A primeira impressão que se tem ao percorrer o itinerário poético de Jorge
de Lima é de uma extraordinária multiplicidade de temas e formas literárias. Poeta
parnasiano na primeira juventude; modernista de cadências regionalistas nordestinas
entre o final dos anos 1920 e início dos 1930; programadamente poeta religioso,
cristão e bíblico, nos anos 1930 e 1940, com originais passagens pela poesia do
negro; surrealista sui generis, entre barroco e simbolista, nos anos 1950…
O intérprete
que desejar compreender esses diversos campos existenciais e formais deverá perguntar-se:
qual a gênese existencial de cada um deles? E, em seguida: haveria uma possível
unidade de sentido subjacente a esse imenso conjunto de expressões poéticas?
Aqui entramos
na esfera das hipóteses hermenêuticas. Mas é preciso arriscar e talvez nos ajude
uma aproximação inicial com a história da literatura brasileira anterior e posterior
à difusão do modernismo no Nordeste. O jovem poeta parnasiano dos XIV Alexandrinos,
eleito príncipe dos poetas alagoanos, vive uma atmosfera literária provinciana,
epigônica. A linguagem é convencional, toda emprestada dos assuntos e fraseios de
uma escrita que se repete entre escolar e sentenciosa, sem um sopro de experiência
pessoal. Daí o significado forte de salto qualitativo que foi a composição de “O
mundo do menino impossível”, publicado em 1927. A rigor, parecia impossível ao autor,
já homem feito, que um menino bem nascido pudesse ter saído do mundo dos brinquedos
caros, artificiais, de marca estrangeira, e ter imerso a memória nas coisas simples
do cotidiano da sua infância. No caso, a conversão cultural e a conversão existencial
coincidiram, o que tornou efetiva a primeira mutação poética.
Mas o que aconteceu,
de fato, foi a drástica substituição dos chavões literários por uma entrega do adulto
a lembranças infantis. É preciso ler as Minhas memórias e as entrevistas
de Jorge de Lima para entender a sede de renovação que se fez sentir também no Nordeste
ao longo dos anos 1920.
Esse movimento
na direção do passado real, vivo, concreto, e não de um passado construído pela
cultura hegemônica, se fez mediante a evocação por imagens. O ritmo destas já não
será marcado pela isocronia parnasiana, de que o metro alexandrino dos sonetos dera
exemplo. Trata-se agora do ritmo processional (a certa altura, o poeta invocará
a presença de Whitman), que se desdobra à medida que as imagens se seguem na memória.
Uma sensível dose de realismo entra na composição deste e de outros poemas enraizados
na biografia alagoana de Jorge de Lima. Daí em diante, a sua poesia seria um afloramento
de figuras reais ou imaginárias que o perseguirão até a criação de Invenção de
Orfeu. Reais ou imaginárias: os brinquedos da infância, posto que inventados,
foram absolutamente reais, mas do mundo do menino também se diz que foi tirado “do
nada”, como parece acontecer às vezes durante a vivência do sonho: “O menino poisa
a testa - e sonha dentro da noite quieta - da lâmpada apagada - com o mundo maravilhoso
- que ele tirou do nada”.
É um momento
fecundo a sintonia deste Jorge de Lima com a eclosão do romance nordestino do período
que vai do aparecimento de A bagaceira (1928) de José Américo de Almeida
aos primeiros anos da década seguinte. Os nomes formam constelação: Raquel de Queiroz,
com O quinze; José Lins do Rego, com o Menino de engenho, primeiro
lance feliz seguido de todo um ciclo de aprofundamento da experiência de uma infância
vivida em clima de patriarcalismo decadente; Jorge Amado, estreando com O país
do carnaval, igualmente passo inicial de uma visão entre romântica e naturalista
da sua Bahia… As obras-primas não tardariam a chegar: São Bernardo, em 1934,
e Vidas secas, em 1938, de Graciliano Ramos.
O conjunto das
obras, apesar da diferença de qualidade estética e dos desníveis de alcance ideológico,
chama a atenção pelo que significava de reconhecimento de uma identidade física
e social marginalizada: o Nordeste em face da crescente hegemonia do capitalismo
industrial paulista. Não cabe aqui fazer o mapeamento das vertentes ideológicas
em presença. A grande síntese de Gilberto Freyre, Casa grande & senzala,
de 1933, deu substância a um pensamento entre realista (pela riqueza ímpar de observação)
e conservador, pela apologia do estilo tradicional de vida no engenho. Do lado oposto,
a exposição da pobreza em toda a região, ferida pela sobrevivência de uma semiescravidão,
serviu para denunciar as iniquidades do sistema econômico e político, o que alentou
uma posição de esquerda em alguns núcleos de intelectuais da província.
Nessa rede de
contrastes, a poesia regional de Jorge de Lima oscilou entre o saudosismo da paisagem
natural e social vivida na infância e a denúncia da opressão que pesava sobre o
negro, o cambembe e o proletário. Denúncia que se mostraria lancinante no seu romance
Calunga, publicado em 1935, quadro sem retoques da miséria e da violência
dominante no interior de Alagoas. Daí vem o duplo registro da escrita poética feita
ora de evocação, ora de invocação.
EVOCAÇÃO E INVOCAÇÃO
| A evocação dos lugares é aberta a referências que cumprem a função de ladrilhos
de um mosaico entre pitoresco e sentimental: a estrada de ferro, então gerida pela
GBWR, título de um poema tipicamente processional; os rios, “caminhos de minha terra”,
as enchentes, as lagoas, a casa paterna fronteando a Serra da Barriga e os seus
quilombos, os bairros de Salvador, o circo, as igrejinhas, tudo permeado de nostalgia
e afeto. Predomina a sintaxe linear, parataxe que dá continuidade ao que seria,
para o leitor, pura enumeração aparentemente aleatória, mas na verdade penetrada
de um calor difuso que tudo unifica.
Uma questão epistemológica
talvez não fosse aqui de todo impertinente: seria esse painel de imagens construído
na base de associações já feitas entre “conteúdos” estocados na memória do adulto,
ou estamos diante de uma ativa intencionalidade da consciência, para usar da linguagem
da fenomenologia de Husserl e Sartre, quando recusam a hipótese de uma imaginação
passiva, que se alimentaria tão só, e necessariamente, de estímulos externos já
prontos? Pela teoria da intencionalidade da consciência
imagística, o mosaico é uma escolha poética deliberada, uma vontade-de-estilo,
e não uma reação automática a determinados estímulos. A ser verdadeira, essa compreensão
da imagem dá ao memorialismo dos poemas nordestinos de Jorge de Lima uma objetividade
complexa, entranhada de subjetividade.
Ao lado da evocação,
em terceira pessoa, há a invocação, que pode ser definida como lembrança com uso
da segunda pessoa. São situações e figuras extraídas empenhadamente da memória para
entrarem em regime de presentificação. O exemplo forte é o admirável “Essa negra
Fulô”, que abre os Novos poemas. Não por acaso, nesse texto, que virou antológico,
Jorge de Lima trabalha motivos que seriam explorados nos Poemas negros, publicados
anos depois.
Tudo é belo e
intenso na escrita e na dicção oral do poema. Fulô é flor negra, como trigueira
será a rosa da “Ancila negra”. E é a força da sua presença ubíqua na vida da Sinhá
e do Sinhô que move o apelo reiterado: “Ó Fulô! Ó Fulô!”. O vocativo ao mesmo tempo
chama e potencia a imagem da escrava, que servia “no banguê dum meu avô”, e dá lugar
à fala narrativa, outra conquista do poema. Cada chamamento, sempre vazado em redondilhos
maiores, familiares à poesia popular luso-nordestina, remete a uma relação estreita
da mucama com a intimidade corporal da senhora. Fulô faz a cama da Sinhá, penteia-lhe
os cabelos, ajuda-a a despir-se, abana seu corpo suado, coça a sua coceira, cata
cafuné, balança a rede e, para fazê-la dormir, conta-lhe histórias. Nessa altura
o poema incorpora a recitação de antigos versos folclóricos. Primeiro, duas trovas
encadeadas contando a lenda da princesa que possuía um vestido com os peixinhos
do mar trazendo, na coda, a quadrinha que dá fecho e abre a porta para uma nova
narrativa (“Entrou na perna de um pato - saiu na perna de um pinto - o Rei-Sinhô
me mandou - que vos contasse mais cinco”). Depois, a quadra de embalo para fazer
dormir os meninos: “Minha mãe me penteou - minha madrasta me enterrou - pelos figos
da figueira - que o Sabiá beliscou”. Prenúncio dos castigos que a Sinhá vai infligir
à mucama?
