quarta-feira, 19 de setembro de 2018

CÉSAR LEAL | Universalidade de Jorge de Lima



Se alguém me indagasse qual seria o poeta mais representativo da moderna poesia brasileira, creio que mencionaria primeiro Carlos Drummond de Andrade, ainda que Manuel Bandeira também o seja, ao lado de outros cuja consciência moderna lhes assegura uma posição de significativa relevância. Mas a expressão poética, em nenhum deles alcança, uma dimensão intelectual de fronteiras tão extensas quanto em Jorge de Lima. Acredito que sua poesia é tão importante quanto a de Fernando Pessoa e, seguramente, igual à dos maiores poetas antigos de nossa língua, inclusive Camões.
Apesar dessa grandeza tão superlativa, a influência de Jorge de Lima começou a declinar desde a sua morte, em 1953. Nossa crítica tem sido responsável pelo pouco interesse que seus livros despertam entre as novas gerações. Os críticos novos, que deveriam estar melhor preparados para uma abordagem estratégica da obra de arte poética, estão intensamente comprometidos com o “processo de desenvolvimento econômico e social do país”, deslocando seu interesse para aqueles autores cuja obra reflete – segundo eles – uma participação mais intensa nessa tomada de posição que lhes permite desenvolver um teoricismo estilisticamente bárbaro, tecnicamente parasitário e ideologicamente indefinido. Consideram a situação atual do Brasil uma situação de “trânsito” de que deverão participar todos os escritores. Tal crítica, que vem utilizando uma terminologia “marxista” típica, paramarxista ou marxistencialista, pretende chamar a si o papel de guia dos intelectuais, esquecida de que o marxismo, apesar de possibilitar uma série quase infinita de simplificações, é – como assinalou Alfred Kazin – um instrumento complicado e sensível e não uma corneta, uma trombeta convocatória de neófitos, “um infalível barômetro científico que possa ser manobrado alternativamente como clava” e cânon estético.
Por isso, como dizia um personagem dos Anos de Aprendizagem de Guilherme Meister, é uma sensação pavorosa a do homem culto e dotado de consciência que se encontra na contingência de que o instruam acerca de si mesmo. “Todos os trânsitos são crises – diz Goethe – mas uma crise não é uma enfermidade”. Daí por que se impõe uma reação urgente a esse filisteísmo crítico que atua sobre a arte como um corrosivo, confundindo alguns valores e obrigando outros a uma retirada para as trevas.
Assim, não se pode culpar os jovens poetas pela escolha de modelos que nem sempre são os melhores. Tais protótipos estão sendo preparados por uma teorização crítica que pretende reduzir a poesia a um “subproduto da inteligência”, criando modelos aparentemente complexos, mas fáceis de serem imitados. Seria, pois, justo desculpar os críticos, ainda que se possa demonstrar ser a nossa crítica teórica um dos gêneros literários dos quais pouco se tem a dizer no Brasil? Creio que não.
Jorge de Lima é um poeta cujas faculdades criadoras não encontram limites na mente; elas se dilatam por um processo que eu chamaria de “desintegração de consciência”, alcançando a intuição e a sensibilidade do leitor e atraindo-as para o seu núcleo expressivo, nem sempre envolto naquela atmosfera de sombra que caracteriza algumas das melhores passagens de Invenção de Orfeu. Nele, o poema não surge como uma “construção”, como o resultado de uma fé nos ídolos do mundo contemporâneo – a ciência, a geometria, o zelo esteticista, o culto da morte – mas como “criação” do espírito, o trabalho de um homem que não perdeu a fé nos valores transcendentes e possui do passado uma consciência social e histórica que o situa acima de qualquer outro poeta brasileiro de seu tempo. Com raras exceções, os jovens poetas não são grandes leitores de Jorge de Lima. Talvez tenham razão, pois, como assinalou certa vez T. S. Eliot, em um de seus ensaios, os grandes autores, aqueles que dificilmente podem ser ultrapassados, são vistos com desconfiança pelos jovens. O interesse de quem se agarra a um modelo – consciente ou inconscientemente – é superá-lo. Se isso importa em tarefa muito difícil, então a admiração inicial transforma-se em antipatia: porém esse é um problema que já pertence mais ao campo da psicanálise do que da crítica.
Frequentemente se diz que a poesia de Jorge de Lima é muito difícil; que seus poemas são revestidos de uma simbologia estranha, envolta em uma atmosfera de imagens e de metáforas de significação bastante complicada, impenetrável até. Discordo dos que o julgam assim; dos que o comparam a Gôngora, ainda que Gôngora seja indiscutivelmente um grande poeta. Discordo do crítico português João Gaspar Simões, em prefácio que escreveu para o livro mais importante de Jorge de Lima – Invenção de Orfeu – quando diz que “os poetas, confiados na inteligência dos críticos, abandonam-se, voluntariamente, à obscuridade inerente a todo o genuíno ato poético”. Acredito que essa não é a razão que leva um artista a certas regiões de sombra inerentes aos seu ofício: julgo mesmo que somente os poetas menores se abandonam assim tão confiadamente à inteligência dos pesquisadores de símbolos e de imagens, de figuras de dicção e até de leituras que teriam formado a cultura filosófica e literária de um autor. Naturalmente, não se pode negar que existem muitos poetas preocupados em escrever de acordo com os padrões da crítica; tais poetas visam sempre a um êxito imediato: um prestígio social que a nossa época de pragmatismo frequentemente estimula. Se o cânon crítico é severo, por exemplo, o de um Aristóteles, um Horácio, um Hegel, pode apresentar como resultado poetas de uma consciência artística muito elevada; mas se o padrão é o de um Zdhanov ou de um Stalin, e exige do poeta apenas uma pretensa participação e penetração na realidade fenomênica, não devemos esperar senão alguns líricos poemas sobre temas de interesse social: a reforma agrária, a espoliação dos trabalhadores urbanos, os perigos que cercam os operários da construção civil, uma série de ditirambos otimistas ao homem da sociedade nova. Ou então o poeta deriva para um formalismo experimental de tipo “construtivista”, no qual certo setor dessa crítica encontra-se à vontade para enquadrá-lo ao sistema fenomenológico de E. Husserl e seus discípulos, passando por Max Scheler e pelo extencialismo de Heidegger e Sartre.
Jorge de Lima tinha confiança na missão que impusera ao seu espírito; para ele, a poesia não era um instrumento de ação política nem uma diversão metafísica: era uma desdobrada visão da realidade. Certos analistas literários, limitados por suas próprias teorias estéticas, que, na verdade, são menos estéticas do que sociológicas e políticas, têm procurado orientar seus estudos no sentido de valorizar poetas que eles julgam participar da luta pela nossa “desalienação” cultural. Não concordo com esse críticos. Tampouco com a aplicação indiscriminada do conceito de “alienação” à interpretação de nossa literatura. Que tal conceito possa ser aplicado, não se procura discutir; o problema é verificar-se quem o aplica está intelectualmente em condições de fazê-lo. Do contrário, como previu Engels, o método materialista será convertido em seu oposto direto.
Acredito que tais críticos não lêem sem fadiga um poeta como Jorge de Lima. Alguns até o acusaram de não compreender a missão social do escritor. O que faltava, e falta ainda, a esses jovens analistas literários, era aquela desdobrada visão da realidade, a que se refere Jorge de Lima em um dos últimos poemas de Mira-Celi:

Os grandes poemas começam com a nossa visão desdobrada. Aqui já não sofremos a contingência de escrevê-los e notamos que a mais alta significação da poesia quase nunca pode ascender da terra.

Entre os analistas de Invenção de Orfeu, parece-me que Murilo Mendes foi o que teve uma compreensão mais ampla sobre a significação desse poema:

Jorge de Lima realizou o milagre de fundir os tempos. O poeta tem a consciência viva de estar situado no tempo, mas sente a necessidade de transcendê-lo. Não julgo, entretanto, que se trate de uma evasão da realidade: trata-se antes de uma penetração nos dois mundos, o do tempo físico e o do tempo espiritual.

Eis uma observação muito aguda, das mais inteligentes que já li sobre Jorge de Lima. Acredito que é dessa necessidade de superação do tempo, da ânsia de transcendê-lo, que surge, em Invenção de Orfeu, o clima apropriado a uma abolição contínua dos limites racionais do espírito, ao movimento incessante, à multipolaridade, à oposição ao “contrutivismo”, cujo precursor moderno mais recuado parece ter sido Edgar Poe, para quem a estratégia do poema, à semelhança de uma equação algébrica, poderia ser resolvida através da análise do tema, associado à cuidadosa execução do cálculo artístico. É a partir de Poe que surge, ou pelo menos se intensifica, o preconceito racionalista da construção de uma poesia pura.
O mais aplicado esforço visando à solução de tal problema foi empreendido por Mallarmé. Contudo, Mallarmé era demasiadamente poeta para que pudesse sustentar sobre os ombros tão pesado e nebuloso submundo de purismo e habilidades técnicas. E malogrou em seu intento, pois a condição para o êxito de quem se coloca à frente de movimentos de vanguarda é ser destituído de qualquer parcela do poder criador. Seguindo os passos de Mallarmé, Valéry iria – como reconheceu Curtius – levar a poesia às portas da mais inumana solidão, a uma atmosfera de pensamento rarefeito, “à borda do abismo, aos limites do nada”. Assim, ao malogro de Mallarmé seguiu-se o de Valéry, ele próprio confessou: “Construire un poème qui ne contient que poése est impossible”.
Quanto a Rimbaud, que também se propôs à realização de uma poesia pura, um ensaio relativamente recente – Die revolution der Modernen Kunst – do Prof. Hans Sedlmayr, da Universidade de Munique, situa o problema nos mesmos níveis de interpretação do fenômeno Valéry – Mallarmé. Essa passagem parece-me particularmente esclarecedora: “Diferentemente das obras que se encerram na torre de marfim da Poésie pure contra o mundo moderno antipoético e o converteram na oficina de sua alquimia poética, Rimbaud realizou uma obra humana numa experiência que poderíamos chamar de enorme sacrifício”. Desse modo, o caminho que se obstruíra em determinado instante, voltava novamente a ser aberto à grande corrente tradicional da poesia, cuja fonte inesgotável é Homero. Acredito que muitas pessoas poderão obstar que tudo isso é demasiadamente conhecido, que já foi dito por centenas, e até milhares de críticos, antes de mim. Responderei com o verso de T.S.Eliot: “I shall say it again”.
O giro demasiadamente extenso, que fiz em torno da observação inicial de Murilo Mendes, pretende justificar a posição de Jorge de Lima como homem profundamente situado na essência de seu universo poético. Em Invenção de Orfeu, o leitor encontra-se frente a frente a uma expressão criadora, a uma linguagem barroca que já não é hoje “patológica e extravagante”, mas definida universalmente como o idioma natural da cultura. Aqui as generalidades abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo fundem-se na realização de uma obra que é síntese dialética de dois universos heterogêneos: – o mundo físico e o mundo espiritual. A observação de Murilo Mendes corresponde ao sentido da proposição hegeliana de que “levar à consciência os supremos interesses do espírito tal seria a missão da arte”. Hoje, os estudantes não dão importância a Hegel. Esquecem-se de que tanto Marx como Kierkegaard, para citar apenas duas personalidades unidas a dois momentos diferentes da dissolução do hegelianismo, não conseguiram impedir que se desenvolvesse uma corrente idealista no coração de seus sistemas – especialmente o marxismo – corrente que engrossa, graças à função parasitária que ela própria exerce sobre a filosofia de Hegel, sem dúvida o mais completo representante do pensamento filosófico moderno.
“O espírito – diz Hegel – não tem nada mais próximo a ele do que ele mesmo. As coisas do espírito lhe interessam mais do que os objetos exteriores em sua aparência sensível. O círculo inteiro da natureza não entra, pois, no domínio da poesia senão enquanto o espírito encontra nele uma excitação ou os materiais de sua atividade humana, como o seu mundo exterior que somente tem valor essencial por sua relação com o mundo interior de sua consciência, longe de poder aspirar à dignidade de ser, por si mesmo, o objeto exclusivo da poesia. O objeto verdadeiro desta é, pelo contrário, o império infinito do espírito.”[1]
Contudo, poucos poetas escrevem hoje poesia de modo a que o seu conteúdo venha atender àqueles “superiores interesses”. Isso foi amplamente demonstrado pelo Prof. Hans Sedlmayr, ao estudar a lei de Muller – Armack, que explica a transformação do conteúdo de crenças nos séculos XIX e XX. Para Alfred Muller – Armack, a morte da fé não constitui um problema apenas teológico. É antes um fenômeno concreto – comenta ele – com repercussões profundas e enormes consequências sociais. É pela morte da fé que se explica por que o artista moderno deixou de ser um criador para se transformar num construtor.
Creio que a poesia de Jorge de Lima está destinada a desempenhar um papel histórico da maior relevância no futuro; ela representa a tomada de posição de um artista diante do repto lançado ao homem pelo desenvolvimento quase ilimitado da ciência e da técnica; uma ciência e uma técnica que criaram novos objetos de adoração: a bomba apocalíptica, as cápsulas espaciais, os cérebros eletrônicos, o foguete global. Toda a crise da arte contemporânea deriva do culto do homem aos novos bezerros de ouro criados pela técnica; a fé nesses monstros que, por um lado, prometem ao homem o seu completo domínio sobre a natureza e, por outro, faz projetar a sombra da morte sobre a humanidade, implica hábitos que significam o abandono de certos técnicos de pensar, pela perda dos reflexos operativos da mente, e a negação da transcendência religiosa da poesia.
O pensamento poético é quase sempre mítico. Mesmo aquele que não crê em Deus sentiria dele enorme falta, um vácuo insubstituível, se quisesse expressar-se poeticamente. Dizia Políbio que os antigos tinham feito um grande bem quando espalharam entre os povos que havia deuses. Nas Cartas persas, diz Montesquieu: “Ainda que a imortalidade da alma fosse um erro, sentiria não crer nela; confesso que não sou tão humilde como os ateus. Satisfaz-me crer que sou tão imortal como Deus.”
Minha aversão ao “realismo socialista” baseia-se justamente nessa negação sistemática da transcendência religiosa da poesia. Os gregos não possuíam livros sagrados, não tinham sacerdotes, mas eram profundamente religiosos: seus papas foram Homero e Hesíodo. Quando os filósofos gregos fazem a crítica da religião, não procuram atingir senão aos seus poetas. A poesia que pretende ser apenas “construção”, “composição” ou uma descrição interessada da realidade fenomênica, não faz senão renunciar aos seus fins, ao seu objeto. Jorge de Lima, que possuía uma elevada consciência artística, religiosa e ética, não se deixou influenciar pelos ídolos do cientismo e da técnica. Por isso, Invenção de Orfeu, seu maior e mais bem realizado poema, termina com estes versos, surpreendentes pela clareza e pela súbita mudança do pensamento idiomático em pensamento lógico, reafirmando sua confiança no futuro da arte, contra cujos desvios lutou e nos deu símbolos eficazes:

No momento de crer,
    Criando
contra as forças da morte,
  a fé.
No momento de prece,
      Orando
pela fé que perderam
      os outros.
No momento de fé
   Crivado
com umas setas de amor
    as mãos
e os pés e o lado esquerdo.

Os poemas de Jorge de Lima estão plenos daquela consciência mística que permitiu a Dante penetrar e conhecer os mundos da transcendência em sua essência mais interna. Não me refiro à mística em sentido puramente religioso ou sobrenatural. Ao contrário, falo de uma forma de conhecimento independente da imaginação, de uma alienação sensorial capaz de conduzir ao êxtase. Tal forma de experiência fora observada na antiguidade em muitos filósofos e místicos, pagãos, inclusive Plotino e Buda; em nosso tempo, o Dr. I. A. Richards censurou o poeta Yeats por haver adotado, como técnica de inspiração, o recurso do êxtase, às formas de consciência dissociada. Parece-me que o Livro dos Sonetos de Jorge de Lima enquadra-se nesse modo de experiência, que se intensifica em Invenção de Orfeu, onde se encontram expressões como estas: – Sêdes divinas vieram me beber a mim a diagonal de luz esquálida -. Ou ainda: – E esse vácuo no vento tão avô, tão primeiro nos triângulos e céus, tão cinco dedos, quase nebulosas, como esperma celeste entre alvoradas -. A divinização de imagens sexuais e eróticas é frequente em Invenção de Orfeu. Elejo, aqui, um exemplo do Canto IV, soneto de grande beleza, não só pela multipolaridade barroca como pela riqueza de sugestões e compreensão intelectual de Dante:

Ó presente libídia, vulva em frente
aos possessos de Deus reencarnado
que te entreabres com visgos e corolas
e hagiológios de vidas escarlates.
Ó Francesca contínua agonizada,
companheira de infância tatuada,
como as sereias da cintura abaixo,
desses mares de flores hibernadas.
Urna febril dos seres solitários,
treva sem lei em que as papoulas nascem
e os santos do deserto suam mijos.
Mas indelével mãe que marca os filhos
com os beijos fundos que jamais se apagam
com a santa baba com que salga o mundo.

Invenção de Orfeu é um coro universal, onde se ouvem as vozes de todos os grandes poetas antigos e modernos. Pode parecer complexo, mas não é cabalístico. Certas passagens talvez sejam obscuras; creio mesmo que são de fato obscuras. Exigem um conhecimento das literaturas do Ocidente bem acima do nível comum dos leitores. Tudo indica que se trata de uma dessas obras que, ao entrar numa literatura, modificam a ordem existente, impondo um reajustamento do cânon, de seus valores e proporções estabelecidas. Entretanto, como ocorre em Ovídio e Dante, Lucano e Shakespeare, o poema de Jorge de Lima deixa tão a descoberto as fontes de suas visões, de sua gênese fabuladora, de seus oráculos que não se pode admiti-lo senão como criação de um poeta para quem a poesia não é apenas invenção, mas antes uma ação recriadora, uma síntese do processo técnico universal da expressão poética de que, segundo Curtius, o mais sugestivo exemplo é o Fausto, de Goethe.
Assim, Jorge de Lima é um homem que trabalha dentro de seu tempo, com a tradição atrás de si; o cosmo metafísico de Dante amplia constantemente o seu campo simbólico.

