segunda-feira, 6 de agosto de 2018

AUGUSTO MEYER | José de Alencar e o romantismo autodestrutivo


 

A afirmação de que José de Alencar é o primeiro grande prosador da literatura brasileira tornou-se consenso. E há, inclusive, quem ache o seu Iracema verdadeira obra-prima – o que, em minha opinião, não passa de um despautério. O que não se fala – e raramente se ensina – é que a obra alencariana, quando comparada aos grandes nomes do romantismo alemão ou inglês, transforma-se num fato estético insignificante, cujo único valor se resume ao que afirmamos no início deste parágrafo: fenômeno de importância restrita ao Brasil – e nunca, jamais universal.
No entanto, a maioria dos professores – principalmente no ensino médio – acostumou-se a mostrar o romantismo brasileiro como uma consequência natural do romantismo europeu. Lê-se o capítulo dedicado ao tema, no livro didático, e fica-se com a impressão de que as características das obras fundadoras desse movimento passaram de maneira automática para os autores brasileiros, havendo, entre os dois grupos, uma correspondência absoluta. Nada pode ser mais mentiroso, contudo.
Jamais encontraremos nos românticos nacionais, apenas para citar um exemplo, a genialidade de Friedrich Schlegel, profundo estudioso de Shakespeare e Goethe, crítico literário excepcional. Schlegel recuperou os valores clássicos da poesia grega, defendeu a necessidade de uma literatura universal e, convertido ao catolicismo e apontado, em política, como reacionário, deixou um romance incompleto – Lucinde –, obra contraditória, odiada por Schiller, na qual se faz a apologia do amor livre. Não satisfeito, Schlegel libertou a ironia do seu caráter de mero chiste ou travessura linguística, elevando-a à condição de comportamento filosófico diante da arte e da vida, pois, em sua opinião, só a ironia pode redimir um mundo baseado em falsas verdades.
Os nacionalistas certamente retrucarão que, se seguirmos esse raciocínio, teremos de jogar no lixo grande parte da literatura brasileira, não apenas a romântica, e que, agindo dessa forma, desvalorizaremos nosso patrimônio cultural. Tais afirmações, no entanto, são sofismas. Trata-se, isso sim, de colocarmos os românticos brasileiros onde realmente devem estar – e não utilizarmos, em nome do ufanismo, critérios condescendentes de julgamento; prática, aliás, que se torna cada vez mais comum entre nós.
Nossos românticos têm papel fundamental na formação da literatura e da língua portuguesa característica do Brasil – e Alencar foi um dos que mais defendeu a importância de uma expressão genuinamente brasileira, ainda que tal matéria seja, em minha opinião, secundária [1] –, mas, em termos estéticos, a ficção romântica permaneceu presa ao pitoresco, à idealização exagerada do elemento indígena. Ou seja, trata-se de um romantismo que, ao contrário do que fizeram alguns dos principais escritores alemães e ingleses, não cultua a autoconsciência, não se sente superior pela sua própria excepcionalidade. Entre nós, a supervalorização da sensibilidade ocorreu quase sempre de maneira negativa, assumindo a forma de um recalque ou substituída por qualquer solução apaziguadora, conciliatória (como ocorre no segundo mais importante romance de Alencar, Senhora); e se surgem pulsões libertadoras, estas acabam por se congelar na forma de patologias melancólicas, encerradas entre quatro paredes. Quanto à linguagem, o romantismo brasileiro é, bem sabemos, o império do adjetivo, da hipérbole, do arroubo grandiloquente.

