Martín Códax
Foi no século XIX quando
a natureza começou a virar paisagem, observou Georg Lukács num dos seus momentos inteligentes. Infere-se
que foi também quando começou a esboçar-se a formulação da questão ecológica.
Tal discurso, por isto, só ganha alguma clareza quando é analisado sob o foco
do impacto da Revolução Industrial, que se deu por e para a burguesia vitoriosa
no seio da qual nasceram, não por casualidade, o feminismo e o Romanticismo,
componentes importantes da ideologia superestrutural da nova classe, antes mesmo
de que esta ganhasse forma e consciência, pois surgiu como proclamação do Novo
indivíduo, em oposição à milenária classe dominante, a aristocracia. O atual
período, batizado como globalização ou mundialização, não é senão um novo
momento de impacto daquela revolução. Nos países emergentes como o Brasil, os
amantes da natureza não possuem suficiente repertório científico-cultural para
abordar a questão na sua complexidade, tendo presentes os longos períodos mais
prehistóricos que históricos. Quantos pensam nos efeitos da explosão
demográfica dos últimos cinquenta anos? Ou na climatologia? Num século,
contando a partir do descobrimento, foram dizimadas as plantações de pau-brasil
para alimentar as tinturarias da Europa (a árvore que deu nome ao país está
sendo hoje recuperada em viveiros). Na década de 1930, as áreas das terras
desertizadas (ganância e ignorância) do Meio Oeste americano, graças aos
ventos, alcançavam Nova York. Mas o início da devastação da Amazônia não foi
denunciado por nenhum grupo de generosos ecologistas mas sim pelas imagens do
satélite Intelsat. Cumpre lembrar as palavras de Buckminster Fuller,
pronunciadas há cerca de três décadas: “Estamos nesta situação não por culpa da
tecnologia, senão pela falta de tecnologia”. Os elevadíssimos custos médico-hospitalários
contínua e surpreendentemente em crescimento, aplicados no tratamento do câncer
e das cardiopatias causadas pelo tabaco, alertaram as autoridades americanas
dos males desse vício. Comentou-me aquela informada senhora, num supermercado,
assinalando algumas embalagens de tomates orgânicos: Não sei do que deveria ter mais medo, se dos agrotóxicos ou se das
bactérias.
Ma i paesaggi che oggi si
vogliono conservare non esistono forse sul posto e in virtù di altri distrutti
o trasformati? Conservare che cosa? (Umberto Boccioni,
1914).
Felizmente, naturalmente nada devemos temer de um
artista, especialmente se casualmente se chama Fernando Casás. Não por
ecologicamente correto -coisa que acontece com milhares de artistas jovens no
planeta Terra, mas também por ser designer. Difere, por exemplo, de
outro pioneiro, Franz Krajcberg, que também produz ready-made naturais (em que pese o paradoxo irônico), mas
porque este é um artista que se inscreve sem dificuldades na árvore genealógica
do expressionismo. Artista e designer,
Casás flutua criativamente entre a construção e a desconstrução, consciente de
que opera num universo de signos icônicos tridimensionais não utilitários, na
fase escultural posmoderna da instalação, quer dizer, da escultura enquanto
ambiente. Ainda que o seu ambiente preferencial seja de natureza
fitoarqueológica, escolho como obra-suma
da sua operação / construção Longa
Noite de Pedra (Nova Friburgo, Brasil, 1982). A sua utópica
arqueologia do não-lugar contradiz-se em cada obra, onde o não-lugar é sempre
um objeto-lugar e um lugar-objeto. Mais que um conceito, um falar de pedra da
moldura formada em terra recentemente descoberta. IBI SUM.
Arte: pensamento por imagens. Formulado por Konrad
Fidler, criador da teoria da pura visualidade no último quarto do século
XIX, este conceito migrou de maneira quase imediata ao formalismo russo,
via a literatura, por obra do precursor Potebnia, para retornar,
filosoficamente, às artes visuais, graças aos notáveis ensaios sobre Leonardo
da Vinci escritos pelo maior semiótico francês (avant la lettre) Paul Valéry e também ao neoplasticismo
de Mondrian e à arte concreta de Max Bill e os seus seguidores em São Paulo e
Buenos Aires, com reflexos detectáveis no design gráfico e na poesia
concreta. Neste período, que seguiu à Segunda Guerra Mundial, fortemente
marcado pelo estruturalismo, o discurso Arte / Ciência / Natureza
começou a ceder passo ao discurso Arte / Ciência / Tecnologia. No período
seguinte, que chega até nossos dias ainda que já esmorecida, a visão
estruturalista põe-se em questão por um difuso movimento de desconstrução,
marcado pela urgência dos problemas ecológicos, pelo colapso da União
Soviética, pela consolidação da União Européia, pelas novas tecnologias de
comunicação e processamento de dados e pela globalização mercadológica. Neste
período é onde se situa a atuação principal de Fernando Casás.
