segunda-feira, 27 de agosto de 2018

DÉCIO PIGNATARI | Fernando Casás: arte e design em ecomutações


Treydes comig’ a lo mar de Vigo e veeremo lo meu amigo e banhar nos emos nas ondas.

Martín Códax

Foi no século XIX quando a natureza começou a virar paisagem, observou Georg Lukács  num dos seus momentos inteligentes. Infere-se que foi também quando começou a esboçar-se a formulação da questão ecológica. Tal discurso, por isto, só ganha alguma clareza quando é analisado sob o foco do impacto da Revolução Industrial, que se deu por e para a burguesia vitoriosa no seio da qual nasceram, não por casualidade, o feminismo e o Romanticismo, componentes importantes da ideologia superestrutural da nova classe, antes mesmo de que esta ganhasse forma e consciência, pois surgiu como proclamação do Novo indivíduo, em oposição à milenária classe dominante, a aristocracia. O atual período, batizado como globalização ou mundialização, não é senão um novo momento de impacto daquela revolução. Nos países emergentes como o Brasil, os amantes da natureza não possuem suficiente repertório científico-cultural para abordar a questão na sua complexidade, tendo presentes os longos períodos mais prehistóricos que históricos. Quantos pensam nos efeitos da explosão demográfica dos últimos cinquenta anos? Ou na climatologia? Num século, contando a partir do descobrimento, foram dizimadas as plantações de pau-brasil para alimentar as tinturarias da Europa (a árvore que deu nome ao país está sendo hoje recuperada em viveiros). Na década de 1930, as áreas das terras desertizadas (ganância e ignorância) do Meio Oeste americano, graças aos ventos, alcançavam Nova York. Mas o início da devastação da Amazônia não foi denunciado por nenhum grupo de generosos ecologistas mas sim pelas imagens do satélite Intelsat. Cumpre lembrar as palavras de Buckminster Fuller, pronunciadas há cerca de três décadas: “Estamos nesta situação não por culpa da tecnologia, senão pela falta de tecnologia”. Os elevadíssimos custos médico-hospitalários contínua e surpreendentemente em crescimento, aplicados no tratamento do câncer e das cardiopatias causadas pelo tabaco, alertaram as autoridades americanas dos males desse vício. Comentou-me aquela informada senhora, num supermercado, assinalando algumas embalagens de tomates orgânicos: Não sei do que deveria ter mais medo, se dos agrotóxicos ou se das bactérias.

Ma i paesaggi che oggi si vogliono conservare non esistono forse sul posto e in virtù di altri distrutti o trasformati? Conservare che cosa? (Umberto Boccioni, 1914).

Felizmente, naturalmente nada devemos temer de um artista, especialmente se casualmente se chama Fernando Casás. Não por ecologicamente correto -coisa que acontece com milhares de artistas jovens no planeta Terra, mas também por ser designer. Difere, por exemplo, de outro pioneiro, Franz Krajcberg, que também produz ready-made naturais (em que pese o paradoxo irônico), mas porque este é um artista que se inscreve sem dificuldades na árvore genealógica do expressionismo. Artista e designer, Casás flutua criativamente entre a construção e a desconstrução, consciente de que opera num universo de signos icônicos tridimensionais não utilitários, na fase escultural posmoderna da instalação, quer dizer, da escultura enquanto ambiente. Ainda que o seu ambiente preferencial seja de natureza fitoarqueológica, escolho como obra-suma da sua operação / construção Longa Noite de Pedra (Nova Friburgo, Brasil, 1982). A sua utópica arqueologia do não-lugar contradiz-se em cada obra, onde o não-lugar é sempre um objeto-lugar e um lugar-objeto. Mais que um conceito, um falar de pedra da moldura formada em terra recentemente descoberta. IBI SUM. 
Arte: pensamento por imagens. Formulado por Konrad Fidler, criador da teoria da pura visualidade no último quarto do século XIX, este conceito migrou de maneira quase imediata ao formalismo russo, via a literatura, por obra do precursor Potebnia, para retornar, filosoficamente, às artes visuais, graças aos notáveis ensaios sobre Leonardo da Vinci escritos pelo maior semiótico francês (avant la lettre) Paul Valéry e também ao neoplasticismo de Mondrian e à arte concreta de Max Bill e os seus seguidores em São Paulo e Buenos Aires, com reflexos detectáveis no design gráfico e na poesia concreta. Neste período, que seguiu à Segunda Guerra Mundial, fortemente marcado pelo estruturalismo, o discurso Arte / Ciência / Natureza começou a ceder passo ao discurso Arte / Ciência / Tecnologia. No período seguinte, que chega até nossos dias ainda que já esmorecida, a visão estruturalista põe-se em questão por um difuso movimento de desconstrução, marcado pela urgência dos problemas ecológicos, pelo colapso da União Soviética, pela consolidação da União Européia, pelas novas tecnologias de comunicação e processamento de dados e pela globalização mercadológica. Neste período é onde se situa a atuação principal de Fernando Casás.