O último movimento
do poema é o reverso cruel da intimidade. Os objetos de adorno e luxo da sinhá somem,
a culpa recai sobre Fulô. A proximidade dos corpos parece ter excitado o sadismo
com que a senhora exercerá o poder sobre a escrava. A punição vai em crescendo,
passa do açoite do feitor ao açoite do próprio Sinhô, que sucumbirá ao desejo de
possuir a escrava, enfim acusada pela Sinhá de ter-lhe roubado o marido…
Assim, a invocação
da figura da mucama, acorde lírico inicial, se desdobrou em narrativa feita de situações
de intimidade (cama, rede, sono, cafuné…), deteve-se na (re)citação da trova popular,
para, enfim, reverter em acusação de roubo, com toda a carga perversa trazida pela
iniquidade da assimetria social. Em suma, o que nos deu o poeta? Imagens intencionais
da memória com função mimética, expressão de vivências sensuais ou agressivas e
escrita configurada pelo metro popular em simetrias rítmicas e melódicas.
Se “O mundo do
menino impossível” significou a mudança consciente da poética de Jorge de Lima para
o espírito e a letra do modernismo, “Essa negra Fulô” pode ser considerado a pedra
angular de uma construção do que viria ser a chamada poesia negra, produzida ao
longo dos anos 1930 e 1940, em consonância com um movimento poético afro-hispânico,
que se consolidava nessas décadas.
Remeto o leitor
ao estudo abrangente de Vagner Camilo, que reconstrói o contexto (literário e ideológico)
afro-americano e, em particular, afro-cubano em que se inserem parcialmente os Poemas
negros.
Creio que o procedimento
de invocação, pela sua tendência individualizante, tenha sido um dos recursos mais
fecundos da poesia negra de Jorge de Lima, na medida em que dele emergem seres humanos
na sua complexa fisionomia de escravos e homens e mulheres portadores de uma tradição
ao mesmo tempo vigorosa e recalcada. Chamá-los a ter presença no corpo da poesia
culta é, apesar dos riscos ideológicos que essa operação comporta, um projeto ético
e estético de sobrevivência, quando não de resistência.
Os exemplos não
são poucos. Ainda em Novos poemas: “Serra da Barriga” (“Te vejo na casa em
que nasci. Que medo danado de negro fujão!”), “Comidas” (“Iaiá me coma/Sou quimbombô;
Bahia, estas comidas têm mandinga”); “Inverno” (“Zefa, chegou o inverno!”); “Diabo
brasileiro” (“Diabo brasileiro, quero saber quanto dá/ a dezena do carneiro”); “Joaquina
Maluca” (“Joaquina maluca, você ficou lesa”); “Meus olhos” (“Nossa Senhora, minha
madrinha/tu vês as coisas verdes, não é?”).
Nordeste, terra
de São Sol!: “Poema de Natal” (“Ó meu Jesus”); “Ave Maria” (“Boa tarde, ó meu caminho
estreito”); “Poema relativo” (“Vem, ó bem amada”), “Mulher proletária” (“Mulher
proletária/única fábrica/que o operário tem (fábrica de filhos)/tu…”); “Poema à
irmã” (“Ó irmã/agora que as noites vêm cedo”); “Poema à bem-amada” (“Amada, não
penses”); “Poema a Marcel Proust” (“Ó meu petit Proust”); “Poema à Pátria” (“Ó grande
país”).
Enfim, nos Poemas
negros: “Banguê” (“Cadê você, meu país do Nordeste”); “Democracia” (“Ó Whitman”);
“Ancila negra” (“Há ainda muita coisa a recalcar/Celidônia, ó linda moleca ioruba”);
“Orambá é batizado” (“Pela fé de Zumbi te digo”); “Poema de encantação” (“Arraial
d'Angola de Paracatu”); “Janaína” (“… Janaína, dá licença”); “Xangô” [invocação
indireta]; “Olá! Negro” (“Os netos de teus mulatos e de teus cafuzos”).
Mediante o vocativo,
ou apóstrofe, a linguagem move-se no regime exclamativo, que aproxima o sujeito
do objeto, já então subjetivado enquanto interlocutor trazido pela voz lírica. Se
a evocação conserva sempre alguma distância entre o memorialista e a figura lembrada,
a invocação convoca a presença do outro, enlaçando-o, o que pode ser um primeiro
passo para a identificação, virtual passagem para o estado de transe.
Essa profunda
sensação de empatia do poeta com figuras de ex-escravos que povoaram os seus verdes
anos parece-me ter entrado na gênese da sua poesia religiosa, surreal ou hermética.
O processo semântico abrangente chama-se, aqui, presentificação. Que pode
envolver explicitamente o eu lírico, como em “Ancila negra”, “Poema da encantação”,
“Rei é Oxalá, Rainha é Iemanjá” e na cadência final de “Janaína”, ou objetivar-se
na ação da entidade sagrada, como em “Benedito Calunga”, “Quando ele vem”, “Xangô”,
e na própria invocação do negro, que se dá em “Olá, Negro!”.
Vejo em “Ancila
negra”, a obra-prima dos Poemas negros, uma sutil combinação de imagem evocada
e imagem invocada. A terceira pessoa em regime impessoal do verbo haver (“Há”) abre
o poema com um acorde reflexivo que ressoará, quase bordão, em mais de uma estrofe:
“Há ainda muita coisa a recalcar”, seguido do nome-vocativo e de seu aposto, “Celidônia,
ó linda moleca ioruba”. A alternância (ela/tu) prossegue. A terceira pessoa enunciada
pela desinência verbal do passado (embalou, acompanhou, contou) ao mesmo tempo se
conserva e resvala para a esfera da memória até ceder à marcação da primeira pessoa:
“que embalou minha rede”, “meacompanhou para a escola, - me
contou histórias de bichos - quando eu era pequeno, - muito pequeno mesmo”.
A partir da segunda
estrofe, feita a apresentação evocativa, o poeta trabalha empenhadamente as formas
da presença da moleca ioruba nas entranhas da sua vida de menino nordestino neto
de senhores de engenho. A condição psicológica do recalque é explícita no refrão,
mas não oblitera, antes provoca, a pulsão da memória afetiva, que lateja em todo
o poema. O desejo da presença é força motriz que nada consegue reprimir. Daí a continuidade,
tão bem marcada pelo gerúndio, das carícias de Celidônia, “as tuas mãos negras me
alisando - os teus lábios roxos me bubuiando, quando eu era pequeno, - muito pequeno
mesmo”. Celidônia, nome que traz em si a promessa de um dom do céu.
Da profundidade
do afeto nasce a palavra de encantamento: “ó linda mucama negra”, beleza que as
metáforas exprimem em versos de amor e dor: “carne perdida, - noite estancada, -
rosa trigueira, - maga primeira”. Por que perdida, por que estancada? O canto da
beleza descanta sinais de morte. É o que a quarta estrofe dá em cadência narrativa:
Há muita coisa a recalcar e esquecer: / o dia em que
te afogaste / sem me avisar que ias morrer, / negra fugida na morte, / contadeira
de histórias do teu reino, / anjo degredado para sempre, / Celidônia, Celidônia,
Celidônia!
De novo, a ingrata
obsessão de reprimir, até o limite do esquecimento, o que no entanto está doridamente
presente na alma do adulto que tudo lembra. A morte de Celidônia no fundo das águas
revela, num átimo, a sua condição de negra fugida e para sempre exilada do seu reino
- de onde ela trouxera histórias para contá-las ao menino pequeno, muito pequeno
mesmo.
O fecho do poema
leva o pensamento à suspensão do tempo. “Nunca mais” e “para sempre” são expressões
incisivas de um presente pleno de sentido: som e, mais que som, ressoo de um sino
ouvido pelo memorialista parado na infância, imerso no encantamento do sono, para
sempre.
Nem sempre a
presentificação da imagem conjurada se faz em primeira pessoa. A objetivação da
figura de Benedito Calunga, no poema homônimo, anuncia o quase-transe que é o banzo
do fiel tomado por Xangô.
