O
gaúcho Augusto Meyer (1902-1970) é o primeiro crítico moderno de Machado de Assis.
Seus ensaios pioneiros datam de 1935 e foram reunidos em livro na província. Por
ocasião dos 50 anos da morte do romancista carioca, foram reeditados pela Livraria
S. José. Vieram então acompanhados de longo ensaio de 1947 e de outros, curtos,
escritos entre 1938 e 1958. De há muito o velho e atualíssimo conjunto está fora
do alcance das novas gerações. Há que se saudar com entusiasmo a nova reedição de
Machado de Assis (1935-1958) (Augusto Meyer, José Olympio,
192 páginas), agora inspirada e prefaciada pelo acadêmico e historiador Alberto
da Costa e Silva.
Observa Costa e Silva que,
a partir de 1935, a imagem prevalente do escritor passa a ser a de um ser subterrâneo,
demoníaco, trágico, perverso no seu ódio à vida, um monstro cerebral que esfolava
com cuidado e perfeição as suas criaturas. Meyer tinha consciência de que levava
o fundador da ABL a entrar em terreno pantanoso, de onde viria a retirá-lo a recente
e bem intencionada crítica histórica e sociológica, que ao reconhecer méritos políticos
na obra do escritor, fê-lo emergir no retrato de estúdio. Neste, sobrenada o perfil
de pequeno-burguês lúcido, irônico e participante nas entrelinhas da ficção, mas
novamente desembaraçado do fardo da esterilidade quase desumana. Meyer cita Graça
Aranha e o subscreve: há em Machado de Assis um ódio do gênero humano que lhe é
uma homenagem.
Meyer se inquietava quanto
ao alcance de sua interpretação. Em nota de pé de página ao ensaio O homem subterrâneo,
de 1935, alerta: Estamos familiarizados com um Machado de Assis mais sereno, amigo
do equilíbrio e da moderação, cético, atento e amável, quase anatoliano. Imagem,
aliás, que coincide com a do escritor. Mas talvez essa atitude seja uma simples
aparência. Em outra passagem Meyer contra-ataca o jogo da aparência: Quando entram
em cena os bons sentimentos, Machado cochila, boceja.
Para despertar o Machado
genuíno e o retirar do cochilo e do bocejo a que o leva a cantiga de ninar aburguesada,
o gaúcho se entregou em artigos curtos e incisivos ao trabalho de curetagem da imagem
machadiana custodiada tanto pelas amizades com a alta sociedade carioca e o amor
à meiga Carolina, quanto pelos passeios ao longo da Rua do Ouvidor e a fundação
da Academia Brasileira de Letras.
A intenção do atual e legítimo
leitor de Meyer deve ser a de associar à antiga curetagem o desbaste da floresta
bem pensante e competente, mas ardilosamente burguesa, das interpretações politizadas
de Machado, que se vendem a preço de banana no mercado da cultura chapa-branca.
Fiéis na análise do fato histórico, essas leituras são, no entanto, infiéis no tocante
às transgressões da letra literária.
Ao percorrer o rico século
19 literário, os ensaios de Meyer não titubeiam. Livram-se dos titulares dos atuais
manuais de história e sociologia da literatura, para deixar em aberto a clareira
saturnal em que se ergue a escrita machadiana. Anota: Como criador de ficção, falta-lhe
o dom generoso de simpatia que obriga Balzac a se identificar com um estúpido caixeiro-viajante.
Falta-lhe, ainda, a piedade resignada, aquela piedade que é o outro lado da ironia,
tão ingênua em Dickens. Nem a simpatia generosa de Balzac nem a piedade ingênua
de Dickens. Menos ainda a brutalidade de Eça de Queirós ou de Aluísio Azevedo. A
paixão de Machado tem a monotonia, mas também a sedução acre de um vício, pois o
espírito então se masturba com uma espécie de volúpia incestuosa.
Naquela clareira oitocentista
e atualíssima, de onde já no século 20 saltarão as peças de Samuel Beckett e os
romances de J. M. Coetzee (leia-se O mestre de Petersburgo), fica sempre de pé o
analista voluptuoso, o monstro cerebral que dava tudo por meia hora de mergulho
nas complicações e deformações psicológicas, o colecionador de truques morais, das
partes vulneráveis de cada espetáculo humano. Ao analista da alma se combinam os
traços do humorista transcendente. Aclara Meyer, admirador de Nietzsche: O humorismo
transcendente desconhece as limitações do mundo ético, está muito além do mal e
do bem, pois cortou as amarras que o prendiam à solidariedade humana. Se a tão propalada
expressão solidariedade humana surgir no universo machadiano será sob a forma inusitada
que toma no capítulo Que escapou a Aristóteles, nas Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Lá se lê que à comunhão dos interesses o defunto autor dá o nome de solidariedade
do aborrecimento humano. Lembre-se que o Dicionário Morais (1813, segunda edição)
registra: Aborrecimento s.m. Ódio, aversão, tédio que temos de alguma cousa, ou
pessoa.
Se lidos nas entrelinhas,
os ensaios de 1935 revelam que a interpretação prematura e arriscada dos escritos
de Machado de Assis por Meyer não foi fortuita. Coincide com a descoberta de si
mesmo numa época perigosa e conturbada da adolescência, em que a doença e algumas
desilusões ingênuas depositaram em suas mãos o conto O espelho. Como no caso do
poema Infância, de Carlos Drummond de Andrade, no qual o contacto infantil com o
romance Robinson Crusoé vira uma comprida história que não acaba mais, o conto machadiano
é para [Meyer] uma história comprida. Confessa ele: Suas páginas estão impregnadas
da nostalgia do tempo perdido, e basta o título [do conto] para interromper a irreversibilidade,
transportando-me a um momento intenso da adolescência, como a visão, o cheiro e
o sabor numa evocação de Proust.
