segunda-feira, 6 de agosto de 2018

TANIA FRANCO CARVALHAL | Augusto Meyer, leitor de Machado de Assis



Associar Augusto Meyer a Machado de Assis significa entender que não haveria outra perspectiva que melhor identificasse o crítico-poeta (ou o poeta-crítico) do que a de situá-lo em estreita relação com o autor a cuja análise dedicou mais interesse e constância. Do mesmo modo, não haveria para Meyer outra posição que não a de leitor, pois viveu “à sombra da estante”, dedicado à leitura e à compreensão das obras. Por isso é natural que adote, como epígrafe do livro de 47, intitulado À Sombra da Estante, o verso de Baudelaire: “Mon berceau s'adossait à la bibliothèque”, [1] deixando perceber a sugestão que ele empresta ao titulo do volume.
Foi sem dúvida Meyer um leitor sistemático e seletivo, com preferências consolidadas e raro equilíbrio entre a tradição e o novo, atento às publicações que ampliavam, cada vez mais, sua erudição e campos de conhecimento.
Além disso, o fato de ter sido um leitor exemplar e constante da obra machadiana é indicativo de sua inclinação para os grandes observadores da alma humana, como Machado, Proust, Dostoiévski e Pirandello, autores com os quais tinha afinidades, pois privilegiaram a investigação psicológica e exploraram, cada um a seu modo, o desdobramento e a dissociação da personalidade. Neles o crítico apreciava sobretudo o deslocamento do eixo da ação para o da introspecção.
Nesta dupla condição, leitor e crítico de Machado, Augusto Meyer assume a posição adequada a seu temperamento e à forma de estar no mundo que lhe agradava, a de uma vida entre livros. [2]
Carlos Drummond de Andrade, em artigo de 1970, ao homenagear o escritor falecido havia pouco apontava essa afinidade, esboçando-lhe o retrato: “Caberia num livro? Imagino-o transformado no livro de si mesmo: volume fino, alongado, de elegante encadernação, tipos escolhidos, vinhetas desenhadas por um diabinho renascentista que, aqui e ali, pusesse um toque de Bilú no contorno das figuras. Livro que fosse a síntese de uma biblioteca sem obras indigestas, cultura presente como atmosfera ou água de beber.” [3]
Por sua vez Josué Montello percebeu bem que a convivência com a obra machadiana identificava o crítico, estabelecendo a relação entre o intérprete e o interpretado. No artigo “Uma profecia de Machado de Assis”, [4] comenta que o mestre, no capítulo LXXI das Memórias Póstumas, profetizou que um senhor magro e grisalho, em 1950, se inclinaria para descobrir-lhe o senão do livro. Para Montello, Machado teria adivinhado a figura esguia de Augusto Meyer, debruçado nas páginas do romance “a esmiuçar-lhe o pensamento na volúpia da boa leitura.” Observa que a profecia machadiana está certa quando “alude à paixão dos livros, que é o traço dominante da personalidade de Augusto Meyer, e ainda quando no-lo mostra a ir e vir pelas linhas impressas”.
A continuidade das leituras da obra de Machado consagra a ideia de que um livro se desdobra no tempo e nele adquire, por força das leituras que o renovam, outros sentidos. Por isso dirá:

Impossível imaginá-lo senão em andamento no tempo, avultando ou decrescendo de importância, quase esquecido às vezes, para ressurgir mais tarde, transfigurado à imagem de outras gerações.

