Se alguém me indagasse qual seria o poeta mais representativo
da moderna poesia brasileira, creio que mencionaria primeiro Carlos Drummond de
Andrade, ainda que Manuel Bandeira também o seja, ao lado de outros cuja consciência
moderna lhes assegura uma posição de significativa relevância. Mas a expressão poética,
em nenhum deles alcança, uma dimensão intelectual de fronteiras tão extensas quanto
em Jorge de Lima. Acredito que sua poesia é tão importante quanto a de Fernando
Pessoa e, seguramente, igual à dos maiores poetas antigos de nossa língua, inclusive
Camões.
Apesar dessa
grandeza tão superlativa, a influência de Jorge de Lima começou a declinar desde
a sua morte, em 1953. Nossa crítica tem sido responsável pelo pouco interesse que
seus livros despertam entre as novas gerações. Os críticos novos, que deveriam estar
melhor preparados para uma abordagem estratégica da obra de arte poética, estão
intensamente comprometidos com o “processo de desenvolvimento econômico e social
do país”, deslocando seu interesse para aqueles autores cuja obra reflete – segundo
eles – uma participação mais intensa nessa tomada de posição que lhes permite desenvolver
um teoricismo estilisticamente bárbaro, tecnicamente parasitário e ideologicamente
indefinido. Consideram a situação atual do Brasil uma situação de “trânsito” de
que deverão participar todos os escritores. Tal crítica, que vem utilizando uma
terminologia “marxista” típica, paramarxista ou marxistencialista, pretende chamar
a si o papel de guia dos intelectuais, esquecida de que o marxismo, apesar de possibilitar
uma série quase infinita de simplificações, é – como assinalou Alfred Kazin – um
instrumento complicado e sensível e não uma corneta, uma trombeta convocatória de
neófitos, “um infalível barômetro científico que possa ser manobrado alternativamente
como clava” e cânon estético.
Por isso, como
dizia um personagem dos Anos de Aprendizagem de Guilherme Meister, é uma
sensação pavorosa a do homem culto e dotado de consciência que se encontra na contingência
de que o instruam acerca de si mesmo. “Todos os trânsitos são crises – diz Goethe
– mas uma crise não é uma enfermidade”. Daí por que se impõe uma reação urgente
a esse filisteísmo crítico que atua sobre a arte como um corrosivo, confundindo
alguns valores e obrigando outros a uma retirada para as trevas.
Assim, não se
pode culpar os jovens poetas pela escolha de modelos que nem sempre são os melhores.
Tais protótipos estão sendo preparados por uma teorização crítica que pretende reduzir
a poesia a um “subproduto da inteligência”, criando modelos aparentemente complexos,
mas fáceis de serem imitados. Seria, pois, justo desculpar os críticos, ainda que
se possa demonstrar ser a nossa crítica teórica um dos gêneros literários dos quais
pouco se tem a dizer no Brasil? Creio que não.
Jorge de Lima
é um poeta cujas faculdades criadoras não encontram limites na mente; elas se dilatam
por um processo que eu chamaria de “desintegração de consciência”, alcançando a
intuição e a sensibilidade do leitor e atraindo-as para o seu núcleo expressivo,
nem sempre envolto naquela atmosfera de sombra que caracteriza algumas das melhores
passagens de Invenção de Orfeu. Nele, o poema não surge como uma “construção”,
como o resultado de uma fé nos ídolos do mundo contemporâneo – a ciência, a geometria,
o zelo esteticista, o culto da morte – mas como “criação” do espírito, o trabalho
de um homem que não perdeu a fé nos valores transcendentes e possui do passado uma
consciência social e histórica que o situa acima de qualquer outro poeta brasileiro
de seu tempo. Com raras exceções, os jovens poetas não são grandes leitores de Jorge
de Lima. Talvez tenham razão, pois, como assinalou certa vez T. S. Eliot, em um
de seus ensaios, os grandes autores, aqueles que dificilmente podem ser ultrapassados,
são vistos com desconfiança pelos jovens. O interesse de quem se agarra a um modelo
– consciente ou inconscientemente – é superá-lo. Se isso importa em tarefa muito
difícil, então a admiração inicial transforma-se em antipatia: porém esse é um problema
que já pertence mais ao campo da psicanálise do que da crítica.
Frequentemente
se diz que a poesia de Jorge de Lima é muito difícil; que seus poemas são revestidos
de uma simbologia estranha, envolta em uma atmosfera de imagens e de metáforas de
significação bastante complicada, impenetrável até. Discordo dos que o julgam assim;
dos que o comparam a Gôngora, ainda que Gôngora seja indiscutivelmente um grande
poeta. Discordo do crítico português João Gaspar Simões, em prefácio que escreveu
para o livro mais importante de Jorge de Lima – Invenção de Orfeu – quando
diz que “os poetas, confiados na inteligência dos críticos, abandonam-se, voluntariamente,
à obscuridade inerente a todo o genuíno ato poético”. Acredito que essa não é a
razão que leva um artista a certas regiões de sombra inerentes aos seu ofício: julgo
mesmo que somente os poetas menores se abandonam assim tão confiadamente à inteligência
dos pesquisadores de símbolos e de imagens, de figuras de dicção e até de leituras
que teriam formado a cultura filosófica e literária de um autor. Naturalmente, não
se pode negar que existem muitos poetas preocupados em escrever de acordo com os
padrões da crítica; tais poetas visam sempre a um êxito imediato: um prestígio social
que a nossa época de pragmatismo frequentemente estimula. Se o cânon crítico é severo,
por exemplo, o de um Aristóteles, um Horácio, um Hegel, pode apresentar como resultado
poetas de uma consciência artística muito elevada; mas se o padrão é o de um Zdhanov
ou de um Stalin, e exige do poeta apenas uma pretensa participação e penetração
na realidade fenomênica, não devemos esperar senão alguns líricos poemas sobre temas
de interesse social: a reforma agrária, a espoliação dos trabalhadores urbanos,
os perigos que cercam os operários da construção civil, uma série de ditirambos
otimistas ao homem da sociedade nova. Ou então o poeta deriva para um formalismo
experimental de tipo “construtivista”, no qual certo setor dessa crítica encontra-se
à vontade para enquadrá-lo ao sistema fenomenológico de E. Husserl e seus discípulos,
passando por Max Scheler e pelo extencialismo de Heidegger e Sartre.
