simbolicamente ao
tempo do exílio e cativeiro (seja em Babilônia, seja no Egito para o povo judeiu).
Belona é a deusa romana da
guerra, figura durante muito tempo indefinida, identificada aos poucos com a deusa
grega Enyô. Passa às vezes por ser a esposa de Marte. Opõe-se evidentemente à Paz.
E esta acompanha a Justiça.
Na LL, trata-se do segundo retrato do Rei D. João IV: retrato não mais
de pretendente ao trono ou combatente, mas de aparato, sentado ao trono com as insígnias
do poder, que lhe pertence por direito.
Gravura nº 10, Livro III, cap. 9, p. 650:
Triunfo de D. João IV | A gravura apresenta-se dividida em três faixas:
a) a faixa superior, mais
larga, apresenta um cavaleiro (D. João IV) sobre um cavalo na posição dita en courbette, chapéu de plumas à cabeça,
bastão de comando numa das mãos sobre um fundo de batalha. A figura lembra os cavaleiros
do grande lago de Fronteira[22] e evidentemente os
retratos equestres de Velázquez do Museu do Prado.
Leva uma inscrição na parte
superior:
CAPVT IX.
Belli eventus Lu∫itanorum victoriæ ad-
ver∫us Ca∫tellanos.
b) a faixa intermédia é constituída
por grande natureza morta representando as armas e a bandeiras vitoriosas dos Portugueses:
tem ao centro o escudo português ladeado por dois putti, conjunto encimado pela
coroa do reino.
c) a faixa inferior, mais
estreita, leva a inscrição latina:
Nil mirum in te ius, nil
mirum in iure triumphes
Nec melior, lux huic, nec tibi causa foret.
(Não admira em ti
o direito, nem que pelo direito triunfes:
Não haveria para
este melhor luz, nem para ti melhor causa)
A identificação do cavaleiro
como D. João IV coloca alguns problemas. Essa identificação, de certa forma, foi
sugerida pela descrição da LL feita por
Júlio Caio Velloso no volume da Misericórdia, que transcrevemos na nossa introdução.
Na descrição erudita e extremamente precisa, o título dado à gravura guia-se pelo
texto e não pela imagem propriamente dita. Como muitas vezes acontece, a imagem
é no entretanto mais polissémica do que o texto: este faz da imagem uma leitura
redutora indicando ao espectador a significação posta em primeiro plano.
Se adoptarmos o título proposto
"Triunfo de D. João IV", é preciso compreender o que a palavra “triunfo”
significa exatamente. Note-se que o duque de Bragança não tomou parte pessoalmente,
nem como combatente nem como comandante, das batalhas da Restauração. Desse ponto
de vista, ele difere de Afonso Henriques e de D. João I, anteriormente representados
nas gravuras, já analisadas, sobre Ourique e Aljubarrota. O primeiro e o décimo
Rei de Portugal são soberanos combatentes que alcançam e confirmam o trono que ocupam,
espada na mão. Portanto, o retrato equestre de D. João IV não é um retrato feito
após-batalha mas uma cena simbólica em que o cavalo funciona como uma espécie de
trono móvel, como bem analisou Julián Gállego[23] para Filipe IV de Espanha.
A vitória do rei português nasce, não de uma guerra vitoriosa, mas do seu direito
e do direito das suas gentes, argumento de peso para um jurista, evidentemente:
“não admira em ti o direito, nem que pelo direito triunfes”.
Voltando à imagem, vemos
que ela se compõe de duas cenas justapostas verticalmente:
a) o retrato equestre sobre
um fundo de batalha com a arremetida final vitoriosa de cavaleiros e infantes, tendo
no horizonte uma cidade fortificada e
b) o arranjo com as armas
em torno da coroa e do escudo de Portugal.
Gravura nº 11, Livro III, Apêndice, p. 708:
O dragão e a esfera armilar | Belíssima gravura
reproduzida na revista Oceanos[24],
à página 146, com o título “Os astros auguram bons sucessos ao Portugal restaurado”.
Representa o dragão da Casa
de Bragança sobre a esfera armilar. O animal fabuloso é visto de perfil e tem acima
da cabeça a coroa de louros da vitória. A esfera representa de forma significativa
várias constelações: Draco (o dragão)
na parte superior e na parte inferior, a Fénix. A linha inclinada passa pelas constelações
de Cetus (a Baleia), de Leo (o Leão) e da Lyra (Lira).
