segunda-feira, 6 de agosto de 2018

AUGUSTO MEYER | Hölderlin



Killalusimeno, Scardanelli, Buonarroti são os nomes com que assina os poemas quase sempre rimados que oferece por lembrança aos estudantes suábios ou forasteiros m trânsito, à caça de sensações. Poderia assinar-se: Alienus. Vivera algum tempo em casa do relojoeiro Calame e do seleiro Lattner; e depois de experimentar numa clínica o tratamento pela “máscara de Autenrieth”, espécie de mordaça, foi confiado à família do marceneiro Zimmer.
Ainda em 1805, quando já se agrava o estado mental do poeta, insiste o amigo Sinclair em interpretar o seu comportamento insólito como simulação hamletiana de loucura. Boa sugestão para um novo Henrique IV. A diferença é que o simulador não se apegaria a um único papel: ora é Killalusimeno, ora se transforma em Scardanelli, Buonarroti, ou “der Herr Bibliothekar”; ou ainda, humildemente, enfia-se na pele de “um pobre diabo”, ein armer Mensch, como dizia ao marceneiro. Tudo isto não só com mudança de inflexão, mas numa fala desvairada. Observa o Dr. Müller que ninguém consegue entender as suas arengas ou murmurações absortas, pois engrola uma algaravia de alemão, grego e latim.
A princípio, na linha salteada de sua desordem mental, há intercadências de lucidez, com o relampear de admiráveis imagens; onde acabam, onde começam as fronteiras da loucura e do estro poético? Numa crise de grafomania, vai enchendo de poemas todos os papeluchos disponíveis. São versos que soam a infantilidade; vago retorno às primeiras tentativas de rima, lembram não sei que monodias perdidas, as mesmas notas de flauta e piano, que repete horas a fio. É a imagem que mais convém ao seu estado: como observou Bettina em carta a Sinclair, ele é como o pobre piano, presente da Princesa Augusta de Hamburgo, que, de tanto vibrar com os seus furiosos improvisos, aos poucos vai perdendo as cordas…
Mas, ao cair o velário sobre a humana tragédia em que desfecha a vida do Poeta, já sabemos que muito mais tarde começará nesse outro palco, o do auditório, o burburinho erudito que é a comédia interpretativa dos glosadores. Não me refiro ao mundo e comovido enlevo dos leitores que amam a poesia com o pudor da gratuidade; no seu discreto silêncio, ressoa mais pura a voz do poeta. Refiro-me à glosa e contra-glosa dos doutores sutilíssimos. As escolas de München, Freiburg e Heidelberg, isto é, a Mística, a Ontologia e a Mitologia, explorando a imprecisão inevitável que decorrer de um texto mal estabelecido e em grande parte fragmentário, plasmaram para uso dos apressados a imagem de um Hölderlin profeta, a balbuciar uma obscura mensagem órfica. Sem falar na leitura viciada pela falta de uma rigorosa crítica textual, era fácil e quase inevitável introduzir suturas subjetivas entre os fragmentos descosidos. Quem nos dá o exemplo mais pitoresco d interpretação audaciosa é o silfo da sutileza ontológica, e Heidegger. Com a desenvolta mestria dos seus passes verbais, não hesitou em pontuar a seu gosto e modo a elegia Wie wenn am Feiertage… para travar então um diálogo com Hölderlin, isto é, consigo mesmo. O comentário de todo esse aranhol  foi urdido a fio ainda mais fino, se é possível, pelo glosador de glosas Beda Alemann. Com seu livro Hölderlin e Heidegger, entramos no reino da imponderabilidade crítica. A ambos convém explicar a advertência de Nietzsche: “Quem pretende explicar algum passo de autor com mais profundidade do que realmente comporta a intenção do contexto, não está explicando, mas obscurecendo esse autor” (Der Wanderer und sein Schatten).
A verdade é que as duas primeiras edições de obras completas, a de Hellingrath-Seeabass-Pigenot e a de Franz Zinkernagel não podiam servir de base para uma síntese crítica. Nas primeiras edições, só apareceriam fragmentos da produção mais importante, a contar de 1800, e, além disso, nem sempre era escorreita a sua leitura. Com a grande edição de Stuttgart, obra prima da Filologia e das artes gráficas, sem dúvida o mais belo monumento consagrado a um poeta moderno, começa a firmar-se a imagem do verdadeiro Hölderlin da maturidade.
Graças ao zelo filológico de Friedrich Beissner e ao aparato crítico do segundo volume, tomo segundo (Gedichte nach 1800, Lesarten und Erlauterungen), o que se revela, através da aparente dispersão das mil e uma variantes, é a unidade rigorosa de uma composição triádica, em consonância com o metro alcaico, é a pertinácia, a vontade obstinada, a energia intorcível de um prodigioso artífice. O contrário da famosa Weichheit, a maciez de cera; do trêmulo tom de soluço estrangulado, a que se referia José Maria Valverde; do poeta dilacerado e bruxuleante, em permanente crise dionisíaca; do visionário crônico, espécie de para-raios da inspiração. A profusão de variantes, que parecia o tacteio gaguejado e confuso de quem não acerta a medida (Nie treff ich, wie ich wünsche, Das mass), abrindo o texto a mais de uma “versão definitiva”, está comprovando agora, à luz da pesquisa de Beissner, sua convergência para a mesma solução de formas e conteúdo. Mostrou Beissner como a sugestão bebida em Píndaro, a contar de Wie wenn am Feiertage…, na composição dos “hinos em estrofe livre”, evolveu da imitação servil do modelo (esquema estrófico a-a-b) para uma disposição triádica (esquema estrófico a-b-c), isto é, adaptando-se à intenção dialética do poeta, na sua marcha em três tempos: tese, antítese e síntese. À influência pindárica veio associar-se, portanto, a estrutura formal da filosofia idealista – a influência de Fichte, Schelling e Hegel. Essa aliagem tão romântica não é apenas uma solução circunstancial, como a sua tentativa problemática de submeter-se humildemente ao paradigma dos metros clássicos, em rigor muito menos feliz que a de Holty ou de Platen, como já observou Wolfgang Kayser, em Kleine Deutsche Versschule; mas corresponde a uma tendência orgânica do seu pensamento.







Com a chave triádica a orientá-lo na decifração e deslinde crítico das variantes, conseguiu Beissner agrupar em compleição poética o que muitas vezes aparecia mutilado e disperso, como fragmento sem legítima conexão de sentido, nas edições de Hellingrath e Zinkernagel. Poderá servir de exemplo a sua lição restituída e completa, em três versões, do famoso hino Mnemosyse, tão deturpado nas outras lições.
Não caberia num comentário alinhavado de caminho, sem maiores pretensões, o desenvolvimento de outros aspectos positivos da contribuição de Friedrich Beissner; a grande edição de Stuttgart (W. Kohlhammer Verlag) deu vida nova a Hölderlin e está pedindo leitura atenta e aprofundada, por muitos anos ainda. Remeto o leitor ao excelente resumo crítico de Ernst Müller, em Hölderlins späte Gedichte (Universitas, maio de 1952). Desejo apenas registrar que nas anotações de Beissner, tyomo segundo, volume 22, p. 666, encontrei o seguinte, com referência ao mal-aventurado verso: Klirren die Fahnen do poema Hälfte des Lebens: “Fahnem. Muitas vezes interpretado erroneamente como bandeiras. O verdadeiro significado é cataventos.”


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Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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