segunda-feira, 6 de agosto de 2018

OTTO MARIA CARPEAUX | O crítico Augusto Meyer



Temos, nos últimos tempos, ouvido muitas discussões proveitosas sobre a crítica. Já está na hora para falar também do crítico. A observação pode parecer mefistofélica. Pois é Mefistófeles que diz, no Fausto: "Cinzenta, caro amigo, é toda teoria e verde é a deliciosa árvore da vida." Mas a situação justifica mesmo os apartes meio maliciosos. Antigamente tivemos muitos críticos sem teoria alguma. Agora ternos muita teoria, uma floresta tão densa que ninguém mais consegue distinguir as árvores. Não é dessa opinião o mais conhecido e mais apreciado dos nossos críticos literários, Tristão de Athayde; em recente artigo, falando da crítica atual, citou muitos nomes, inclusive alguns que ninguém teria esperado encontrar em sua lista. É impossível supor que Tristão de Athayde não saiba o que é ou tem de ser um crítico literário. Só resta concluir que não quer sabê-lo, talvez pensando no velho lema de que "é impossível pecar por excesso de caridade". Tanto mais urgente é, a bem do restabelecimento da hierarquia dos valores, a retificação de certos equívocos, divulgados inclusive na província e entre espíritos provincianos.
Entre as qualidades de que tem de dispor o bom crítico literário, pensa-se, entre nós, em primeira linha, na segurança do julgamento. Não posso assinar essa opinião, porque toda a história da crítica literária a desmente. Lessing, o maior espírito da Alemanha, não reconheceu o valor de Goethe. Sainte-Beuve errou redonda e grotescamente com respeito a Stendhal, Balzac e todos os grandes poetas líricos do seu tempo. Croce, o grande Croce, escreveu disparates sobre a poesia francesa e italiana moderna. Seria fácil continuar a lista, tarefa da qual já se incumbiu Henri Peyre, em livro conhecido. Contra a soberbia dos "juízes" autonomeados convém observar que a crítica dos contemporâneos sempre é extremamente precária. A verdadeira pedra de toque não é o julgamento dos livros ontem publicados, mas a interpretação e reinterpretação das obras publicadas em qualquer época, inclusive e especialmente do passado. Ali e só ali se encontram os méritos do grande escritor Sainte-Beuve como crítico. E para tanto não basta toda a ciência literária do mundo, se não houver a colaboração daquilo que um espírito tão científico como Croce francamente admite: o gosto. A palavra está hoje difamada. Mas "hoje" não é, por uma misteriosa fatalidade qualquer, mais inteligente que "antigamente". Até pode acontecer o contrário. Colocamos, portanto, o gosto no primeiro lugar entre os requisitos exigidos ao bom critico literário. Depois: a mais ampla informação possível, atitude desinteressada, método seguro, e uma certa dose de força criadora.
Eis o que se pode chamar de ser exigente! Ainda existe, porventura, uma palmeira-real assim na floresta das letras nacionais, depois de tantas queimadas? Não precisa ser propriamente um rei. Não sou monárquico. É possível apresentar nomes, embora poucos. Depois de alguma hesitação, voto, para hoje, em Augusto Meyer, a propósito do volume Preto & Branco.
Da primeira daquelas exigências, do gosto, não pretendo falar, pois o lugar-comum mais batido e mais verdadeiro já afirma que "de gustibus non est disputandum". Várias vezes já me encontrei em franco desacordo com Augusto Meyer; divirjo ligeiramente da sua opinião sobre Rimbaud; tive com ele uma pequena escaramuça sobre a interpretação ou antes a leitura certa de um verso de Hölderlin etc. Mas nunca estavam em discussão os imponderáveis do entendimento estético. Pode-se impugnar isto ou aquilo. Mas nunca se pode duvidar da qualidade essencial do gosto de Augusto Meyer: tem nível alto. Escolhe e interpreta, desistindo da falsa infalibilidade de juiz, com a segurança de sonâmbulo que não cairá. Para empregar uma palavra muito abusada, que infelizmente se aplica entre nós, indistintamente, aos ensaístas, aos caixeiros-viajantes e aos polemistas venenosos: o gosto de Augusto Meyer é o de homem muito inteligente.