Reverto-me no limbo original,
entre os dois olhos entre duas órbitas;
dentro da névoa antes respirada,
dentro das coisas possuídas antes;
encolho-me no ventre anterior e êrmo
vejo-me as plantas, babo os meus calcâneos,
sugo os leites vindouros não jorrados...

Para Dante, o saber não se alcança senão através de longo estudo. Ao encontrar-se com Virgílio – símbolo da sabedoria moral metafísica – exclama:

O de li altri poeti onore e lume
vagliami il lungo studio e ‘l grande amore
che m’ha fatto cercar lo tuo volume.

Para Dante, somente os anjos prescindem da linguagem como processo espiritual, porque possuem eles uma recíproca intuição dos próprios pensamentos; o homem precisa da linguagem como expressão de uma atividade do espírito que pressupõe o pensamento. Os animais não necessitam de uma linguagem espiritual; possuem o instinto, e isso é o bastante; mas o homem quer a linguagem; a linguagem lhe é necessária, como um signumintelectual e sensível ao mesmo tempo, servindo para comunicar aos demais sua vida interior (ratio) e fazer surgir nos outros homens uma atividade de pensamento semelhante; assim aquele que escutar deve pensar o que pensa a inteligência do que fala (M. Casella).
Não sei se esse pensamento de Dante teria influído na afirmação do “new critic” norte americano John Crowe Ransom, quando escreve que a única poesia que lhe interessa “não deve ser o ato de uma criança, ou daquela eterna juventude das mulheres, mas o ato de uma mente adulta caída”. Jorge de Lima é um poeta maior. Creio que sua poesia tem muito daquela sabedoria moral metafísica simbolizada em Virgílio em A Divina Comédia. Invenção de Orfeu é, ainda, como declara Ransom: o ato de uma mente adulta caída.
Conversando com um jovem poeta, talvez influenciado pelas teorias estéticas de Max Bense, dizia-me ele que Jorge de Lima era “insuportável”, um “verboso”, que se enredava com frequência em palavras vazias de sentido. E mostrou-me, como exemplo, aquele trecho do Canto IV, capítulo XIX.

Amo-te Dante, e as rosas que tu viste
- naquele que, formosa rosa branca,
a divina milícia tinha a vista,
de corola coral que entoa a glória
da face das pessoas trinitárias;
a rosa imensa que aos teus olhos era
um enxame de abelhas luminosas,
que na flora de Deus se dessedenta.[2]

Mostrei-lhe que esses versos estavam plenos de sentido lógico, ainda que Jorge de Lima se expresse sempre em uma linguagem idiomática, como deve ser a expressão natural de toda linguagem poética. Disse-lhe que ele achava incompreensível tais versos porque desconhecia Dante; a rosa luminosa, a rosa branca, a divina milícia eram os doze espíritos dos doutores da Igreja. Tais espíritos não têm significação religiosa. São pouco mais do que símbolos dos sistemas filosóficos por eles criados. No Paraíso, Canto X, Dante descreve como, ao chegar ao Sol, esses sábios vieram ao seu encontro, formando um círculo em cujo centro ficavam ele e Beatriz. Irradiando uma luz alvíssima, um deles se dirige a Dante:

Questi che m’ è a destra piú vicino,
frate e maestro fummi, ed esso Alberto
è di Cologna, e io Thomas d’Aquino.

Depois de apresentar Alberto Magno, Santo Tomás diz a Dante que, se ele deseja conhecer os outros dez, basta que siga com o olhar, à medida que ele vai anunciando os nomes, aquele círculo que ali se encontra em forma de uma coroa luminosa. São eles: Graciano, Pedro Lombardo, Dionísio Aeropagita, Paulo Orósio, Severino Boécio, Santo Isidoro, Arcebispo de Sevilha, Beda – o Venerável, Ricardo de San Victor e Sigier de Bradante, professor em Paris.
No Canto seguinte, Dante ouve de Santo Tomás a história da vida de São Francisco e de São Domingos. No Canto XII. logo que Santo Tomás acaba de pronunciar o seu discurso, surge outra coroa de espíritos mais resplandecentes do que o Sol, e circulando a primeira; no Canto XIII, Dante assiste à dança dos espíritos divinos. Essas passagens, Jorge de Lima interpreta numa forma recreativa que se não é tão bela como em Dante, é, todavia, muito bela:

Se comparsas de farsas ou capelos
ou dançarinos loucos e obstinados.
Inda dez voltas não haviam feito
outra legião em círculo a encerrava.
Em voz acordes todos e em concerto
quedarem vi com carrilhões mais altos;
com mil arcos de fogos mensageiros
curvam-se iguais, de luz sempre crivados.
A coreia girava pelejada
quando a milícia que o Senhor louvava,
dez sóis pôs a girar precipitada
E tais coisas não há quem as defina;
enrosca-se pequena a humana língua
pois eram sóis a procurar destinos.

Invenção de Orfeu, sendo do ponto de vista técnico uma síntese do processo universal da poesia, não pode nem deve ter a unidade formal que apresentam livros como A Divina Comédia ou o Paraíso Perdido; tampouco com as epopeias heróicas virgilianas, como Os Lusíadas ou o Orlando Furioso. No livro de Jorge de Lima, acham-se todas as formas estróficas: o verso emparelhado, a terça rima, a oitava rima de Ariosto, a sextina, a ode, o soneto; quanto às formas métricas, encontram-se todas, predominando, em alguns Cantos, o redondilho maior, noutros, o decassílabo, o alexandrino. Os versos em oito sílabas também são frequentes. Aparecem quando o poeta explica o próprio poema: Composição desordenada / Poema unânime abrange os seres / Sua proporção é desmedida / Poema-Queda jamais finado / Eu sei herói matei um deus / genitum non factum Memento.

