O ateliê em Nova
Friburgo, a 150km do Rio, exibe um cenário quase dramático. Troncos de árvores
centenárias, raízes retorcidas que lembram os cabelos da Medéia. Ali já existe
uma escolha do artista em relação ao mundo convulsivo da natureza. Ali já
começa uma estratégia: o olhar recolhe, fascinado, esses escombros. Só a
percepção é ali um drama. Por si só a natureza não tem impacto; não fornece
nenhuma moral, nenhuma categoria estética. A sua existência é de uma totalidade
amoral. No entanto, aqueles pedaços de árvores habitam o ateliê diante de uma
historicidade, de um olhar, de uma subjetividade que são como inquietações da
alma. De fato, pode haver um neo-romantismo ali. A obra, ao contrário do
romantismo passado, de Rousseau e de outros, não é um exemplo de um modelo do
Bem, ele atravessa uma descontinuidade já encerrada com o apogeu de uma arte
que celebrava os riachos e as montanhas; os panoramas e os abismos; o mar e as
lagunas. Ele não tem a serenidade dos recortes idílicos, das ambientações
telúricas e silvestres, a estética de Pã com ninfas; nem essa natureza lembra o
terror e a convulsão das tempestades marítimas, das imensidões geladas. A
natureza não é um ponto de vista; um fundo onde deslancha uma batalha ou uma
representação acolhedora do Belo, do Bem e da Virtude.
Neste neo-romantismo a natureza é ação, interpretada
pela percepção subjetiva do artista. Ela é corrosão, buracos, massa orgânica,
escrita e fábula, morte e desastre. Ela tem uma ontologia: seu ser é o da
destruição, mas também a obra
dessa desordem. O tempo, na sua dimensão material, complementa esse trabalho. O neo-romantismo de Casás é, portanto, o de uma modernidade fatigada. Não se concentram mais na exaltação ao industrialismo. O tempo é adversário da velocidade futurista, trabalhando com mais calma, com mais torpor, e assinalando a morte e a construção da matéria. Física, na sua fria materialidade, a natureza acaba por introduzir na obra, através da percepção experimental do artista, um existencialismo ético. A natureza para Fernando Casás é quase uma situação-limite: ela é o próprio drama da criação, cuja marca original é o jogo. Como artista ele não está só, nesta empreitada. Não só uma consciência ecológica, marcante neste final do século, foi o elemento impulsionador para abrir para a arte uma perspectiva inédita no trato da natureza.
dessa desordem. O tempo, na sua dimensão material, complementa esse trabalho. O neo-romantismo de Casás é, portanto, o de uma modernidade fatigada. Não se concentram mais na exaltação ao industrialismo. O tempo é adversário da velocidade futurista, trabalhando com mais calma, com mais torpor, e assinalando a morte e a construção da matéria. Física, na sua fria materialidade, a natureza acaba por introduzir na obra, através da percepção experimental do artista, um existencialismo ético. A natureza para Fernando Casás é quase uma situação-limite: ela é o próprio drama da criação, cuja marca original é o jogo. Como artista ele não está só, nesta empreitada. Não só uma consciência ecológica, marcante neste final do século, foi o elemento impulsionador para abrir para a arte uma perspectiva inédita no trato da natureza.
Quando muitos artistas desistiram da pintura de
cavalete, alguns com a razoável sensação de que ela não poderia sensorialmente
abarcar as experiências sensíveis do homem contemporâneo, pôde-se optar, entre
outras coisas, para os happenings, que são resíduos de festas populares,
transportadas para o anonimato da vida urbana, onde era possível preencher de
novas possibilidades o corpo e o espírito de seus participantes. Pôde-se optar
para ambientes, capazes de recolher múltiplas experiências estéticas
numa espécie de cenário construído de tal forma, que a experiência pudesse
alongar-se num conceito: ou sobre a própria natureza precária da obra de arte
em nosso tempo ou sobre a vida ou mesmo sobre o racionalismo conspícuo, no qual
toda a sociedade está mergulhada. Ou exacerbando esse racionalismo, num embate
contra o puro prazer visual, pôde-se realizar um conjunto de obras que foram
chamadas de conceituais.