Na parte superior uma primeira
inscrição em maiúsculas reza: DOMINABITUR ASTRIS (é dominado pelos astros). O que
implica afirmar que o sucesso português estava escrito nos astros, faz parte do
Fatum.
Abaixo da gravura, um dístico
latino completa o sentido do decreto astrológico:
Iam sibi Lusyadum curpiunt caput, astra, Draconem;
Quod decreverunt Numina sacra Poli.
(Os astros já escolheram
a cabeça dos Lusíadas, o Dragão
O que decretaram
os numes sagrados para a cidade)
Na tradução da passagem,
o verbo curpiunt levanta problema, uma
vez que não aparece registado em dicionários. O sentido, no entanto, é claro.
Imagem e textos preparam
o leitor para o Apêndice da LL, todo ele
centrado sobre as profecias que anunciam o Desejado e/ou Restaurador. Um breve olhar
sobre a página da direita confirma a ligação deliberada entre o profetismo e a subida
ao trono da Casa de Bragança. O primeiro capítulo do Apêndice ostenta o título revelador:
CAPUT I.
Prophetiæ, ac notabilia de Lu∫itaniæ eventibus jam
vi
∫is in ejus oppre∫∫ione,
ac obtenta
libertate.
O projeto divino presente
na gravura da visão de Ourique completa-se aqui com a escrita inelutável dos astros.
Não deixa de ser interessante ver como a ideologia da LL utiliza diferentes discursos
e argumentos: promessa antiga que vem de Ourique, em que se insere agora uma palavra
sobre a função da mulher na transmissão da coroa; profetismo e volta do Desejado;
crença na astrologia. O destino de Lisius
(ou dos Lusos) é o destino do Dragão.
As demais constelações (Fenix, Cetus, Leo e Lyra) têm igualmente carga simbólica. Em dois casos a conotação é redundante
pois retoma de certa forma outras gravuras da série. Fénix está liga da à ressurreição
e retoma a gravura nº 7. Leo se refere,
uma vez mais, ao símbolo dos Habsburgos espanhóis (cf. gravura nº 1). Duas outras
constelações (Cetus e Lira) merecem que
se aprofunde o seu significado oculto.
Cetus é a Baleia. Seu simbolismo remete ao mesmo
tempo à “Boca de sombra” (ou seja ao discurso profético obscuro) e ao peixe. Na
Índia, Vishnou no seu avatar de peixe guia a arca sobre as águas do dilúvio. No
mito bíblico de Jonas, a baleia é a própria arca: a entrada de Jonas na baleia é
a entrada no período de obscuridade e morte iniciática. Sua saída é a ressurreição,
a nova vida, como o mostra ao mesmo tempo a tradição islâmica e a Cabala. Com efeito,
como o indica Chevalier, no seu Dictionnaire
des symboles, nûn, vigésima nona letra
do alfabeto árabe significa também peixe, e em particular baleia. Na Cabala, a ideia
de novo nascimento, no sentido espiritual, prende-se a essa letra nûn. O período na Baleia corresponde ainda,
de certa forma, ao cativeiro ou exílio em terra da Babilônia ou do Egito.
A Lira, inventada por Hermes
ou por uma das nove Musas, é o instrumento de Apolo e de Orfeu. Mais geralmente,
ela é o símbolo e o instrumento da harmonia cósmica.
Considerando as constelações
tal como aparecem na esfera armilar, vemos que Draco opõe-se a Fénix, símbolo que se reitera de ressurreição. Na linha
diagonal o Dragão subiu à parte superior passando pela morte iniciática (a Baleia),
venceu o Leão (de Castela) e atingiu à harmonia (Lyra).
A esfera armilar constitui
um símbolo claramente português ligada à experiência do mar e da navegação. Ela
permite que o navegante, guiando-se pelas estrelas, trace a sua rota.
Na verdade, essa gravura
pode ser relacionada como uma outra, praticamente do mesmo período, pertencente
ao volume Philippus prudens, da autoria
de Juan Caramuel y Lobkowitz, publicada
em Antuérpia em 1639. O frontispício dessa obra, citada aliás por António de Silva
de Macedo na LL, apresenta a reunião das
duas coroas como a vitória do Leão sobre o Dragão numa determinada conjunção astrológica[25].
A folha de rosto do volume Philippus prudens poderia ser articulada
igualmente com a folha de rosto da LL,
uma vez que apresenta a luta entre o Leão e o Dragão. No volume português, o Dragão
vence o Leão; no texto espanhol, o Leão vence o Dragão.