A objetividade crítica de
Meyer se alicerça no mais profundo da experiência de leitor sadio e forte, saudoso
da memória do corpo adolescente enfermo e a perigo. Refugia-se na visão, no cheiro
e no sabor das evocações. Meyer foi leitor e escritor de Machado de Assis, assim
como Proust o foi do tempo perdido. Como observa Costa e Silva: Meyer, de certo
modo, copia Machado. Os ensaios de 1935 se escreveram, portanto, pela memória involuntária,
que, na maturidade, se robustecia na erudição de estudioso das letras, futuro tradutor
de obras magnas da crítica universal e presidente do Instituto Nacional do Livro.
Meyer nos narra os tempos idos e vividos: Vencido pela neurastenia, triste como
um pinto na chuva, gostava de ler a um canto da varanda, perto da janela, para repousar
os olhos cansados na linda paineira do vizinho. Como disse André Gide em Os alimentos
terrestres: Que a importância esteja no olhar e não na coisa vista.
E na página seguinte do ensaio
volta ao tema e aclara: Aqueles dois anos de neurastenia, com as intermitências
que me dava a esperança da cura, estão resumidos nesta página [de 'O espelho'] de
Machado de Assis. Durante a leitura do conto, a sombra começava a apagar as palavras
do texto e as flores girantes caíam da velha paineira continua Meyer, entregando-nos
o final da passagem machadiana que tanto o encantava: Tinha uma sensação inexplicável.
Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco.... Como Nietzsche na Gaia
ciência, André Gide em Os alimentos terrestres, ou Manuel Bandeira em Libertinagem,
a descoberta da literatura finca pé nas profundezas da doença e nos cuidados de
si (Michel Foucault) eriçados pela convalescença. Como diz Nietzsche na sua ética
inaugural: que não se busque a verdade na filosofia e, sim, a saúde e o poder da
vida. Convalescentes a dois dedos da morte, a dois dedos da vida são todos catarticamente
curados pela literatura e pela filosofia, vale dizer, pela vida. O espírito individual
se alça sem medo, livre e altaneiro.
Alguma coisa a ver com o
Machado de Assis das Memórias póstumas de Brás Cubas? Parte
da resposta pode estar no ensaio Mas…
Dessa coincidência entre
neurastenia e leitura vem a intuição brilhante do ensaio Sombra. Ali Meyer escreve
que o principal personagem de nosso ficcionista não era o encontrado no falatório
dos narradores problemáticos e contraditórios, a quem o artista genial deu vida
e direito à palavra. O leitor nosso contemporâneo se sente mais inquieto e perturbado
pelo silêncio de Machado de Assis sobre o homem Machado. E Meyer complementa sua
intuição,
entregando-se a arriscado jogo de pingue-pongue: Como toda personalidade complexa, esse homem era uma colônia de almas contraditórias: o niilista feroz foi um funcionário público exemplar, o cético fundou a Academia de Letras, o cínico deliciava-se mentalmente na companhia da pérfida Capitu, porém amou a 'meiga' Carolina e o humorista era a consciência de todos esses contrastes, o espectador que sacode a cabeça, desenganado, sorrindo, sem esperança alguma de poder harmonizar a família desunida [das almas contraditórias].
entregando-se a arriscado jogo de pingue-pongue: Como toda personalidade complexa, esse homem era uma colônia de almas contraditórias: o niilista feroz foi um funcionário público exemplar, o cético fundou a Academia de Letras, o cínico deliciava-se mentalmente na companhia da pérfida Capitu, porém amou a 'meiga' Carolina e o humorista era a consciência de todos esses contrastes, o espectador que sacode a cabeça, desenganado, sorrindo, sem esperança alguma de poder harmonizar a família desunida [das almas contraditórias].
Essa forma subterrânea e
enigmática de viver distante da fala confessional de Nietzsche e de Gide e próxima,
nos dias de hoje, do silêncio dos romancistas J. D. Salinger e Thomas Pynchon não
tem sido esclarecida pelas biografias. Ainda não as temos de largo alcance e atuais.
A labuta dos universitários brasileiros e estrangeiros tem-se limitado a análises
específicas de altíssimo nível sem dúvida dos variadíssimos textos literários e
ensaísticos. A tarefa interpretativa dos especialistas coincide com o destaque que
se deu no século 20 às metodologias de leitura que, do formalismo russo ao new criticism anglo-saxão, da crítica sociológica ao pós-estruturalismo
francês, insistem na análise e interpretação de textos. Se a leitura da obra engrandeceu
o artista da palavra, tornando-o autor canônico para nos valermos da categoria de
Harold Bloom no entanto, pouco se sabe da vida vivida, petrificada que ainda se
encontra em lugares-comuns e silêncio.
Estudiosa da questão biográfica,
Maria Helena Werneck comenta o trabalho de Lúcia Miguel-Pereira, primeira grande
biógrafa de Machado: A biografia teria uma eficácia didática especial, no momento
em que o imaginário do país necessitava de referências precisas para a construção
de uma identidade nacional moderna. Não era o que Augusto Meyer reclamava e muitos
de nós ainda reclamamos. Mãos à obra, jovens leitores de Augusto Meyer.
Publicado em JB on-line: 14/11/2008. Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia,
1983)
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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
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