segunda-feira, 6 de agosto de 2018

AUGUSTO MEYER | Discurso de posse na Academia Brasileira de Letras



Senhores,
No limiar desta Casa, convocado pelo generoso voto dos meus pares, se hesito ainda no degrau da entrada, não é só pela conveniência de uma atitude composta, que não esquece o rigor do ambiente e o olhar judicial do auditório, mas também graças àquela humildade que se aprende no trato das causas do espírito, e anda sempre de cabeça baixa, vergando seu peso da autocrítica. Já dizia um poeta entre os poetas, agora integrado em vosso grêmio, que “a vida é de cabeça baixa”.
Não certamente a presunçosa cabeça baixa do imperador Constâncio ao passar sob um arco de triunfo, como a sugerir – assim dizia Amiano Marcelino – que a sua mirrada estatura ameaçava derrubar as portas da glória. Não mas a pensativa atitude de um magro sonhador que aprendeu a curvar-se diante da vida e a caminhar lentamente para os lados do crepúsculo distendido em sombra longa.
“Nós somos a sombra de um sonho na sombra”, murmurava, lá pelos idos de 28, o tresnoitado poeta Bilu, parafraseando Píndaro, como observou Manuel Bandeira.
Se me debruço um pouco para dentro de mim mesmo, voltando aos caminhos confusos da juventude, vejo um mocinho espigado e tímido, já mais ou menos doente de Literatura. Colecionava páginas e páginas de revistas cariocas, onde vinha então, quase sempre enquadrada em vinheta ilustrativa, a colaboração aos poetas mais celebrados naquele momento.
Encadernado em couro vermelho, era um ingênuo florilégio feito de folhas avulsas, que ainda estou compulsando. Entre um poema e outro poema, no anverso de cada folha, apareciam as coisas mais disparatadas, de rebus pluribus, e entre elas, alguns retratos de acadêmicos. A Academia Brasileira...
Quem não sonhou de longe, provinciano e bisonho, estas quimeras de gosto, na expressão do clássico, não imagina o que é sofrer de Literatura e nem é digno, pensando bem, de conquistar um lugar nesta Casa. Tudo aquilo parecia-me então sublime, recuado e vertiginoso, como a nossa marcha estelar no rumo de Vega da Lira.
E agora, senhores acadêmicos, a primeira ideia que me acode, se ouso dar os primeiros passos ao encontro da Cadeira 13, galardoado com o vosso voto e o auriverde fardão, é que este mundo é vário, imprevisível a fortuna – e tudo pode acontecer, inclusive o degenerado representante daquele mocinho tímido generosamente na Casa de Machado de Assis.
Na vossa ilustre companhia, aos vivos se ajunta a sombra de grandes mortos e por isso mesmo falam mais alto no convocado as razões da modéstia, geralmente esquecidas. Devo talvez penitenciar-me do prêmio, relendo Matias Aires, ou seu padrinho La Rochefoucauld? Mas vejo que assim, duvidando de mim mesmo, dissentindo da aprovação dos que me elegeram, pecaria dessa outra forma de intemperança: o gosto amargo da humilhação, a que muita vez não faltam certos laivos de hipocrisia, quando começa a aparecer, entre duas curvaturas, a ponta lívida e contrita do nariz de Tartufo...
Creio que basta, para o arrefecimento das vaidades acadêmicas, o tempero de uma fábula de Fedro, ou melhor ainda, reler com alguma atenção as palavras do bruxo de Cosme Velho, quando adverte:
A vida dos livros é vária, como a dos homens. Uns morrem de vinte, outros de cinquenta, outros de cem anos, ou de noventa e nove... Muitos há que, passado o século, caem nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a História, em parte para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou longo, é um pequeno retalho de glória.
A imortalidade é que é de poucos.