O nome já diz
bastante do sincretismo que preside a religiosidade afro-nordestina: Benedito,
homem bendito e bento como o santo lendário, padrinho celeste de batismo de tantos
e tantos cativos e seus descendentes; Calunga, palavra de várias denotações,
aqui provavelmente designando o negro pobre, o fiel sem eira nem beira, mas, em
geral, pertencente à falange de Iemanjá (calunga também significa “mar”…). De todo
modo, quando o nome “calunga” se reporta a alguma entidade secundária, só excepcionalmente
recebe culto particular. Essa carência de força própria leva a entender o estado
de derrelicção que marca no poema a figura de Benedito Calunga. Fraco, ele é avesso
ao mal exorcizado nas figuras tenebrosas do papa-fumo, do pé de garrafa, do minhocão.
Cativo sem amparo, foi seviciado pelo senhor branco que o ferrou como gado e o atou
ao lumbambo.
Significativamente,
o calunga Benedito não se entregou à sedutora Iemanjá, mas tão somente a Xangô,
rei potente de raios e tempestades, cujo banzo (mais que tristeza, paixão) o alforriou
para sempre e o amuxilou, isto é, dele fez portador da vara listrada de preto
e branco, o ixã, que afugenta os espíritos impertinentes.
Quer-me parecer
que tanto na história da moleca ioruba como na do calunga há sugestão de uma volta
dos cativos ao seu reino de origem, mundo de entidades protetoras, às quais eles
pertencem ou pela entrega à morte ou pela paixão da saudade, o banzo. No breve poema
Maria Diamba, a escrava “só diante da ventania/ que ainda vem do Sudão;/falou
que queria fugir/dos senhores e das judiarias deste mundo/para o sumidouro”.
A expressão veemente
dos poderes sobrenaturais que levam ao transe ou à possessão se reconhece nos versos
arroubados do poema “Quando ele vem”. O ritmo beira a alucinação em movimento. Quem
vem no vento será um orixá, cuja presença irrompe no meio dos homens e os toma de
assalto ensandecendo-os. Uma análise rítmica e fonética revelaria toda a riqueza
dessa verdadeira tempestade sonora, provavelmente uma das mais expressivas da dicção
afro-nordestina brasileira.
A entidade ao
mesmo tempo zune como o vento, devora quanto pode das iguarias baianas, alagoanas,
pernambucanas… (caruru de peixe, efó de inhame, ogudé de banana, olubó de macaxeira,
pimenta malagueta…), mas sobretudo apodera-se das almas dos seus crentes de tal
modo que “Quando ele chega, tudo fica banzando à toa”. De novo, como na história
de Benedito Calunga, o banzo conota um estado de corpo e de alma que arrasta ao
delírio, à autodestruição, à luxúria desenfreada. Tristeza turva que se assemelha
à perda da graça, tentação de pecado mortal, em termos de devoção cristã, pela cega
violência que desencadeia nos sentimentos e atos dos que a experimentam.
A intuição do
caráter metafisicamente negativo do Mal como privação do bem e do ser (definição
que lhe deu a teologia, de Agostinho a Tomás de Aquino) reponta na imagem do “oco
do mundo”, o vazio abissal de onde “ele” vem: “Donde é que ele vem?/Vem de Oxalá,
vem de Oxalá/vem do oco do mundo/vem do assopro de Oxalá/ vem do oco do mundo”.
Mas é um vazio esse oco do mundo que não implica a ausência da divindade, antes
professa abertamente a sua presença originária atribuindo-lhe o nome sagrado de
Oxalá, o criador e procriador. Que o sopro de Oxalá arranque do oco do mundo ventos
destruidores, e seja, ao mesmo tempo, o orixá da criação, dá o que pensar, no caso,
faz pensar no caráter dramaticamente contraditório de todas as forças naturais e
sobrenaturais.
Poemas negros tem por fecho
“Olá, Negro!”: invoca as gerações descendentes de escravos e exalta a força de alma
de um povo capaz de redimir generosamente a opressão a que o branco o submeteu durante
séculos. Aqui não se trata de glosar o discurso neutro e conciliante da “contribuição”
do negro à formação do homem brasileiro. Aqui a imagem da iniquidade irrompe com
todas as letras: “a raça que te enforca, enforca-se de tédio, negro”.
O escravo aparece
em suas múltiplas figuras: “Pai-João, Mãe-negra, Fulô, Zumbi, negro-fujão, negro
cativo, negro rebelde, negro cabinda, negro congo, negro ioruba”, e em seus múltiplos
lugares de eito: “negro que foste para o algodão dos U.S.A., - para os canaviais
do Brasil”. Mas a nota original do poema incide no poder transformador que exerce
sobre “a alma branca cansada de todas as ferocidades” a alegria que emana dos jazzes
e a gama de sentimentos expressos nos blues, songs, lundus. O riso franco, “a tua
gargalhada que vem vindo”, junto com a música, vem iluminar as noites dos brancos.
Essa é a figura que remata o poema, que poderá ser lido e contestado como ideologia
ou aceito como esperançosa contraideologia, opções contrastantes que comprovariam
a riqueza de significações da linguagem poética.
POESIA BÍBLICA E CRISTÃ | A biografia de
Jorge de Lima e do seu dileto amigo e poeta Murilo Mendes atribui a conversão ao
catolicismo de ambos à influência que neles exerceram a pessoa, a arte e o pensamento
religioso de Ismael Nery. A morte deste original pintor surrealista, em 1934, teria
sido decisiva para a criação do lema. “Restaurar a poesia em Cristo”, que presidiu
a composição de Tempo e eternidade. O livro traz poemas de Jorge de Lima
e de Murilo Mendes centrados em princípios de um fervoroso catolicismo e vazados
em imagens do Antigo e do Novo Testamento. Mas, ao passo que são numerosos e reveladores
os depoimentos que Murilo Mendes (1996) deixou encarecendo a presença de Ismael
Nery na sua concepção de vida e de poesia, o testemunho de Jorge de Lima é escasso,
embora expressivo.1 Lembro a dedicatória de Tempo e eternidade e a criação de Pintura
em pânico, livro de fotomontagens certamente inspirado nos procedimentos artísticos
de Nery. E esta referência, colhida em entrevista a Homero Sena:
Pois num simples
verso de Ismael Nery, que você pode ler aqui neste outro livro - “Meu Deus, para
que puseste tantas almas num só corpo?” - sente-se a influência do escritor italiano
[Pirandello]: após a fragmentação da personalidade, a tragédia de reconstituição
da unidade, quando no mesmo poema exclama:
Ó Deus estranho
e misterioso, que só agora compreendo! Dai-me, como Vós tendes, o poder de criar
corpos para as minhas almas.
Como pensador,
Ismael Nery concebeu um sistema que Murilo Mendes batizou de “essencialismo”.
Não cabe aqui sequer tentar resumi-lo, o que em parte já foi feito pelo próprio
Murilo de modo exemplarmente didático. Ao menos dois de seus princípios centrais
parece-me que estão presentes, sob as espécies de imagens, na poesia religiosa de
Jorge de Lima encetada pelos poemas de Tempo e eternidade e desdobrada em
A túnica inconsútil e em Anunciação e encontro de Mira-Celi.
O primeiro e
mais fecundo princípio é o da “abstração do tempo e do espaço”. A matriz dessa suspensão
de ambas as categorias é mística e encontra-se numa reflexão de Mestre Eckhart:
Não há maior obstáculo para a alma, quando ela quer
conhecer a Deus, do que o tempo e o espaço. O tempo e o espaço, com efeito, não
passam de partes, enquanto Deus é a unidade. Para que a alma possa conhecer a Deus,
é preciso que ela o conheça além do tempo e do espaço, porque Deus não é nem isto
nem aquilo, como estas coisas diversas. Deus é Unidade.
Nas palavras
de Jorge de Lima: “Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo. Nem com o limite
de coisa alguma”. E adiante: “Ismael explicava-nos sua vocação divina, sua inconformidade
com o tempo e o espaço, a irreprimível necessidade que sentia de estar em todos
os lugares ao mesmo tempo”.