Jorge de Lima
tinha confiança na missão que impusera ao seu espírito; para ele, a poesia não era
um instrumento de ação política nem uma diversão metafísica: era uma desdobrada
visão da realidade. Certos analistas literários, limitados por suas próprias teorias
estéticas, que, na verdade, são menos estéticas do que sociológicas e políticas,
têm procurado orientar seus estudos no sentido de valorizar poetas que eles julgam
participar da luta pela nossa “desalienação” cultural. Não concordo com esse críticos.
Tampouco com a aplicação indiscriminada do conceito de “alienação” à interpretação
de nossa literatura. Que tal conceito possa ser aplicado, não se procura discutir;
o problema é verificar-se quem o aplica está intelectualmente em condições de fazê-lo.
Do contrário, como previu Engels, o método materialista será convertido em seu
oposto direto.
Acredito que
tais críticos não lêem sem fadiga um poeta como Jorge de Lima. Alguns até o acusaram
de não compreender a missão social do escritor. O que faltava, e falta ainda, a
esses jovens analistas literários, era aquela desdobrada visão da realidade, a que
se refere Jorge de Lima em um dos últimos poemas de Mira-Celi:
Os grandes poemas
começam com a nossa visão desdobrada. Aqui já não sofremos a contingência de escrevê-los
e notamos que a mais alta significação da poesia quase nunca pode ascender da terra.
Entre os analistas
de Invenção de Orfeu, parece-me que Murilo Mendes foi o que teve uma compreensão
mais ampla sobre a significação desse poema:
Jorge de Lima
realizou o milagre de fundir os tempos. O poeta tem a consciência viva de estar
situado no tempo, mas sente a necessidade de transcendê-lo. Não julgo, entretanto,
que se trate de uma evasão da realidade: trata-se antes de uma penetração nos dois
mundos, o do tempo físico e o do tempo espiritual.
Eis uma observação
muito aguda, das mais inteligentes que já li sobre Jorge de Lima. Acredito que é
dessa necessidade de superação do tempo, da ânsia de transcendê-lo, que surge, em
Invenção de Orfeu, o clima apropriado a uma abolição contínua dos limites
racionais do espírito, ao movimento incessante, à multipolaridade, à oposição ao
“contrutivismo”, cujo precursor moderno mais recuado parece ter sido Edgar Poe,
para quem a estratégia do poema, à semelhança de uma equação algébrica, poderia
ser resolvida através da análise do tema, associado à cuidadosa execução do cálculo
artístico. É a partir de Poe que surge, ou pelo menos se intensifica, o preconceito
racionalista da construção de uma poesia pura.
O mais aplicado
esforço visando à solução de tal problema foi empreendido por Mallarmé. Contudo,
Mallarmé era demasiadamente poeta para que pudesse sustentar sobre os ombros tão
pesado e nebuloso submundo de purismo e habilidades técnicas. E malogrou em seu
intento, pois a condição para o êxito de quem se coloca à frente de movimentos de
vanguarda é ser destituído de qualquer parcela do poder criador. Seguindo os passos
de Mallarmé, Valéry iria – como reconheceu Curtius – levar a poesia às portas da
mais inumana solidão, a uma atmosfera de pensamento rarefeito, “à borda do abismo,
aos limites do nada”. Assim, ao malogro de Mallarmé seguiu-se o de Valéry, ele próprio
confessou: “Construire un poème qui ne contient que poése est impossible”.
Quanto a Rimbaud,
que também se propôs à realização de uma poesia pura, um ensaio relativamente recente
– Die revolution der Modernen Kunst – do Prof. Hans Sedlmayr, da Universidade
de Munique, situa o problema nos mesmos níveis de interpretação do fenômeno Valéry
– Mallarmé. Essa passagem parece-me particularmente esclarecedora: “Diferentemente
das obras que se encerram na torre de marfim da Poésie pure contra o mundo
moderno antipoético e o converteram na oficina de sua alquimia poética, Rimbaud
realizou uma obra humana numa experiência que poderíamos chamar de enorme sacrifício”.
Desse modo, o caminho que se obstruíra em determinado instante, voltava novamente
a ser aberto à grande corrente tradicional da poesia, cuja fonte inesgotável é Homero.
Acredito que muitas pessoas poderão obstar que tudo isso é demasiadamente conhecido,
que já foi dito por centenas, e até milhares de críticos, antes de mim. Responderei
com o verso de T.S.Eliot: “I shall say it again”.
O giro demasiadamente
extenso, que fiz em torno da observação inicial de Murilo Mendes, pretende justificar
a posição de Jorge de Lima como homem profundamente situado na essência de seu universo
poético. Em Invenção de Orfeu, o leitor encontra-se frente a frente a uma
expressão criadora, a uma linguagem barroca que já não é hoje “patológica e extravagante”,
mas definida universalmente como o idioma natural da cultura. Aqui as generalidades
abstratas do pensamento e a realidade concreta do mundo fundem-se na realização
de uma obra que é síntese dialética de dois universos heterogêneos: – o mundo físico
e o mundo espiritual. A observação de Murilo Mendes corresponde ao sentido da proposição
hegeliana de que “levar à consciência os supremos interesses do espírito tal seria
a missão da arte”. Hoje, os estudantes não dão importância a Hegel. Esquecem-se
de que tanto Marx como Kierkegaard, para citar apenas duas personalidades unidas
a dois momentos diferentes da dissolução do hegelianismo, não conseguiram impedir
que se desenvolvesse uma corrente idealista no coração de seus sistemas – especialmente
o marxismo – corrente que engrossa, graças à função parasitária que ela própria
exerce sobre a filosofia de Hegel, sem dúvida o mais completo representante do pensamento
filosófico moderno.
“O espírito –
diz Hegel – não tem nada mais próximo a ele do que ele mesmo. As coisas do espírito
lhe interessam mais do que os objetos exteriores em sua aparência sensível. O círculo
inteiro da natureza não entra, pois, no domínio da poesia senão enquanto o espírito
encontra nele uma excitação ou os materiais de sua atividade humana, como o seu
mundo exterior que somente tem valor essencial por sua relação com o mundo interior
de sua consciência, longe de poder aspirar à dignidade de ser, por si mesmo, o objeto
exclusivo da poesia. O objeto verdadeiro desta é, pelo contrário, o império infinito
do espírito.”[1]
Contudo, poucos
poetas escrevem hoje poesia de modo a que o seu conteúdo venha atender àqueles “superiores
interesses”. Isso foi amplamente demonstrado pelo Prof. Hans Sedlmayr, ao estudar
a lei de Muller – Armack, que explica a transformação do conteúdo de crenças nos
séculos XIX e XX. Para Alfred Muller – Armack, a morte da fé não constitui um problema
apenas teológico. É antes um fenômeno concreto – comenta ele – com repercussões
profundas e enormes consequências sociais. É pela morte da fé que se explica por
que o artista moderno deixou de ser um criador para se transformar num construtor.