E não será descabido reforçar as razões da modéstia, refrescando a memória das nossas contradições. A Academia é uma espécie de casamento, e já confessava o acadêmico N., solteirão sarcástico na anedota de Chamfort: “Eu disse horrores da Academia, e eis-me acadêmico; a julgar pelo exemplo acabarei arrependido e casado.”
Penso que a principal virtude e o melhor influxo deste ambiente é o de incutir no espírito do candidato eleito a ideia de uma continuidade no esforço comum, através das gerações. Nele se respira o amor da tradição viva, e o seu exemplo é o de um ideal de confraternidade. Por isso mesmo, desde logo estou sentindo a presença de sombras que provocam os menores desvãos desta Casa.
De uma, quero dizer a feição amiga, mestre a quem fiquei devendo as primeiras aproximações com a Academia Brasileira de Letras: Rodolfo Garcia. Foi ele quem serviu de assistente na minha delicada apresentação de credenciais ao comandante Eugênio de Castro, então diretor do Instituto Cairu. Deu-me, na área imperial da nossa Biblioteca, uma cabeça-de-ponte, uma nesga de Lebensraum, para a instalação do Instituto Nacional do Livro. Surpreendeu-me ali certa vez Rodrigo Octavio a devorar minha frugal refeição na própria mesa de trabalho, que pouco tempo então sobrava para a conquista de mais verba, mais espaço, mais pessoal.
No seu gabinete da Biblioteca Nacional, agrupavam-se os rosacrucianos da História. Estou a rever os mais assíduos: Afrânio Peixoto, Otávio Tarquínio de Sousa, Tasso Fragoso, Artur Neiva, Serafim Leite, Alberto Rangel, Aurélio Porto, Carlos Pontes, Primitivo Moacir, Wanderley Pinto, Batista Pereira, Eugênio de Castro. De vez em quando, sobranceiro, monumental, porejando saber e a afabilidade olímpica de um gigante bom, Afonso Taunay vinha iluminar o ambiente com seus olhos de pervinca e a vigília da prodigiosa memória, sempre de fogos acessos. Ali conheci eu, apresentado por Garcia, o nosso Alfredo Varela, esbelto, elegante, urbaníssimo, encantador; e o mesmo Garcia, num sorriso muito seu entre malicioso e administrativo, mais tarde havia de revelar-me que Alfredo Varela manifestara o desejo de ser amortalhado com o pavilhão tricolor dos Farrapos.
Onde estão eles? Ubi sunt? Só o Dr. Serafim Leite, o robusto historiador da Companhia de Jesus no Brasil, e o desempenado Wanderley Pinho poderiam responder: presente! a uma lista chamada, a um apelo saudoso de relembrança. Um por um, foram-se os outros. Afrânio Peixoto, o primeiro, mais rico de seiva e agilidade, o mais diserto e baiano, o menos conformado com a estranha obrigação de aprender a renunciar, discutindo com a própria sombra as cláusulas da rendição inevitável.
Rodolfo Garcia punha toda a sua vida no aguçamento de uma anotação de pé de página ou fim de capítulo. E quanto esforço de pesquisa, resumindo em poucas linhas, quanto zelo de bolandista, ao dar o máximo de conteúdo, num mínimo de fadiga para o leitor! Teria sido se quisesse, nos domínios da lexicografia, um mestre consumado e inigualável. Mas em vão insisti com ele para que aceitasse a incumbência de organizar um Dicionário de História do Brasil. Quantas vezes, depois do expediente, esclarecia um passo mais controvertido de História colonial, sugeria novas pesquisas de arquivo, relembrava apenas asperezas e malícias de Capistrano! Ou, mergulhando na leitura atenta de um código amarelecido, o eterno cigarrilho ao canto do lábio, deixava-se estar todo esquecido de si mesmo, cercado de uma nuvem de fumaça, a um só tempo reconcentrado e vago, pois, se aparentemente ali o víamos nós outros, em verdade vagueava então pelos meandros sutis de uma glosa erudita e pulara séculos, a dialogar com Ambrósio Fernandes Brandão, Nuno Marques Pereira, Fernão Cardim – talvez algum Visitador do Santo Ofício com cara de poucos amigos...