O segundo princípio,
que Jorge de Lima já reconhecera no teatro de Pirandello, é o da multiplicidade
inerente no interior de cada pessoa: as muitas almas em um só corpo, e seu constante
movimento, o que dá origem a combinações e metamorfoses surpreendentes. Processos
surrealistas como deslocamentos, condensações e colagens constelam a expressão poética
desse motivo recorrente no pensamento de Ismael Nery.
É claro que não
se deve reduzir a princípios abstratos a obra de Jorge de Lima escrita com o fim
explícito de restaurar a poesia em Cristo. Entre o conceito e a forma poética, quantas
mediações de imagem e de som! Mediações que são parte da força da imaginação e da
música difusa nesse extraordinário poeta lírico.
De todo modo,
há convergência no trabalho de significação que envolve a intencionalidade dos motivos
e temas. Na escrita singular de Jorge de Lima a suspensão do tempo em face da intuição
da eternidade não decai à recusa maniqueísta do momento concretamente vivido pela
natureza e pelo homem. Há sublimação, mas não há a tentativa inglória de supressão
radical do espaço-tempo, a qual, de resto, teria inibido o afloramento de toda e
qualquer imagem… A propósito, convém ler as agudas observações de Roger Bastide (1997, p.119-41) a respeito da conservação das fontes populares
e, especialmente, negras na poesia religiosa e metafísica de Jorge de Lima.
O cosmos, criado
por um Deus generoso, esplende nos versos de “Distribuição da Poesia”, sem que a
beleza que dele emana, e que o poeta oferece ao Senhor, deixe de resistir no tempo
e no espaço. Pelo contrário, a criação se dá ao poeta de forma sincrônica: a simultaneidade
das imagens evocadas mimetiza o sentimento do perene que transcende a fugacidade
dos momentos sucessivos no tempo do relógio. Em outras palavras: a eternidade supera
- conservando dialeticamente - o tempo. Glosando a sentença tomista, se a alma supõe
a existência material do corpo, a eternidade supõe a vigência do tempo: “Mel silvestre
tirei das plantas/ sal tirei das águas, / luz tirei do céu./ Escutai, meus irmãos:
poesia tirei de tudo para oferecer ao Senhor”.
De todo modo
sempre subsiste, depois da Queda, o “mundo”, na acepção joanina de locus
originário do mal e da morte, da iniquidade e do medo, e, como tal, também pesa
em alguns poemas como noturno caos, o outro lado do cosmos luminoso: “Capitão-mor,
que noite escura/ desabou neste cais/ desabou neste caos!”.
Cosmos de luz
e caos trevoso convivem ora no regime do tempo, que de repente passa e muda de figura,
ora ansiando pela irrupção do eterno, de onde procede a salvação bíblica e cristã.
Os símbolos do
tempo voraz são diversos: o vento, motivo recorrente de toda a poesia de
Jorge de Lima, e que anima o mais belo dos poemas de Tempo e eternidade,
“Na carreira do vento”; a tormenta, que tudo arrasa e a todos apavora; a
tarde oculta em um “tempo” sem tempo, infinitamente vasto, onde os horizontes são
as nuvens que fogem…; as estrelas já mortas, mas ainda cintilantes na noite
escura, espaço negro e vazio, contíguo e contrário ao “sono iluminado que Deus me
deu antes de me criar”. Coexistem tensamente esses fenômenos mutáveis do Tempo e
o mistério do homem destinado ao infinito.
“Obrigado, ó
mortos. Da noite que vim/ pra noite que vou/ relâmpago de Deus - sou.” Ou: “Carne
não me satisfaz./Não conheço coisas necessárias. / Tudo é casual neste charco. /
Quero ser ensinado por Deus”.
E há poemas em
que é a oposição que avulta e torna-se agônica: “O poeta vence o tempo”, “O poeta
diante de Deus”, “Os voos eram fora do tempo”, “Adeus, poesia”.
Era de esperar
que essa tensão entrasse também no reino deste mundo na forma de profecias apocalípticas.
A História nos últimos dias será julgada para dar lugar à Parusia: “Eu vos anuncio
a consolação” e “Sicut erat”: “Não precisarás de ponteiros para marcar o tempo”.
Quanto ao segundo
princípio, inspirado, por hipótese, no essencialismo de Ismael Nery (a multiplicação
das almas no corpo e a respectiva metamorfose na percepção dos seres) realiza-se
em A túnica inconsútil e no poema de Mira-Celi. A túnica de Cristo é una,
sem emendas, ao passo que as roupagens do mundo são, como o tempo, inúmeras, fragmentadas,
díspares. Não será fácil, talvez nem sequer necessário, separar abstratamente os
dois princípios assinalados, quando se lê um poema de A túnica inconsútil,
“Poema do Cristão”, que abre o livro. O descarte, que nele se opera, de toda ordem
cronológica e de toda espacialização pontual combina-se com as transformações que
sofrem os objetos da percepção. “A minha visão é universal/e tem dimensões que ninguém
sabe./ Os milênios passados e os futuros/não me aturdem, porque nasço e nascerei,/porque
sou uno com todas as criaturas,/com todos os seres, com todas as coisas/que eu decomponho
e absorvo com os sentidos,/e compreendo com a inteligência/configurada em Cristo.”
A linguagem é
assertiva, o tom é o de quem professa abertamente a sua crença e a subjetiva ao
extremo: “estou molhado de limos primitivos/e ao mesmo tempo ressoo as trombetas
finais (salto do Gênesis ao Apocalipse); opero transfusões de luz nos seres opacos”.
Há poemas construídos
em torno das mutações do cosmos: “Onde está o mar?”, “O novo poema do mar”, “A multiplicação
das criaturas”, “O monumento votivo”, já plenamente surrealista apesar do imaginário
católico tradicional que o constitui, do mesmo modo que se vale extensamente de
figuras do Velho Testamento o poema “Sabereis que corri atrás da estrela”.
O livro, em virtude
do forte veio programático que o permeia, tem altos e baixos. Talvez o ponto mais
alto tenha sido alcançado na criação de um poema de estrutura narrativa saliente,
“A ave”, que, aliás, tem merecido a preferência da maioria dos seus leitores.
Diversamente
de boa parte dos poemas longos de A túnica inconsútil, “A Ave” mantém cerrada
unidade temática não se dispersando em figuras aleatórias que, às vezes, interrompem
o fluxo semântico do texto. Aqui há uma imagem condutora, cuja presença lhe empresta
o papel de verdadeira protagonista de uma narrativa bem articulada. Passo à glosa
do texto.
Os atributos
da ave são bem delineados. Ela é estranha, desconhecida de todos, até mesmo dos
homens do mar e dos andarilhos. A sua descrição, porém, foge a qualquer denotação
realista, pois “era antropomorfa como um anjo e silenciosa como qualquer poeta”.
A partir do décimo verso, “Primeiro pairou na grande cúpula do templo”, a ave, embora
habitante de outros climas, deseja entrar em contato com o mundo dos homens. Pousa
no lugar sagrado, de onde é tangida pelo sacerdote, assim como seria enxotada do
farol, sem que ninguém quisesse alimentá-la ou sequer acolhê-la com benevolência.
O poema avança pela dramatização da recusa: a ave é demonizada pelas mães que temem
algum malefício que sobrevenha aos filhos, caso se abriguem à sombra das suas asas.
Todos os males lhe são imputados: a enchente, a seca, a morte dos cordeiros. Negam-lhe
até a água, e ela tomba em terra “como um Sansão sem vida”.
Nos versos finais,
a ave morta é descoberta por um pescador e santificada pela evocação dos benefícios
que prestara em vida: levara ovos aos anacoretas, cedera as penas para o gibão do
mendigo… Enfim, o chefe do povo reconhece-a como o rei das aves, “que desconhecemos”.
O final surpreende e comove pelo acento afetuoso das palavras ditas pelo filho mais
moço do chefe: “Dai-me as penas para eu escrever a minha vida/ tão igual à da ave
em que me vejo/ mais do que me vejo em ti, meu pai”. Consuma-se a identificação
que se segue à lembrança viva da ave morta. O jovem que assim fala era “sozinho
e manso” como a ave rediviva no seu coração.