Creio que a poesia
de Jorge de Lima está destinada a desempenhar um papel histórico da maior relevância
no futuro; ela representa a tomada de posição de um artista diante do repto lançado
ao homem pelo desenvolvimento quase ilimitado da ciência e da técnica; uma ciência
e uma técnica que criaram novos objetos de adoração: a bomba apocalíptica, as cápsulas
espaciais, os cérebros eletrônicos, o foguete global. Toda a crise da arte contemporânea
deriva do culto do homem aos novos bezerros de ouro criados pela técnica; a fé nesses
monstros que, por um lado, prometem ao homem o seu completo domínio sobre a natureza
e, por outro, faz projetar a sombra da morte sobre a humanidade, implica hábitos
que significam o abandono de certos técnicos de pensar, pela perda dos reflexos
operativos da mente, e a negação da transcendência religiosa da poesia.
O pensamento
poético é quase sempre mítico. Mesmo aquele que não crê em Deus sentiria dele enorme
falta, um vácuo insubstituível, se quisesse expressar-se poeticamente. Dizia Políbio
que os antigos tinham feito um grande bem quando espalharam entre os povos que havia
deuses. Nas Cartas persas, diz Montesquieu: “Ainda que a imortalidade da
alma fosse um erro, sentiria não crer nela; confesso que não sou tão humilde como
os ateus. Satisfaz-me crer que sou tão imortal como Deus.”
Minha aversão
ao “realismo socialista” baseia-se justamente nessa negação sistemática da transcendência
religiosa da poesia. Os gregos não possuíam livros sagrados, não tinham sacerdotes,
mas eram profundamente religiosos: seus papas foram Homero e Hesíodo. Quando os
filósofos gregos fazem a crítica da religião, não procuram atingir senão aos seus
poetas. A poesia que pretende ser apenas “construção”, “composição” ou uma descrição
interessada da realidade fenomênica, não faz senão renunciar aos seus fins, ao seu
objeto. Jorge de Lima, que possuía uma elevada consciência artística, religiosa
e ética, não se deixou influenciar pelos ídolos do cientismo e da técnica. Por isso,
Invenção de Orfeu, seu maior e mais bem realizado poema, termina com estes
versos, surpreendentes pela clareza e pela súbita mudança do pensamento idiomático
em pensamento lógico, reafirmando sua confiança no futuro da arte, contra cujos
desvios lutou e nos deu símbolos eficazes:
No momento de
crer,
Criando
contra as forças
da morte,
a fé.
No momento de
prece,
Orando
pela fé que perderam
os outros.
No momento de
fé
Crivado
com umas setas
de amor
as mãos
e os pés e o
lado esquerdo.
Os poemas de
Jorge de Lima estão plenos daquela consciência mística que permitiu a Dante penetrar
e conhecer os mundos da transcendência em sua essência mais interna. Não me refiro
à mística em sentido puramente religioso ou sobrenatural. Ao contrário, falo de
uma forma de conhecimento independente da imaginação, de uma alienação sensorial
capaz de conduzir ao êxtase. Tal forma de experiência fora observada na antiguidade
em muitos filósofos e místicos, pagãos, inclusive Plotino e Buda; em nosso tempo,
o Dr. I. A. Richards censurou o poeta Yeats por haver adotado, como técnica de inspiração,
o recurso do êxtase, às formas de consciência dissociada. Parece-me que o Livro
dos Sonetos de Jorge de Lima enquadra-se nesse modo de experiência, que se intensifica
em Invenção de Orfeu, onde se encontram expressões como estas: – Sêdes divinas
vieram me beber a mim a diagonal de luz esquálida -. Ou ainda: – E esse vácuo no
vento tão avô, tão primeiro nos triângulos e céus, tão cinco dedos, quase nebulosas,
como esperma celeste entre alvoradas -. A divinização de imagens sexuais e eróticas
é frequente em Invenção de Orfeu. Elejo, aqui, um exemplo do Canto IV, soneto
de grande beleza, não só pela multipolaridade barroca como pela riqueza de sugestões
e compreensão intelectual de Dante:
Ó presente libídia,
vulva em frente
aos possessos
de Deus reencarnado
que te entreabres
com visgos e corolas
e hagiológios
de vidas escarlates.
Ó Francesca contínua
agonizada,
companheira de
infância tatuada,
como as sereias
da cintura abaixo,
desses mares
de flores hibernadas.
Urna febril dos
seres solitários,
treva sem lei
em que as papoulas nascem
e os santos do
deserto suam mijos.
Mas indelével
mãe que marca os filhos
com os beijos
fundos que jamais se apagam
com a santa baba
com que salga o mundo.
Invenção de Orfeu é um coro universal,
onde se ouvem as vozes de todos os grandes poetas antigos e modernos. Pode parecer
complexo, mas não é cabalístico. Certas passagens talvez sejam obscuras; creio mesmo
que são de fato obscuras. Exigem um conhecimento das literaturas do Ocidente bem
acima do nível comum dos leitores. Tudo indica que se trata de uma dessas obras
que, ao entrar numa literatura, modificam a ordem existente, impondo um reajustamento
do cânon, de seus valores e proporções estabelecidas. Entretanto, como ocorre em
Ovídio e Dante, Lucano e Shakespeare, o poema de Jorge de Lima deixa tão a descoberto
as fontes de suas visões, de sua gênese fabuladora, de seus oráculos que não se
pode admiti-lo senão como criação de um poeta para quem a poesia não é apenas invenção,
mas antes uma ação recriadora, uma síntese do processo técnico universal da expressão
poética de que, segundo Curtius, o mais sugestivo exemplo é o Fausto, de
Goethe.
Assim, Jorge
de Lima é um homem que trabalha dentro de seu tempo, com a tradição atrás de si;
o cosmo metafísico de Dante amplia constantemente o seu campo simbólico.
Reverto-me
no limbo original,
entre os dois olhos entre duas órbitas;
dentro da névoa antes respirada,
dentro das coisas possuídas antes;
encolho-me no ventre anterior e êrmo
vejo-me as plantas, babo os meus calcâneos,
sugo os leites vindouros não jorrados...
entre os dois olhos entre duas órbitas;
dentro da névoa antes respirada,
dentro das coisas possuídas antes;
encolho-me no ventre anterior e êrmo
vejo-me as plantas, babo os meus calcâneos,
sugo os leites vindouros não jorrados...