Não sou a luz mas fui mandado
para testemunhar a luz
que flui deste poema alheio.

Também não deve ser considerada como “influências” a presença de tantos autores neste livro. Trata-se, como disse antes, de uma síntese universal do processo poético. Observei versos traduzidos de muitos autores. Por isso , Jorge de Lima diz que não é a luz, mas foi mandado para testemunhar a luz que flui “deste poema alheio”. Eugenio Montale abre um de seus livros de poemas com um verso inteiro de Paul Valéry, sem nenhuma referência ao Cimetière marim, onde foi buscar um dos mais belos decassílabos da última estrofe. Só uma crítica com muitas deficiências em relação ao estudo de textos poéticos poderia ocupar-se de questões dessa natureza.
Quanto ao tema, acredito, como observou Murilo Mendes, que se trata da Queda, “vista no plano da natureza criada que é o plano da analogia e da semelhança”. Ao contrário do que têm afirmado alguns intérpretes, a Ilha que aparece no Canto I de Invenção de Orfeu corresponde ao nosso planeta, ao Purgatório de Dante, simbolizado pela Terra que emerge do fundo das águas por ocasião da queda de Lúcifer. Na segunda parte de A Divina Comédia, Canto II, Dante narra como, depois de sair do Inferno, encontrando-se ainda na praia do Purgatório em companhia de Virgílio, pensando sobre o caminho que deviam seguir na subida ao cume da Montanha, viu, de súbito, no oceano, uma luz branca resplandecente; era um anjo que conduzia ao Porto uma multidão de almas recém-chegadas do mundo. Não é por coincidência que o Canto I de Invenção de Orfeu, intitulado Fundação da Ilha, esteja cheio de alusões a esse personagem:

E agora dos pedais um dançarino
submerso e luminoso anjo marinho. Vêde-o
o contorno lineal dissolve-se o oceano grosso,
encanto ritual analogia plástica...

“Esta ilha significa a matéria como possibilidade real do ser”, conforme a interpretação que o Prof. Mário Casella, da Universidade de Florença, deu ao Purgatório, em A Divina Comédia. Ali, como em Jorge de Lima, esse anjo luminoso “despreza todas as artes humanas”, pois não usa nem remos nem velas senão as asas para guiar o seu barco a porto tão distante:

Vedi che sdegna li argomenti umani,
sí che remo non vuol né altro velo
che l’ali sue, tra’ liti sì lontani.

O perigo dos que interpretam Jorge de Lima literalmente é tomar a sua poesia como o resultado de uma posição essencialmente espiritual, e, como consequência, desligada da realidade concreta do mundo. Esse erro é frequente entre alguns intérpretes de Dante. O Inferno, o Purgatório e o Paraíso não são mais do que símbolos da realidade. A Divina Comédia não é um poema metafórico; em Dante, ao contrário de Shakespeare, predominam os espaços simbólico-alegóricos múltiplos, os mais amplos entre os grandes poemas universais. Assim, a grande metáfora de A Divina Comédia é o poema em si mesmo: um universo artístico concebido à semelhança do universo criado: “um microcosmo análogo, por semelhança de proporções, ao macrocosmo”. (M. Casella).
Creio que isso é necessário enunciar para desarmar críticos demasiadamente influenciados por esquemas teóricos oriundos de preconceitos racionalistas, com vocação maior para os estudos de Ciências Sociais do que para a Literatura; inclinados, portanto, a interpretar o significado das palavras ao pé da letra; tais investigadores são incapazes de ver outra realidade além daquela que se encontra imediatamente sob o campo de sua visão. Creio mesmo que essa é uma das razões que têm levado alguns intérpretes de Jorge de Lima a considerá-lo apenas um místico, imbuído de um espiritualismo sem sentido para a nossa época e que, justamente por essa razão, não teria compreendido a missão social do escritor.
Em Invenção de Orfeu, a consciência social de Jorge de Lima é muito avançada. Protestando contra a tirania hitlerista, escreve: julgam-se únicos, raça preclara, sangue de demiurgos, lobo dos antros, Lúcifer de novo... O nazismo, para ele, é uma noite borrascosa, um “ar demente” que reveste as formas do mundo, cobrindo os dias, enquanto milhões de olhos choram por trás da vidraças.
Sobre a acusação que costumam fazer de ser a sua poesia algumas vezes destituída de sentido, como se o poeta se abandonasse por “casualidade” aos jogos de palavras e às livres associações da fantasia, eu desejava demonstrar ao leitor que tais acusações não são fundamentadas. Para isso, escolhi algumas passagens de Invenção de Orfeu, que, embora não sendo as melhores, servem, todavia, como testemunho da elevada consciência artística desse poeta:

Maduro pelos dias, vi-me em ilha,
portanto.
Como conhecer as coisas senão sendo-as?
Como conhecer o mar senão morando-o?
Ou ainda:
Pra unidade deste poema,
ele vai durante a febre,
ele se mescla e se amealha,
e por vezes se devassa.
Não lhe peças nenhum lema
que sua mágoa é engolida,
e a vida vai desconexa
completando o que é teoria...

Acredito que nesses versos, pertencentes aos Cantos I e VII, dois dos mais estranhos e belos de Invenção de Orfeu, há uma confissão de que se pode retirar testemunhos para uma compreensão mais ampla de Jorge de Lima. Quanto aos elementos não apenas técnicos, é interessante observar a reiteração dessa mistura de fatores divinos e diabólicos, que bem documenta a presença do panteísmo, a enumeração descontínua, a orientação barroca da expressão, a que se associa, em determinados momentos, a “reflexão técnica”.