No contexto religioso
de A túnica inconsútil, teríamos aqui uma alegoria da vida, paixão, morte
de Cristo? É uma leitura possível, senão provável. Não faltam sinais de afinidade
com a narrativa do Novo Testamento. A ave procede de uma “outra atmosfera”, de um
“outro mistério” e vem a este mundo. E “o mundo”, como está dito na abertura do
evangelho de João a respeito de Jesus, “não o conheceu”. A rejeição é violenta por
parte dos sumos sacerdotes que não toleram vê-lo pregando no templo, o expulsam
e tentam lapidá-lo (João, 10, 31). A ave tem forma humana como antropomorfa é a
divindade que, pela encarnação, “se fez homem e habitou entre nós” (João, 1, 14).
Em ambas as narrativas, há o momento em que acusam o estranho de ter poderes demoníacos.
Solitários e desamparados, ninguém lhes oferece abrigo, não tendo, como diz o Filho
do Homem , onde repousar a cabeça (Mateus, 8, 9). E à ave… “ninguém lhe ofereceu
um pedaço de pão, ou um gesto suave onde se dependurasse”. A ave morreu de sede:
uma das últimas palavras de Cristo na cruz foi “Tenho sede” (João, 19, 28). A ambos
negaram água.
Na Escritura
a ressurreição segue-se à morte. No poema, a ave morta ressurge na memória dos que
receberam suas graças. Tardiamente, o chefe a reconhece como rei das aves, mas cabe
a seu filho, “sozinho e manso”, reconhecer-se a si mesmo na ave, mais do que na
imagem do próprio pai: “Dá-me as penas para eu escrever a minha vida/ tão igual
à da ave em que me vejo/ mais do que me vejo a ti, meu pai”. Um ato de identificação
gerado pelo amor e não pelo sangue.
O risco do pensamento
alegórico é conhecido: trata-se de um procedimento comparativo que tende a fechar
o universo da significação na medida em que remete a um “outro discurso”, como ensina
a etimologia mesma da palavra. O símbolo, em compensação, embora tenda igualmente
a aproximar duas expressões diferentes mediante o escavamento de suas semelhanças,
teria a faculdade de abrir-se a várias conotações. O pensamento simbolizador admite
mais de uma significação possível, ao passo que a alegoria aperta os laços que,
por hipótese, atam a imagem a um determinado conceito. Talvez não seja forçar os
termos de uma definição dizer que a alegoria é uma variante concentrada e unidimensional
do pensamento simbólico. Essas considerações têm por objetivo sugerir que pode haver
outras interpretações de A Ave, que dariam ênfase a outros perfis do poema e a outras
afinidades latentes. A questão se torna particularmente viva quando temos pela frente
uma das obras mais enigmáticas de Jorge de Lima, Anunciação e encontro de Mira-Celi.
MIRA-CELI | A decifração
desse livro singular é tarefa difícil, mas o intérprete desnorteado consola-se de
seu embaraço ao ler o artigo que Jorge de Lima escreveu para a revista Vamos
Ler, em 16 de março de 1943, sob o título “Explicação de Mira-Celi”.
Começa dizendo: “Acho dificuldade de explicar à professora americana a vida de Mira-Celi.
A vida, a origem, os jogos, o conhecimento dela, tudo inexplicável”. O texto continua,
dando a entender que se trata de uma entidade fugidia, vinda provavelmente da eternidade,
e que aparece a seu bel-prazer, mas de preferência nos momentos de solidão e febre
do poeta. A sua esquivança deixa o leitor perplexo e o convida a percorrer os 59
poemas que compõem o livro, e que dão a impressão de serem partes de um conjunto
coeso, e não textos independentes.
No encalço de
um motivo condutor, o que sugere aparência de unidade é a recorrente pergunta sobre
a natureza mesma de Mira-Celi, questão afim à do significado que assume para o poeta.
O poema de número
2 abre-se com uma definição assertiva:
Tu és, ó Mira-Celi, a repercutida e o laitmotivo / que
aparece ao longo do meu poema.
Cabe a interrogação:
essa presença constante, que remete a um ser (um espírito, uma força natural ou
sobrenatural) viveria, de algum modo, fora ou dentro do sujeito lírico? Ambas as
condições de existência estão configuradas no poema:
Dentro: “Nele
[no meu poema] estás construída à semelhança de um imenso órgão/ movimentado pelo
meu espírito”.
Fora: “Ora és
sacerdotisa, musa, louca ou apenas ave”,
Dentro e fora:
Pouca gente encontrará
a chave deste mistério./ E os olhos que perpassarem através de tantos poemas que
não/ findam e que se transformam de momento a momento,/ não compreenderão o movimento
perpétuo/ em que nos perseguimos e nos superpomos./ Outras vezes as minhas mãos
são um disfarce de ti,/ escrevendo a tua história ou me sustentando a face.
Reversibilidade
que, dependendo do contexto, aponta o eu como condição da existência de Mira-Celi,
ou faz desta uma força transcendente que o toma de assalto e o inspira. Tangenciamos
aqui uma das matrizes românticas e simbolistas da crença na inspiração como fonte
inconsciente do poema. Se esta é uma das missões inegáveis de Mira-Celi, convém,
sempre no clima da reversibilidade, distinguir dois vetores complementares da inspiração:
Mira-Celi é inspiração
do poeta. Trata-se do procedimento sintático classificado como genitivo subjetivo:
a inspiração provém do eu lírico, sua fonte e gênese nele demoram.
Na outra ponta,
Mira-Celi é inspiração para o poeta, genitivo objetivo: o que transcende
a pessoa do artista é força que a preenche e inspira. O transcendente vai ao encontro
da imanência, o objeto norteia e guia o sujeito.
Nas palavras
de Jorge de Lima, sempre mais fecundas do que a prosa que tenta interpretá-las:
“Quase sempre te transformo para te distribuir / e quando me resta uma única migalha,
reconstruo-te como uma catedral e alimento-te como uma criancinha”.
Não creio que
haja nesta multifacetada invocação de Mira-Celi margem para reduzi-la à figura da
Musa ou a alguma outra alegoria unidimensional. Mesmo quando o poeta a chama abertamente
de “cristocêntrica”, como o faz no quinto poema, a polivalência simbólica rege o
apelo a essa figura, que reaparecerá em mais de uma passagem de Invenção de Orfeu.
De certo modo, o sentido do transcendente calado na História lembra a síntese de
Teilhard de Chardin, pela qual o cosmos se move na direção do ponto ômega da consciência
em Cristo:
Quando te aproximas do mundo, Mira-Celi, /sinto a sarça
de Deus arder em círculo, sobre mim. (poema 6)
Há quantos milênios
bate no meu barro o vosso diapasão de luz? / Adonai, vejo presenças nas ventanias.
/ são vossas mãos por acaso ou vossa túnica multiplicada,/ ou apenas Mira-Celi,
a de fogo e música, a reclusa e onipresente? (poema 50)
LIVRO DE SONETOS
| Dois caminhos concorrem para desvendar os significados expressos ao longo
do Livro dos sonetos. Pode-se começar pelo mais viável: a procura dos motivos
recorrentes que formam, às vezes, breves ciclos temáticos. Um exemplo feliz desse
procedimento é o estudo de Ana Maria Paulino (1995), que se detém no exame de núcleos semânticos, de resto
disseminados em quase todas as obras de Jorge de Lima: sono e sonho, memória da
infância, mar, morte, musa, candeeiro…
O elenco poderia
enriquecer-se com outros apoios referenciais que constelam o amplo imaginário do
poeta: a noite, as ilhas, as aves, o galo, cavalos encantados, a lâmpada marinha,
a rosa, a bem-amada, a eterna infanta… Os riscos eventuais desse caminho (o que
não impede de percorrê-lo) são os desvios de rota que nos fazem cair na dispersão
analítica ou na exegese do todo a partir do fragmento.
O outro modo
de ler o Livro de sonetos é aprofundar a análise da forma viva interna que
anima cada motivo e lhe concede o estatuto de criação poética. Trata-se aqui
do conhecimento da imagem. No seu ensaio denso e arguto, O engenheiro noturno,
Fábio de Souza Andrade elegeu essa estrada real que o conduziu a uma interpretação
original do Livro de Sonetos e Invenção de Orfeu.
Considerando
os vetores de cada um dos métodos, pode-se concluir que ambos acabam construindo
um todo indivisível. Imaginário e imagem, o universo figural do poema e o seu procedimento
estruturante remetem um ao outro na hora da interpretação do texto. A sua estreita
afinidade tem por matriz “a rainha das faculdades da alma”, expressão com que Baudelaire
define a imaginação.