Antes de cumprir à risca as obrigações que me impõe a tradição acadêmica – a evocação do patrono, do fundador da Cadeira e do antecessor – pareceu-me não podia faltar neste pobre discurso uma referência amiga àquele autêntico erudito, o primeiro a apadrinhar minha candidatura.
E vejamos agora, meus senhores, na penumbra de tantos anos sem memória, outra sombra, esquiva e sedutora. Os olhos sorriam à morta poesia de um destino já cumprido. Quando homem, havia nele sem dúvida um encanto indefinível que logo se entrevê no testemunho dos contemporâneos.
Deputado, senador, conselheiro, plenipotenciário, tudo ficou devendo Francisco Otaviano à “Messalina impura”, à Política destratada num desabafo ingrato. É que havia dentro dele a má consciência da vocação mal desempenhada: era um poeta, e não só em momentos medidos e intencionais de Poesia, mas virtualmente um poeta, no desafogo da prosa jornalística, na crônica leve, tecida de improvisos, na graça confidencial da correspondência. Já observou Antonio Candido:
Muitas vezes a vocação existe; na maioria dos casos, porém, só parece existir porque não pudemos segui-la. Então, durante a vida inteira, age como paraíso perdido e escusa servindo-nos para justificar a mediania das realizações e alimentar o sonho banal de cada dia.
Otaviano, ou a virtualidade poética... Daria o tema bom pretexto para desenvolver o estudo psicológico das vocações insatisfeitas, mediante a análise daquele contraditório vaivém, entre estímulo e desânimo, que parece desgovernar o esforço criador, no mecanismo das criações truncadas. Certo não faltam vocações viúvas ou mal casadas, solteirões da vocação poética. Parece que estão dizendo: might have been, poderia ter sido e não foi. Entre a vocação e o poema, apesar dos momentos de namoro, talvez o beijo e a carícia fugaz, não se verificou afinal o fecundante enlace, que é renovo da insatisfação, longo aprendizado conjugal e necessidade na continuidade. No caso de Otaviano, o might have been, poderia traduzir-se numa paráfrase do seu famoso poema. Cuidamos que está repetindo a si mesmo, incansavelmente:

Quem passou pela vida e não foi poeta,
Foi fantasma de homem, não foi homem,
Só passou pela vida e não viveu.

Não deveis procurar o melhor da sua poesia nos versos que deixou, mas na prosa do cronista, naquelas crônicas em que já sentimos o antegosto do cronista Alencar, do cronista Machado de Assis. Tenho afagado muitas vezes a vaga idéia de uma Antologia da Crônica Brasileira, e parece-me que é data importante, na cronologia do tema sugerido, aquele 2 de dezembro de 1852, quando Francisco Otaviano começa a publicar no Jornal do Commercio a sua colaboração dominical, sob o título: “A Semana.” Foi ele o primeiro a tratar com leveza e agilidade as transições graciosas e sem aparente juntura de tema a tema, fazendo da crônica um aperitivo de muitas sugestões, que vão de tudo a nada e de nada a tudo: a técnica do borboleteio dirigido. Poeta menor e tradutor de poetas, na prosa deixou a marca de um andamento mais firme, com a vantagem de esquecer então o acicate das veleidades líricas, o seu voto inconfessado:

Sublimi feriam sidera vertice.

Xavier Pinheiro, em 1925, junto ao escorço biográfico uma seleção de escritos, versos e prosa. Compreende a seção poética “poesias originais inéditas”, “traduções inéditas” e “traduções publicadas”. Mas a parte reservada à prosa nem de longe corresponde à importância de sua produção. Otaviano foi prosador, acima de tudo jornalista. Como observou Ferreira de Araújo: “Filho do povo, educado na imprensa fez pela sua pena o que quis fazer: foi deputado, foi senador, foi chefe de partido, foi diplomata, não foi ministro porque não quis.”