Só a título de comparação, veja-se como se posicionam
os astros em 1580:
Qualificado como “tema cosmológico”
essa folha de rosto de Erasmus Quellin[26]
resume numa complicada alegoria a conquista de Portugal por felipe II em 1580.
O leão coroado e armado com
uma espada representa castela porque este é o timbre ou cimeira do seu escudo, assim
como o dragão coroava as armas portuguesas. Os cículos que se entrecruzam representam
aórbita da lua e a eclíptica. O ponto em que se encontram é conhecido como “caput
draconis” ou como “caiuda dargonis”: é o ponto em que se produzem os eclipses. Como
se vê, situa-se sobre a cabeça do dragão. O leão ocupa a zona do círculo zodiacal
reservada a Virgo, uma vez que a precessão equinocial havia acabado com a correspondência
entre os signos e as constelações.
O monstro assenta-se sobre
umas esferas que representam o sistema de orbes da Lua Segundo a tese de Ptolomeu.
As quinas portuguesas aparecem, não em escudetes, mas em lúnulas, simbolizando os
reis mouros derrotados na batalha de Ourique.
A interpretação é a seguinte:
Portugal nasce na batalha de Ourique e toma como armas as luas dos mulçumanos vencidos.
É portanto, a lua. Pois bem, a lua portuguesa é eclipsada pelo leão castelhano,
uma vez que o leão é a casa do sol. Deve-se indicar que as contselações do Leão
e da Hidra se situam na esfera celeste de forma semelhante à do gravura, se bem
que forma invertida. Esssa estranha alegoria se explica pela coincid~encia do eclipse
lunar de 31 de Janeiro de 1580, dia da morte do rei português que antecedeu a Felipe
II, o Cardeal D. Henrique.
Gravura nº 12, Livro III, Apêndice, p. 764 : O escudo
das armas reais de Portugal | Duas figuras de anjos ladeiam o escudo português
encimado por um capacete militar coroado, tendo por trás o dragão da Casa de Bragança
de grandes asas abertas. A legenda latina reza:
Lusiadum Regnum cujus vide stemmata Christi,
Mittit enim rebus Stemmata quisque suis.
(Vê o Reino dos Lusíadas
com os estigmas de Cristo
Assim leve cada um
os estigmas do que é seu)
Na página à direita o Capítulo
III do Apêndice anuncia:
CAPUT III
Stemma Lu∫itani Scuti declaratur.
O texto da inscrição merece
certo desenvolvimento. Ele incita o espectador a contemplar o escudo português como
objecto sagrado pelas suas marcas (ou estigmas).
As armas do rei de Portugal
são descritas, do ponto de vista estrito da heráldica, por Anselmo Braamcap Freire
da seguinte maneira:
De prata, cinco escudetes de azul, postos em cruz
e carregados cada um de cinco besantes do campo; bordadura de vermelho carregada
de sete castelos de oiro. Coroa de florões fechada de dois meios círculos. Timbre:
serpe alada, nascente, de oiro. Não tem letreiro. Vol. I, p. 32)
Assim, tecnicamente, na heráldica,
não se faz qualquer alusão a estigmas.
No entanto, a ideia difundida
pelo ensino, até muito recentemente, de que o escudo português carrega as cinco
chagas do Cristo, vem do facto de que os besantes de campo são vistos como representações
das chagas, ideia que sacraliza o país (e o Rei). Essa ideia está já presente na
inscrição latina da LL através do emprego
reiterado do sintagma “stemmata Christi”.
Assim, aconselha a inscrição latina, “leve cada um os estigmas do que é seu”. À
identidade Portugal=Israel já anteriormente analisada, sobrepõe-se uma outra em
que o corpo de Portugal existe simbolicamente à imagem do corpo de Cristo e o povo
português torna-se o povo eleito, ungido como o do Cristo e messiânico por excelência
no concerto das nações.
Mais ainda: como cada uma
das quinas (ou escudetes) leva cinco chagas (ou besantes), temos cinco vezes cinco
chagas. É o cinco elevado ao quadrado. Graficamente, o cinco se multiplica na disposição
dos escudetes em cruz com um ao centro, cada escudete levando, repetimos, cinco
besantes.