Uma das saídas, também, foi a de vislumbrar a Terra de
novo. Olha-la não mais com o fervor da exuberância, mas como um suporte, que
poderia reativar uma experiência estética para aquém de uma cultura organizada
com extrema racionalidade. Walter de Maria capta através da fotografia a beleza
irradiante de um raio; Richard Long com seus círculos de pedra modifica e
simboliza o espaço ambiental; Christo reelabora a paisagem, criando
interferências como as que ele realizou no Colorado, estendendo uma cortina de
tela sobre o vale. No Brasil, Franz Krajcberg passou de uma utilização da
natureza como suporte para incisiva denúncia contra as devastações de nossas
florestas. O clima cultural desse final de século é, evidente, o de uma crise,
na qual a arte ecológica (ou land-art) tem servido como ponta de lança
para um questionamento das nossas questões ambientais. Tornar o suporte o
elemento fundante também serviu para as operações mais niilistas da obra de
arte do nosso tempo, onde a cultura do narcisismo pode ser exibida com
violência. Gina Pane cortou a palma de sua mão; o austríaco Schwarzkogler
emasculou-se. Por outro lado, o racionalismo minimalista retirava a pintura do
plano para exibir apenas o seu processo. É certo, como classifica o historiador
Ernst Gombrich, que mais do que ao espírito do tempo ou formulações
ideológicas a arte vive do que ele chama lógica do jogo da moda, no
sentido de que uma determinada situação pode explicar o impulso para a
criatividade. Um desses exemplos, por exemplo, está na concorrência y ascensão
às divas, como ocorreu entre os artistas dos palácios do Renascimento. Foi o
que ocorreu na arte norte-americana dos 80 com sua iconografia infantilista, com
a evocação
constante aos heróis de história em quadrinhos como Pica-pau ou de TV como Hulk. O que entrou em pane neste caso foi uma sensibilidade direta, capaz de evitar uma natureza de ficção, já pré-estimulada por uma organização em massa de imagens.
constante aos heróis de história em quadrinhos como Pica-pau ou de TV como Hulk. O que entrou em pane neste caso foi uma sensibilidade direta, capaz de evitar uma natureza de ficção, já pré-estimulada por uma organização em massa de imagens.
A questão, de repente, ficou perturbadora: pode, de
novo, a arte ser bela? O mundo da infantilização da arte nos 80 parecia situar
a arte na ética de un cinismo incurável. E, contudo, ainda havia – e ainda
muito forte – a fábula da natureza. Essa pré-produção de um artifício já
arquitetada na sua clausura industrial e tendo uma finalidade projetiva. Vejo minha obra como um desfazer, o retornar,
o avesso de Buckminster Fuller, declarou Casás a Roberto Grey. É um
anti-futurismo audacioso. Retornar qa perceber a natureza, o seu trabalho no
tempo, catar o escombro, aplicar-se ao trabalho lento da corrosão é uma atitude
ambígua. Ao mesmo tempo em que é um recuo ao que podemos chamar de intimidade
da natureza, a sua mobilidade própria, a sua intrínseca manifestação sem a
presença da ação do trabalho humano, esta atitude é, certo, um desvio do
modernismo da vida ativa, para ser uma imersão na contemplação. Mas, é por isto
mesmo que o trabalho de Casás faz emergir a sua transgressão: a sua obra é o da
seleção da percepção da escolha estética do olhar. Ao mesmo tempo em que sua
estratégia pode funcionar em plena tradição moderna como a recolha dos ready-mades, refugos da natureza,
madeiras carcomidas por vermes ou teredos, madeiras lavadas pelas marés,
objetos do tempo, que o olhar acaba por torna-los viáveis. Esse esteticismo
contemplativo também goza com ambiguidades. Casás, inúmeras vezes, descobre que
não pode alterar o acaso arquitetônico do tempo. Esse é excessivamente
perturbador e belo. Mas a obra dos cupins, no projeto Ciclo do Cupim, é também uma
fabulação subjetiva. São relevos e escritas. É o discurso do sujeito sobre a
catástrofe da destruição.
