segunda-feira, 27 de agosto de 2018

WILSON COUTINHO | Fernando Casás e a poética da corrosão


O ateliê em Nova Friburgo, a 150km do Rio, exibe um cenário quase dramático. Troncos de árvores centenárias, raízes retorcidas que lembram os cabelos da Medéia. Ali já existe uma escolha do artista em relação ao mundo convulsivo da natureza. Ali já começa uma estratégia: o olhar recolhe, fascinado, esses escombros. Só a percepção é ali um drama. Por si só a natureza não tem impacto; não fornece nenhuma moral, nenhuma categoria estética. A sua existência é de uma totalidade amoral. No entanto, aqueles pedaços de árvores habitam o ateliê diante de uma historicidade, de um olhar, de uma subjetividade que são como inquietações da alma. De fato, pode haver um neo-romantismo ali. A obra, ao contrário do romantismo passado, de Rousseau e de outros, não é um exemplo de um modelo do Bem, ele atravessa uma descontinuidade já encerrada com o apogeu de uma arte que celebrava os riachos e as montanhas; os panoramas e os abismos; o mar e as lagunas. Ele não tem a serenidade dos recortes idílicos, das ambientações telúricas e silvestres, a estética de Pã com ninfas; nem essa natureza lembra o terror e a convulsão das tempestades marítimas, das imensidões geladas. A natureza não é um ponto de vista; um fundo onde deslancha uma batalha ou uma representação acolhedora do Belo, do Bem e da Virtude.
Neste neo-romantismo a natureza é ação, interpretada pela percepção subjetiva do artista. Ela é corrosão, buracos, massa orgânica, escrita e fábula, morte e desastre. Ela tem uma ontologia: seu ser é o da destruição, mas também a obra
dessa desordem. O tempo, na sua dimensão material, complementa esse trabalho. O neo-romantismo de Casás é, portanto, o de uma modernidade fatigada. Não se concentram mais na exaltação ao industrialismo. O tempo é adversário da velocidade futurista, trabalhando com mais calma, com mais torpor, e assinalando a morte e a construção da matéria. Física, na sua fria materialidade, a natureza acaba por introduzir na obra, através da percepção experimental do artista, um existencialismo ético. A natureza para Fernando Casás é quase uma situação-limite: ela é o próprio drama da criação, cuja marca original é o jogo. Como artista ele não está só, nesta empreitada. Não só uma consciência ecológica, marcante neste final do século, foi o elemento impulsionador para abrir para a arte uma perspectiva inédita no trato da natureza.
Quando muitos artistas desistiram da pintura de cavalete, alguns com a razoável sensação de que ela não poderia sensorialmente abarcar as experiências sensíveis do homem contemporâneo, pôde-se optar, entre outras coisas, para os happenings, que são resíduos de festas populares, transportadas para o anonimato da vida urbana, onde era possível preencher de novas possibilidades o corpo e o espírito de seus participantes. Pôde-se optar para ambientes, capazes de recolher múltiplas experiências estéticas numa espécie de cenário construído de tal forma, que a experiência pudesse alongar-se num conceito: ou sobre a própria natureza precária da obra de arte em nosso tempo ou sobre a vida ou mesmo sobre o racionalismo conspícuo, no qual toda a sociedade está mergulhada. Ou exacerbando esse racionalismo, num embate contra o puro prazer visual, pôde-se realizar um conjunto de obras que foram chamadas de conceituais.
Uma das saídas, também, foi a de vislumbrar a Terra de novo. Olha-la não mais com o fervor da exuberância, mas como um suporte, que poderia reativar uma experiência estética para aquém de uma cultura organizada com extrema racionalidade. Walter de Maria capta através da fotografia a beleza irradiante de um raio; Richard Long com seus círculos de pedra modifica e simboliza o espaço ambiental; Christo reelabora a paisagem, criando interferências como as que ele realizou no Colorado, estendendo uma cortina de tela sobre o vale. No Brasil, Franz Krajcberg passou de uma utilização da natureza como suporte para incisiva denúncia contra as devastações de nossas florestas. O clima cultural desse final de século é, evidente, o de uma crise, na qual a arte ecológica (ou land-art) tem servido como ponta de lança para um questionamento das nossas questões ambientais. Tornar o suporte o elemento fundante também serviu para as operações mais niilistas da obra de arte do nosso tempo, onde a cultura do narcisismo pode ser exibida com violência. Gina Pane cortou a palma de sua mão; o austríaco Schwarzkogler emasculou-se. Por outro lado, o racionalismo minimalista retirava a pintura do plano para exibir apenas o seu processo. É certo, como classifica o historiador Ernst Gombrich, que mais do que ao espírito do tempo ou formulações ideológicas a arte vive do que ele chama lógica do jogo da moda, no sentido de que uma determinada situação pode explicar o impulso para a criatividade. Um desses exemplos, por exemplo, está na concorrência y ascensão às divas, como ocorreu entre os artistas dos palácios do Renascimento. Foi o que ocorreu na arte norte-americana dos 80 com sua iconografia infantilista, com a evocação