Para Dante, o
saber não se alcança senão através de longo estudo. Ao encontrar-se com Virgílio
– símbolo da sabedoria moral metafísica – exclama:
O
de li altri poeti onore e lume
vagliami il lungo studio e ‘l grande amore
che m’ha fatto cercar lo tuo volume.
vagliami il lungo studio e ‘l grande amore
che m’ha fatto cercar lo tuo volume.
Para Dante, somente
os anjos prescindem da linguagem como processo espiritual, porque possuem eles uma
recíproca intuição dos próprios pensamentos; o homem precisa da linguagem como expressão
de uma atividade do espírito que pressupõe o pensamento. Os animais não necessitam
de uma linguagem espiritual; possuem o instinto, e isso é o bastante; mas o homem
quer a linguagem; a linguagem lhe é necessária, como um signumintelectual
e sensível ao mesmo tempo, servindo para comunicar aos demais sua vida interior
(ratio) e fazer surgir nos outros homens uma atividade de pensamento semelhante;
assim aquele que escutar deve pensar o que pensa a inteligência do que
fala (M. Casella).
Não sei se esse
pensamento de Dante teria influído na afirmação do “new critic” norte americano
John Crowe Ransom, quando escreve que a única poesia que lhe interessa “não deve
ser o ato de uma criança, ou daquela eterna juventude das mulheres, mas o ato de
uma mente adulta caída”. Jorge de Lima é um poeta maior. Creio que sua poesia tem
muito daquela sabedoria moral metafísica simbolizada em Virgílio em A Divina
Comédia. Invenção de Orfeu é, ainda, como declara Ransom: o ato de uma
mente adulta caída.
Conversando com
um jovem poeta, talvez influenciado pelas teorias estéticas de Max Bense, dizia-me
ele que Jorge de Lima era “insuportável”, um “verboso”, que se enredava com frequência
em palavras vazias de sentido. E mostrou-me, como exemplo, aquele trecho do Canto
IV, capítulo XIX.
Amo-te
Dante, e as rosas que tu viste
- naquele que, formosa rosa branca,
a divina milícia tinha a vista,
de corola coral que entoa a glória
da face das pessoas trinitárias;
a rosa imensa que aos teus olhos era
um enxame de abelhas luminosas,
que na flora de Deus se dessedenta.[2]
- naquele que, formosa rosa branca,
a divina milícia tinha a vista,
de corola coral que entoa a glória
da face das pessoas trinitárias;
a rosa imensa que aos teus olhos era
um enxame de abelhas luminosas,
que na flora de Deus se dessedenta.[2]
Mostrei-lhe que
esses versos estavam plenos de sentido lógico, ainda que Jorge de Lima se expresse
sempre em uma linguagem idiomática, como deve ser a expressão natural de toda linguagem
poética. Disse-lhe que ele achava incompreensível tais versos porque desconhecia
Dante; a rosa luminosa, a rosa branca, a divina milícia eram os doze espíritos dos
doutores da Igreja. Tais espíritos não têm significação religiosa. São pouco mais
do que símbolos dos sistemas filosóficos por eles criados. No Paraíso, Canto X,
Dante descreve como, ao chegar ao Sol, esses sábios vieram ao seu encontro, formando
um círculo em cujo centro ficavam ele e Beatriz. Irradiando uma luz alvíssima, um
deles se dirige a Dante:
Questi
che m’ è a destra piú vicino,
frate e maestro fummi, ed esso Alberto
è di Cologna, e io Thomas d’Aquino.
frate e maestro fummi, ed esso Alberto
è di Cologna, e io Thomas d’Aquino.
Depois de apresentar
Alberto Magno, Santo Tomás diz a Dante que, se ele deseja conhecer os outros dez,
basta que siga com o olhar, à medida que ele vai anunciando os nomes, aquele círculo
que ali se encontra em forma de uma coroa luminosa. São eles: Graciano, Pedro Lombardo,
Dionísio Aeropagita, Paulo Orósio, Severino Boécio, Santo Isidoro, Arcebispo de
Sevilha, Beda – o Venerável, Ricardo de San Victor e Sigier de Bradante, professor
em Paris.
No Canto seguinte,
Dante ouve de Santo Tomás a história da vida de São Francisco e de São Domingos.
No Canto XII. logo que Santo Tomás acaba de pronunciar o seu discurso, surge outra
coroa de espíritos mais resplandecentes do que o Sol, e circulando a primeira; no
Canto XIII, Dante assiste à dança dos espíritos divinos. Essas passagens, Jorge
de Lima interpreta numa forma recreativa que se não é tão bela como em Dante, é,
todavia, muito bela:
Se
comparsas de farsas ou capelos
ou dançarinos loucos e obstinados.
Inda dez voltas não haviam feito
outra legião em círculo a encerrava.
Em voz acordes todos e em concerto
quedarem vi com carrilhões mais altos;
com mil arcos de fogos mensageiros
curvam-se iguais, de luz sempre crivados.
A coreia girava pelejada
quando a milícia que o Senhor louvava,
dez sóis pôs a girar precipitada
E tais coisas não há quem as defina;
enrosca-se pequena a humana língua
pois eram sóis a procurar destinos.
ou dançarinos loucos e obstinados.
Inda dez voltas não haviam feito
outra legião em círculo a encerrava.
Em voz acordes todos e em concerto
quedarem vi com carrilhões mais altos;
com mil arcos de fogos mensageiros
curvam-se iguais, de luz sempre crivados.
A coreia girava pelejada
quando a milícia que o Senhor louvava,
dez sóis pôs a girar precipitada
E tais coisas não há quem as defina;
enrosca-se pequena a humana língua
pois eram sóis a procurar destinos.
Invenção de Orfeu, sendo do ponto
de vista técnico uma síntese do processo universal da poesia, não pode nem deve
ter a unidade formal que apresentam livros como A Divina Comédia ou
o Paraíso Perdido; tampouco com as epopeias heróicas virgilianas, como Os
Lusíadas ou o Orlando Furioso. No livro de Jorge de Lima, acham-se
todas as formas estróficas: o verso emparelhado, a terça rima, a oitava rima de
Ariosto, a sextina, a ode, o soneto; quanto às formas métricas, encontram-se todas,
predominando, em alguns Cantos, o redondilho maior, noutros, o decassílabo, o alexandrino.
Os versos em oito sílabas também são frequentes. Aparecem quando o poeta explica
o próprio poema: Composição desordenada / Poema unânime abrange os seres / Sua proporção
é desmedida / Poema-Queda jamais finado / Eu sei herói matei um deus / genitum non
factum Memento.