Só uma pesquisa demorada na Gazeta da Instrução Pública no Jornal do Commercio, no Correio Mercantil, no Diário do Povo, na Tribuna Liberal e na Reforma dará uma primeira colheita menos incompleta dos seus escritos. No fundo, portanto, uma atividade voltada para a ação imediata, com intermitência de evasão romântica, logo refreadas. Era um homem de ação, mas facilmente desinteressado e capaz de sentir os lados negativos da sua participação na vida política, ou na vida literária.
Mais que Poesia, mais que na Prosa jornalística, ou na oratória parlamentar, quem sabe o Otaviano fiel a si mesmo anda acaso perdido no desalinho confidencial das cartas? As deliciosas cartas ao seu amigo Arêas e a José Antônio Saraiva, do arquivo do Instituto Histórico, algumas cartas datadas de Montevidéu, que cheguei a consultar no original, estão pedindo comentário e editor. É o que nos promete Wanderley Pinho para muito breve, depois de acurada pesquisa de longos anos. Chegaremos então a compreender com mais intimidade e uma desarmada simpatia o tom cativo, de admiradores incondicionais, que notamos nas referências dos contemporâneos. De qualquer modo, ganha muito o encanto singular de Francisco Otaviano com a distância no tempo e a relativa imprecisão do seu perfil. Otaviano, poeta virtual, franja de indecisões da personalidade me faz pensar na poesia do indefinido. Todas as coisas limitadas têm sempre saudade de outras coisas e se entregam à nostalgia do indefinido. Ou, como dizia tão lucidamente um grande conhecedor das nossas contradições: “Toda coisa já traz em si mesma a tristeza da sua forma, a tristeza de ser assim e não poder mudar – ser outra coisa...”
Houvesse a liberdade da escolha, e eu não poderia ter escolhido patrono mais oportuno e mais condescendente Chego a imaginar que ele está murmurando para meu uso e numa cumplicidade maliciosa as palavras de um grande poeta, em seu discurso de recepção na Academia Francesa. “Qu’est-ce qu’un esprit de qui les pensées ne s’opposent aux pensées, et qui ne place son pouvoir de penser au-dessus de toute pensée?”.
Quem passou pela vida e não hesitou, voltado para a rosa dos rumos, quem não parou muitas vezes à beira do caminho, duvidando, ou sonhando a aventura de outros roteiros, quem alimentou sempre a ilusão de possuir a verdade num corpo limitado e nunca admitiu, de si para si: poderia ter sido, foi abstração de homem, não foi homem.
Só passou pela vida e não viveu.
Dizia Hélio Lobo certa vez a um jornalista, a propósito da Cadeira 13: “Talvez pela sugestão de número, sempre ela foi considerada a das sombras; de quatro de seus ocupantes, o Visconde de Taunay, Francisco de Castro, Martins Júnior e Sousa Bandeira, dois nem mesmo lograram ocupá-la.” Referia-se a Francisco de Castro e Martins Júnior. Francisco de Castro, que seria recebido pelo seu amigo Rui Barbosa, faleceu sem tomar posse da Cadeira. Martins Júnior, nos dois anos de vida que lhe restavam, sempre se manteve a distância e tomou posse por carta. Em compensação, e apesar do 13 agoirento, Hélio Lobo foi acadêmico durante um longo período de quarenta anos. O desmentido prosaico não deixa de confortar o seu inquieto sucessor.
Hélio Lobo nasceu em Juiz de Fora, a 17 de outubro de 1883, e faleceu no Rio de Janeiro, a 29 de janeiro de 1960. Cursou a antiga Faculdade Livre de Direito, colando grau a 23 de dezembro de 1904. Logo após a formatura, passa a colaborar na Gazeta Jurídica, de São Paulo, e na Revista Forense, de Belo Horizonte.