constante aos heróis de história em quadrinhos como Pica-pau ou de TV como Hulk. O que entrou em pane neste caso foi uma sensibilidade direta, capaz de evitar uma natureza de ficção, já pré-estimulada por uma organização em massa de imagens.
A questão, de repente, ficou perturbadora: pode, de novo, a arte ser bela? O mundo da infantilização da arte nos 80 parecia situar a arte na ética de un cinismo incurável. E, contudo, ainda havia – e ainda muito forte – a fábula da natureza. Essa pré-produção de um artifício já arquitetada na sua clausura industrial e tendo uma finalidade projetiva. Vejo minha obra como um desfazer, o retornar, o avesso de Buckminster Fuller, declarou Casás a Roberto Grey. É um anti-futurismo audacioso. Retornar qa perceber a natureza, o seu trabalho no tempo, catar o escombro, aplicar-se ao trabalho lento da corrosão é uma atitude ambígua. Ao mesmo tempo em que é um recuo ao que podemos chamar de intimidade da natureza, a sua mobilidade própria, a sua intrínseca manifestação sem a presença da ação do trabalho humano, esta atitude é, certo, um desvio do modernismo da vida ativa, para ser uma imersão na contemplação. Mas, é por isto mesmo que o trabalho de Casás faz emergir a sua transgressão: a sua obra é o da seleção da percepção da escolha estética do olhar. Ao mesmo tempo em que sua estratégia pode funcionar em plena tradição moderna como a recolha dos ready-mades, refugos da natureza, madeiras carcomidas por vermes ou teredos, madeiras lavadas pelas marés, objetos do tempo, que o olhar acaba por torna-los viáveis. Esse esteticismo contemplativo também goza com ambiguidades. Casás, inúmeras vezes, descobre que não pode alterar o acaso arquitetônico do tempo. Esse é excessivamente perturbador e belo. Mas a obra dos cupins, no projeto Ciclo do Cupim, é também uma fabulação subjetiva. São relevos e escritas. É o discurso do sujeito sobre a catástrofe da destruição.
A fabulação, portanto, recompõe a neutralidade do objeto da natureza com a subjetividade do sujeito. Casás impregna de sentido aquilo que era apenas um estado bruto da natureza, o seu trabalho ao acaso, biológico. Os relevos da
mostra Eros / ão é como a terra pode ser vista, não é apenas uma modulação natural. É o olhar que define uma historicidade a esses recortes da natureza, jogando-os na história cultural do homem. O mesmo ocorrerá quando Casás trabalhar com a pedra e a madeira na exposição Longa Noite de Pedra, transfigurando em símbolos os elementos primitivos: a terra, o ar, o fogo, a água. E será mais significativo no trabalho Diário de Viagem e no seu complemento Projeto Retorno. São as marcas originárias, os primeiros olhares, as primeiras pegadas de uma viagem-matriz sobre uma terra edênica que será descoberta, que está, de fato, sendo descoberta. Aqui, novamente, a fabulação casásneana é a interferência do olhar que constrói essa fábula de viajantes. Um olhar narrador que vê a natureza no seu primeiro contato. Depois o retorno do viajante, essa ação sobre um tempo já vivido, quinhentos anos depois. O olhar é então uma apreensão da temporalidade.
O tempo é, portanto, na fenomenologia da natureza descrita na obra de Casás, o seu fundamento. Poética da erosão, porque ela desmancha os vínculos do presente. A corrosão inunda o tempo com uma história, com um fazer-do-mundo, que é constante e sempre se altera. Poesia heraclitiana sobre o devir do mundo, onde a natureza não é repouso, mas uma constante alteração.
A Terra, por outro lado, abre-se para essa indagação, que não é a de uma ilustração filosófica sobre o devir. A sua estratégia é a de um perturbador recolhimento contemplativo. Mas há uma via ativa, que opera sobre os escombros deixados pela ordem da natureza: o olhar que é soberano, o olhar que transfigura o devir, olhar que detém a marcha da natureza num momento, onde fulgura um instante de sua obra incansável. Ao suspender o tempo, Casás evoca a natureza como a origem de tudo, a origem da obra de arte e o início sempre renovado.


*****

WILSON COUTINHO | Doutor em filosofía pela Universidad de Louvaina, Bélgica. Crítico de arte do Jornal do Brasil e posteriormente de O Globo, onde foi editor do Segundo Caderno (caderno cultural). Diretor do MAM Museu de Arte Moderna do RJ. Foi assessor especial da Secretaria Estadual de Cultura do RJ. Editor na Rio Arte, onde orientou 3 coleções. Ensaísta, curador independente etc.

*****

Edição a cargo de Floriano Martins e Mina Marx. Agradecimentos a Fernando Casás e todos os ensaístas aqui presentes.

*****

Agulha Revista de Cultura
Número 117 | Agosto de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES






Nenhum comentário:

Postar um comentário