Ler um livro é desinteressar-se a gente deste mundo comum e objetivo
para viver noutro mundo. A janela iluminada noite adentro isola o leitor da
realidade da rua, que é o sumidouro da vida subjetiva. Árvores ramalham. De vez
em quando passam passos. Lá no alto estrelas teimosas namoram inutilmente a
janela iluminada. O homem, prisioneiro do círculo claro da lâmpada, apenas ligado
a este mundo pela fatalidade vegetativa do seu corpo, está suspenso no ponto
ideal de uma outra dimensão, além do tempo e do espaço. No tapete voador só há
lugar para dois passageiros: Leitor e autor.
Os rumores do momento não conseguem despertar o sonâmbulo encantado,
a caminhar sem vacilações sobre o fio invisível da fantasia. Descobriu, pela
mão do autor, outro mundo, sublimado e depurado, e dentro dele alguém gritou:
terra! terra! Volveu a si mesmo.
O leitor ingênuo é simplesmente ator. Quero dizer que, num folhetim
ou num romance policial, procura o reflexo dos seus sentimentos imediatos,
identificando-se logo com o protagonista ou herói do romance. Isto, aliás, se
dá mais ou menos com qualquer leitor, diante de qualquer livro; de modo geral,
nós nos lemos através dos livros.
Mas no leitor ingênuo, essa lei dos reflexos toma a forma de um
desinteresse pelo livro como obra de arte. Pouco importa a impressão literária,
o sabor do estilo, a voz do autor. Quer divertir-se, esquecer as pequenas
misérias da vida, vivendo outras vidas desencadeadas pelo bovarismo da leitura.
E tem razão. Há dentro dele uma floração de virtualidades recalcadas que, não
encontrando desimpedido o caminho estreito da ação, tentam fugir pela estrada
larga do sonho. No fundo, o João mais resignado pensa como os seus demônios: ou
César, ou nada!
A leitura, nesse caso, será um anestésico dos complexos de
humilhação e parece dizer, como o nosso poeta:
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz.
No leitor ingênuo, é mais acentuada a dissociação entre realidade e
fantasia. O mundo presente, complexo de sensações importunas, mal consegue
romper o círculo da sua concentração. A posição incômoda na cadeira, o peso do
livro, todos os tropeços que estorvam a abstração da leitura, não sacodem o
distraído nem despertam o dorminhoco. Está roncando o seu lindo sonho
O tipo representativo do leitor ingênuo é o devorador de romances
que salta capítulos inteiros para chegar ao fim e saber de uma vez qual foi o
prêmio do herói, se o moço casou com a moça e o dedo de Deus castigou o mau. De
tal modo se identificou com o herói, passando a viver da sua existência
sublime, que deseja saber o seu destino como quem quer desvendar o próprio
futuro. Ele, simples João, é o conde de Monte-Cristo. Agigantado, corre nas
suas veias outro sangue, mais generoso. Enquadra na grande aventura as suas
desventuras. Os olhos ávidos, arrastados linha a linha, página a página, pelo
galope da fantasia, estão dizendo: esta é a verdadeira vida, a outra não passa
de um pesadelo. Inconscientemente, repete o gesto simbólico de Rubião em
Quincas Borba - com uma coroa de brisa, ele próprio se coroa rei.
A imaginação, velha dueña experiente que protege os amores da vida e
do sonho, não é aquela "folle du logis" proverbial. Bem sabe que tudo
depende do contrato entre o cinismo e a esperança. Vende ilusões. Cobra caro,
às vezes, mas quem poderá pagar uma ilusão? Quando Alonso Quijano deixou de ler
os livros de cavalaria andante, amargou saudades de si mesmo.
E aí está o exemplo clássico da identificação do leitor com a
personagem fictícia. Alonso Quijano enganchou-se à garupa dos cavaleiros
andantes e tentou viver as suas leituras. Aos quinze anos, quem já não foi
mosqueteiro de Dumas, perdendo, porém, o penacho aos primeiros desmentidos da
realidade?
Relendo, por volta dos quarenta, os romances devorados na
adolescência, quando o mundo é enorme e parece inesgotável a disponibilidade da
fantasia, compreendemos a importância da educação sentimental contida nos
livros de ficção.
O que predominava no leitor monstruoso que já fomos um dia, era a
delícia de criar, acima da realidade, um ambiente de refúgio, onde tudo
palpitava de uma vida mais intensa. A larva dos desejos, dos incertos e impuros
desejos, vestia as asas do sonho, e abrir o livro era liquidar os cuidados
importunos, cortando qualquer nó de um só golpe, ao simples virar das folhas.