Sei dos pássaros, sei dos hipopótamos,
sei de metais, de cidades, aconteço-me,
embebo-me na chuva que é do céu,
abraso-me no fogo dos infernos.
        Porquanto
como conhecer as coisas senão sendo-as?
Abrigo minhas musas amam-me sobre,
Aflijo-me por elas, sofro nelas,
encarno-me em poesia, morro em cruz
cravo-me, ressuscito-me, Petrus sum
Sou ele mas traindo-me, mas em burro,
com esses cascos na terra, e ventas no ar,
cheirando Flora: minhas quatro patas
rimam iguais, forradas, alforriadas,
burro de Ramos, levo sobre o dorso
Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém.

Embora eu não seja inclinado às análises estruturais de poemas e, particularmente de versos isolados, não posso fugir a uma demonstração do paralelismo rítmico do último verso; chamo a atenção para as rimas internas, o movimento de depressão e elevação dos acentos; para tudo, enfim, que me parece um prodígio de “reflexão técnica”.
Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém.
Como se vê, trata-se de um verso cujo período rítmico se distribui através de dez sílabas. O fato para o qual chamo a atenção é o seguinte: todas as sílabas desse verso rimam entre si, separadas por três sílabas que, por sua vez, rimam também na mesma proporção. Assim, as sílabas em Al, aparecem na 1ª, 5ª e 9ª; guém, surge exatamente na 2ª, 6ª e 10ª; em, na 3ª e 7ª, as rimas em or (flor e dor) na 4ª e na 8ª; tal processo, considero um prodígio de “reflexão técnica”, porque, se resultasse de uma intuição, não seria uma intuição sensorial, mas intelectual. Creio que se trata de uma técnica reflexiva, intencional, pois o Alguém sendo Deus, o poeta quis demonstrar com esse virtuosismo técnico o símbolo de uma ideia de perfeição. Parece-me que Jorge de Lima seguiu aqui o princípio da Composição numérica a que se refere Ernst Robert Curtius em um de seus ensaios de Literatura Europeia e Idade Média Latina. A palavra Alguém aparece três vezes nesse verso; entre as sílabas que rimam internamente, há exatamente três sílabas. Ora, o número 3, adverte Curtius, está coordenado com a Trindade, com o modo ternário da música, as dimensões do tempo e motus ternarius da alma. O fato de a última sílaba deste verso ser acentuada, acabou por fazê-lo um decassílabo perfeito, isto é, com exatamente dez sílabas. Todavia, às vezes me pergunto se essa suposta intenção racional existiria. Assim, não é de estranhar que ponha em dúvida minhas próprias crenças nas forças racionais do espírito É possível – digo é possivel – que a mera intenção numerológica não seja suficiente para criar essa regularidade da estrutura sonora. Esses mecanismos da mente ainda são mal conhecidos, mas que neles existem.... mistérios... Ah! não tenho dúvidas, como nos demonstram os sonhos e os jogos de azar. Há na linguagem poética a união de palavras que só os pesadelos podem gerar. Mas são os sonhos e não os pesadelos os geradores das melhores imagens. Esses achados pertencem ao campo da Psicologia, mas para falar deles não preciso mais do que tem me fornecido a própria experiência, tal como ocorreu em meu poema “O sonâmbulo.” Quanto aos números, eles aparecem nos sonhos e atuam com força tal que até parecem estruturar ritmos e sílabas enquanto dormimos, deixando muito pouco para fazermos após o despertar.
 No caso do verso de Jorge de Lima, lembro as palavras de E.R. Curtius: “O número 10 é plenitude sapientiae, pois 7 significa a Criação e 3, a Trindade”.
A extensão de Invenção de Orfeu, a enorme variedade de temas, a hipérbole retórica são elementos que não permitem dar ao leitor uma visão geral do conjunto, em um assalto crítico apenas tático à estrutura de sua fortaleza barroca. Acredito que seria interessante investigar o processo das metamorfoses, tão frequentes nesse livro, o que não deixa dúvida sobre a influência de poetas latinos, notadamente de Lucano e Ovídio. Tal investigação teria o mérito de assegurar a Jorge de Lima um fiel testemunho da legitimidade de seus processos. Pois muitos poetas jovens, influenciados por crítica mais social e política do que estética e literária, não vêem mais do que um extravagante retórico, “uma verborragia” sem sentido, na maioria dos versos de Invenção de Orfeu. É claro que não se pode esperar de um poeta barroco o mesmo aferrolhamento expressivo que obrigatoriamente tem que se observa em um poeta clássico. Em Ovídio, Níobe se transforma em pedra ao ver os filhos tombar, um a um, seteados por Diana e Apolo:

Ficou com tantos males como um gelo:
Não move seu cabelo nenhum vento,
Seu rosto mostra bem seu desconsolo,
Não mais se vê nos olhos movimento.

Ovídio narra uma lenda. Mas não lhe altera o sentido. É um clássico. O repouso caracteriza o seu desejo de eternidade. Assim, quando em um processo expressivo algo tem que mudar de figura, é necessário que essa nova forma seja estática, vertical, marmórea, racional e fria. Por isso, nele, a pedra, o rochedo, a coluna são elementos que se prestam à apresentação do sentimento do eterno, enquanto o barroco aspira à vida, ao movimento incessante, à horizontalidade, ao vôo. Eugênio D’Ors expressa essa oposição entre o clássico e o barroco com muita clareza:

O la juventud o la imortalidad. O la terra
tibia o el cielo frio. O la intensidad de la hora
presente, de la cual se goza com pasión, o la
esperanza de la impassible existência futura.

Se, em Ovídio, o sofrimento converte o ser mortal em pedra, em Jorge de Lima, poeta barroco, predominam as notas panteístas, o “sentido reprodutor” da vida fluindo sem cessar de todos os elementos da Natureza:

Dias e dias fico assim como um rochedo,
criando lodo em meu queixo e caracóis nos lados,
sob as chuvas da América, eis-me de novo alado,
seguramente vôo pelos ramos, sem medo.

