Killalusimeno,
Scardanelli, Buonarroti são
os nomes com que assina os poemas quase sempre rimados que oferece por lembrança
aos estudantes suábios ou forasteiros m trânsito, à caça de sensações. Poderia assinar-se:
Alienus. Vivera algum tempo em casa do
relojoeiro Calame e do seleiro Lattner; e depois de experimentar numa clínica o
tratamento pela “máscara de Autenrieth”, espécie de mordaça, foi confiado à família
do marceneiro Zimmer.
Ainda em 1805, quando já se agrava o estado
mental do poeta, insiste o amigo Sinclair em interpretar o seu comportamento insólito
como simulação hamletiana de loucura. Boa sugestão para um novo Henrique IV. A diferença
é que o simulador não se apegaria a um único papel: ora é Killalusimeno, ora se
transforma em Scardanelli, Buonarroti, ou “der Herr Bibliothekar”; ou ainda, humildemente,
enfia-se na pele de “um pobre diabo”, ein
armer Mensch, como dizia ao marceneiro. Tudo isto não só com mudança de inflexão,
mas numa fala desvairada. Observa o Dr. Müller que ninguém consegue entender as
suas arengas ou murmurações absortas, pois engrola uma algaravia de alemão, grego
e latim.
A princípio, na linha salteada de sua desordem
mental, há intercadências de lucidez, com o relampear de admiráveis imagens; onde
acabam, onde começam as fronteiras da loucura e do estro poético? Numa crise de
grafomania, vai enchendo de poemas todos os papeluchos disponíveis. São versos que
soam a infantilidade; vago retorno às primeiras tentativas de rima, lembram não
sei que monodias perdidas, as mesmas notas de flauta e piano, que repete horas a
fio. É a imagem que mais convém ao seu estado: como observou Bettina em carta a
Sinclair, ele é como o pobre piano, presente da Princesa Augusta de Hamburgo, que,
de tanto vibrar com os seus furiosos improvisos, aos poucos vai perdendo as cordas…
Mas, ao cair o velário sobre a humana tragédia
em que desfecha a vida do Poeta, já sabemos que muito mais tarde começará nesse
outro palco, o do auditório, o burburinho erudito que é a comédia interpretativa
dos glosadores. Não me refiro ao mundo e comovido enlevo dos leitores que amam a
poesia com o pudor da gratuidade; no seu discreto silêncio, ressoa mais pura a voz
do poeta. Refiro-me à glosa e contra-glosa dos doutores sutilíssimos. As escolas
de München, Freiburg e Heidelberg, isto é, a Mística, a Ontologia e a Mitologia,
explorando a imprecisão inevitável que decorrer de um texto mal estabelecido e em
grande parte fragmentário, plasmaram para uso dos apressados a imagem de um Hölderlin
profeta, a balbuciar uma obscura mensagem órfica. Sem falar na leitura viciada pela
falta de uma rigorosa crítica textual, era fácil e quase inevitável introduzir suturas
subjetivas entre os fragmentos descosidos. Quem nos dá o exemplo mais pitoresco
d interpretação audaciosa é o silfo da sutileza ontológica, e Heidegger. Com a desenvolta
mestria dos seus passes verbais, não hesitou em pontuar a seu gosto e modo a elegia
Wie wenn am Feiertage… para travar então
um diálogo com Hölderlin, isto é, consigo mesmo. O comentário de todo esse aranhol foi urdido a fio ainda mais fino, se é possível,
pelo glosador de glosas Beda Alemann. Com seu livro Hölderlin e Heidegger, entramos no reino da imponderabilidade crítica.
A ambos convém explicar a advertência de Nietzsche: “Quem pretende explicar algum
passo de autor com mais profundidade do que realmente comporta a intenção do contexto,
não está explicando, mas obscurecendo esse autor” (Der Wanderer und sein Schatten).
A verdade é que as duas primeiras edições
de obras completas, a de Hellingrath-Seeabass-Pigenot e a de Franz Zinkernagel não
podiam servir de base para uma síntese crítica. Nas primeiras edições, só apareceriam
fragmentos da produção mais importante, a contar de 1800, e, além disso, nem sempre
era escorreita a sua leitura. Com a grande edição de Stuttgart, obra prima da Filologia
e das artes gráficas, sem dúvida o mais belo monumento consagrado a um poeta moderno,
começa a firmar-se a imagem do verdadeiro Hölderlin da maturidade.
Graças ao zelo filológico de Friedrich Beissner
e ao aparato crítico do segundo volume, tomo segundo (Gedichte nach 1800, Lesarten und Erlauterungen), o que se revela, através
da aparente dispersão das mil e uma variantes, é a unidade rigorosa de uma composição
triádica, em consonância com o metro alcaico, é a pertinácia, a vontade obstinada,
a energia intorcível de um prodigioso artífice. O contrário da famosa Weichheit, a maciez de cera; do trêmulo tom
de soluço estrangulado, a que se referia José Maria Valverde; do poeta dilacerado
e bruxuleante, em permanente crise dionisíaca; do visionário crônico, espécie de
para-raios da inspiração. A profusão de variantes, que parecia o tacteio gaguejado
e confuso de quem não acerta a medida (Nie
treff ich, wie ich wünsche, Das mass), abrindo o texto a mais de uma “versão
definitiva”, está comprovando agora, à luz da pesquisa de Beissner, sua convergência
para a mesma solução de formas e conteúdo. Mostrou Beissner como a sugestão bebida
em Píndaro, a contar de Wie wenn am Feiertage…,
na composição dos “hinos em estrofe livre”, evolveu da imitação servil do modelo
(esquema estrófico a-a-b) para uma disposição triádica (esquema estrófico a-b-c),
isto é, adaptando-se à intenção dialética do poeta, na sua marcha em três tempos:
tese, antítese e síntese. À influência pindárica veio associar-se, portanto, a estrutura
formal da filosofia idealista – a influência de Fichte, Schelling e Hegel. Essa
aliagem tão romântica não é apenas uma solução circunstancial, como a sua tentativa
problemática de submeter-se humildemente ao paradigma dos metros clássicos, em rigor
muito menos feliz que a de Holty ou de Platen, como já observou Wolfgang Kayser,
em Kleine Deutsche Versschule; mas corresponde
a uma tendência orgânica do seu pensamento.
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Não caberia num comentário alinhavado de caminho,
sem maiores pretensões, o desenvolvimento de outros aspectos positivos da contribuição
de Friedrich Beissner; a grande edição de Stuttgart (W. Kohlhammer Verlag) deu vida
nova a Hölderlin e está pedindo leitura atenta e aprofundada, por muitos anos ainda.
Remeto o leitor ao excelente resumo crítico de Ernst Müller, em Hölderlins späte Gedichte (Universitas, maio
de 1952). Desejo apenas registrar que nas anotações de Beissner, tyomo segundo,
volume 22, p. 666, encontrei o seguinte, com referência ao mal-aventurado verso:
Klirren die Fahnen do poema Hälfte des Lebens: “Fahnem. Muitas vezes
interpretado erroneamente como bandeiras. O verdadeiro significado é cataventos.”
Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia,
1983)
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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO
| FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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