A fabulação, portanto, recompõe a neutralidade do
objeto da natureza com a subjetividade do sujeito. Casás impregna de sentido
aquilo que era apenas um estado bruto da natureza, o seu trabalho ao acaso,
biológico. Os relevos da
mostra Eros / ão é como a terra pode ser vista, não é apenas uma modulação natural. É o olhar que define uma historicidade a esses recortes da natureza, jogando-os na história cultural do homem. O mesmo ocorrerá quando Casás trabalhar com a pedra e a madeira na exposição Longa Noite de Pedra, transfigurando em símbolos os elementos primitivos: a terra, o ar, o fogo, a água. E será mais significativo no trabalho Diário de Viagem e no seu complemento Projeto Retorno. São as marcas originárias, os primeiros olhares, as primeiras pegadas de uma viagem-matriz sobre uma terra edênica que será descoberta, que está, de fato, sendo descoberta. Aqui, novamente, a fabulação casásneana é a interferência do olhar que constrói essa fábula de viajantes. Um olhar narrador que vê a natureza no seu primeiro contato. Depois o retorno do viajante, essa ação sobre um tempo já vivido, quinhentos anos depois. O olhar é então uma apreensão da temporalidade.
mostra Eros / ão é como a terra pode ser vista, não é apenas uma modulação natural. É o olhar que define uma historicidade a esses recortes da natureza, jogando-os na história cultural do homem. O mesmo ocorrerá quando Casás trabalhar com a pedra e a madeira na exposição Longa Noite de Pedra, transfigurando em símbolos os elementos primitivos: a terra, o ar, o fogo, a água. E será mais significativo no trabalho Diário de Viagem e no seu complemento Projeto Retorno. São as marcas originárias, os primeiros olhares, as primeiras pegadas de uma viagem-matriz sobre uma terra edênica que será descoberta, que está, de fato, sendo descoberta. Aqui, novamente, a fabulação casásneana é a interferência do olhar que constrói essa fábula de viajantes. Um olhar narrador que vê a natureza no seu primeiro contato. Depois o retorno do viajante, essa ação sobre um tempo já vivido, quinhentos anos depois. O olhar é então uma apreensão da temporalidade.
O tempo é, portanto, na fenomenologia da natureza
descrita na obra de Casás, o seu fundamento. Poética da erosão, porque ela
desmancha os vínculos do presente. A corrosão inunda o tempo com uma história,
com um fazer-do-mundo, que é constante e sempre se altera. Poesia heraclitiana
sobre o devir do mundo, onde a natureza não é repouso, mas uma constante
alteração.
A Terra, por outro lado, abre-se para essa indagação,
que não é a de uma ilustração filosófica sobre o devir. A sua estratégia é a de
um perturbador recolhimento contemplativo. Mas há uma via ativa, que opera
sobre os escombros deixados pela ordem da natureza: o olhar que é soberano, o
olhar que transfigura o devir, olhar que detém a marcha da natureza num momento,
onde fulgura um instante de sua obra incansável. Ao suspender o tempo, Casás
evoca a natureza como a origem de tudo, a origem da obra de arte e o início
sempre renovado.
WILSON
COUTINHO | Doutor
em filosofía pela Universidad de Louvaina, Bélgica. Crítico de arte do Jornal do Brasil e posteriormente de O Globo, onde foi editor do Segundo Caderno (caderno
cultural). Diretor do MAM Museu de Arte Moderna do RJ. Foi assessor especial da
Secretaria Estadual de Cultura do RJ. Editor na Rio Arte, onde orientou 3
coleções. Ensaísta, curador independente etc.
*****
Edição a cargo de Floriano Martins e Mina Marx.
Agradecimentos a Fernando Casás e todos os ensaístas aqui presentes.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
117 | Agosto de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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