Em 1908 é nomeado auxiliar do Tribunal Arbitral Brasileiro Boliviano, criado pelo Tratado de Petrópolis, e a 23 de junho de 1910, exerce as funções de secretário da Delegação Brasileira à 4.ª Conferência Internacional Americana de Buenos Aires. Nesse mesmo ano, ingressa no quadro permanente do Itamaraty, onde irá conquistar todos os postos da carreira.
Foi Secretário da Presidência no Governo Wenceslau Brás. Secretário Geral da Delegação do Brasil no Congresso da Paz, Versalhes, em 1918. Delegado do Brasil à V Conferência Internacional Americana, em Santiago. Delegado do Brasil à Conferência Interamericana de Consolidação da Paz. Representante do Brasil no Conselho de Administração da Repartição Internacional do Trabalho, em Genebra. Delegado do Brasil à Conferência Internacional do Trabalho:
Publicou: Sabres e Togas, 1906; De Monroe a Rio Branco, 1912; Brasil, Terra Cara, 1913; Antes da Guerra, 1916; Cousas Diplomáticas, 1918; Causas Americanas e Brasileiras, 1923; A Passo de Gigante, 1925; Brasilianos e Yankees, 1926; A Democracia Uruguaia, 1929; No Limiar da Ásia, 1935; Docas de Santos, 1936; Um Varão da República, 1937; Manuel de Araújo Porto Alegre, 1938; O Pan-americanismo e o Brasil, 1939; O Domínio do Canadá, 1942; A Lição Suíça, 1949.
O melhor do esforço está, pois, dedicado às “coisas diplomáticas, e História diplomática oscilando entre os objetivos imediatos da carreira e a pesquisa dos arquivos, como podemos ver de modo exemplar em Às Portas da Guerra. Mas, permeando a obra toda, a contar de Sabres e Togas, notamos a constante preocupação pelas questões de Direito Internacional Público. Sobre o internacionalismo, aliás, já se manifestou, com a autoridade que me falta, o professor Haroldo Valadão. Todos os que nos interessamos pela História literária e das artes plásticas no Brasil, ficamos devendo muito ao seu estudo biográfico sobre Araújo Porto Alegre, ainda hoje fonte indispensável de consulta, que deveria andar ao alcance dos pesquisadores. Também ao traçar a biografia de seu pai, Fernando Lobo, deixou falar os documentos e preferiu dar mais relevo ao ambiente político em Minas, durante o agitado período inicial da República.
É de cabeça cada vez mais baixa, numa atitude reverente de bárbaro às portas do Capitólio, que estou considerando a imponência dessa produção. Conheço-a mal, traduzida a meu gosto e alcance, com o arbítrio de um impressionista. Meu parecer, em tais condições nada pesaria nos pratos da balança. Convidado a opinar, ousaria quando muito sugerir. E um pobre suonatore di flauto, afeito ao subjetivismo das divagações literárias, como há de apreciar com devido rigor crítico a austera obra que deixou Hélio Lobo, toda consagrada a problemas de sua especialidade? Nem cabe nas proporções de um discurso acadêmico esse desenvolvimento analítico.
Pareceu-me, isto sim, que devia tratar essa obra, tão digna por todos os títulos, com a atenção objetiva que está convocando a cada instante no espírito dos seus leitores. Mais cômoda seria, sem dúvida, a desobrigada solução de um elogio formal, como quem se limita a louvar para não ler. Mas na problemática tão complexa e tão sujeita a variações que está contida necessariamente nos temas da preferência de Hélio Lobo, a dialética da História se renova a cada passo, e o que parecia atual a seu tempo, evolveu com a mudança de perspectiva.
Para meu uso, direi que alguma lição proveitosa me ficou do estudo mesmo incompleto dessa obra. Ficou-me a impressão de um mundo já distante, com outro estilo de vida, em que ainda era possível tratar de americanismo à luz oficial da doutrina de Monroe, prescindir das pesquisas de História econômica, ao deslindar uma questão de História diplomática, reduzir os grandes problemas internacionais ao âmbito da norma preceitual e jurídica, e considerar under western eves, com recuo e expanto, a formidável convulsão social dos nossos dias, estacando prudentemente “no limiar da Ásia”... Reduz-se então o fato histórico a simples conseqüência da intriga política dos gabinetes, ou das operações militares.
