A afirmação de que José de Alencar é o primeiro grande prosador da literatura
brasileira tornou-se consenso. E há, inclusive, quem ache o seu Iracema verdadeira
obra-prima – o que, em minha opinião, não passa de um despautério. O que não se
fala – e raramente se ensina – é que a obra alencariana, quando comparada aos grandes
nomes do romantismo alemão ou inglês, transforma-se num fato estético insignificante,
cujo único valor se resume ao que afirmamos no início deste parágrafo: fenômeno
de importância restrita ao Brasil – e nunca, jamais universal.
No entanto, a
maioria dos professores – principalmente no ensino médio – acostumou-se a mostrar
o romantismo brasileiro como uma consequência natural do romantismo europeu. Lê-se
o capítulo dedicado ao tema, no livro didático, e fica-se com a impressão de que
as características das obras fundadoras desse movimento passaram de maneira automática
para os autores brasileiros, havendo, entre os dois grupos, uma correspondência
absoluta. Nada pode ser mais mentiroso, contudo.
Jamais encontraremos
nos românticos nacionais, apenas para citar um exemplo, a genialidade de Friedrich
Schlegel, profundo estudioso de Shakespeare e Goethe, crítico literário excepcional.
Schlegel recuperou os valores clássicos da poesia grega, defendeu a necessidade
de uma literatura universal e, convertido ao catolicismo e apontado, em política,
como reacionário, deixou um romance incompleto – Lucinde –, obra contraditória,
odiada por Schiller, na qual se faz a apologia do amor livre. Não satisfeito, Schlegel
libertou a ironia do seu caráter de mero chiste ou travessura linguística, elevando-a
à condição de comportamento filosófico diante da arte e da vida, pois, em sua opinião,
só a ironia pode redimir um mundo baseado em falsas verdades.
Os nacionalistas
certamente retrucarão que, se seguirmos esse raciocínio, teremos de jogar no lixo
grande parte da literatura brasileira, não apenas a romântica, e que, agindo dessa
forma, desvalorizaremos nosso patrimônio cultural. Tais afirmações, no entanto,
são sofismas. Trata-se, isso sim, de colocarmos os românticos brasileiros onde realmente
devem estar – e não utilizarmos, em nome do ufanismo, critérios condescendentes
de julgamento; prática, aliás, que se torna cada vez mais comum entre nós.
Nossos românticos
têm papel fundamental na formação da literatura e da língua portuguesa característica
do Brasil – e Alencar foi um dos que mais defendeu a importância de uma expressão
genuinamente brasileira, ainda que tal matéria seja, em minha opinião, secundária
[1] –, mas, em termos estéticos, a ficção
romântica permaneceu presa ao pitoresco, à idealização exagerada do elemento indígena.
Ou seja, trata-se de um romantismo que, ao contrário do que fizeram alguns dos principais
escritores alemães e ingleses, não cultua a autoconsciência, não se sente superior
pela sua própria excepcionalidade. Entre nós, a supervalorização da sensibilidade
ocorreu quase sempre de maneira negativa, assumindo a forma de um recalque ou substituída
por qualquer solução apaziguadora, conciliatória (como ocorre no segundo mais importante
romance de Alencar, Senhora); e se surgem pulsões libertadoras, estas acabam
por se congelar na forma de patologias melancólicas, encerradas entre quatro paredes.
Quanto à linguagem, o romantismo brasileiro é, bem sabemos, o império do adjetivo,
da hipérbole, do arroubo grandiloquente.
A LAMA NO TANQUE | No caso específico
de Lucíola, publicado em 1862 – em minha opinião, o melhor romance de Alencar,
ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias –, o que primeiro chama
nossa atenção é o problema do narrador. O romance inicia com uma “Nota ao autor”,
escrita pela destinatária das cartas que, enviadas pelo narrador, foram reunidas
e, sem que este soubesse, transformadas em livro. O que era, portanto, para ser
um relato particular, ganha o caráter de narrativa pública. O motivo desse contorcionismo
parece-me evidente: se Lúcia, a protagonista, é a prostituta que se transforma em
“musa cristã” – e que “trilha o pó com os olhos no céu” –, nada melhor que outra
mulher para referendar, perante os leitores, a história dessa purificação. De maneira
medrosa, mas hábil, o narrador/autor, tenta se abster de qualquer responsabilidade.
Essa forma de
fugir às consequências de um relato que, apesar de todas as concessões feitas à
religião e à moral, causou escândalo ao ser publicado, confirma-se logo no início
do primeiro capítulo, quando o narrador, justificando o envio das cartas, nas quais
pretende traçar o perfil de Lúcia, afirma sua “excessiva indulgência pelas criaturas
infelizes”. A pretensão do narrador não é, portanto, contar a história de uma paixão
mútua, abrasadora, mas, principalmente, descrever o objeto de seu relato como um
espécime curioso.