O número cinco tira o seu
simbolismo do facto de ser, por um lado, a soma do primeiro número par e do primeiro
número ímpar ( 2+3) e, por outro lado, o meio dos nove primeiros números. É signo
de união, número nupcial diziam os Pitagóricos; número do centro, da harmonia e
do equilíbrio. As cinco chagas do Cristo sacraliza o ensino clássico e o difunde
em todo o Ocidente cristão. A harmonia pentagonal dos Pitagóricos deixa a sua marca
na arquitetura das catedrais medievais. A estrela de cinco pontas, a flor de cinco
pétalas é colocada, no simbolismo hermético, no centro da cruz dos quatro elementos:
é a quinta-essência.
Os dois anjos laterais justificam-se
do ponto de vista teológico: eles ladeiam uma representação metafórica do corpo
de Cristo que é o corpo de Portugal. A Restauração de 1640 retoma e confirma a disposição
do escudo português na charola de Tomar. A recente exposição realizada no Palácio
da Ajuda, depois do restauro das esculturas, sob o nome de “A luz que vem do Norte”,
mostra claramente a continuidade da velha tradição portuguesa da sacralidade do
escudo nacional. Já em Tomar, no século XVI, o escudo das cinco quinas ergue-se
no centro de dois anjos.
Gravura nº 13, Livro III, Apêndice, p. 792
: Figura alegórica | Talvez a mais importante das gravuras da LL, ainda não analisada em estudos sobre
o século XVII. Faz parte do apêndice do volume e introduz a Peroratio da LL. Nela a figura tradicional da Fortuna torna-se a Fama, que exalta
o novo monarca português. Uma figura feminina alada, vista de perfil, empunha a
trombeta . Ela tem o pé sobre uma esfera no ápice de uma pirâmide coberta de inscrições
em duas das suas faces.
No ápice da pirâmide, está
a dedicatória ao novo Rei: IOANNI IV.
Na face frontal da pirâmide
encontra-se a seguinte inscrição:
MAG
NANI
MO, PIO
INCLYTO,
FELICI,
VICTORI,
TRIVMPHATO-
RI CASTELLA
NORVM, LIBE-
RATORI PATRIÆ,
SEMPER AVGVSTO.
LVSITANIA SVA
ÆTERNITATEM
V.
Anno Christianæ salutis
1644
Lusitanæ Libertatis
4
FORTITVDINE AC PRVDENTIA
Na face à direita da pirâmide,
em escorso, lê-se:
DI
LE
TVS
DEO
ET HO-
MINI-
BVS, CV
IVS ME-
MORIA
IN BENE-
DICTIONE
DICTIONE
EST
Ao pé da gravura uma última
inscrição refere-se ao monumento erguido (na gravura e no livro, pela imagem e pelo
texto) ao novo Rei a quem o autor se dirige directamente expressando-lhe o sentimento
que leva no coração:
Quæ tibi per fora, fœlix Rex, monimenta leuamus,
Cordibus in nostris non peritura leuas.
(Os louvores que
te erguemos pelas praças, ó Rei feliz,
Tu os constróis imperecíveis
nos nossos corações)
Essa gravura, sem marca,
retoma e concentra vários temas:
a) o escudo de Portugal impresso
no pano que pende da trombeta da Fama;
b) a presença alternada dos
animais simbólicos já conhecidos e que sustentam a pirâmide em honra a D. João IV:
o Leão espanhol e o Dragão português;
c) a evocação de um espaço
urbano de tipo italiano: no alto do palácio identificam-se uma série de personagens
alegóricos (S. Miguel; Hércules coberto com a pele do leão de Neméia e com a maça;
etc.) assim como a figura da Justiça no alto da coluna.
Pelos menos dois elementos
arquitectónicos, presentes na gravura, enfatizam o elã ascensional: a pirâmide e
a coluna. As faces da pirâmide que dizem a glória do rei têm o seu correspondente
simbólico na coluna do segundo plano: esta, isolada, e portanto sem função de sustentação,
sugere as relações entre o céu e a terra, evocando ao mesmo tempo o reconhecimento
do homem para com a divindade e a divinização de certos homens. A coluna e a pirâmide
simbolizam o poder que assegura a vitória e a imortalidade.
Observe-se, finalmente, como
essa gravura fecha o ciclo através de um espaço nitidamente urbano, altamente “culturalizado”
enquanto as demais gravuras pareciam mais ligadas a aspectos da natureza (animais,
árvores, astros, paisagem etc.).