Nos anos trágicos de 1939, Ilhado em Genebra, escrevia Hélio Lobo, ao prefaciar o Pan-americanismo e o Brasil: “Entre tropeços vários, ensaios reiterados e desvios eventuais, a América não se apartou de seu ideal da paz pelo direito. Há nisso um esforço perene, que não tem, como expressão continental, paralelo noutras partes do mundo.” E mais adiante, reproduzia a solene declaração exarada em documento memorável, na Conferência do México, em 1901: “Por mais que um pessimismo amargo proclame inúteis os esforços destinados a realizar entre os homens o predomínio da justiça e o desterro da força como substituto do direito, é preciso convir em que a afirmação constante de sãs teorias e sua aceitação oficial pelos governos, mediante convênios ou declarações em comum, que os obrigam moralmente, irão criando uma opinião tão poderosa que acabe por extirpar os abusos mais arraigados.
“Palavras estas que poderiam servir de epígrafe a toda obra de Hélio Lobo, repassada de um espírito de sadio humanismo, o mesmo humanismo de que se alimenta o Direito internacional público.”
Já houve quem apontasse em tais declarações o ascendente da “ilusão jurídica”, isto é, daquele obrigatório otimismo dos magistrados e plenipotenciários nas cortes internacionais, quando imaginam corrigir a violência a golpes de leis, ou acordos, sem atacar a questão nas suas causas profundas. Sua atitude corresponde a um impulso de inconsciente defesa, como de quem se esquiva a uma análise mais detida, para que não esmoreça a coragem de afirmar. Observa Santo Hilário pela glosa de Bernardes, que “há entre os homens tantas fés quantos quereres”, tet existere fides quot voluntates.
E não obstante já então bem outra começava a mostrar-se a lição da História americana, com o exemplo de Cuba. Do mesmo ano da Conferência do México é a famosa Emenda Platt, imposta a uma assembleia constituinte convocada pelo comando militar americano, pelo qual Cuba se obrigava a não contrair dívidas incompatíveis com suas rendas e concedia aos Estados Unidos o direito de intervir no país, garantindo a permanência de governos capazes de assegurar a proteção da propriedade privada. A emenda, além disso, autorizava generosamente Cuba a vender ou arrendar aos Estados Unidos as bases navais de Guantánamo e Bahia Honda e foi aprovada pelo senado americano sem que os convencionais cubanos dela tivessem conhecimento prévio.
As consequências aí estão, meus senhores, para mostrar que a verdadeira História não costuma pautar-se pela cláusula oficial de tratados, convenções e acordos. Como, de outro lado, bastaria uma seca enumeração de fatos históricos, de 1826 aos nossos dias, para deixar bem claro que a doutrina de Monroe, brilhando pela omissão no que resta a um anteparo contra as acometidas da avidez europeia, revelou-se, do ponto de vista continental, mera preservação de um espaço econômico votado ao expansionismo da hegemonia norte-americana; uma preservação de áreas de influência, mantidas em estado de subdesenvolvimento.
Era no fundo, uma variante americana daquele desconcerto fundamental que viciou pela base a europeização do mundo: o liberalismo como filosofia da expansão, provocando a necessidade de um retrocesso como instrumento de progresso. Retrocesso como instrumento de progresso não é um gratuito jogo de rimas, e quer dizer o seguinte: aos colonizadores e ao imperialismo capitalista pouco importava a negação dos seus propalados ideais entre os povos subdesenvolvidos, quando semelhante negação vinha consolidar sua esfera de influência, em proveito dos seus interesses. Ainda melhor: da inércia, do pauperismo da desarticulação, do retrocesso político faziam poderoso instrumento a serviço do progresso ocidental. E é curioso verificar o aspecto moral e confessional dessa contradição. Em Asketischer Protestantismus und Kapitalistischer Geist (A Ética Protestante e o Espírito de Capitalismo), refere-se Max Weber à “moral para uso externo” dos colonizadores ocidentais.
