segunda-feira, 6 de agosto de 2018

AUGUSTO MEYER | Jorge Luís Borges



Deus, personagem que de vez em quando visita a obra de Jorge Luís Borges para embrulhar ou desenlear o enredo, vai servir de fecho a dois casos do Aleph: “Los teólogos” e “Historia del guerrero y de la cautiva”. Encerrando “Los teólogos”, observa Borges: “Aureliano supo que para la insondable divinidad, él y Juan de Panonia (el ortodoxo y el hereje, el aborrecedor y el aborrecido, el acusador y la víctima) formaban una sola persona”. O outro conto, o autor associa por contraposição o caso do bárbaro Droctulft, convertido à civilização romana e defensor de Ravena contra o assédio dos seus, ao caso da inglesa cativada pelos índios, que se barbariza ao fascínio do pampa, atração da lonjura e horizonte aberto; e conclui: “Acaso las historias que he referido son uma sola historia. El anverso y el reverso de esta moneda son, para Dios, iguales”.
Este Deus de Borges, se não me engano, deve ser parente próximo do Deus de Heráclito, que é “dia e noite, inverno e verão, guerra e paz, fartura e fome” (Diels, fr. 67, Burnet, 36, Capelle, 45). “Para Deus, todas as coisas são justas, boas e necessárias, ao passo que os homens consideram injustas ou legítimas determinadas coisas” (Diels, fr. 102, Burnet, 61, Capelle, 48). É, no fundo, a unidade dos contrários como observa Clémence Ramnoux: “Sous des formules réductibles à quelque structure grammanticale simple les enigmes répètent inlassablement le príncipe de l’unité des contraíres” (v. Heráclite ou l’homme entre las choses et les mots. Belles Lettrres, 1959). O próprio Borges, que de caminho se refere a Heráclito (v. “El inmortal”) parece repetir a cada passo: “Há uma harmonia de tensões opostas, como a do arco e da lira”.
Eu poderia estender a comprovação, de modo analítico, a outros contos, esmiuçando o Aleph e a Historia universal de la infamia, únicos textos de que disponho no momento, além dos ensaios sobre Lugones e o Martín Fierro; porém basta lembrar a sua constante preocupação de totalizar, conglobar, enovelando um mundo de coisas, para a superação das antíteses, ou, melhor ainda, aquele exemplo ideal, que é a famosa enumeração caótica do Aleph, lampejo de unidade no turbilhão da diversidade.
Tudo isso envolve necessariamente, além de uma arte soberana e quase escandalosa no governo da lucidez poética, sempre a cavaleiro da intuição criadora, certa franja de paralogia metafísica, impregnada de humorismo transcendente, aquele capitoso humour borgiano, que vai espicaçando o nosso espanto com o arabesco renovado e aberto de uma fantasia desatada em imprevisto e agilidade. “El pensamento más fugaz obedece a un dibujo invisible y puede coronar, o inaugurar, una forma secreta”. Há em Borges, a um só tempo, um zaori e um diabo rengo, um olho clarividente, a par de um olho vesgo e turvo, que mistura as coisas por gosto e magia, para que pareçam mais ameaçadas, mais imprecisas e mais patéticas. Da imprecisão, uma imprecisão lúcida e precisa, ele soube fazer um acerado instrumento de sugestões poéticas. Fausto Cunha, ao comentar um ensaio de Jorge Luis Borges, informa: “No mesmo artigo, aconselha a hipótese de que a imprecisão é tolerável ou verossímil na literatura, porque a ele tendemos sempre na realidade”. Já dizia Nietzsche, com implacável ironia, que era essa a função dos poetas: toldar as águas, para que pareçam mais profundas.
Ressalta logo o risco permanente desse jogo vertiginoso: com uma espécie de ascetismo da acrobacia estética, o autor não relaxa os músculos, não se concede o mais leve cochilo homérico, e quando muito aceita um mínimo de ingenuidade épica – refiro-me à desarmada ingenuidade do contador de casos que também participa da história contada, para que possa de algum modo andar com as próprias pernas e não pelo braço do autor. Por isso mesmo nós, os escravos de Borges (os seus leitores) tentamos de vez em quando sacudir o seu jugo, num impulso de humana rebeldia. Parece-nos que Borges abusa do direito de ser autor, ou melhor, do direito de ser Deus, pois já mostrou Fausto Cunha, que reparte no Brasil com Alexandre Eulálio a donataria dessa prodigiosa terra encantada, a obra de Jorge Luis Borges, e o seu apostolado – mostrou o agudo Fausto Cunha que Borges é Deus, un vrai Dieu, um Deus e um Labirinto (v. A luta literária: Lidador, 1964: “Introdução a Borges a Borges como Deus e como Labirinto”). Tempera, assim mesmo, o seu fervor de padre apostólico da nova igreja com o seguinte reparo: “Dizer que Borges é Deus seria jogar com uma desolada metáfora. Mais de uma vez ele impediu que seus crentes incidissem nessa supersticiosa hipótese”.








Mas não alimento aqui a veleidade de apresentar-me como cristão novo convertido à religião borgiana, talvez nova encarnação de Droctulft, o longobardo poroso e impulsivo, tragado pelo civismo romano, causa ingrata. Queria apenas dizer, abusando dos direitos da prosa e da gravidade pesadona da crítica, que agora, ao reler os dois contos já referidos: “Los teólogos” e “Historia del guerrero y de la cautiva”, aquele Deus final e catártico pareceu-me, em ambos os casos, solução um tanto Deus ex machina. Pensando bem, não será necessário hipostasiar-se em Deus, quando basta o simples bom senso para compreender que Aureliano e João de Panonia, o ortodoxo e o herege, o acusador e o agravado, vem tudo a dar na mesma, isto é, em Teologia, cuja alma é a discordância pela exegese; a Teologia não pode viver sem o acicate renovador da heterodoxia.
Também no outro caso, não me parece necessário invocar a insondável sabedoria divina para compreender que as duas experiências correspondem no fundo à ação de uma só causa predisponente, quando não imediata. Não vejo nenhuma antinomia essencial entre o bárbaro convertido à civitas e a inglesa barbarizada pelo vazio aventuroso do pampa, aderindo, como tantos outros pioneiros assimilados pelo meio, ao apelo do agreste, ao call of the wild dos cronistas americanos; são duas reações extremadas, e contrastadas apenas aparentemente, do mesmo processo aculturativo. O professor alemão que vive a sofrear os meus impulsos a golpes de fichas e aspas, agora mesmo está cochichando ao meu ouvido que bastaria compulsar as Dominazioni barbariche in Italia, de G. Romano, ou a obra clássica de Pasquale Villari, Le invasioni barbariche, para verificar que o maleável herói de Paulo Diacono e Croce é mais um conquistador conquistado, no grande fluxo e refluxo cultural do Ocidente, durante aquele período. Acrescenta, além disso, o mesmo pedante armado de óculos que nem por isso há um abismo escancarado entre beber o sangue vivo de uma ovelha degolada e comer o churrasco da abuelita inglesa de Borges – churrasco eufemizado em roast beef.
  

*****

Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80




Nenhum comentário:

Postar um comentário