A gravura nº 13 precede propriamente
a parte final intitulada peroratio (do
verbo orare, “falar, pedir em favor de
alguém”), à moda de Cícero. Na retórica clássica, a peroratio é a conclusão geral que reúne os pontos essenciais da argumentação
e busca ganhar a adesão do auditório, no caso, as cortes europeias
CONCLUSÃO: A RETÓRICA DA LL | As gravuras da LL não são obra do Dr. António de Sousa de
Macedo: foram encomendadas para ilustrarem a sua argumentação jurídica e muito provavelmente
executadas segundo sua orientação e/ou supervisão. Elas fornecem ao leitor uma série
de imagens que resumem, anunciam, glosam, difundem ou transfiguram em exemplos que
falam à imaginação, figuras e acontecimentos contemporâneos. Por outro lado, as
ilustrações criam um eixo diacrónico em que momentos fortes da história de Portugal
articulam-se de forma coerente segundo um projeto ao mesmo tempo divino e humano:
a fundação do reino, Ourique e a Reconquista, Aljubarrota e a necessária independência
da pátria frente à Espanha. Sobretudo, essas gravuras ajudam a fundar no espírito
do público leitor a iconografia do novo rei e da nova casa reinante.
Para tal, as imagens lançam
mão da retórica característica da época: a Fénix que renasce das cinzas é a imagem
do país que renasce da servidão estrangeira; a vitória das armas portuguesas estava
escrita nos astros, etc. Figuras mitológicas como Alcides ou Luso são invocadas
para justificar a oposição Espanha vs Portugal, que reduplica a oposição Leão de
Castela vs Dragão português.
No entanto, a própria escolha
paradigmática é reveladora. Dos reis de Portugal anteriores a D. João IV são citados
apenas três: o fundador do Reino (Afonso Henriques em 2 gravuras), D. João I (o
vencedor de Aljubarrota e o iniciador da dinastia de Avis) e D. Manuel com sua numerosa
descendência à moda do patriarca bíblico Jessé. Observe-se que não há nenhuma imagem
de D. Sebastião, nem do Africano, por exemplo, ou de qualquer outro rei português.
Várias gravuras implicam
uma evidente intertextualidade de cunho religioso: D. Manuel surge como o patriarca
Jessé, antepassado do Messias, ou seja, do Esperado. O próprio Cristo dirige-se
ao rei fundador estabelecendo uma promessa que passa pela mulher. Esta não é, no
texto latino que comenta a gravura, a Virgem Mãe, mas D. Catarina de Bragança, que
ganha assim conotações religiosas de nova Eva. A vitória da casa de Bragança reflete
a ação divina. Portugal repete o destino de Israel como terra de Deus. O exemplo
mais interessante de todos, no caso, é a ideia veiculada pelo texto latino de que
Portugal (ao mesmo tempo Rei e Reino) leva, no seu corpo simbólico, os estigmas
de Cristo.
Por outro lado, os animais
míticos, a heráldica e a astrologia fornecem um outro fio de articulação e de leitura,
unindo várias ideias: o dragão de Bragança defendeu-se e por ser justa a sua causa,
venceu o leão de Castela; a vitória estava escrita no céu e nas estrelas; as armas
portuguesas são e serão vitoriosas. Todo o anexo final do volume, consagrado às
profecias, reitera o elo entre o fado (que não pode ser revogado porque é promessa
divina e Fatum) e o aspecto inquestionável da independência portuguesa. O próprio
nome escolhido para o volume - Lusitania liberata e Restauração - implica em saída da servidão
e retorno ao estado de direito.
Assim a LL fornece a iconografia do novo rei através
da sua efígie, sua sagração, seu triunfo sobre o trono móvel (que é o cavalo) e
o reconhecimento da sua grandeza pelo monumento final com as trombetas da fama.
Os louvores ao novo Rei e à nova casa reinante estão também inscritos de forma imperecível
nos corações portugueses.
Obra de propaganda e de defesa
de uma tese nacionalista, a LL desenvolve a sua argumentação retórica
a partir de um determinado universo simbólico ligado ao messianismo português.
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Agulha Revista de Cultura
Número 115 | Julho de 2018
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[1] As galerias dos Reis de Portugal
colocam um problema interessante do ponto de vista iconográfico e deveriam ser estudadas
de forma sistemática. Por outro lado, a ausência deliberada dos Reis do período
filipino faz parte de um programa iconográfico que se caracteriza pelo seu aspecto
“nacionalista”, caso evidentemente da Galeria dos Reis do Palácio de Fronteira,
em Lisboa, também dos meados do século XVII.