Justamente o abuso dessa palavra "inteligência" permite precisar os termos. Há várias maneiras de ser inteligente. Para o oficio do crítico literário, assim como para outros ofícios de intelectual, não serve aquela espécie de vivacidade intelectual de que dispõe, sem dúvida, um cabotino nato. A inteligência que se revela no bom gosto, não é um presente gratuito da Natureza. Dispensamos os gênios que - acreditam eles - não precisam estudar nada. Augusto Meyer não é um pseudogênio assim. É dos homens mais e melhor informados sobre a coisa literária que há no Brasil.
Seria injusto isolá-lo, por isso, em cima de um pedestal. Não é o único. Penso em homens como Sérgio Buarque de Holanda. Há mais outros muito bem informados, como Franklin de Oliveira e Antônio Cândido. Em certos "casos" de crítica brasileira a informação é, aliás, lamentavelmente unilateral, limitando-se a determinados setores ou províncias literárias. Basta, porém, folhear um livro como Preto & Branco, para formar ideia da amplitude dos horizontes de Augusto Meyer.
O volume abre-se com trechos dedicados ao maior escritor brasileiro: "Os galos vão cantar", "O enterro de Machado de Assis", "Trecho de um posfácio", "O autor e o homem". No resto, são constantes as referências à literatura nacional: a "Nota sobre Euclides da Cunha" é do melhor que já se disse sobre o estilo desse autor. Estudos estilísticos de grande finura são também os que versam sobre quatro sílabas significativas encontradas num trecho de Herculano e sobre uma expressão de Proust. O método expositivo é empregado nos ensaios sobre Chateaubriand, Anatole France, Moby Dick e o romancista colombiano José Eustáquio Rivera. O comparatista revela-se em "Pergunta sem resposta", sobre as migrações de um tema de Villon, através da literatura de todos os tempos; nos confrontos de "Da infância na literatura", citando-se Vallès, Dickens, Jules Renard,
Graciliano Ramos, Karl Philipp Moritz e Henry James; no estudo "O mundo da lua", sobre o papel do luar na literatura romântica. O conhecedor da literatura alemã escreve sobre uma nova tradução do Fausto - os versos citados no início deste artigo são, aliás, transcritos conforme a tradução do próprio Augusto Meyer - e sobre a novela mozartiana de Moerike; o conhecedor da literatura portuguesa fala de Garrett e Eça de Queiroz. Não encontro no índice de matérias artigos sobre Stendhal e Henry James, dois autores prediletos de Augusto Meyer sobre os quais poderia dizer-nos muita coisa boa. Em compensação, fala de Cervantes e Flaubert. E no fim surpreende-nos um traço erudito sobre os pré-socráticos gregos.
As notas ao pé das páginas do livro, prestando conta das fontes utilizadas, também servem para formar opinião sobre as leituras de Augusto Meyer: lê francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, talvez mais outras línguas. Esse especialista em literatura gaúcha, regionalista no melhor sentido da palavra, é um estudioso incansável da literatura universal. Maneja com mestria os instrumentos do comparatismo. Não confunde, como acontece a outros, o estudo da literatura comparada com procura teimosa de "influências" sem interesse para a interpretação do autor influenciado. Mantém-se dentro dos limites certos. Veja-se aquele ensaio, "Pergunta sem resposta", ao qual tentei, aliás, responder; mas a resposta à pergunta de Villon - "Oú sont les neiges d'antan?" era somente a palavra que a morte, na gravura de Goya, escreve sobre o túmulo: "Nada".
A erudição especificamente literária de Augusto Meyer fica, porém, mal definida, quando discípulos menos compreensivos a comparam à erudição especificamente histórica dos scholars, sobretudo quando o mesmo título honroso também se usa para homenagear um estéril saber livresco.