Essa observação crítica sobre Machado de Assis pode ser aplicada hoje com relação ao próprio Meyer. A bela metáfora da obra que atravessa o tempo, revivida a cada passo pela ação da leitura que lhe injeta novo alento e interpretações, serve igualmente para o escritor gaúcho. Retomar sua obra, lê-la nas diversas formas em que se expressou - poesia, relatos de memória, crônicas, ensaios críticos - é perceber que ela se organiza graças a uma lei de reflexos que garante a unidade deste universo literário. Tomá-la em uma de suas facetas é ainda aludir às demais, associadas todas por um singular traço de estilo caracterizado pela elegância e naturalidade da expressão. Do mesmo modo, reler seus estudos sobre Machado de Assis significa perceber como seu pensamento, sem perder a segurança das primeiras intuições, se vai enriquecendo nos modos de ler e nas indagações diversas a que submete o objeto de análise.
Vê-se, então, por que a obra de Machado seria para Meyer um desafio de vida inteira. Como leitor ele julgava que “Os anos vão passando e Machado de Assis cresce cada vez mais. Avulta e abre em derredor um vazio de solidão como certas árvores gigantescas da selva que, fundidas de perto na mesma profusão de troncos e folhagem, contempladas a grande distancia, esgalham lá no alto e dominam o recorte das grimpas mais sobranceiras.”
Com essa imagem, Augusto Meyer inicia o artigo “Trecho de um posfácio”, escrito em 1958, que pensava juntar à tradução de E. Percy Ellis intitulada Posthumous Reminiscenses of Bras Cubas, prevista para publicação pelo Instituto Nacional do Livro em 1955. Por isso ressalta ali que a obra machadiana “representa um momento único na história da literatura americana”, procurando vê-lo em contexto maior que o da literatura nacional. Antecipa, portanto, o que reconhecerá Carlos Fuentes em Valiente Mundo Nuevo ao dizer que a “Indo-Afro-Iberoamérica tiene un solo gran novelista decimonónico: el brasileño Machado de Assis”. No mesmo texto observa que “Las Memorias póstumas de Blas Cubas es la más grande novela iberoamericana del siglo pasado, y sus enseñanzas libérrimas sólo serán entendidas, en el continente hispanoparlante, hasta bien entrado el siglo XX.” [5]
Para Meyer “Machado de Assis continua a ser o 'único' na história da literatura brasileira”, dada a singularidade de uma obra que não cabe nas classificações rotineiras. Mestre da síntese, Machado recusou os caminhos batidos e também soube desprezar o imediato, ao compreender, como diz o crítico, “que a arte não é só uma longa paciência, é uma escola admirável de verdade e probidade, um rude imperativo de renúncia.”
As passagens aqui transcritas são reveladoras da admiração de Augusto Meyer pela obra machadiana e dos motivos por que ele converteu o autor em objeto constante de sua indagação crítica. Neste sentido, não seria por acaso que inaugura sua produção ensaística com o Machado de Assis, de 1935, [6] nem que em todos os seus livros posteriores, - à exceção de Prosa dos Pagos, [7] cujo tema é a literatura gaúcha, - haja estudos sobre o criador de Brás Cubas. Tantos foram os textos de exegese dessa obra que os reuniu no livro Machado de Assis. 1935-1958. [8] Os vários estudos ali inseridos são de épocas diversas, indicativo da forma como se organizavam seus livros, ou seja, como reunião de ensaios antes publicados na imprensa. Por isso eles são descontínuos, traduzem a inquietação crítica de determinados momentos, não adotando uma orientação exclusiva de análise. Cada capítulo é um todo estruturado, independente de outro, não havendo unidade formal na composição do volume. No entanto, preservam a coerência resultante do encadeamento reflexivo e da adesão a certas ideias centrais que retornam em várias situações.