[2] Terceiro filho do rei João IV de Portugal
e de Dona Luísa de Gusmão,
foi Senhor da Casa do Infantado.
Cognominado de O Pacífico porque em sua regência fez-se a paz com a Espanha (em 1668).
[3] Catálogo das obras impressas no século XVII. A Colecção da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa. Lisboa, 1994. Apresentação do Professor Doutor José
V. de Pina Martins. Introdução, organização, bibliografia, catalogação e índices
por Júlio Caio Velloso. Indicado daqui em diante por LL.
[4] A expressão é um lugar comum da primeira
Chanson de geste francesa do final do
século XI. Não esquecer que a primeira dinastia portuguesa, dita de Borgonha, é
de origem francesa.
[5] Número especial dedicado a Vieira.
Lisboa, Abril/Setembro de 1997, p. 91 e p. 146.
[6] June Schlueter, "Martin Droeshout
Redivivus: Reassessing the Folio Engraving of Shakespeare", Shakespeare
Survey 60. Cambridge: Cambridge University
Press, 2007, p. 240.
[7] Do grego antigo οὐροβóρος, ourobóros
de ὀυρά, oura,
"cauda dos animais" et de βορός,
borós ("voraz, glutão") de βορά
("alimento"). É empregado para significar: a) a representação de uma serpente
ou dragão que se morde a cauda; b) fig.
alguma coisa que se volta sobre si mesmo, cujo desenvolvimento leva ao retorno a
uma situação inicial.
[9] A preposição cum, no caso, é adversativa.
[10] RABELAIS, François. Prologue de Gargantua, in OEuvres complètes. Edition de Mireille Huchon. Paris, Bibliothèque de
la Pléiade, 1994.
[11] Sobre o assunto veja-se BUESCU, Ana
Isabel. O milagre de Ourique e a História
de Portugal de Alexandre Herculano. Lisboa, INIC, 1987.
[12] Estudos históricos. Lisboa, Ed. Colibri,
1994.
[13] VIEGAS, António Pais. Principios del Reyno de portugal. Con vida y hechos de Don
Affonso henriques su primero Rey. Lisboa, Off. Paulo Craesbeeck, 1641, f. 2vº
e 3.
[14] PESSOA, Fernando. A Mensagem, in Obras completas.Lisboa, Editora Ática, 1978.
[15] A derrota dos espanhóis em Aljubarrota
reaparece num painel que ladeia a galeria dos Reis de Portugal no programa iconográfico
do grande lago do Palácio de Fronteira. O tema torna-se um topos da arte portuguesa.
[17] A representação de Jessé sentado
é menos corrente.
[18] Iconographie de l’art chrétien. Paris, PUF, 1955-1959, 3 tomos, 6 volumes.
[19] Temos disso um exemplo patente
no tema popular do folclore brasileiro cantado por Milton Nascimento: “da vara nasceu
a flor e da flor o Salvador”. Evidentemente, a vara é a árvore de Jessé; a flor,
a Virgem e o Salvador, Jesus.
[20] ABREU, Ilda Maria Assunção
e Silva Soares de. Simbolismo e Ideário político.
A educação ideal para o príncipe ideal seiscentista. Dissertação de Mestrado
em História Cultural e Política. Universidade Nova de Lisboa, 1997, p. 102-104.
No mesmo período em que se desenvolve o tema do rei-Sol francês, Filipe IV de Espanha
é apresentado como el rey planeta.
[22] O volume da LL, publicado em 1645, graças a essa gravura nº 10, deve ser considerado
como a fonte primeira dos catorze cavaleiros do grande lago do Palácio Fronteira,
em Lisboa, do século XVII. O programa marcadamente “nacionalista” tem duas características:
elide os três Filipes espanhóis e faz repousar a nova dinastia sobre os cavaleiros,
sugerindo que o novo rei é, na verdade, o primeiro inter pares.
[23] Cf. GÁLLEGO,
Julián. Visión y símbolos en la pintura española
del Siglo de Oro. Madrid,
Aguilar, 1972.
[24] Oceanos, nºs 30/31, Abril/Setembro de 1997, volume dedicado a Vieira.
[25] Philippus prudens Caroli
V. Imp. Filius Lusitaniae Algarbiae, Indiae, Brasiliae legitimus rex demonstratus Livro
I, p. 77.
[26] Pintor flamengo (Antuérpia, c. 16’7
– c. 1678).
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