Signature of All Things I am here to Read.(James Joyce, Ulysses).

Mas a mais abrangente e completa compreensão dos sistemas sígnicos deve-se ao filósofo e lógico-matemático Charles Sanders Peirce, criador do pragmatismo e da semiótica, onde desenvolve um inovador conceito de ícona, fundamental para o entendimento dos sistemas sígnicos não verbais. Peirce continua sendo vítima de incompreensões e caricaturas na sua própria pátria, quase um século depois da sua morte. A obra ainda não foi publicada na íntegra; o seu pragmatismo foi expropriado e deturpado por William James e pelo jornalismo de todas as tecnologias que, para escárnio  do criador da semiótica, hoje espalha pelo mundo o uso da expressão icona simplesmente em substituição do vocábulo símbolo de duas décadas atrás (na semiótica de Peirce, o símbolo é o signo hegemônico dos sistemas verbais). A semiologia européia, especialmente a francesa de raízes linguísticas saussurianas, contaminada pelo vírus dum logocentrismo sidoso de frágeis bases científicas, apresenta poucos pontos de contacto consequente com a semiótica peirceana. Mas esta semiologia é a que impera não só na Europa senão também em Harvard, nas universidades latino-americanas, etc.







 Grave galicismo cometeram também as feministas da segunda metade do século (boa parte das americanas… e todas as brasileiras) ao preferirem a Simone de Beauvoir, que  não pode ser comparada com sua antecessora inglesa, com a sutileza profunda da sua criativa prosa narrativa (a partir de Jacob’s Room), a clara e sucinta argumentação feminista (Three Guinea, A Room of One’s Own) e a aguda simplicidade de sua crítica literária (The Common Reader). Ecologistas não apocalíticos, feministas ou não, talvez não tirem proveito, mas podem rir e sorrir com um prazer de negro humorismo ao lerem as duas páginas de Orlando nas que Virginia Woolf descreve os efeitos da Great Frost que chegou a congelar o rio Tâmisa no reinado do novo rei.
Um grupo de pesquisadores termoarqueológicos vem de divulgar o mapa das variações térmicas do planeta nos últimos 650 mil anos, em períodos segmentados de 100 mil anos, analisando o conteúdo de CO² aprisionado em borbulhas de gelo recolhidas na perfuração duma montanha de 3.000 metros na Antártida. Comprova-se que é anormal o aquecimento recente, detectado no segmento dos últimos 25 mil anos, muito provavelmente devido ao uso de combustíveis fósseis em séculos recentíssimos. Se o fantástico acelerador de partículas europeu, com funcionamento previsto para dentro de pouco tempo, dá início ao venturoso processo de fusão controlado do átomo (hélio, por exemplo, da atmosfera) o Homo Novus, na possessão de energia não radiativa praticamente infinita e democrática poderá conhecer, implantar ou transplantar novos sistemas ecológicos em afastados mundos novos ao alcance de velocidades superfotônicas… Nova visão de lugar para o não-lugar.
O diletantismo, veleitario na maioria da mocidade, verde que mistura, sem cerimônia, astrologia, zen, chás medicamentosos florais e trivialidades jornalísticas sobre o aquecimento global do planeta é o pior público possível para a obra de um artista-designer como Fernando Casás, cuja obra, na sua coerente versatilidade, ao longo de quatro décadas de pesquisa e criação, não pode ser compreendida fora do âmbito complexo do pensamento artístico-cultural ocidental do século XX, num percorrido marcado passo a passo por referências e remissões a realizações icônicas históricas da arquitetura, do design, da escultura e das artes visuais, da Bauhaus a Beuys.
Fernando Casás desenha, designa e materializa pegadas indiciais da obra-humana-sempre-em-obras, in progress, sísificamente.
   

*****

DÉCIO PIGNATARI | Semiólogo, poeta, ensaísta, professor da FAU / Faculdade de Arquitetura de São Paulo e da ESDI Escola Superior de Desenho Industrial do Rio de Janeiro, onde foi professor do artista. Membro fundador da AFS Association Française de Semiotique é um dos mais importantes nomes no âmbito da Poesia Concreta. Foi fundador do grupo Noigandres junto aos poetas Haroldo e Augusto de Campos. Autor de livros como: Semiótica del arte y de la Arquitectura; Teoría da Poesia Concreta, Contracomunicação; Letras, artes, mídia.

*****

Edição a cargo de Floriano Martins e Mina Marx. Agradecimentos a Fernando Casás e todos os ensaístas aqui presentes.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 117 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES





Nenhum comentário:

Postar um comentário