A LAMA NO TANQUE | No caso específico de Lucíola, publicado em 1862 – em minha opinião, o melhor romance de Alencar, ainda que seja uma releitura de A Dama das Camélias –, o que primeiro chama nossa atenção é o problema do narrador. O romance inicia com uma “Nota ao autor”, escrita pela destinatária das cartas que, enviadas pelo narrador, foram reunidas e, sem que este soubesse, transformadas em livro. O que era, portanto, para ser um relato particular, ganha o caráter de narrativa pública. O motivo desse contorcionismo parece-me evidente: se Lúcia, a protagonista, é a prostituta que se transforma em “musa cristã” – e que “trilha o pó com os olhos no céu” –, nada melhor que outra mulher para referendar, perante os leitores, a história dessa purificação. De maneira medrosa, mas hábil, o narrador/autor, tenta se abster de qualquer responsabilidade.
Essa forma de fugir às consequências de um relato que, apesar de todas as concessões feitas à religião e à moral, causou escândalo ao ser publicado, confirma-se logo no início do primeiro capítulo, quando o narrador, justificando o envio das cartas, nas quais pretende traçar o perfil de Lúcia, afirma sua “excessiva indulgência pelas criaturas infelizes”. A pretensão do narrador não é, portanto, contar a história de uma paixão mútua, abrasadora, mas, principalmente, descrever o objeto de seu relato como um espécime curioso.  
Estamos diante de um narrador, Paulo, que se mostra imaturo para a vida na Corte, ou, como ele mesmo se define, um “profano na difícil ciência das banalidades sociais”. Impressionado pela beleza de Lúcia – que ele encontra de maneira fortuita, mal havia chegado ao Rio de Janeiro –, o narrador descobre que por trás da “serenidade do olhar” se escondia uma prostituta. Passado o choque inevitável, inicia-se um jogo de insinuações durante o qual Paulo afirma não amar tal mulher, mas ter “apenas sede de prazer”. O problema é que o jovem não interpreta os sinais que Lúcia lhe dá; provinciano, parvo em alguns momentos, ele se engana em relação às reações da meretriz. Na confusão de sentimentos que ocorre – da qual temos apenas o ponto de vista de Paulo, que confessa não possuir perspicácia suficiente para entender os fatos –, Lúcia acaba por conduzir o narrador a sensações de prazer inusitadas.
Mas Paulo deseja algo além do sexo? Quando vê, em certos momentos, a mulher abandonar seu “modo singelo e modesto” para expressar-se por meio da “frase ríspida, incisiva e levemente embebida em ironia”, ele afirma sentir desvanecer dentro de si uma “doce ilusão, que, por mais transparente que seja, nubla o espírito crédulo, quando procura no fundo do prazer um átomo sequer de amor”. Essas divagações, contudo, não passam de retórica. O leitor não deve se enganar: Lúcia será, do começo ao fim do romance, o obscuro objeto do desejo de Paulo – apenas do desejo. E aqui faço uma referência precisa: ela será a fêmea inalcançável a que Paulo se submeterá, semelhante à personagem da novela de Pierre Louÿs que Buñuel imortalizou em seu último filme.
A questão central do romance, portanto, não é só, como se costuma repetir, a da mulher que, por ser prostituta, considera-se moralmente corrompida para o amor e tenta, desesperadamente, purificar-se, até alcançar a autodestruição. Há essa passionalidade, sem dúvida – e nesse sentido, o livro caminha na contramão do romantismo, pois a heroína não se liberta das amarras sociais, escravizando-se a elas, certa de que o fato de ser uma cortesã a impede de viver seu grande amor. Mas, de maneira paralela a esse drama, há o outro eixo de Lucíola, mais instigante, do narrador/personagem que embarca numa aventura duvidosa, abrindo mão dos prazeres sexuais em troca de uma experiência de aflitiva castidade, na qual se torna um fantoche, espectador do conflito que a cortesã vive – e sem jamais expressar seu amor por Lúcia, pois realmente não a ama, somente a endeusa, mantendo com ela uma relação nitidamente edipiana. À desagregação mental de Lúcia, que vemos crescer na exata medida em que a jovem se conscientiza de seu amor por Paulo, corresponde a obediência do rapaz inexperiente, satisfeito em seu papel acessório, admirando o escapismo de sua companheira, incentivador excêntrico do que move Lúcia: negar, a si mesma, a possibilidade de unir prazer e amor.