Passada a linha, a moral para uso externo tolerava, nas relações com os povos chamados nativos o que estava condenando severamente a moral cristã, na relação entre irmãos.
Agora mesmo, outro Acadêmico, Barbosa Lima Sobrinho, acaba de publicar um notável discurso pronunciado na Câmara dos Deputados, Cuba e o Dever do Brasil, em que analisa magistralmente a situação cubana em seus diversos aspectos. “Que livro delicioso, que tratado de hipocrisia e de astúcia não se escreveria, com o estudo dos pretextos de que se tem valido o Imperialismo, para a sua tarefa de espoliação!”, diz ele.
E não obstante, por uma espécie de salto dialético, o imprevisto já começou. Estamos assistindo, meus senhores, a um formidável despertar das energias adormecidas, não só no Oriente e na velha China, mas na América Hispânica e na própria África, ainda há pouco a grande terra de ninguém, the heart of darkness, imensa extensão continental de possessões e protetorados, presa fácil da gula colonialista. Esta Ifrikya, esta Negrícia dos humanistas começa agora a fermentar, e novas perspectivas históricas se descortinam, que deixariam atônitos os seus desbravadores, a começar pelo Infante de Sagres,com seu talent de bien faire. Os brancos terão de enfrentar as consequências desse novo nacionalismo que eles mesmos provocaram no Próximo Oriente e na África do Norte. Já em 1920, num artigo memorável publicado na revista The Round Table, sob o título The Changing East, Thomas Edward Lawrence, cognominado o Árabe, havia chegado a uma intuição profética destas reações inesperadas. Mas em nossos dias, como bem sabeis, na África do Norte e outras regiões do Continente, trata-se de um movimento irreprimível de rebeldia e autodeterminação.
Começou a afirmar-se aos poucos o verdadeiro espírito universalista, que é a essência do Humanismo. Por enquanto, parece manifestar-se apenas com a ingenuidade das contradições, como proliferação de nacionalismos destemperados. Não importa; é a conquista para melhor. Il faut tenir les pas gagnés. A imagem viva e plástica desse espírito é a nave sideral dos astronautas, é Gagarin dizendo: Vamos! ao sinal de lançamento...
Mas – torno a reconhecer – não cabe nas intenções de um discurso o desenvolvimento mais amplo da questão. Meu intuito foi apenas mostrar como a obra de Hélio Lobo necessariamente provoca uma atitude crítica no leitor de hoje e convida a uma revisão de valores, com a dramática mudança que se verificou a contar de meados do século. Se a História merece algum crédito, é quando obriga a repensar a lição histórica, à luz do presente, para nós outros, sul-americanos, é o heróico exemplo de Cuba, de Cuba espoliada e agora mesmo invadida...
Senhores, para tão outro curto fôlego, já vai longo o discurso. Um soba africano, poupado em palavras, determinara que, nas cerimônias oficiais, o orador só teria o direito de falar enquanto conseguisse manter-se em equilíbrio ameaçado, num pé só. Estou de pleno acordo com a avisada providência desse inimigo da loquela. Já me sentia, contra todos os meus hábitos, orador, homem de testa erguida e palavra desatada, todo entregue à coragem de afirmar. Uma infidelidade, portanto, à minha técnica de longa ruminação das cousas e cabeça baixa. A cabeça baixa de quem não acaba de acertar o caminho e ainda procura, ainda hesita. Mais ou menos como no adunco Poeta:
[...]
portava la mia fronte
come colui che l’ha di pensier carca
che fa di sé un mezzo arco di ponte...


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Discurso proferido na ABL em 19/04/1961. Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
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