Sigo de perto
algumas passagens do poeta-crítico extraídas de suas “Curiosidades estéticas”:
Misteriosa faculdade esta rainha das faculdades! Ela
afeta todas as outras; ela as excita, leva-as ao combate. […] Ela é a análise, ela
é a síntese; e no entanto homens peritos na análise e suficientemente aptos para
fazer um resumo podem ser desprovidos de imaginação. Ela é isso, mas não é completamente
isso. É a sensibilidade e contudo há pessoas muito sensíveis, demasiado sensíveis
talvez, que dela carecem. Foi a imaginação que ensinou ao homem o sentido moral
da cor, do contorno, do som e do perfume. Ela criou, no começo do mundo, a analogia
e a metáfora. Ela decompõe toda a criação, e, com os materiais acumulados e dispostos
segundo regras cuja origem só se pode encontrar no mais fundo da alma, ela cria
um mundo novo, produz a sensação do novo. Como ela criou o mundo (pode-se decerto
dizê-lo, até mesmo em um sentido religioso), é justo que ela o governe. […]
A imaginação é a rainha do verdadeiro, e o possível
é uma das províncias do verdadeiro. Ela é positivamente aparentada com o infinito.
[…]
O GOVERNO DA
IMAGINAÇÃO | Ontem à noite, depois de ter enviado as últimas páginas de minha carta, em
que eu havia escrito, mas não sem certa timidez: Como a imaginação criou o mundo,
ela o governa, eu folheava a Face nocturne de la Nature, e me deparei com
estas linhas, que cito unicamente porque são a perífrase justificativa da linha
que me inquietava: “By imagination, I do not simply mean the common notion implied
by that much abused word, which is only fancy, but the constructive imagination,
which is much higher function, and which, in as much the man is made in the likeness
of God, bears a distinct relation to the sublime power by which the Creator projects,
creates and upholds his universe.” Por imaginação eu não quero somente exprimir
a ideia comum implicada na palavra de que se faz tão grande abuso, a qual é simplesmente
fantasia, mas justamente a imaginação criadora [note-se como Baudelaire traduziu
o original inglês “constructive” AB), que é uma função muito mais elevada, e que,
na medida em que o homem é feito à semelhança de Deus, guarda uma relação distinta
com essa potência sublime pela qual o Criador concebe, cria e mantém esse universo.
Baudelaire retoma
e salienta a distinção originariamente romântica entre a imaginação reprodutiva,
colada à representação do real, e a imaginação produtiva, que o texto inglês chama
“construtiva”, e que o poeta traduz como “criadora”. Se atentarmos para a qualidade
da imagem presente no Livro dos sonetos, concluiremos, à primeira vista,
que é essa última que constitui o procedimento corrente em quase toda obra. Jorge
de Lima constrói sistematicamente o que Baudelaire considera criação de um mundo
novo, tão verdadeiro como o que nos é dado pela percepção cotidiana.
Não me deterei
aqui na rede de influências ou afinidades desse potenciamento da imagem inerente
à poesia de Jorge de Lima. Romantismo, simbolismo, expressionismo (no caso da sua
pintura), surrealismo, hermetismo e até mesmo barroco, tudo permeado de ardente
fé cristã: eis os movimentos literários e culturais que tem sido assinalados para
situar o poeta na história da cultura brasileira e, lato sensu, ocidental.
Creio que será sempre plausível descobrir no seu itinerário poético traços deste
ou daquele estilo de época. Romântica é a sua aberta preferência pela expressão
das instâncias subjetivas ou líricas da poesia. Simbolista o tom solene e a dicção
elevada dos sonetos. Surrealista a atmosfera onírica e febril, bem como o procedimento
de colagem das figuras que aparenta a poesia e as fotomontagens. Hermético é o sentido
difícil de precisar de tantas de suas aproximações verbais aparentemente aleatórias.
Enfim, barroca seria a própria proliferação de imagens, analogias e metáforas que
vai em crescendo do Livro dos sonetos até Invenção de Orfeu.
Mas à medida
que se afunila o estudo do seu imaginário e dos seus meios estilísticos, deparamos
com a voz singular de uma persona inconfundível. E esbatem-se no quadro do discurso
crítico as classificações histórico-literárias e as tentativas de fazer tipologias
psicanalíticas. Até mesmo a pertença do homem público Jorge de Lima a uma corrente
renovadora do catolicismo social deve ser relativizada enquanto fator externo gerador
de poesia. A chamada conversão de Jorge de Lima, simultânea à de Murilo Mendes,
e confessadamente inspirada na religiosidade cristã de Ismael Nery, tem raízes no
chamado “renouveau catholique”, do primeiro quartel do século XX. Em termos literários,
se expressou na poesia de Péguy, no romance de Bernanos e no teatro de Claudel.
Ideologicamente só Péguy inclinou-se para o socialismo, e certamente vem dele a
denúncia da exploração do proletário, que se encontra na poesia regional, negra
e, a espaços, na vertente religiosa do nosso poeta. No entanto, seria forçar a mão
estabelecer conexões estreitas entre a difusa mentalidade anticapitalista católica
(encontrável também em alguns círculos ultraconservadores, aos quais Jorge de Lima
nunca aderiu) e o imaginário entre místico e apocalíptico dos seus últimos livros.
A sua visão de
mundo, expressão aqui mais adequada do que a sua ideologia, tem a ver com os dogmas
centrais do catolicismo ortodoxo: o “mundo” e o “reino deste mundo” estão contaminados
pela Queda, enquanto universo da violência, do poder e da iniquidade. Desse magma
obscuro, de que o demônio é o príncipe, veio salvar-nos Cristo, Filho de Deus e
Filho do homem (ambas as denominações constam nos evangelhos), mediante a graça
concedida a todos os homens de boa vontade. Mas este mundo e o reino de Deus estão
misturados, de onde a perene contradição em que se debatem todas as gerações. No
último horizonte há a perspectiva de um juízo final, precedido de anos apocalípticos,
nos quais homem e natureza padecerão de males devastadores.
O simples enunciado
dessa revelação é o bastante para compreender o vetor suprapolítico (embora não
necessariamente apolítico) da esperança escatológica, voltada para um tempo de redenção
que rematará a história sofrida da humanidade. Nessa ordem de considerações, entende-se
também o teor visionário de tantas imagens constantes do Livro de sonetos.
Imaginação produtiva, construtiva e criadora, segundo as reflexões de Baudelaire,
na medida em que se trata de imagens concebidas pela visão de um futuro inteiramente
constituí- do pelo desejo (ou pela aversão) do poeta. O que não lhes tira a qualidade
de reais, se é verdade que toda imagem denota algum fenômeno percebido ou rememorado.
Cabe aqui uma observação sobre dois sentidos da palavra visão: faculdade
de ver os objetos do mundo exterior, sinônimo de percepção realista; e aparecimento,
epifania, que pode ocorrer com seres anômalos ou extraordinários, videntes, visionários,
santos… e alguns artistas e poetas. Essa bivalência do termo visão remete
à dualidade do termo “imagem”, que pode reportar-se, como se viu linhas acima, ora
ao objeto da percepção comum, socializada, ora a uma intencional construção-criação
da mente poética.