Como observou Antonio Candido ao comentar o livro Preto & Branco na época de seu lançamento, em 1956, não seria “no vulto das obras que devemos buscar a unidade e amplitude de seu espírito, mas na atitude geral, na matriz de sensibilidade e pensamento que informa os ensaios.” E acrescenta: “Há nele uma corrente sólida e brilhante de pensamento crítico, da qual os estudos realizados emergem como pontas extremas, afloramentos, cuja reunião evidencia a envergadura profunda. Por isso, ainda que não escreva um livro volumoso, Augusto Meyer é, e ficará, em nossa história literária, um dos mais altos críticos, um dos espíritos mais penetrantes e fecundos.” [9]
Concluindo ao dizer que “para completar e garantir a unidade, vem o estilo, graças ao qual tudo isso vive e se torna bem comum. Não sei de quem escreva, no Brasil, com mais elegância e, ao mesmo tempo, naturalidade, obtendo uma expressão logicamente adequada, sem deixar de ser poética e imaginosa, tanto na seleção dos adjetivos quanto na elaboração dos conceitos ou das imagens, discretamente inseridas.”
Vinte e três anos de fidelidade ao estudo da obra machadiana estão representados no volume de 58. De acordo com a indicação que titula cada bloco, o primeiro corresponde ao ensaio de 35, que, juntamente com o de Lucia Miguel Pereira, em 1936, significa uma verdadeira cisão na crítica machadiana. Abandonando o Machado oficial, e sob a ótica do “homem subterrâneo” de Dostoiévsky, Meyer procura desvelar o que para ele se oculta na trama da obra. Além disso, ao aproximá-lo de um grande autor da literatura ocidental, situa Machado em outra dimensão que não apenas a da literatura brasileira. Esta seria uma preocupação constante, manifestada igualmente no confronto com Sterne, Xavier de Maistre, Lawrence e Swift, nos estudos de 22 e que estaria, certamente, relacionada com a posição “única” que lhe atribuía no contexto nacional. Como dirá mais tarde: “Se não possui a frescura alencarina, por exemplo, o dom generoso da fantasia arejada e plástica, soube suprir a falta com o método mais rigoroso de composição; transformou uma prosa de aparência modesta e remediada num riquíssimo instrumento de sugestões e modulações.” [10]
Segue-se o estudo de 1947, sob a inspiração da crítica de Alcides Maya. O terceiro e último conjunto, globalmente designado de “Presença de Machado de Assis. 1938-1958” compreende estudos incluídos em A Sombra da Estante (1947) , mas produzidos bem antes. Integra ainda outros publicados em Preto & Branco (1956) e alguns de 1958, como as partes de um alentado ensaio que, com o título “De Machadinho a Brás Cubas”, apareceu na Revista do Livro do Instituto Nacional do Livro, em 11 de setembro de 1958, edição especial comemorativa do cinquentenário da morte de Machado de Assis. No livro da São José, esse texto está desdobrado em três, intitulados respectivamente de “Uma cara estranha”, “Presença de Brás Cubas” e “Trecho de um posfácio”.
Nesta perspectiva de resgate dos textos, ressalte-se que seus primeiros estudos críticos, publicados em O Exemplo – Jornal do Povo, de Porto Alegre, em 1922, sob o pseudônimo de Guido Leal, se ocupam com “As idéias de Brás Cubas”. [11]
Três anos depois, ao iniciar a militância crítica no jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, o fará com dois artigos sobre “Machado de Assis e a alma contemporânea”. [12]
Finalmente, os últimos ensaios sobre Machado, em sua maioria reunidos em A Forma Secreta, [13] com os títulos de “Silvio e Silvia”, “Pratiloman”, e “A casa de Rubião”, iniciam a parte do livro denominada de “O Aprendiz Grisalho”.
Assim, do despertar da vocação crítica, nos anos 20, à plena maturidade dos anos sessenta, Meyer foi um fiel leitor de Machado. O percurso crítico indicado nas datas do livro de 58 pode, portanto, ser ampliado para sua conta real: de 1922 (o primeiro texto sobre Machado publicado) a 1965 (ano da edição de A Forma Secreta) são 43 anos de leituras continuadas da obra do autor de Brás Cubas.
Essa constância é que nos permite hoje acompanhar o percurso crítico do autor na evolução de seus estudos machadianos. Neles o crítico se identifica. Neles, ele se confronta consigo mesmo. É o que interessa aqui examinar.