Não sou a luz
mas fui mandado
para testemunhar
a luz
que flui deste
poema alheio.
Também não deve
ser considerada como “influências” a presença de tantos autores neste livro. Trata-se,
como disse antes, de uma síntese universal do processo poético. Observei versos
traduzidos de muitos autores. Por isso , Jorge de Lima diz que não é a luz, mas
foi mandado para testemunhar a luz que flui “deste poema alheio”. Eugenio Montale
abre um de seus livros de poemas com um verso inteiro de Paul Valéry, sem nenhuma
referência ao Cimetière marim, onde foi buscar um dos mais belos decassílabos
da última estrofe. Só uma crítica com muitas deficiências em relação ao estudo de
textos poéticos poderia ocupar-se de questões dessa natureza.
Quanto ao tema,
acredito, como observou Murilo Mendes, que se trata da Queda, “vista no plano da
natureza criada que é o plano da analogia e da semelhança”. Ao contrário do que
têm afirmado alguns intérpretes, a Ilha que aparece no Canto I de Invenção de
Orfeu corresponde ao nosso planeta, ao Purgatório de Dante, simbolizado pela
Terra que emerge do fundo das águas por ocasião da queda de Lúcifer. Na segunda
parte de A Divina Comédia, Canto II, Dante narra como, depois de sair
do Inferno, encontrando-se ainda na praia do Purgatório em companhia de Virgílio,
pensando sobre o caminho que deviam seguir na subida ao cume da Montanha, viu, de
súbito, no oceano, uma luz branca resplandecente; era um anjo que conduzia ao Porto
uma multidão de almas recém-chegadas do mundo. Não é por coincidência que o Canto
I de Invenção de Orfeu, intitulado Fundação da Ilha, esteja cheio
de alusões a esse personagem:
E agora dos pedais
um dançarino
submerso e luminoso
anjo marinho. Vêde-o
o contorno lineal
dissolve-se o oceano grosso,
encanto ritual
analogia plástica...
“Esta ilha significa
a matéria como possibilidade real do ser”, conforme a interpretação que o Prof.
Mário Casella, da Universidade de Florença, deu ao Purgatório, em A Divina
Comédia. Ali, como em Jorge de Lima, esse anjo luminoso “despreza todas as artes
humanas”, pois não usa nem remos nem velas senão as asas para guiar o seu barco
a porto tão distante:
Vedi che sdegna
li argomenti umani,
sí che remo non vuol né altro velo
che l’ali sue,
tra’ liti sì lontani.
O perigo dos
que interpretam Jorge de Lima literalmente é tomar a sua poesia como o resultado
de uma posição essencialmente espiritual, e, como consequência, desligada da realidade
concreta do mundo. Esse erro é frequente entre alguns intérpretes de Dante. O Inferno,
o Purgatório e o Paraíso não são mais do que símbolos da realidade. A Divina
Comédia não é um poema metafórico; em Dante, ao contrário de Shakespeare, predominam
os espaços simbólico-alegóricos múltiplos, os mais amplos entre os grandes poemas
universais. Assim, a grande metáfora de A Divina Comédia é o poema
em si mesmo: um universo artístico concebido à semelhança do universo criado: “um
microcosmo análogo, por semelhança de proporções, ao macrocosmo”. (M. Casella).
Creio que isso
é necessário enunciar para desarmar críticos demasiadamente influenciados por esquemas
teóricos oriundos de preconceitos racionalistas, com vocação maior para os estudos
de Ciências Sociais do que para a Literatura; inclinados, portanto, a interpretar
o significado das palavras ao pé da letra; tais investigadores são incapazes de
ver outra realidade além daquela que se encontra imediatamente sob o campo de sua
visão. Creio mesmo que essa é uma das razões que têm levado alguns intérpretes de
Jorge de Lima a considerá-lo apenas um místico, imbuído de um espiritualismo sem
sentido para a nossa época e que, justamente por essa razão, não teria compreendido
a missão social do escritor.
Em Invenção
de Orfeu, a consciência social de Jorge de Lima é muito avançada. Protestando
contra a tirania hitlerista, escreve: julgam-se únicos, raça preclara, sangue
de demiurgos, lobo dos antros, Lúcifer de novo... O nazismo, para ele, é uma
noite borrascosa, um “ar demente” que reveste as formas do mundo, cobrindo os dias,
enquanto milhões de olhos choram por trás da vidraças.
Sobre a acusação
que costumam fazer de ser a sua poesia algumas vezes destituída de sentido, como
se o poeta se abandonasse por “casualidade” aos jogos de palavras e às livres associações
da fantasia, eu desejava demonstrar ao leitor que tais acusações não são fundamentadas.
Para isso, escolhi algumas passagens de Invenção de Orfeu, que, embora não
sendo as melhores, servem, todavia, como testemunho da elevada consciência artística
desse poeta:
Maduro
pelos dias, vi-me em ilha,
portanto.
Como conhecer as coisas senão sendo-as?
Como conhecer o mar senão morando-o?
portanto.
Como conhecer as coisas senão sendo-as?
Como conhecer o mar senão morando-o?
Ou
ainda:
Pra
unidade deste poema,
ele vai durante a febre,
ele se mescla e se amealha,
e por vezes se devassa.
Não lhe peças nenhum lema
que sua mágoa é engolida,
e a vida vai desconexa
completando o que é teoria...
ele vai durante a febre,
ele se mescla e se amealha,
e por vezes se devassa.
Não lhe peças nenhum lema
que sua mágoa é engolida,
e a vida vai desconexa
completando o que é teoria...
Acredito que
nesses versos, pertencentes aos Cantos I e VII, dois dos mais estranhos e belos
de Invenção de Orfeu, há uma confissão de que se pode retirar testemunhos
para uma compreensão mais ampla de Jorge de Lima. Quanto aos elementos não apenas
técnicos, é interessante observar a reiteração dessa mistura de fatores divinos
e diabólicos, que bem documenta a presença do panteísmo, a enumeração descontínua,
a orientação barroca da expressão, a que se associa, em determinados momentos, a
“reflexão técnica”.
Sei
dos pássaros, sei dos hipopótamos,
sei de metais, de cidades, aconteço-me,
embebo-me na chuva que é do céu,
abraso-me no fogo dos infernos.
Porquanto
como conhecer as coisas senão sendo-as?
sei de metais, de cidades, aconteço-me,
embebo-me na chuva que é do céu,
abraso-me no fogo dos infernos.
Porquanto
como conhecer as coisas senão sendo-as?