Entramos, nesta
altura, em pleno debate entre realistas e surrealistas. Ancorados no trabalho da
imaginação durante os sonhos e, complementarmente, no arbítrio do artista que faz
colagens de corpos, cenas e quadros com vistas à produção de novas figuras, os surrealistas
preconizam literalmente a criação de uma nova e suprarrealidade. Para tanto, faz-se
necessário que a imaginação se valha das percepções da vigília ou do devaneio para
combiná-las, desconstruí-las e reconstruí-las como um novo demiurgo que tira da
sua vontade e do inconsciente mundos paralelos ao do bom senso convencional. No
limite, os efeitos desse processo combinatório podem despertar no leitor a suspeita
de que se trata de um hermetismo programado, o que, no caso de Jorge de Lima, me
pareceria um juízo equivocado. Prefiro atribuir a gênese da escrita enigmática em
parte ao “estado hipnagógico” em que, em dois meses de febre e sedação, ele escreveu
os 78 sonetos deste Livro repleto de visões, algumas alucinadas, outras dotadas
de serena harmonia.2
No quarto soneto,
“Sei Teu grito profundo…”, a alma confessa ao Cristo crucificado (Ó Desnudado)
o seu estado de derrelição. O motivo tem raízes na literatura mística do outono
da Idade Média, de que a Imitação de Cristo é o mais perfeito modelo. A originalidade
do soneto está na profusão de imagens, verdadeiras células metafóricas. A alma sabe-se
presa à raiz divina da qual tudo recebeu: origem, patas, asas, enumeração insólita,
que aproxima a gravidade animal das patas e a graça aérea das asas, atributos contraditórios
do ser decaído e redimido. Não se detém aí a imaginação construtiva do poeta: ele
compara-se à “pobre enguia de águas rasas”, ao passo que de Cristo diz que é o “Nazareno
dos lagos e lume primo”, reunindo pecador e redentor mediante a parábola evangélica
do joio misturado ao trigo até que o Juízo Final os separe. O fecho é à primeira
vista hermético: “Ó Desnudado! é meu todo o disfarce/em revelar os tempos que persigo/-
na vazante maré com inversa proa”. A alma, diferentemente da divindade que
nada oculta, dissimula (disfarça) a sua condição de homem vivendo à mercê
da corrente do tempo e encalhado na maré baixa em barco sem norte (inversa proa).
A face temível
dos tempos derradeiros está manifesta em um soneto coesamente armado: “Se a estrela
de absinto desabar”. Todos os signos, concebidos por uma imaginação febril, prenunciam
a agonia do universo. Nenhuma glosa prosaica pode substituir a leitura integral
do soneto:
Se a estrela de absinto desabar
terei pena das águas sempre vivas
porque um torpor virá do céu ao mar
amortecer o pêndulo das vidas.
Sob o livor da morte coisas idas
já são as coisas deste mundo. No ar
as vozes claras, tristes e exauridas.
Há sombras ocultando a luz solar.
Galopes surdos, cascos como goma.
Viscosos seres, dedos de medusas
Contando silenciosos coisas nulas.
Verdoengo e mole um ser estranho soma:
Crânios como algas, vísceras confusas,
massas embranquecidas de medulas.
As sonoridades
escuras, surdas, cavas, em sintonia com o lívido torpor das imagens provêm da peculiar
condição do poeta, médico de enfermos terminais, debruçado sobre corpos na decomposição
da agonia, e crente visionário das cenas figuradas no Apocalipse de João, também
chamado Livro da Revelação.3
Não se trata,
evidentemente, de um texto isolado. O mesmo pressentimento de uma hora fatal, convertida
em tempo de agora pelo poder da visão, aproxima quatro sonetos seguidos.
“O horizonte
era estreito”, que termina assim: “O oceano apodreceu no próprio leito,/ e uma lava
comum, estranha lava/de loucura inundou bestas e gênios”; o soneto “O mundo estanque,
o céu alucinado,/o olhar vítreo de Deus furando o tempo”; o soneto “Tudo estancara.
Eu mesmo. Do alto vi-me”; e “Sentado em pirâmides vulgares”, cujo terceto final
trai o desejo de ver a catástrofe universal: “Quero assistir ao trágico desfecho/desse
último espetáculo encantado /que irá encher espaço, terra e mares”.
A concorrência
de visão e transformação move-se no limite do que seria uma poética surrealista
difusa no Livro de sonetos. É o que sugere o soneto “A torre de marfim, a
torre alada” na procissão de imagens em perpétuo movimento:
A torre de marfim, a torre alada,
esguia e cinza sob o céu cinzento,
corredores de bruma congelada,
galerias de sombras e lamentos.
A torre de marfim fez-se esqueleto
E o esqueleto desfez-se num momento,
Ó! Não julgueis as coisas pelo aspecto,
que as coisas mudam como muda o vento.
E com o vento revive o que era inerme.
Os peixes também podem criar asas,
as asas brancas podem gerar vermes.
Olhei a torre de marfim exangue
e vi a torre transformar-se em brasa
e a brasa rubra transformar-se em sangue.
O anúncio do
desfecho de toda a história não é única missão do poeta visionário. Há também a
hora de contemplar a luta que se trava no meio do caminho. O soneto “Há cavalos
noturnos, mel e fel” sobressai pela densa concisão com que trabalha o tema do embate
das forças do bem e do mal, unindo a imagem sobrenatural do Arcanjo Miguel com o
ícone do grande visionário da tradição literária, o Quixote de Miguel de Cervantes.
Há cavalos noturnos: mel e fel.
O cavalo que vai com Satanás
e o cavalo que vai com São Miguel.
O cavalo do santo vai atrás,
e vai na frente a azêmola cruel.
Mas vão os dois e cada qual com um ás.
No cavalo da frente o atro anjo infiel
com façanhas de guerra se compraz.
São Miguel de la Mancha, D. Quixote,
Garcia Lorca viu-te, vejo-te eu
na luta igual com o ás da negação,
arremeter com lança em riste e archote.
E ao fim de tudo há um anjo que venceu:
Tu, D. Quixote da Anunciação.
Algumas observações
tópicas:
“Há cavalos noturnos:
mel e fel”. Mel e fel - a suprema doçura e o amargor extremo, contrários
e contíguos na vida e no verso. Bem e mal cavalgam na noite, pois os cavalos são
noturnos e escura é a travessia em que transcorre a história dos homens.
Adiante, com
a sobriedade da denotação clássica, vêm os nomes dos cavaleiros. São dois anjos:
aquele a quem foi dada a primazia no governo do mundo, Lúcifer, degradado em Satanás;
e aquele que luta contra os poderes das trevas, audaz, mas sem violência, São Miguel.
“O cavalo do
santo vai atrás”. Indício da arrogância e açodamento do Mal ou sinal da primazia
do tentador durante o percurso que nos foi traçado entre o nascer e o morrer? Haverá
alguma ênfase intencional neste enunciado da posição dos ginetes. A rigor, não seria
logicamente necessário dizer que vai na frente a azêmola cruel. Mas quanto se perderia
se fosse omitida a palavra árabe, rara e expressiva, que marcou, desde a Idade Média,
a inferioridade da raça, sendo azêmola sinônimo de besta, animal rude e tosco, se
comparado à fiel nobreza do corcel!
“Mas vão os dois
e cada qual com um ás”. A disparidade das montarias é contrabalançada pelo valor
atribuído aos cavaleiros. A conjunção “mas” adverte que cada um ostenta a mesma
qualidade mestra de ás. A diferença, porém, reponta, e é tudo. O cavaleiro da frente,
com ser anjo, é não só atro como infiel, enquanto transgressor da lei divina e causa
da queda das primeiras criaturas.
“Infiel” traz
em si os fonemas de fel. A rima final do segundo quarteto (ás-compraz)
é um achado semântico-sonoro, denunciando o ânimo belicoso do anjo do Mal que com
façanhas de guerra se compraz.
Os tercetos dizem,
dentro de um período fortemente articulado, o essencial do combate. O arcanjo Miguel
desce da transcendência para entrar na alma do criador do mais puro dos cavaleiros.
É São Miguel de la Mancha (assim nomeado, em castelhano), incorporado, por meio
de um aposto, à sua inseparável criatura, Dom Quixote.
O poeta irmana-se
com outro grande poeta da Espanha, Garcia Lorca, na sua visão do arcanjo figurada
no Romancero Gitano (“Garcia Lorca viu-te, vejo-te eu”). Um deslocamento
temporal avizinha a luta de São Miguel com os feitos do Quixote, “que arremete com
lança em riste e archote” contra o “ás da negação”.
Na hora da vitória
final, a identificação é explícita: “E ao fim de tudo há um anjo que venceu: Tu,
D. Quixote da Anunciação”.
Por um equívoco
feliz, ou escolha voluntária, Jorge de Lima atribui ao Arcanjo Miguel a missão de
anunciar à Virgem Maria que ela dará a luz ao Messias, o que, no texto evangélico,
é confiado ao Arcanjo Gabriel (Lucas, 1, 26). De todo modo, o que importa é o gesto
poético de fundir a imagem do anjo lutador com a do Cavaleiro da Mancha, deixando
implícito que se trata de combatentes fiéis, refratários à violência. De um lado,
a serena nobreza de Miguel que, segundo a Epístola de São Judas (1, 9), vence o
Maligno, mas abstém-se de injuriá-lo e infamá-lo (“finge una cólera dulce”, diz
Lorca ao descobri-lo em um altar cigano); de outro lado, a alma alevantada do Quixote,
incapaz do mínimo ato de egoísmo ou vilania, percorrendo o mundo para restaurar
a justiça e o respeito violados por inimigos ignóbeis.