I. OS ESTUDOS DA FASE INICIAL (1922 A 1935) [14] | No texto “Um desconhecido”, que encerra o volume Machado de Assis.1935-1958, publicado pela Livraria São José, Meyer busca seu interlocutor preferido em uma biblioteca, no “silêncio do gabinete”. “Pois', como define, valendo-se de outra bela metáfora, 'uma biblioteca é antes de tudo solidão e silêncio, o silêncio das vozes desencontradas e a solidão dos grandes ajuntamentos.” [15]
Ali, uma vez mais, Machado revive diante do seu exemplar leitor para dizer-lhe, num fio de voz:

Ouça, menino, cada alma é mais do que um mundo à parte em cada peito, é um enigma para si própria…

Curiosamente, no último texto do livro de 58 se recompõe a situação inaugural do processo de deslinde a que Meyer submeteu permanentemente a obra de Machado de Assis, fazendo-nos voltar ao ensaio de 35 e aos primeiros estudos. Já aí o encontramos no pleno exercício da crítica como leitura, considerada como decifração da obra, sempre metaforicamente designada como enigma. Ressaltei esse aspecto ao examinar um dos livros mais notáveis de Meyer, A Chave e a Máscara (1964), [16] no qual, desde o título, a associação consciente das duas palavras deixa transparecer ao mesmo tempo um conceito de crítica – chave – numa função desveladora, e um conceito de obra literária - máscara, em seu caráter ambígüo e encobridor. Nesta perspectiva, é fácil entender a atração do crítico pela obra machadiana, pois este cultivou, como poucos, “a arte da dubiedade e a falsa transparência da máscara.” [17]
Portanto, como anota no texto de 35, “em Machado, a aparência de movimento, a pirueta e o malabarismo são disfarces que mal conseguem dissimular uma profunda gravidade - deveria dizer: uma terrível estabilidade.” [18]
Toma, então, o traçado das personagens para identificar o autor. Flora, segundo ele, aludiria a Machado na medida em que “hesita entre Pedro e Paulo como o pensamento do autor, entre uma escolha e outra que a suprime”. Todo o pensamento de Machado “se corporifica nessa figura de mulher, chave de sua obra perversa e perfeita.” [19] Da mesma forma, considera Brás Cubas um pretexto e, no romance, o “senão do livro é o senão de si mesmo”. [20]
O interesse desse ensaio, ainda hoje, reside pelo menos em dois aspectos: primeiro, o de sua repercussão no conjunto da crítica machadiana, nela introduzindo a orientação psicológica na análise, o que inaugura uma nova maneira de interpretá-lo e, depois, sua importância na evolução do pensamento crítico de Meyer. O pioneirismo do ensaio se expressa na boa aceitação que ganha na época de sua publicação. Sobre isso leia-se Lúcia Miguel Pereira na 3ª edição de seu Machado de Assis, em 1944, ao confrontar o estudo de Meyer com os de Alcides Maya (1912) e Alfredo Pujol (1917) e em seus ecos posteriores e veja-se Afranio Coutinho em Machado de Assis na Literatura Brasileira (1960) onde ressalta o caráter inovador desse trabalho.
Cumpre acentuar que a intenção de desvelamento que move o crítico não elimina a admiração e já estão aí, nesses primeiros estudos, fixados alguns conceitos que o crítico deverá retomar em textos posteriores: a dificuldade de classificar os romances machadianos no âmbito da ficção, a tendência a visualizar o autor sob as personagens e sob a figura de um narrador que dita as regras do texto, a intenção de traçar o seu perfil psicológico, reconhecendo o pessimismo e o niilismo de uma personalidade complexa e contraditória. Além disso, reitera a valorização do estilo machadiano, que adotou um processo particular de sempre subtrair palavras em busca da síntese, como se dissesse “uma de menos, uma de menos”. [21]

II. A OBRA MACHADIANA, UMA “VIRTUALIDADE EM ANDAMENTO” | Ao reler Machado de Assis ao longo dos anos, Meyer redimensiona suas posições críticas, adotando outras modalidades de leitura. Os caminhos serão sempre os sugeridos pela própria obra, em perfeita empatia entre analista e objeto analisado. Deste modo, há uma contínua retomada dos textos que acrescenta a cada passo outros elementos interpretativos. Cada releitura é uma redescoberta. Por isso dirá que”...ele ganha muito em ser lido aos trechos, ou a largos intervalos de leitura”.
Na primeira versão do estudo “Machado de Assis, 1947”, que abre o segundo bloco do volume, o título era bastante elucidativo com relação a seu conteúdo: “Sugestões de um texto” aludia diretamente ao estímulo crítico provocado pelo estudo de Alcides Maya sobre o “humour”. No volume, Meyer guarda apenas a indicação da data de sua publicação. Nesse ensaio, procura examinar como a crítica constrói a imagem oficial do escritor, comentando que sua sobrevivência depende “do compromisso entre o medalhonismo e a singularidade, é um equilíbrio instável que oscila entre o ser e o deixar de ser e constantemente se desfaz para refazer-se.” O trabalho da crítica, portanto, incide justamente no processo de modificação, de deformação, de renovação do sentido da obra “porque mudou o ângulo de interesse e são outros os motivos nela contidos que fixam de preferência a atenção dos novos intérpretes.” [22]
Outro aspecto chama sua atenção: as questões ligadas à criação literária. Nesse contexto acentua a importância do processo de dissociação literária, pois o escritor “quando escreve, deixa as virtudes quotidianas no tinteiro. No ato de escrever, ele já não é o homem, produto moral e social de todos os dias, mas uma libertação e às vezes uma superação de si mesmo. Em parte', dirá, 'uma errata de si mesmo”. [23]
Os textos seguintes, “Da sensualidade” e “Capitu”, foram igualmente publicados no livro de 47. Ambos são reflexões inspiradas em Lúcia Miguel Pereira a quem o primeiro deles é dedicado. Em setembro de 1935, por ocasião da publicação do ensaio de Meyer, a crítica escrevera: “A exceção de dois pontos que creio primordiais para o entendimento do maior escritor brasileiro - a sensualidade e a timidez - todos os seus aspectos foram abordados, com grande compreensão, pelo crítico rio-grandense”. [24] Esse comentário deu origem certamente ao estudo sobre a sensualidade.
Os demais trabalhos do último bloco são os incluídos em Preto & Branco (1956). Eles tomam, em seu conjunto, uma feição quase ficcional. Em textos como “Os galos vão cantar”, “O enterro de Machado de Assis” e “Um desconhecido”, Meyer procura recriar a figura do escritor e, diante de sua morte física, pensar como se dará sua permanência no gosto e na imaginação dos leitores. São textos como esses que justificam o parecer de Otto Maria Carpeaux que reconhecia a força criadora da crítica meyeriana, capaz, como observa, de “criar o seu objeto”. [25]
Nesses textos, irá também consolidar sua concepção de leitor, cuja função ganha cada vez mais importância. Desaparecido o escritor, a crítica assume um papel fundamental no processo literário, pois lhe cabe assegurar a sobrevivência das obras. Dirá, então, que “Quando os olhos são ricos, até os livros medíocres podem reviver, transfigurados”. É em Machado que Meyer encontra essa sugestão, pois o autor de Dom Casmurro tinha consciência desse fato ao dizer que “Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos.” [26]
Diante disso, a “vaguidade” da obra machadiana é um dos seus grandes atributos, por solicitar a cada momento a colaboração direta do intérprete e o envolvimento dos leitores. Daí o seu “enigmatismo” ser “voluntário”.
Como se percebe, Meyer completa um círculo nos textos reunidos em 58: retoma, sob outro prisma, a questão inicial da obra como enigma e reitera a relação entre ela e o leitor.