Estamos diante
de um narrador, Paulo, que se mostra imaturo para a vida na Corte, ou, como ele
mesmo se define, um “profano na difícil ciência das banalidades sociais”. Impressionado
pela beleza de Lúcia – que ele encontra de maneira fortuita, mal havia chegado ao
Rio de Janeiro –, o narrador descobre que por trás da “serenidade do olhar” se escondia
uma prostituta. Passado o choque inevitável, inicia-se um jogo de insinuações durante
o qual Paulo afirma não amar tal mulher, mas ter “apenas sede de prazer”. O problema
é que o jovem não interpreta os sinais que Lúcia lhe dá; provinciano, parvo em alguns
momentos, ele se engana em relação às reações da meretriz. Na confusão de sentimentos
que ocorre – da qual temos apenas o ponto de vista de Paulo, que confessa não possuir
perspicácia suficiente para entender os fatos –, Lúcia acaba por conduzir o narrador
a sensações de prazer inusitadas.
Mas Paulo deseja
algo além do sexo? Quando vê, em certos momentos, a mulher abandonar seu “modo singelo
e modesto” para expressar-se por meio da “frase ríspida, incisiva e levemente embebida
em ironia”, ele afirma sentir desvanecer dentro de si uma “doce ilusão, que, por
mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do
prazer um átomo sequer de amor”. Essas divagações, contudo, não passam de retórica.
O leitor não deve se enganar: Lúcia será, do começo ao fim do romance, o obscuro
objeto do desejo de Paulo – apenas do desejo. E aqui faço uma referência precisa:
ela será a fêmea inalcançável a que Paulo se submeterá, semelhante à personagem
da novela de Pierre Louÿs que Buñuel imortalizou em seu último filme.
A questão central
do romance, portanto, não é só, como se costuma repetir, a da mulher que, por ser
prostituta, considera-se moralmente corrompida para o amor e tenta, desesperadamente,
purificar-se, até alcançar a autodestruição. Há essa passionalidade, sem dúvida
– e nesse sentido, o livro caminha na contramão do romantismo, pois a heroína não
se liberta das amarras sociais, escravizando-se a elas, certa de que o fato de ser
uma cortesã a impede de viver seu grande amor. Mas, de maneira paralela a esse drama,
há o outro eixo de Lucíola, mais instigante, do narrador/personagem que embarca
numa aventura duvidosa, abrindo mão dos prazeres sexuais em troca de uma experiência
de aflitiva castidade, na qual se torna um fantoche, espectador do conflito que
a cortesã vive – e sem jamais expressar seu amor por Lúcia, pois realmente não a
ama, somente a endeusa, mantendo com ela uma relação nitidamente edipiana. À desagregação
mental de Lúcia, que vemos crescer na exata medida em que a jovem se conscientiza
de seu amor por Paulo, corresponde a obediência do rapaz inexperiente, satisfeito
em seu papel acessório, admirando o escapismo de sua companheira, incentivador excêntrico
do que move Lúcia: negar, a si mesma, a possibilidade de unir prazer e amor.
O desvio é nítido:
o desejo não realizado tornou-se neurose. Mas essa é a única proposta que Paulo
recusa. Às outras, obedecerá sempre, resignando-se a um único prazer sexual, o ato
de, arrastando-se pela relva, beijar as pontas das botinas de Lúcia, que surgem
sob “a orla do vestido” (numa clara alusão ao fetiche que Alencar exploraria em
A pata da gazela, de 1870).
Lúcia hipnotiza
e submete esse elemento masculino dócil; e à medida que o romance se aproxima do
fim, enquanto ela abandona a antiga personalidade, chegando a adotar um novo nome,
não por acaso “Maria”, a ex-cortesã passa a controlar, ordenar, exigir – e será
obedecida nas menores vontades. Paulo descreve o “gesto imperativo” que o faz obedecer
ou que o “obriga” a, por exemplo, ajudá-la a pentear a irmã e, principalmente, beijar
as pontas dos anéis de “cabelos finos e sutis”. Diante do que ele conclui: “O que
ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?”.
E mesmo antes, quando a transformação de Lúcia, mal iniciada, já nega a Paulo os
arroubos da libido, ele confessa: “Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa
influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer
beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar”.
Tal é o amor
antirromântico de Alencar, processo de sublimação que condena Lúcia a se autodestruir
e Paulo a um prazer frio – paixões pervertidas por preconceitos, por psicopatologias
e pela culpa. E por um cristianismo deformado, que Alencar transforma em mero misticismo,
religiosidade que acorrenta a protagonista ao pecado – situação, por sinal, descrita
muito bem, ao fazer Lúcia comentar, quando vê que Paulo joga pedrinhas em um pequeno
tanque natural, de águas a princípio cristalinas: “– A lama deste tanque é meu corpo:
enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida”.