JUNTO ÀS FONTES DA LÍRICA: A INFÂNCIA, A AMADA | Não só de visões
transcendentes e do embate entre o Bem e o Mal extrai Jorge de Lima a matéria-prima
do Livro de sonetos. Sendo um poeta eminentemente lírico, a sua imaginação
também desce ao próprio passado e, como nas primeiras obras afetadas pelo modernismo
regionalista, traz da infância motivos condutores de mais de um poema.
Embora o Livro
de Sonetos não se disponha em ordem narrativa ou temática, não deixa de ser
digno de nota o fato de os sonetos da infância virem só no último terço da série.
Mas, quando chegam, é como se emergissem, um após outro, jorrando do poço da memória
prestes a transbordar. As figuras evocadas passam a ter nome e história e o desejo
de fixá-las modula-se ora em forma interrogativa (“Onde está o Marão?”),
ora em torneios puramente narrativos: “/Eu fui de lá. Minha avó era fiandeira. Ouvi
romances./ Chorei Páscoas, nadei por vários poços”; ora, enfim, com entoação exclamativa:
“Ó meninos, ó noites, ó sobrados!” Este último verso repete o final de outro soneto
evocativo:
Nas noites enluaradas cabeleiras
das moças debruçadas, dos sobrados
desciam como gatas borralheiras
por sobre os nossos lábios descuidados.
Talvez seja possível
estender à criação poética o que a observação empírica nos sugere em termos da insistente
repetição com que figuras e cenas da infância acorrem à mente do adulto. No imaginário
evocativo da meninice Jorge de Lima alcança um alto nível de redundância. Palavras,
frases, às vezes períodos inteiros assinalam a presença obsessiva de seres que povoaram
os seus primeiros anos em Alagoas. De tudo faz o poeta matéria de poesia: noites
enluaradas, meninas e meninos no sobrado, o avô morto, a avó fiandeira, a draga
na maré baixa (“Lembras-te, meu irmão, da draga morta?”), o Marão, onde o
menino mourejou, a esfera armilar e o candeeiro antigo, os galos e o seu canto.
Mas, de repente, a névoa da memória…
Ao lado da nítida
rememoração surge o encontro com o tempo roaz, irreversível. É o risco do esquecimento,
a queda no vazio que assombra, quando não apaga cada figura e cada cena vivida nos
verdes anos. Neste soneto o desaparecimento do passado atinge não só a história
familiar, mas também a dos nautas e descobridores lusitanos, de onde o intertexto
camoniano, que voltará em mais de um passo da Invenção de Orfeu:
Virado para o
Marão o avô morrido/ e o pai deste Nordeste sepultado./ Rio Lima e Mundaú. O filho
nado/ em limo e sal do mar sobrevivido.// Nem da roda de fiar da avó, o ouvido/
conserva do som. Silêncio. O céu calado./Descobridor do oceano submergido,/ navegante
do rio emparedado.// Sôbolos rios e sôbolos oceanos,/ só uma sombra de nauta fragmentada/
no roteiro dos mares lusitanos.//O restante é oceania naufragada:/cavernas de nau,
âncoras e gáveas./ Dessa vasa salobra a morte lave-as.
Enfim, o melos,
a música da lírica amorosa, que nos sonetos é pouca, mas intensa, pois testemunha
o desejo sublimado de tornar presente a amada para sempre ausente:
E esta angústia de te recompor, traço
a traço, tua boca dolorosa
(fonte que se exauriu), teu rosto escasso,
ó musa angelical, airosa rosa!
Quando li, pela
primeira vez, os sonetos da amada ausente, figurada na imagem enigmática da infanta
defunta, veio-me à memória a poesia de amor, igualmente sublimado, de Alphonsus
de Guimaraens. O sentimento de fundo é o mesmo, semelhante é a forma clássica dos
decassílabos, idêntico o procedimento que evita a descrição precisa preferindo a
“melodiosa dança” das aparências fugidias, inapreensíveis. Refiro-me à coletânea
de 77 sonetos incluídos na obra póstuma do poeta de Mariana, Pastoral aos crentes
do amor e da morte.
Mas é a diferença
que contribui para compreender melhor o substrato lírico do Livro de Jorge
de Lima. Alphonsus compôs um cancioneiro fiel à tradição petrarquista e camoniana.
A crítica biográfica reconheceu de pronto na figura de Constança, morta em pleno
noivado, a inspiração e o motivo recorrente da melhor lírica do poeta. Mas o eterno
feminino dos sonetos de Jorge de Lima não se submete a nenhuma determinação realista
sendo infenso a descrições psicológicas. Musa, Mira-Celi ou infanta, é a indeterminação
que rege a sua fisionomia. Essa condição favorece uma escrita antes surrealista
do que romântica ou simbolista. E dá ao poeta a liberdade de trabalhar a móvel imagem
da amada valendo-se do seu recurso congenial de metamorfose do objeto trazido ao
círculo do sujeito.
É surpreendente
a riqueza da imaginação metafórica que nomeia os perfis da amada: “lâmpada marinha,
oculta rosa, airosa rosa, viva e impossível, suave névoa erradia, desmanchada rosa
irreal, eterna bem-amada, lâmpada única, ogiva a orar na sombra desvairada, lírio
ardido, senda de elevação, vida minha, estrela do viajor, túnica sonora, laguna
quieta sob luas mansas, ensimesmada musa conjurada, sonâmbula, borralheira transfigurada
em bela adormecida, sombra escrava, sombra irmã, sortilégio, escada submarina, andarilha,
Virgem ao mesmo tempo avó, mãe e filha, salamandra de asas, Ofélia, ubíqua e intemporal
(note-se a recorrente suspensão das marcas espaciais e temporais), estátua cega,
sacerdotisa e musa em desvario, poema sempre começado…”
Só a atmosfera
onírica que envolve e penetra essas e outras tantas expressões, situando-as no seu
contexto, pode dar a medida do encanto que suscita a leitura corrente dos sonetos.
E se os versos forem pronunciados em voz alta, à guisa de interpretação, esses mesmos
epítetos se disporão no ritmo e na entoação que os torna singularmente expressivos.
Jorge de Lima é um dos poetas mais musicais de toda a literatura em língua portuguesa.
O soneto com que termino este esquema de leitura dá testemunho de uma poesia em
perpétuo movimento:
Essa pavana é para uma defunta
infanta, bem-amada, ungida e santa,
e que foi encontrada num profundo
sepulcro recoberto pelos ramos
de salgueiros silvestres para nunca
ser retirada desse leito estranho
em que repousa ouvindo essa pavana
recomeçada sempre sem descanso,
sem consolo, através dos desenganos,
dos reveses e obstáculos da vida,
das ventanias que se insurgem contra
a chama inapagada, a eterna chama
que anima esta defunta infanta ungida
e bem-amada e para sempre santa.
notas
1 O leitor encontrará textos de memória e interpretação
da pessoa e da arte de Ismael Nery na obra coletiva, Ismael Nery, 50 anos depois,
editada pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, em 1984.
Agradeço a Murilo Marcondes de Moura a gentileza da informação e do acesso à obra.
3 Recomendo a leitura da acurada análise desse soneto
em O engenheiro noturno, de Fábio de Souza Andrade (1997). Outro
exemplo de leitura em profundidade encontra-se no ensaio de Mirella Márcia Longo
(2015).
ALFREDO BOSI (Brasil, 1936) é titular de Literatura Brasileira na
Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras. Publicou, entre
outras obras, História concisa da literatura brasileira; O ser e o tempo
da poesia; Céu, inferno; Dialética da colonização; Machado
de Assis: o enigma do olhar; Literatura e resistência; Brás Cubas
em três versões; Ideologia e contraideologia; e Entre a literatura
e a história. Página ilustrada com obras de Juliana Hoofmann (Brasil, 1965),
artista convidada desta edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 119 | Setembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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