A jovem prostituta acredita que deve seguir repetindo o que fez por seus familiares: tornar-se o cordeiro imolado, mas agora num ritual em que ela assume, ao mesmo tempo, o papel de vítima e de sacrificante – e, o mais terrível, em nome de um amor que não é recíproco. Seu masoquismo chega às raias da promiscuidade quando ela propõe a Paulo que ame sua irmã caçula, sugerindo que Ana lhe daria “os castos prazeres” que ela não podia dar – “e recebendo-os dela, ainda os receberias de mim”. Delirando em sua histeria, Lúcia conclui: “Que podia eu mais desejar neste mundo? Que vida mais doce do que viver da ventura de ambos? Ana se parece comigo; amarias nela minha imagem purificada, beijarias nela os meus lábios virgens; e minha alma entre a sua boca e a tua gozaria dos beijos de ambos”. Ou, um pouco antes, anunciando a morbidez de seus pensamentos: “Quero uni-la ao santo consórcio de nossas almas. Formaremos uma só família; os filhos que ela te der, serão meus filhos também; as carícias que lhe fizeres, eu as receberei na pessoa dela. Seremos duas para amar-te; uma só para o teu amor”.
O desvio é nítido: o desejo não realizado tornou-se neurose. Mas essa é a única proposta que Paulo recusa. Às outras, obedecerá sempre, resignando-se a um único prazer sexual, o ato de, arrastando-se pela relva, beijar as pontas das botinas de Lúcia, que surgem sob “a orla do vestido” (numa clara alusão ao fetiche que Alencar exploraria em A pata da gazela, de 1870).
Lúcia hipnotiza e submete esse elemento masculino dócil; e à medida que o romance se aproxima do fim, enquanto ela abandona a antiga personalidade, chegando a adotar um novo nome, não por acaso “Maria”, a ex-cortesã passa a controlar, ordenar, exigir – e será obedecida nas menores vontades. Paulo descreve o “gesto imperativo” que o faz obedecer ou que o “obriga” a, por exemplo, ajudá-la a pentear a irmã e, principalmente, beijar as pontas dos anéis de “cabelos finos e sutis”. Diante do que ele conclui: “O que ela exigiria de mim que eu não fizesse para vê-la feliz do seu desejo satisfeito?”. E mesmo antes, quando a transformação de Lúcia, mal iniciada, já nega a Paulo os arroubos da libido, ele confessa: “Contudo, ou por um doce hábito, ou por uma misteriosa influência do passado, preferia a frieza dessa mulher aos transportes de qualquer beleza; guardava-lhe sem sacrifício, como sem intenção, uma fidelidade exemplar”.
Tal é o amor antirromântico de Alencar, processo de sublimação que condena Lúcia a se autodestruir e Paulo a um prazer frio – paixões pervertidas por preconceitos, por psicopatologias e pela culpa. E por um cristianismo deformado, que Alencar transforma em mero misticismo, religiosidade que acorrenta a protagonista ao pecado – situação, por sinal, descrita muito bem, ao fazer Lúcia comentar, quando vê que Paulo joga pedrinhas em um pequeno tanque natural, de águas a princípio cristalinas: “– A lama deste tanque é meu corpo: enquanto a deixam no fundo e em repouso, a água está pura e límpida”.
Ao introjetarem, de maneira errônea, os valores de sua época, os personagens de Alencar se cobrem de uma estranha vestidura, de um romantismo que ou nasce distorcido pela moral, pelas regras sociais e por um falso cristianismo, ou exige do leitor que volte a ser criança e acredite na ilusão das novelas de cavalaria – como propôs, aliás, seriamente, Augusto Meyer num ensaio publicado em 1964 (no volume A chave e a máscara), chamando de “degenerados leitores” aqueles que não conseguiam olhar sem desagrado o “clima de intemperança fantasista” de O guarani.