III MACHADO EM VARIANTES | Publicado o volume de 58, não se esgota o interesse do crítico sobre a obra machadiana. Em seus dois últimos livros, A Chave e a Máscara (1964) e A Forma Secreta (1965) ainda são incluídos estudos, que poderiam integrar outro volume semelhante. No entanto, interessa ressaltar que o crítico se modifica. Sem descartar integralmente a orientação psicológica - é ainda o autor o “sistema vivo” segundo o qual a obra se ordena - a metodologia crítica incorpora um suporte teórico mais atual. Ao centrar-se na obra, chega ao autor desprezando as interpretações biográficas, mesmo que lhes reconheça certa utilidade secundária. Assim, observa: “Por mais oportuna que seja esta reação da neocrítica contra o exagero das interpretações biográficas, não devemos concluir daí pelo divórcio completo entre as duas formas de vivência; sem uma correlação de fundo, que sentido atribuíra tantos vestígios inegáveis de uma conexão íntima, da qual só restam, aliás, em nossa visão crítica, os destroços mais vagos - paralelismos, convergências, semelhanças oblíquas, deformações de imagens pelo meio refletor...” [27]
Meyer apontara, ao final do volume de 58, para a relevância das edições críticas das Obras Completas, com uma séria revisão bibliográfica e crítica, que vinha sendo levada a bom termo pela Comissão Machado de Assis [28] e alertava para “a falta de uma sadia consciência metodológica em nossos arraiais literários, como vem observando Afrânio Coutinho”. Volta-se, então, para os aspectos formais do texto, ocupa-se com variantes e atenta para questões de linguagem, sob o influxo dos estilístas Leo Spitzer e Dámaso Alonso. Acentua, cada vez mais, a necessidade da leitura reiterada e sob diferentes ângulos, pois, como observa,

A obra de um grande escritor possui várias camadas superpostas, muitos degraus de iniciação, e só poderá ser conquistada em profundidade pouco a pouco. [29]