Demonstrando, ainda que apenas sumariamente, a legitimidade dos processos de Jorge de Lima, em relação ao vitalismo que impulsiona o seu poema, veremos agora como se serve ele do ornatus – utilizado aqui como recurso capaz de substituir o pensamento lógico.
O desprezo em que se colocou a retórica nos estudos de literatura tem levado grandes poetas e críticos a considerá-la simples ornamento, incompatível com o espírito da poesia moderna. Acredito que esse preconceito (cujos germes começaram a aparecer em todas as artes, especialmente na arquitetura, a partir da revolução francesa, tendo se intensificado no século XIX com Poe e seus discípulos europeus) tem causado mais danos do que benefícios à poesia; porque, sem a retórica, a poesia fica privada de um dos seus componentes vitais. Tais preconceitos racionalistas, na época atual, são mais da parte dos críticos do que dos poetas; daí sua influência sobre poetas dotados de maiores recursos teóricos do que propriamente expressivos, enquanto os poetas mais dotados se mantêm infensos a tais conselhos. Creio que não se pode apontar um só, entre os grandes poetas, que despreze os artifícios retóricos. Até mesmo T.S.Eliot é um retórico moderado quando escreve poemas, embora se insurja contra o abuso dos artifícios retóricos, em seus estudos sobre a poesia. Também se servem da retórica alguns dos nossos poetas mais representativos: Carlos Drummond de Andrade, Joaquim Cardozo, Cassiano Ricardo, Lêdo Ivo, João Cabral de Melo Neto, Antônio Olinto, Bueno de Rivera, Emílio Moura, Paulo Mendes Campos.
Assim, aquilo que pode parecer a certos críticos como defeito na poesia de Jorge de Lima, não seria mais do que um conhecimento muito amplo das artes poéticas. Os grandes autores não dispensam a retórica; ela constitui um dos recursos mais frequentes encontrados na poesia de Virgílio, Lucano, Estácio, Dante, Ariosto, Tasso, Camões, Donne, Shakespeare e Goethe. Vejamos como Jorge de Lima consegue, através de artifícios retóricos, criar uma série de elementos significantes, a partir da fusão do grande estilo aos ritmos que Gilberto Freyre considera “mais harmonizados com a natureza do Norte do Brasil”, em que a cadência do batuque se funde ao sentido da linguagem idiomática:

A solidão é rara, quase um raio,
menos que teu anseio, muito menos,
menos que teu difícil, teu durante,
teu momento de morte, teu sinal,
teu chamado divino, teu achado,
teu machado fendendo novas achas.

Bastaria que chamasse a atenção do leitor para essa ativa sugestão dos “teu”, a rima interna, a série sucessiva de anáforas, os conceitos, as comparações; prefiro que se analise um pouco a significação dessa música reiterativa. Aqui existe uma percussão contínua de sons, capaz de nos colocar em um clima de êxtase poético. Algo atua nessa estrofe como se fora um mágico tambor subterrâneo, cujo eco repercute internamente no próprio verso, antes de reiniciar nova curva ondulatória, através da qual, núcleos associativos vão intensificando, pela acumulação de anáforas, os efeitos característicos de uma dança de negros, o clímax formidável de um batuque. Isso aparece no Canto VIII, intitulado Biografia, irrompendo de súbito entre as demais estrofes; essas estrofes nada têm de comum com a captada pelos ouvidos e passa com a mesma rapidez que demora em nossos olhos um relâmpago. A impressão que se tem é de continuar-se a ouvir um longínquo rumor de dança. Eis uma decisiva contribuição da Retórica ao significado múltiplo. Convém repetir o exemplo:

A solidão é rara, quase um raio,
menos que teu anseio, muito menos,
menos que teu difícil, teu durante,
teu momento de morte, teu sinal,
teu chamado divino, teu achado,
teu machado fendendo novas achas.

Isso não representa senão uma etapa superior da poesia de um homem que já domina inteiramente todos os mecanismos da expressão. Agora, ele pode planejar o poema e fazê-lo como bem entender, mas sempre como artista criador; não como um construtor. Antes, no Livro de Sonetos, o poema surge com tirânica independência, pleno de intenções e artifícios. A fantasia alcança aqui dimensões quase sobre-humanas. Nele, a posse desse elemento tão valorizado pelos grandes poetas é extremamente vigorosa. Eis uma lição de poética que ele nos dá quando procura ainda passagem para o grande estilo de Invenção de Orfeu:

Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogado, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de nós perplexidades,
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade entre.
Qualquer poema é talvez essas metades;
essas indecisões das coisas vagas
que tudo isto lhe nutre sangue e ventre.