Abrigo
minhas musas amam-me sobre,
Aflijo-me por elas, sofro nelas,
encarno-me em poesia, morro em cruz
cravo-me, ressuscito-me, Petrus sum
Sou ele mas traindo-me, mas em burro,
com esses cascos na terra, e ventas no ar,
cheirando Flora: minhas quatro patas
rimam iguais, forradas, alforriadas,
burro de Ramos, levo sobre o dorso
Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém.
Aflijo-me por elas, sofro nelas,
encarno-me em poesia, morro em cruz
cravo-me, ressuscito-me, Petrus sum
Sou ele mas traindo-me, mas em burro,
com esses cascos na terra, e ventas no ar,
cheirando Flora: minhas quatro patas
rimam iguais, forradas, alforriadas,
burro de Ramos, levo sobre o dorso
Alguém em flor, Alguém em dor, Alguém.
Embora eu não
seja inclinado às análises estruturais de poemas e, particularmente de versos isolados,
não posso fugir a uma demonstração do paralelismo rítmico do último verso; chamo
a atenção para as rimas internas, o movimento de depressão e elevação dos acentos;
para tudo, enfim, que me parece um prodígio de “reflexão técnica”.
Alguém em flor,
Alguém em dor, Alguém.
Como se vê, trata-se
de um verso cujo período rítmico se distribui através de dez sílabas. O fato para
o qual chamo a atenção é o seguinte: todas as sílabas desse verso rimam entre si,
separadas por três sílabas que, por sua vez, rimam também na mesma proporção. Assim,
as sílabas em Al, aparecem na 1ª, 5ª e 9ª; guém, surge exatamente
na 2ª, 6ª e 10ª; em, na 3ª e 7ª, as rimas em or (flor e dor) na 4ª
e na 8ª; tal processo, considero um prodígio de “reflexão técnica”, porque, se resultasse
de uma intuição, não seria uma intuição sensorial, mas intelectual. Creio que se
trata de uma técnica reflexiva, intencional, pois o Alguém sendo Deus, o
poeta quis demonstrar com esse virtuosismo técnico o símbolo de uma ideia de perfeição.
Parece-me que Jorge de Lima seguiu aqui o princípio da Composição numérica
a que se refere Ernst Robert Curtius em um de seus ensaios de Literatura Europeia
e Idade Média Latina. A palavra Alguém aparece três vezes nesse verso; entre
as sílabas que rimam internamente, há exatamente três sílabas. Ora, o número 3,
adverte Curtius, está coordenado com a Trindade, com o modo ternário da música,
as dimensões do tempo e motus ternarius da alma. O fato de a última sílaba
deste verso ser acentuada, acabou por fazê-lo um decassílabo perfeito, isto é, com
exatamente dez sílabas. Todavia, às vezes me pergunto se essa suposta intenção racional
existiria. Assim, não é de estranhar que ponha em dúvida minhas próprias crenças
nas forças racionais do espírito É possível – digo é possivel – que a mera intenção
numerológica não seja suficiente para criar essa regularidade da estrutura sonora.
Esses mecanismos da mente ainda são mal conhecidos, mas que neles existem.... mistérios...
Ah! não tenho dúvidas, como nos demonstram os sonhos e os jogos de azar. Há na linguagem
poética a união de palavras que só os pesadelos podem gerar. Mas são os sonhos e
não os pesadelos os geradores das melhores imagens. Esses achados pertencem ao campo
da Psicologia, mas para falar deles não preciso mais do que tem me fornecido a própria
experiência, tal como ocorreu em meu poema “O sonâmbulo.” Quanto aos números, eles
aparecem nos sonhos e atuam com força tal que até parecem estruturar ritmos e sílabas
enquanto dormimos, deixando muito pouco para fazermos após o despertar.
No caso do verso de Jorge de Lima, lembro as palavras
de E.R. Curtius: “O número 10 é plenitude sapientiae, pois 7 significa a
Criação e 3, a Trindade”.
A extensão de
Invenção de Orfeu, a enorme variedade de temas, a hipérbole retórica são
elementos que não permitem dar ao leitor uma visão geral do conjunto, em um assalto
crítico apenas tático à estrutura de sua fortaleza barroca. Acredito que seria interessante
investigar o processo das metamorfoses, tão frequentes nesse livro, o que não deixa
dúvida sobre a influência de poetas latinos, notadamente de Lucano e Ovídio. Tal
investigação teria o mérito de assegurar a Jorge de Lima um fiel testemunho da legitimidade
de seus processos. Pois muitos poetas jovens, influenciados por crítica mais social
e política do que estética e literária, não vêem mais do que um extravagante retórico,
“uma verborragia” sem sentido, na maioria dos versos de Invenção de Orfeu.
É claro que não se pode esperar de um poeta barroco o mesmo aferrolhamento expressivo
que obrigatoriamente tem que se observa em um poeta clássico. Em Ovídio, Níobe se
transforma em pedra ao ver os filhos tombar, um a um, seteados por Diana e Apolo:
Ficou com tantos
males como um gelo:
Não move seu
cabelo nenhum vento,
Seu rosto mostra
bem seu desconsolo,
Não mais se vê
nos olhos movimento.
Ovídio narra
uma lenda. Mas não lhe altera o sentido. É um clássico. O repouso caracteriza o
seu desejo de eternidade. Assim, quando em um processo expressivo algo tem que mudar
de figura, é necessário que essa nova forma seja estática, vertical, marmórea, racional
e fria. Por isso, nele, a pedra, o rochedo, a coluna são elementos que se prestam
à apresentação do sentimento do eterno, enquanto o barroco aspira à vida, ao movimento
incessante, à horizontalidade, ao vôo. Eugênio D’Ors expressa essa oposição entre
o clássico e o barroco com muita clareza:
O la juventud o la imortalidad. O la terra
tibia o el cielo frio. O la intensidad de la hora
presente, de la cual se goza com pasión, o la
esperanza de
la impassible existência futura.
Se, em Ovídio,
o sofrimento converte o ser mortal em pedra, em Jorge de Lima, poeta barroco, predominam
as notas panteístas, o “sentido reprodutor” da vida fluindo sem cessar de todos
os elementos da Natureza:
Dias e dias fico
assim como um rochedo,
criando lodo
em meu queixo e caracóis nos lados,
sob as chuvas
da América, eis-me de novo alado,
seguramente vôo
pelos ramos, sem medo.
Demonstrando,
ainda que apenas sumariamente, a legitimidade dos processos de Jorge de Lima, em
relação ao vitalismo que impulsiona o seu poema, veremos agora como se serve ele
do ornatus – utilizado aqui como recurso capaz de substituir o pensamento
lógico.