Certamente orientações novas estão na base dos estudos que examinam “o romance machadiano” sob o prisma da análise tematológica, os cinco contos de Machado que se prestam para um estudo de psicologia da criação artística, as prováveis “fontes” do capítulo “O Delírio”, a casa de Rubião em uma enseada de Botafogo, as variantes do Quincas Borba. Vê-se nesse último conjunto não só a incidência de teorias várias bem como a inclinação comparatista que se pode reconhecer na maioria dos estudos de Meyer. Os textos dos últimos anos de uma vida intelectual extremamente produtiva retomam diversos tópicos já analisados a que são acrescidos novos elementos. A coletânea de dispersos que preparo, com o título de Os Pêssegos Verdes, deverá comprovar como Augusto Meyer foi, até o final, o leitor persistente e criativo de que os estudos sobre Machado de Assis serão sempre o exemplo mais perfeito e acabado.
Nesse contexto, o leitor exemplar se delineia com clareza, pois “ele é, em essência, um colaborador, um segundo autor, a completar as sugestões do texto e a encher de ressonância os brancos da página.” Como ainda comenta Meyer, “O leitor nunca inventa, nunca descobre, mas inserindo nessa descoberta a sua ressonância pessoal, consegue tocar nos limites da invenção. Neste sentido modesto, inventamos sempre o que descobrimos.”
Pode-se dizer, sem hesitação, que ele não apenas analisou Machado de Assis mas igualmente que ele o reinventou, pois sua crítica criativa toca os “limites da invenção”.

NOTAS
1. Baudelaire, Charles. “La Voix”, Pièces Diverses. In: Oeuvres Complètes de Baudelaire. Paris, Gallimard, Coll. Pléiade, 1954, p.229.
2. Evoque-se que Meyer foi Diretor da Biblioteca Pública do Estado do RS, em Porto Alegre, de 1935 a 1937 quando muda-se para o Rio de Janeiro e se torna primeiro Diretor do Instituto Nacional do Livro, que irá presidir por duas vezes, a primeira até 1956 e a segunda de 1961a 1967.
3. Andrade, Carlos Drummond de. “De Méier a Bilu”. Jornal do Brasil, 16.7.70, p.8.
4. Montello, Josué. “Uma profecia de Machado de Assis”. Rio de Janeiro. Jornal do Brasil, 23.6.60.
5. Fuentes, Carlos. Valiente Mundo Nuevo. Épica, utopía y mito en la novela hispanoamericana. México. Fondo de Cultura Económica, 1990, p.45.
6. MEYER, Augusto. Machado de Assis. Porto Alegre, Editora Globo, 1935 [In: Machado de Assis. 1935-1958. Rio de Janeiro. Livraria São José, 1958].
7. Nesta obra, Machado é ainda referência no ensaio sobre Alcides Maya, autor de Machado de Assis. Algumas notas sobre o 'humour'. Rio de Janeiro, Livraria Editora Jacinto Silva, 1912, reeditado pela Academia Brasileira de Letras em 1942.
8. Meyer, Augusto. Machado de Assis. 1935-1958. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958.
9. Candido, Antonio. “Literatura”. “Augusto Meyer, Preto & Branco. O Estado de São Paulo, Suplemento Literário, nº 60, 14.12.1957, p.2.
10. Meyer, A. 1958,221.
11. Os dois artigos citados foram publicados, respectivamente, em 17.9.1922 e 24.9.1922.
12. Os artigos foram publicados no referido jornal em 01.11.1925 e 12.11.1925.
13. MEYER, Augusto. A Forma Secreta. Rio de Janeiro, Lidador, 1965.
14. Procurei estudar em profundidade a crítica de Meyer, desde seu início, no livro O crítico à sombra da estante. Porto Alegre, Ed. Globo, 1976.
15. Meyer, Augusto. Machado de Assis. 1935-1958. Rio de Janeiro. Livraria São José, 1958, p.235.
16. Carvalhal, Tania. “Meyer, a Chave e as Máscaras” In: “Dez anos sem Augusto Meyer”, Caderno de Sábado, jornal Correio do Povo, 12.7.1980, p. 16.
17. Meyer, A. Machado de Assis, 1958, p.224.
18. Meyer, A. 1958, 13.
19. Meyer, A. 1958,41.
20. Meyer, A. 1958,17.
21. Meyer, A. 1958, 238.
22. Meyer, A. 1958, 119.
23. Meyer, A. 1958, 110.
24. Pereira, Lucia Miguel. Rio de Janeiro. Gazeta de Notícias. 15.9.1935.
25. Carpeaux, O.M. “o crítico Augusto Meyer”.Tribuna de Santos. 29.7.1956.
26. Meyer, A, 1958, 155.
27. Meyer, A. 1958,214.
28. Integrada por Antonio José Chediak, Antonio Houaiss, Celso Cunha e Galante de Souza que publica, em 1960, a edição crítica de Quincas Borba.
29. Meyer, A. 1958, 153.


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Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
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