Acredito que a crítica atual que tanto se “preocupa” com o trânsito do Brasil para uma fase superior de sua vida econômica, social e política, não representará nenhum perigo para um poeta como Jorge de Lima. A aplicação de princípios marxistas à interpretação da literatura não melhora nem a literatura nem a crítica. Isso já foi amplamente demonstrado nos Estados Unidos, onde se desenvolveu, na década 1930-40, o maior surto de crítica marxista da história cultural do Ocidente. Livros como os de Granville Hicks, V. F. Calverton e outros estão aí, e documentam tanto o brilho quanto a inocuidade da crítica marxista norte-americana, em seu ataque quase furioso à literatura e à arte burguesas. Tão completos eram esses críticos que não há hoje um só tema abordado pelos marxistas contemporâneos – sejam partidários do realismo socialista, mais fiéis à orientação traçada por Stalin e ainda válida, oficialmente, na União Soviética, sejam os adeptos do “romantismo revolucionário unido ao realismo”, de Mao-Tse_Tung, sejam os paradoxalmente chamados revisionistas, isto é, os que mais se aproximam do pensamento de Marx e não seguem a orientação nem de Moscou nem de Pequim. Não há um só tema – dizia eu – que não tenha sido esgotado em livros como The Liberation of American Literature, de Calverton, The Great Tradition e Figures of Transition, de Hicks, ou ainda na introdução de Joseph Freeman ao Proletariam Literature in the United States.
A culpa desses desvios não foi de Marx, foi de seus adeptos. Vejamos um caso muito discutido: o conceito de alienação. Marx teve o cuidado de sempre evitar a sua aplicação à interpretação da literatura e da arte. Julgava ele – e nisso estava certo – que a literatura de grande força apresenta uma tendência muito forte no sentido de desligar suas raízes da infra-estrutura em que se encontra situada. Se é fácil, segundo os seus princípios, explicar a redução das alienações como a ação de um processo dialético, creio que seria muito difícil convencer o leitor de que todos os grandes artistas, em todas as épocas, foram homens de “consciência alienada”. Porque, de acordo com a aplicação de tal conceito, creio que não há um só, entre os grandes poetas, que não possa ser julgado como um homem de consciência transferida. Nem mesmo Lucrécio escaparia a uma tal interpretação, pois ainda que haja sido um materialista, Lucrécio acreditava na existência de um ser transcendente. Para que um artista seja considerado “alienado”, basta sua crença na existência de Deus.
A crença em Deus implica uma alienação religiosa, a primeira alienação, na ordem crítica, contra a qual se volta Marx. A aplicação de um tal conceito à literatura provaria, por exemplo, que toda a poesia épica é uma poesia “alienada”, porque, na epopeia clássica o “Eu-substância” é uma projeção ideal do “Eu-sujeito”. Uma das características do épico é a fusão do próprio poeta com o seu assunto; para que isso ocorra, ele tem que alienar a sua personalidade. O mundo refletido pelas epopeias é um mundo plenamente ideal. Tal mundo, um marxista dogmático consideraria alienado de acordo com sua interpretação, pois não “encontrando” no poema o reflexo da realidade que ele busca, e incapaz de reconhecê-la depois de transformada pela criação artística, não resta ao crítico marxista dogmático senão classificar o seu autor como um homem de consciência transferida. É claro que me refiro à epopeia heróica, em verso. Nenhum novelista ou romancista moderno narra como narraria Homero ou Vírgílio. Com o surgimento do romance moderno, herdeiro da antiga epopeia, por razões tão conhecidas que não se deve sequer discuti-las, os conceitos marxistas aplicados às “epopeias” de Cervantes, Tolstói, Balzac, Proust, Machado de Assis, Thomas Mann, Musil e tantos outros, só devem ser analisados do ponto de vista que o próprio Marx tinha da literatura e não do ponto de vista do Realismo Socialista, puro reflexo das ideias de Stalin sobre literatura e arte em geral.
A crítica marxista atual – como escreveu Alfredo Kazin em seu livro On native grounds – é criação de stalinistas e marxistas dogmáticos desorientados. “Marx e Engels propuseram leis gerais. Os marxistas que são seus adeptos procuram provar essas leis, aplicá-las em campos diferentes, pelo estudo das “peculiariadades”. Pois Marx – comenta Kazin – não apresentou quase nenhuma teoria literária como tal. Ambos homens profundamente cultos, apenas apresentaram um exemplo de erudição e de cultura e confiaram na cultura e no bom senso de seus adeptos. “Não acreditavam, porém, que, obras de arte aparecessem através da causação mecânica, nem tampouco antecipavam que, ao falar na cultura, como sendo a superestrutura acima do alicerce principal das relações econômicas, sua imagem haveria de ser levada a significar que a literatura por exemplo, nada é mais do que um subproduto da atividade material”.
Penetração na realidade consegue fazê-lo todo grande escritor. Mas o realismo, bem o diz Yeats, foi criado para o vulgo, que o constitui sempre como um prazer característico.
A grande obra de arte poética resulta da fusão entre as generalidades abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo. Vista apenas sob um desses aspectos não chega a ser arte.
A verdadeira poesia não pode ser criada a partir de uma simples penetração na realidade circundante; tal penetração é óbvia, mas a obra que dela resulta não deve ser apenas um espelho caricatural da realidade. Toda obra de arte possui um “mundo próprio”, exclusivamente seu, e não necessita de nenhuma relação com outros mundos, ou coisas exteriores a ela. A verdadeira obra de arte, diz Georg Luckács, é uma unidade do absoluto e do relativo. Ela deve refletir “todas as propriedades essenciais que determinam objetivamente a porção da vida configurada por ela”. Entretanto, o reflexo da realidade da obra de arte é diferente do das ciências. Diz Luckács: “Isto não significa que toda obra de arte há de propor-se como meta, refletir a totalidade objetiva, extensiva da vida. Ao contrário, a totalidade extensiva da realidade ultrapassa necessariamente os limites possíveis de toda criação. A realidade só pode ser reproduzida, teoricamente, pelo processo infinito da ciência total, em aproximação sempre crescente.”
Acredito que toda obra de arte, especialmente o poema, deve refletir algo de transcendente em relação ao mundo onde faz sua entrada e, ao mesmo tempo, conservar-se imanente em relação ao ser que lhe deu origem. Se isso ocorre, o poema aparecerá aos olhos de um marxista ortodoxo, sempre inclinado a interpretações demasiadamente simplistas, como expressão de uma “consciência transferida”. O artista, na época atual, não deverá temer que o chamem de “alienado”. Se ele deseja continuar sendo artista, deverá dizer como Jorge de Lima:
 
Vereis; a fronte dorme
e os membros é que sonham,
pois que me visualizo
aos olhos sem retina;
não posso recusar
convites para a noite
nem posso abrir as pálpebras
a pobres realidades.

NOTAS
[1] Todos os textos de Hegel, citados neste ensaio, estão contidos na parte em que ele trata da Poesia, em suas Lições de Estética.
[2]. A grandeza de Jorge de Lima não está no fato de haver escrito um poema longo, em Cantos, como se fosse uma epopeia, mas, na realidade, sua poesia em Invenção de Orfeu é lírica, de uma beleza comparável a de Dante. Daí usar versos inteiros da Commedia, para que o leitor possa compará-los. Ao falar da “divina milicia”, tanto se refere aos doutores da Igreja como às rosas luminosas do Canto XXXIII do Paraíso.


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César Leal (Brasil, 1924-2013). Poeta e crítico de poesia. Autor de livros como Introdução ao estudo da poesia de Camões (1975), Literatura: a palavra como forma de ação (1978), e Tempo e vida na Terra (poesia reunida, 1998). Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.

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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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