Ao introjetarem,
de maneira errônea, os valores de sua época, os personagens de Alencar se cobrem
de uma estranha vestidura, de um romantismo que ou nasce distorcido pela moral,
pelas regras sociais e por um falso cristianismo, ou exige do leitor que volte a
ser criança e acredite na ilusão das novelas de cavalaria – como propôs, aliás,
seriamente, Augusto Meyer num ensaio publicado em 1964 (no volume A chave e a
máscara), chamando de “degenerados leitores” aqueles que não conseguiam olhar
sem desagrado o “clima de intemperança fantasista” de O guarani.
BONS E MAUS RESULTADOS | No que se refere
à linguagem, também não podemos pedir muito de Alencar. Se pensarmos de quais matrizes
saíram seus romances, nossa primeira reação será a da indulgência: os folhetins
abundavam na Corte, traduzidos ou escritos por autores nacionais, e ele se acostumou
a produzir essa forma literária bem pouco exigente; além disso, uma das suas principais
inspirações, François-Auguste-René, visconde de Chateaubriand, é, segundo Otto Maria
Carpeaux, pleno de “eloquência ornada”.
A desenvoltura
do pensamento de Lúcia, sua agilidade mental, domina a primeira parte do romance
graças aos diálogos de frases breves e incisivas. E mesmo nos capítulos finais,
quando nossa anti-heroína já se encontra destituída de vigor, da febre que manifestava
ao se entregar a Paulo, ela ainda expressará uma lógica que, passível de ser contestada,
é impecável.
O árduo trabalho
de Alencar com a língua – Araripe Júnior conta que, quando jovem estudante em São
Paulo, o escritor perdia horas “copiando trechos de João de Barros e Damião de Góes,
decompondo os períodos monumentais destes escritores, diluindo frases, compondo
de novo, buscando com parcimônia beneditina descobrir o segredo da originalidade
dos seus dizeres tão pitorescos” – produziu frutos. O movimento insinuante da cortesã
ganha vida não só graças à construção da frase, mas ao rumorejar que nasce da aliteração:
“Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto
a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando”. E quando o
escritor faz uso equilibrado dos adjetivos, seu texto se liberta do romantismo sentimentaloide,
mesmo se ele nos apresenta Lúcia na forma de um animalzinho casto: “Passei-lhe o
braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios
encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam
nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com um primeiro movimento,
Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um
modo de tímida resignação”. Mas pode chegar a uma linguagem quase realista, como
no trecho a seguir, em que vemos a personalidade da cortesã, agradavelmente pendular
desde o início, explodir num paroxismo de concupiscência: “Enquanto a admirava,
a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe
as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os
dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe
opunha obstáculos. […] Há mulheres gastas, máquinas de prazer que vendem, autômatos
só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero,
que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia
que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos”. Ou,
ainda, esta bela descrição, em que Paulo, enciumado, quase desfaz a imagem que temos
dele: “Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava
o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam
num movimento que não era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca
essa mulher me pareceu tão bela; e a ideia de que ela se enfeitava para outro homem
irritava-me a ponto que estive de precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo,
as galas que a cobriam”.
Em outros momentos,
contudo, o escritor não consegue se livrar do ranço folhetinesco, estragando sua
narrativa com adereços melosos: “O meu pensamento impregnado de desejos lascivos
se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as
exalações da terra” – ou “duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas,como
dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre as faces, de
tão lentas que rolavam” [grifos nossos]. Esses artifícios, essas concessões ao público
da época, estragam às vezes longos trechos.
ÊXTASE FINAL | Que Alencar tenha
condenado seu narrador à subserviência e à timidez de caráter, e Lúcia à exacerbação
da culpa, são escolhas que não podem ser perdoadas. Mas as palavras finais da cortesã
negam a purificação doentia a que se entregou. Seu êxtase final é semelhante a um
clímax em que a pobre vítima de si mesma implora para ser tomada não pela divindade,
mas por seu submisso: “– Recebe-me… Paulo!”. Assim permanecem, ao fecharmos o livro,
as duas Lúcias: a meretriz e o anjo que, coberto de preto, caminha rumo à igreja,
pedindo clemência à sociedade e a Deus – mas que, por não aceitar o perdão, jamais
provará o amor.
NOTA
1. A presença de um vocabulário de forte influência
portuguesa em Memórias de um sargento milícias – publicado, na forma de folhetim,
três anos antes de surgir O guarani – em nada diminui a vivacidade do romance
de Manuel Antônio de Almeida, demonstrando o quanto não era essencial a campanha
de Alencar para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.
Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia,
1983)
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO
| FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os artigos assinados não refletem necessariamente
o pensamento da revista
os editores não se responsabilizam pela devolução
de material não solicitado
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
CNPJ 02.081.443/0001-80
Nenhum comentário:
Postar um comentário