O desprezo em
que se colocou a retórica nos estudos de literatura tem levado grandes poetas e
críticos a considerá-la simples ornamento, incompatível com o espírito da poesia
moderna. Acredito que esse preconceito (cujos germes começaram a aparecer em todas
as artes, especialmente na arquitetura, a partir da revolução francesa, tendo se
intensificado no século XIX com Poe e seus discípulos europeus) tem causado mais
danos do que benefícios à poesia; porque, sem a retórica, a poesia fica privada
de um dos seus componentes vitais. Tais preconceitos racionalistas, na época atual,
são mais da parte dos críticos do que dos poetas; daí sua influência sobre poetas
dotados de maiores recursos teóricos do que propriamente expressivos, enquanto os
poetas mais dotados se mantêm infensos a tais conselhos. Creio que não se pode apontar
um só, entre os grandes poetas, que despreze os artifícios retóricos. Até mesmo
T.S.Eliot é um retórico moderado quando escreve poemas, embora se insurja contra
o abuso dos artifícios retóricos, em seus estudos sobre a poesia. Também se servem
da retórica alguns dos nossos poetas mais representativos: Carlos Drummond de Andrade,
Joaquim Cardozo, Cassiano Ricardo, Lêdo Ivo, João Cabral de Melo Neto, Antônio Olinto,
Bueno de Rivera, Emílio Moura, Paulo Mendes Campos.
Assim, aquilo
que pode parecer a certos críticos como defeito na poesia de Jorge de Lima, não
seria mais do que um conhecimento muito amplo das artes poéticas. Os grandes autores
não dispensam a retórica; ela constitui um dos recursos mais frequentes encontrados
na poesia de Virgílio, Lucano, Estácio, Dante, Ariosto, Tasso, Camões, Donne, Shakespeare
e Goethe. Vejamos como Jorge de Lima consegue, através de artifícios retóricos,
criar uma série de elementos significantes, a partir da fusão do grande estilo aos
ritmos que Gilberto Freyre considera “mais harmonizados com a natureza do Norte
do Brasil”, em que a cadência do batuque se funde ao sentido da linguagem idiomática:
A solidão é rara,
quase um raio,
menos que teu
anseio, muito menos,
menos que teu
difícil, teu durante,
teu momento de
morte, teu sinal,
teu chamado divino,
teu achado,
teu machado fendendo
novas achas.
Bastaria que
chamasse a atenção do leitor para essa ativa sugestão dos “teu”, a rima interna,
a série sucessiva de anáforas, os conceitos, as comparações; prefiro que se analise
um pouco a significação dessa música reiterativa. Aqui existe uma percussão contínua
de sons, capaz de nos colocar em um clima de êxtase poético. Algo atua nessa estrofe
como se fora um mágico tambor subterrâneo, cujo eco repercute internamente no próprio
verso, antes de reiniciar nova curva ondulatória, através da qual, núcleos associativos
vão intensificando, pela acumulação de anáforas, os efeitos característicos de uma
dança de negros, o clímax formidável de um batuque. Isso aparece no Canto VIII,
intitulado Biografia, irrompendo de súbito entre as demais estrofes; essas estrofes
nada têm de comum com a captada pelos ouvidos e passa com a mesma rapidez que demora
em nossos olhos um relâmpago. A impressão que se tem é de continuar-se a ouvir um
longínquo rumor de dança. Eis uma decisiva contribuição da Retórica ao significado
múltiplo. Convém repetir o exemplo:
A
solidão é rara, quase um raio,
menos que teu anseio, muito menos,
menos que teu difícil, teu durante,
teu momento de morte, teu sinal,
teu chamado divino, teu achado,
teu machado fendendo novas achas.
menos que teu anseio, muito menos,
menos que teu difícil, teu durante,
teu momento de morte, teu sinal,
teu chamado divino, teu achado,
teu machado fendendo novas achas.
Isso não representa
senão uma etapa superior da poesia de um homem que já domina inteiramente todos
os mecanismos da expressão. Agora, ele pode planejar o poema e fazê-lo como bem
entender, mas sempre como artista criador; não como um construtor. Antes, no Livro
de Sonetos, o poema surge com tirânica independência, pleno de intenções e artifícios.
A fantasia alcança aqui dimensões quase sobre-humanas. Nele, a posse desse elemento
tão valorizado pelos grandes poetas é extremamente vigorosa. Eis uma lição de poética
que ele nos dá quando procura ainda passagem para o grande estilo de Invenção
de Orfeu:
Vereis
que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogado, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de nós perplexidades,
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade entre.
Qualquer poema é talvez essas metades;
essas indecisões das coisas vagas
que tudo isto lhe nutre sangue e ventre.
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,
coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogado, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes
Que este poema é poema sem balizas.
Mas que venham de nós perplexidades,
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade entre.
Qualquer poema é talvez essas metades;
essas indecisões das coisas vagas
que tudo isto lhe nutre sangue e ventre.
Acredito que
a crítica atual que tanto se “preocupa” com o trânsito do Brasil para uma fase superior
de sua vida econômica, social e política, não representará nenhum perigo para um
poeta como Jorge de Lima. A aplicação de princípios marxistas à interpretação da
literatura não melhora nem a literatura nem a crítica. Isso já foi amplamente demonstrado
nos Estados Unidos, onde se desenvolveu, na década 1930-40, o maior surto de crítica
marxista da história cultural do Ocidente. Livros como os de Granville Hicks, V.
F. Calverton e outros estão aí, e documentam tanto o brilho quanto a inocuidade
da crítica marxista norte-americana, em seu ataque quase furioso à literatura e
à arte burguesas. Tão completos eram esses críticos que não há hoje um só tema abordado
pelos marxistas contemporâneos – sejam partidários do realismo socialista, mais
fiéis à orientação traçada por Stalin e ainda válida, oficialmente, na União Soviética,
sejam os adeptos do “romantismo revolucionário unido ao realismo”, de Mao-Tse_Tung,
sejam os paradoxalmente chamados revisionistas, isto é, os que mais se aproximam
do pensamento de Marx e não seguem a orientação nem de Moscou nem de Pequim. Não
há um só tema – dizia eu – que não tenha sido esgotado em livros como The Liberation
of American Literature, de Calverton, The Great Tradition e Figures
of Transition, de Hicks, ou ainda na introdução de Joseph Freeman ao Proletariam
Literature in the United States.