BONS E MAUS RESULTADOS | No que se refere à linguagem, também não podemos pedir muito de Alencar. Se pensarmos de quais matrizes saíram seus romances, nossa primeira reação será a da indulgência: os folhetins abundavam na Corte, traduzidos ou escritos por autores nacionais, e ele se acostumou a produzir essa forma literária bem pouco exigente; além disso, uma das suas principais inspirações, François-Auguste-René, visconde de Chateaubriand, é, segundo Otto Maria Carpeaux, pleno de “eloquência ornada”.
A desenvoltura do pensamento de Lúcia, sua agilidade mental, domina a primeira parte do romance graças aos diálogos de frases breves e incisivas. E mesmo nos capítulos finais, quando nossa anti-heroína já se encontra destituída de vigor, da febre que manifestava ao se entregar a Paulo, ela ainda expressará uma lógica que, passível de ser contestada, é impecável.
O árduo trabalho de Alencar com a língua – Araripe Júnior conta que, quando jovem estudante em São Paulo, o escritor perdia horas “copiando trechos de João de Barros e Damião de Góes, decompondo os períodos monumentais destes escritores, diluindo frases, compondo de novo, buscando com parcimônia beneditina descobrir o segredo da originalidade dos seus dizeres tão pitorescos” – produziu frutos. O movimento insinuante da cortesã ganha vida não só graças à construção da frase, mas ao rumorejar que nasce da aliteração: “Ao sair, dobrou o seu talhe flexível inclinando-se vivamente para o meu lado, enquanto a mão ligeira roçava os amplos folhos da seda que rugia arrastando”. E quando o escritor faz uso equilibrado dos adjetivos, seu texto se liberta do romantismo sentimentaloide, mesmo se ele nos apresenta Lúcia na forma de um animalzinho casto: “Passei-lhe o braço pela cintura e apertei-a ao peito; eu estava sentado, ela em pé; meus lábios encontraram naturalmente o seu colo e se embeberam sequiosos na covinha que formavam nascendo os dois seios modestamente ocultos pela cambraia. Com um primeiro movimento, Lúcia cobriu-se de ardente rubor; e deixou-se ir sem a menor resistência, com um modo de tímida resignação”. Mas pode chegar a uma linguagem quase realista, como no trecho a seguir, em que vemos a personalidade da cortesã, agradavelmente pendular desde o início, explodir num paroxismo de concupiscência: “Enquanto a admirava, a sua mão ágil e sôfrega desfazia ou antes despedaçava os frágeis laços que prendiam-lhe as vestes. À mais leve resistência dobrava-se sobre si mesmo como uma cobra, e os dentes de pérola talhavam mais rápidos do que a tesoura o cadarço de seda que lhe opunha obstáculos. […] Há mulheres gastas, máquinas de prazer que vendem, autômatos só movidos por molas de ouro. Mas Lúcia sentia; sentia sim com tal acrimônia e desespero, que o prazer a estorcia em cãibras pungentes. Seu olhar queimava; e às vezes parecia que ela ia estrangular-me nos seus braços, ou asfixiar-me com seus beijos”. Ou, ainda, esta bela descrição, em que Paulo, enciumado, quase desfaz a imagem que temos dele: “Estava excessivamente pálida, e a cor escarlate do vestido ainda lhe aumentava o desmaio; os olhos luziam com ardor febril que incomodava, e os lábios se contraíam num movimento que não era riso nem ânsia, mas uma e outra coisa. Entretanto nunca essa mulher me pareceu tão bela; e a ideia de que ela se enfeitava para outro homem irritava-me a ponto que estive de precipitar-me e espedaçar, arrancando-lhe do corpo, as galas que a cobriam”.
Em outros momentos, contudo, o escritor não consegue se livrar do ranço folhetinesco, estragando sua narrativa com adereços melosos: “O meu pensamento impregnado de desejos lascivos se depurava de repente, como o ar se depura com as brisas do mar que lavam as exalações da terra” – ou “duas lágrimas em fio, duas lágrimas longas e sentidas,como dizem que chora a corça expirando, pareciam cristalizadas sobre as faces, de tão lentas que rolavam” [grifos nossos]. Esses artifícios, essas concessões ao público da época, estragam às vezes longos trechos.

ÊXTASE FINAL | Que Alencar tenha condenado seu narrador à subserviência e à timidez de caráter, e Lúcia à exacerbação da culpa, são escolhas que não podem ser perdoadas. Mas as palavras finais da cortesã negam a purificação doentia a que se entregou. Seu êxtase final é semelhante a um clímax em que a pobre vítima de si mesma implora para ser tomada não pela divindade, mas por seu submisso: “– Recebe-me… Paulo!”. Assim permanecem, ao fecharmos o livro, as duas Lúcias: a meretriz e o anjo que, coberto de preto, caminha rumo à igreja, pedindo clemência à sociedade e a Deus – mas que, por não aceitar o perdão, jamais provará o amor.

NOTA
1. A presença de um vocabulário de forte influência portuguesa em Memórias de um sargento milícias – publicado, na forma de folhetim, três anos antes de surgir O guarani – em nada diminui a vivacidade do romance de Manuel Antônio de Almeida, demonstrando o quanto não era essencial a campanha de Alencar para dar vida a uma linguagem verdadeiramente brasileira.
  

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Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
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