Signature
of All Things I am here to Read.(James Joyce, Ulysses).
Mas a mais abrangente e completa compreensão dos
sistemas sígnicos deve-se ao filósofo e lógico-matemático Charles Sanders
Peirce, criador do pragmatismo e da semiótica, onde desenvolve um
inovador conceito de ícona, fundamental para o entendimento dos sistemas
sígnicos não verbais. Peirce continua sendo vítima de incompreensões e
caricaturas na sua própria pátria, quase um século depois da sua morte. A obra
ainda não foi publicada na íntegra; o seu pragmatismo foi expropriado e deturpado por William James e
pelo jornalismo de todas as tecnologias que, para escárnio do criador da semiótica, hoje espalha pelo
mundo o uso da expressão icona
simplesmente em substituição do vocábulo símbolo de duas décadas atrás (na semiótica de Peirce, o símbolo
é o signo hegemônico dos sistemas verbais). A semiologia européia,
especialmente a francesa de raízes linguísticas saussurianas, contaminada pelo
vírus dum logocentrismo sidoso de frágeis bases científicas, apresenta poucos
pontos de contacto consequente com a semiótica peirceana. Mas esta semiologia é
a que impera não só na Europa senão também em Harvard, nas universidades
latino-americanas, etc.
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Grave galicismo cometeram também as feministas da segunda metade do século (boa parte das americanas… e todas as brasileiras) ao preferirem a Simone de Beauvoir, que não pode ser comparada com sua antecessora inglesa, com a sutileza profunda da sua criativa prosa narrativa (a partir de Jacob’s Room), a clara e sucinta argumentação feminista (Three Guinea, A Room of One’s Own) e a aguda simplicidade de sua crítica literária (The Common Reader). Ecologistas não apocalíticos, feministas ou não, talvez não tirem proveito, mas podem rir e sorrir com um prazer de negro humorismo ao lerem as duas páginas de Orlando nas que Virginia Woolf descreve os efeitos da Great Frost que chegou a congelar o rio Tâmisa no reinado do novo rei.
Um grupo de pesquisadores termoarqueológicos vem de divulgar o mapa das variações
térmicas do planeta nos últimos 650 mil anos, em períodos segmentados de 100
mil anos, analisando o conteúdo de CO² aprisionado em borbulhas de gelo
recolhidas na perfuração duma montanha de 3.000 metros na Antártida.
Comprova-se que é anormal o aquecimento recente, detectado no segmento dos
últimos 25 mil anos, muito provavelmente devido ao uso de combustíveis fósseis
em séculos recentíssimos. Se o fantástico acelerador de partículas europeu, com
funcionamento previsto para dentro de pouco tempo, dá início ao venturoso
processo de fusão controlado do átomo (hélio, por exemplo, da atmosfera) o Homo
Novus, na possessão de energia não radiativa praticamente infinita e
democrática poderá conhecer, implantar ou transplantar novos sistemas
ecológicos em afastados mundos novos ao alcance de velocidades superfotônicas…
Nova visão de lugar para o não-lugar.
O diletantismo, veleitario na maioria da mocidade, verde que mistura, sem cerimônia, astrologia, zen, chás
medicamentosos florais e trivialidades jornalísticas sobre o aquecimento global
do planeta é o pior público possível para a obra de um artista-designer como Fernando Casás, cuja obra, na sua coerente versatilidade, ao
longo de quatro décadas de pesquisa e criação, não pode ser compreendida fora
do âmbito complexo do pensamento artístico-cultural ocidental do século XX, num
percorrido marcado passo a passo por referências e remissões a
realizações icônicas históricas da arquitetura, do design, da escultura e das artes visuais, da Bauhaus a
Beuys.
Fernando Casás desenha, designa e materializa pegadas
indiciais da obra-humana-sempre-em-obras, in progress, sísificamente.
DÉCIO PIGNATARI | Semiólogo, poeta,
ensaísta, professor da FAU / Faculdade de Arquitetura de São Paulo e da ESDI
Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro, onde foi professor do
artista. Membro fundador da AFS Association Française de Semiotique é um dos
mais importantes nomes no âmbito da Poesia Concreta. Foi fundador do grupo Noigandres
junto aos poetas Haroldo e Augusto de Campos. Autor de livros como: Semiótica
del arte y de la Arquitectura; Teoría da Poesia Concreta, Contracomunicação;
Letras, artes, mídia.
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Edição a cargo de Floriano Martins e Mina Marx.
Agradecimentos a Fernando Casás e todos os ensaístas aqui presentes.
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Agulha
Revista de Cultura
Número
117 | Agosto de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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