Esse equívoco é, aliás, pendant de outro: enquanto os amigos falam em scholar, preferem os espíritos menos amistosos a expressão "aéreo". Um crítico hostil não deixaria de observar que um dos ensaios do volume Preto & Branco, um dos melhores, se chama "O mundo da lua". Mas justamente no mundo da lua encontrou Ariosto a Razão e tudo o que os homens já perderam, menos a estultícia, pois esta continua sempre na terra: "Sol lapazzia non v'è poco nè assai, / Chè sta qua giú, nè se neparte mai." Como homens da lua foram sempre considerados pelos filisteus os poetas; mas Shakespeare sabia melhor que "the poet's eye, in a fine frenzy rolling", vê "the form of things unknown"; e "the poet's pen/Turns them to shapes and gives to airy nothing /A local habitaton and a name". Ao poeta devem as coisas deste mundo "a localização e o nome", sem os quais não passariam de sombras, de um "nada aéreo". Para prová-lo, bastavam as poucas impressões de viagem italiana que Augusto Meyer já publicou: a leitura congenial das obras de Stendhal abriu ao poeta Augusto Meyer a porta de realidades raramente percebidas pelos turistas apressados. A qualidade de poeta - o autor dos Poemas de Bílu é um dos nossos melhores poetas - não é, aliás, alheia à sua compreensão da poesia de outros. A esse respeito convém recomendar a leitura de certas páginas de T.S. Eliot aos muitos que escreveram durante vinte ou trinta anos sobre poesia sem se preocupar jamais com a técnica poética.
Mas vale a pena voltar aquele tolo adjetivo "aéreo". Seu uso com respeito a poetas e outros que não foram convidados para o rico banquete desta vida, lembra alguns dos mais espinhosos problemas da vida literária no Brasil, problemas em que, parece, só José Veríssimo teve a coragem e a probidade de tocar. De consequências nefastas é a relação existente entre o sucesso literário e a ascensão social: há quem se aproveite da literatura para galgar altas posições em outros setores da vida pública; e há quem se aproveite da posição, por outros meios alcançada, para colher lauréis literários. Acontece isso num mundo em que todos os escritores se conhecem pessoalmente, de tal modo que a relação entre críticos e criticados também se caracteriza, às mais das vezes, pela amizade pessoal ou pela inimizade pessoal. Não é este o caso do autor de Preto & Branco, nem do seu presente crítico. Augusto Meyer, dizia eu, "lê francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, talvez mais outras línguas". "Talvez", porque não o sei; porque as nossas relações, embora sempre boas, nunca chegaram a ser íntimas ou "funcionais". De certa distância, desinteressadamente, estou escrevendo sobre um homem desinteressado. O único interesse constante de Augusto Meyer é "ce vice impuni, la lecture". É homem que sabe ler. Mas não seria esta uma das definições possíveis do crítico literário?
Se é, a definição está incompleta. Já se sabe que o crítico precisa de múltiplas qualidades. Também se pode exigir que tenha método. O ponto é nevrálgico. Hoje, todo crítico tem seu método, às vezes, sua ideia fixa. Empregam-se métodos, criados em situações literárias diferentes, para explicar onde não há nada para explicar. Com impaciência estou esperando que um crítico da novíssima geração dedique trabalho de análise estilística às imagens da vida doméstica nos romances da Sra. Leandro Dupré ou à frequência de adjetivos astronômicos na poesia de Petrarca Maranhão. Antigamente não foi assim. Os nossos críticos antigos nem sequer sabiam o que é método. Num sentido muito diferente, Augusto Meyer também "não tem método". Emprega ora este, ora aquele processo de interpretação, obedecendo só e exclusivamente à natureza da obra que pretende interpretar; o método estilístico, o método sociológico (nos seus estudos de literatura gaúcha) e - last but not least- o método psicológico.
A este último deve Augusto Meyer, como todos sabem, seu maior sucesso critico: o ensaio magistral sobre Machado de Assis. "Psicológico" é, aliás, maneira de dizer. Pois ao termo "psicologia" ligamos, as mais das vezes, o conceito de "análise". Mas o Machado de Assis de Augusto Meyer não é resultado de uma análise, seja mesmo em profundidade, e sim produto de uma síntese: o crítico "criou seu objeto", para empregar um termo da filosofia neokantiana. Sua crítica tem força criadora.
Com uma peça de crítica criadora abre-se o volume Preto & Branco: "Os galos vão cantar". É uma peça na qual o saber metódico do ensaísta é iluminado por um raio de poesia. Eis o crítico Augusto Meyer, ao qual se devia esta homenagem de admiração distante e sincera.


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Artista convidada | Rozi Demant (Nova Zelândia, 1983)

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Agulha Revista de Cultura
Número 116 | Agosto de 2018
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