A culpa desses
desvios não foi de Marx, foi de seus adeptos. Vejamos um caso muito discutido: o
conceito de alienação. Marx teve o cuidado de sempre evitar a sua aplicação à interpretação
da literatura e da arte. Julgava ele – e nisso estava certo – que a literatura de
grande força apresenta uma tendência muito forte no sentido de desligar suas raízes
da infra-estrutura em que se encontra situada. Se é fácil, segundo os seus princípios,
explicar a redução das alienações como a ação de um processo dialético, creio que
seria muito difícil convencer o leitor de que todos os grandes artistas, em todas
as épocas, foram homens de “consciência alienada”. Porque, de acordo com a aplicação
de tal conceito, creio que não há um só, entre os grandes poetas, que não possa
ser julgado como um homem de consciência transferida. Nem mesmo Lucrécio escaparia
a uma tal interpretação, pois ainda que haja sido um materialista, Lucrécio acreditava
na existência de um ser transcendente. Para que um artista seja considerado “alienado”,
basta sua crença na existência de Deus.
A crença em Deus
implica uma alienação religiosa, a primeira alienação, na ordem crítica, contra
a qual se volta Marx. A aplicação de um tal conceito à literatura provaria, por
exemplo, que toda a poesia épica é uma poesia “alienada”, porque, na epopeia clássica
o “Eu-substância” é uma projeção ideal do “Eu-sujeito”. Uma das características
do épico é a fusão do próprio poeta com o seu assunto; para que isso ocorra, ele
tem que alienar a sua personalidade. O mundo refletido pelas epopeias é um mundo
plenamente ideal. Tal mundo, um marxista dogmático consideraria alienado de acordo
com sua interpretação, pois não “encontrando” no poema o reflexo da realidade que
ele busca, e incapaz de reconhecê-la depois de transformada pela criação artística,
não resta ao crítico marxista dogmático senão classificar o seu autor como um homem
de consciência transferida. É claro que me refiro à epopeia heróica, em verso. Nenhum
novelista ou romancista moderno narra como narraria Homero ou Vírgílio. Com o surgimento
do romance moderno, herdeiro da antiga epopeia, por razões tão conhecidas que não
se deve sequer discuti-las, os conceitos marxistas aplicados às “epopeias” de Cervantes,
Tolstói, Balzac, Proust, Machado de Assis, Thomas Mann, Musil e tantos outros, só
devem ser analisados do ponto de vista que o próprio Marx tinha da literatura e
não do ponto de vista do Realismo Socialista, puro reflexo das ideias de Stalin
sobre literatura e arte em geral.
A crítica marxista
atual – como escreveu Alfredo Kazin em seu livro On native grounds – é criação
de stalinistas e marxistas dogmáticos desorientados. “Marx e Engels propuseram leis
gerais. Os marxistas que são seus adeptos procuram provar essas leis, aplicá-las
em campos diferentes, pelo estudo das “peculiariadades”. Pois Marx – comenta Kazin
– não apresentou quase nenhuma teoria literária como tal. Ambos homens profundamente
cultos, apenas apresentaram um exemplo de erudição e de cultura e confiaram na cultura
e no bom senso de seus adeptos. “Não acreditavam, porém, que, obras de arte aparecessem
através da causação mecânica, nem tampouco antecipavam que, ao falar na cultura,
como sendo a superestrutura acima do alicerce principal das relações econômicas,
sua imagem haveria de ser levada a significar que a literatura por exemplo, nada
é mais do que um subproduto da atividade material”.
Penetração na
realidade consegue fazê-lo todo grande escritor. Mas o realismo, bem o diz Yeats,
foi criado para o vulgo, que o constitui sempre como um prazer característico.
A grande obra
de arte poética resulta da fusão entre as generalidades abstratas do pensamento
e a realidade concreta do mundo. Vista apenas sob um desses aspectos não chega a
ser arte.
A verdadeira
poesia não pode ser criada a partir de uma simples penetração na realidade circundante;
tal penetração é óbvia, mas a obra que dela resulta não deve ser apenas um espelho
caricatural da realidade. Toda obra de arte possui um “mundo próprio”, exclusivamente
seu, e não necessita de nenhuma relação com outros mundos, ou coisas exteriores
a ela. A verdadeira obra de arte, diz Georg Luckács, é uma unidade do absoluto e
do relativo. Ela deve refletir “todas as propriedades essenciais que determinam
objetivamente a porção da vida configurada por ela”. Entretanto, o reflexo da realidade
da obra de arte é diferente do das ciências. Diz Luckács: “Isto não significa que
toda obra de arte há de propor-se como meta, refletir a totalidade objetiva, extensiva
da vida. Ao contrário, a totalidade extensiva da realidade ultrapassa necessariamente
os limites possíveis de toda criação. A realidade só pode ser reproduzida, teoricamente,
pelo processo infinito da ciência total, em aproximação sempre crescente.”
Acredito que
toda obra de arte, especialmente o poema, deve refletir algo de transcendente em
relação ao mundo onde faz sua entrada e, ao mesmo tempo, conservar-se imanente em
relação ao ser que lhe deu origem. Se isso ocorre, o poema aparecerá aos olhos de
um marxista ortodoxo, sempre inclinado a interpretações demasiadamente simplistas,
como expressão de uma “consciência transferida”. O artista, na época atual, não
deverá temer que o chamem de “alienado”. Se ele deseja continuar sendo artista,
deverá dizer como Jorge de Lima:
Vereis;
a fronte dorme
e os membros é que sonham,
pois que me visualizo
aos olhos sem retina;
não posso recusar
convites para a noite
nem posso abrir as pálpebras
a pobres realidades.
e os membros é que sonham,
pois que me visualizo
aos olhos sem retina;
não posso recusar
convites para a noite
nem posso abrir as pálpebras
a pobres realidades.
NOTAS
[1] Todos os textos
de Hegel, citados neste ensaio, estão contidos na parte em que ele trata da Poesia,
em suas Lições de Estética.
[2]. A grandeza
de Jorge de Lima não está no fato de haver escrito um poema longo, em Cantos, como
se fosse uma epopeia, mas, na realidade, sua poesia em Invenção de Orfeu
é lírica, de uma beleza comparável a de Dante. Daí usar versos inteiros da Commedia,
para que o leitor possa compará-los. Ao falar da “divina milicia”, tanto se refere
aos doutores da Igreja como às rosas luminosas do Canto XXXIII do Paraíso.
César Leal (Brasil,
1924-2013). Poeta e crítico de poesia. Autor de livros como Introdução ao estudo
da poesia de Camões (1975), Literatura: a palavra como forma de ação
(1978), e Tempo e vida na Terra (poesia reunida, 1998). Página ilustrada
com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965), artista convidada desta edição.
*****
Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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