Tudo isso repetido vezes sem conta e criado o hábito da fuga, é
claro que volvíamos a este mundo estreito com uma vaga saudade do outro, onde
não havia sabatinas complicadas nem deveres urgentes para com a família.
É quase sempre no ginásio, aliás, que a sedução dos primeiros
romances começa a exercer seu império sobre o adolescente. A monotonia mesmo da
rotina escolar serve nesse caso de contraste oportuno; de súbito, no meio da
análise lógica, a "Prece" do Guarani, ou qualquer página de grande
escritor, destinada a agitar a imaginação entorpecida, cai sobre o incauto como
um doce raio de luz, provoca a fermentação dos devaneios, e o livro cartonado e
sujo, que parecia a bíblia do tédio, abre-se em perspectivas de mistério e
delícia. Começa uma vida nova para o leitor que desabrochou agora mesmo no
estudante bisonho.
Gula das leituras intermináveis, noite adentro, acompanhando a sorte
dos heróis com verdadeira angústia, enquanto os aborrecimentos rondavam a
concentração do visionário, sem licença de entrar. Era uma ebrieza como a outra
e deixava, ao passar, um gosto melancólico de cabo de guarda-chuva - a
nostalgia de um paraíso perdido.
Ainda hoje as edições Garnier de capa vermelha me perturbam como
velhas fraquezas mal recalcadas. Não dizer a ninguém, rumino comigo, quanto
sonho está enterrado naquelas relíquias, nem o mal que me fizeram aos quinze
anos.
É em vão, por exemplo, que Alencar se reveste de outra roupagem e
ressurge sob a cor da folha morta nesta edição Melhoramentos por sinal bastante
melhorada, como feitura gráfica e revisão do texto. Quando abro o volume, tenho
a impressão de retomar o mesmo volume antigo, e apesar da brochura e da cor, parece
que é a mesma capa encarnada que estou sentindo entre as mãos.
Mas o leitor mudou. Apalpa desconfiado o miolo do livro, talvez com
medo de não encontrar mais a ilusão de outros tempos, quando passava horas no
ópio literário e vivia, estirado na cama, as aventuras de Arnaldo Loredo, o
sertanejo, ou do altivo Estácio das Minas de prata. Parafraseando o provérbio
alemão, ninguém passa impunentemente à sombra das palmeiras de Alencar.
[...]
Às vezes, tão intenso era o prestígio da ficção, que, entre uma cena
comovente apenas imaginada ou lida e o espetáculo real das misérias humanas, a
lágrima não hesitava: escolhia os olhos do leitor. Parece que a feiúra da
realidade, com seus dramas em carne e osso, a estancava logo, por não sei que
absurdo mistério da contradição. No fundo, a piedade hipócrita de um lascivo
amador de sensações.
What’s Hecuba to him or he to Hecuba
That he should weep for her?
Eu pergunto e passo: constato apenas o prestígio dos fantasmas e um
dos extremos de aberração a que pode chegar o leitor, espécie de ator
potencial, sob a influência do espírito romanesco.
Assim éramos nós então, por não sabermos ler nas entrelinhas. E
daquela primeira fase de educação sentimental, que parecia inevitável como as
espinhas, passava quase sempre o jovem monstro para uma crise de hipercrítica.
Devido à necessidade de um restabelecimento de equilíbrio, o excesso engendrava
o excesso contrário. A pouco e pouco os românticos perdiam terreno em proveito
dos naturalistas. Dava-se uma verdadeira subversão de valores na escala da
sensibilidade e a fantasia comprazia-se em derrubar os antigos ídolos.
Formava-se muitas vezes, coincidindo com manifestações mórbidas que são do
domínio da psicanálise, um pedantismo da clarividência, tão nocivo como a intemperança
imaginosa ou sentimental, e talvez mais ingênuo, pois refletia um ressentimento
de namorado ainda ferido nas suas primeiras ilusões.
Proust escreveu páginas admiráveis sobre o encanto da leitura, ao
prefaciar a sua tradução de Sesame and Lilies, V. John Ruskin, Sésame et les
Lys, traduction, notes et préface par Marcel Proust, quatrième ed. Paris,
Mercure de France, 1906.
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Artista convidada | Rozi Demant (Nova
Zelândia, 1983)
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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão |
FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe de tradução
ALLAN VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA
FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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todos os direitos reservados © triunfo produções ltda.
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