quarta-feira, 15 de maio de 2019

ZUCA SARDAN & FLORIANO MARTINS | A calota polar do Surrealismo


FM | A grande revolução é o livre arbítrio, essa fonte perene de ilusão. O ser verdadeiramente subversivo é aquele que se recusa incondicionalmente a participar de quaisquer tertúlias e de seguir suas leis. As religiões, resguardadas pelo manto da Política – essa Ciência eternamente à deriva –, levaram o homem a trajar uma farda, a seguir uma cartilha. Lembro aqui uma frase de René Magritte, ao dizer que a liberdade é a possibilidade de ser e não a obrigação de ser. Como entendes que o Surrealismo tenha reagido a essa imagem?

SZ | O livre arbítrio é privilégio do Tirano. Quanto mais poderosos seus Marechais, mais livre é o arbítrio do Tirano, que vai tomando matizes místicas, valorizadas pelo Sacerdote, assessorado pelo Sacristão, para o celestial deleite das Beatas; e as majestosas Missas Solenes, ao som de órgão e coros de vozes angelicais, com toda a corte presente. Quanto maior o poder do Tirano, maiores as procissões pirambeira acima, com os burricos arrastando pianos, e beatas despencando no precipício… Pro Tirano Azteka, já sacrificavam Beatas e Carolas durante a Missa, sendo estripados na Sacristia, por hábeis cirurgiões, em cenas gravadas em baixos relevos da melhor qualidade estética. Na Grande Guerra de 14, os estripamentos eram feitos ao ar livre, em trincheiras arejadas, com granadas e gazes tóxicos, para que o martírio dos soldados valorizasse o Patriotismo e o Espírito de Sacrifício de toda uma geração espetada nas baionetas… No final da Grande
Guerra, caíram os reis de cambulhada, só restando os Reis: de Espadas, de Copas, de Bastões, de Ouros, e… da Inglaterra. A revolta contra o massacre gerou o Dadaísmo, que negava todos os valores num niilismo total, e o Surrealismo que queria criar novos valores, de Vida, Amor e Liberdade. Mas os missais e cartilhas ideológicas, novidade trazida pelo Bolchevismo, seguiram fanatizando as multidões, ao paroxismo de chegarmos a um Tirano fanático possesso na Alemanha, que gritava, rolava e babava, para delírio de uma população fanatizada, e nova Guerra Mundial explodiu, com milhões de vítimas… A liberdade de ser é relativamente possível… mas da obrigação de ser já é mais difícil se livrar, pois a sociedade, sobretudo nas ditaduras, quer operários para sua poderosa indústria e robustas camponesas para sua agricultura.

FM | Evidente que aí está o caldinho de cultura que vai destronar o humanismo recém-descoberto, o paredão quase de todo invisível, ou visível apenas por um lado, que separa a essência em duas circunstâncias. Quanto mais trotam os pangarés da ilusão o homem se declara inimigo de si mesmo, desejoso de aniquilar a outra metade que não comunga com seu credo de reprimendas. Também o Surrealismo imprimiu uma cartilha, adotou os mesmos vícios de qualquer corte, e tratou de empalar os discordantes. De positivo, no entanto, havia a intenção de acabar com a periodização dos cultos escolásticos. Intenção estampada em voz altíssima, mas que não impediu que na segunda metade do século passado voltassem a surgir pequenos focos de ismos anacrônicos. Mesmo no interior do movimento, talvez pela crença de que todo acaso resulta em arte, foram surgindo imagens – plásticas e poéticas – diluídas, uma espécie de contrabando de ganhos estéticos de seus artistas maiores. A não-escola ocasionalmente gestou uma fabriqueta de moldes nas sombras. Novo sumo relevante daí se extrai, o de que não é devido separar as luzes da harmonia da criação artística. Uma vez aberta a porteira, por ali passam as melhores e piores intenções, assim como todas as formas de acertos e equívocos.

ZS | É verdade, também o Surrealismo, na fase heroica, publicou suas cartilhas, na década dos vinte, quando a Revolução bolchevique ainda guardava uma áurea de revolução dos trabalhadores e campônios que instaurariam as bases de uma nova sociedade, para libertar a Humanidade das garras da Plutocracia Capitalista e estabelecer o fim do Sistema de Classes. Para tanto, inicialmente, tendo de consolidar seu poder frente a uma Europa agressiva, que os queria eliminar, os Comunistas necessitavam de um Governo autoritário. Com o autoritarismo, vieram as autocríticas dos
acusados de alegadas faltas ideológicas, os expurgos… Todo esse sistema frenético usado na União Soviética, foi adotado pelos Surrealistas, que fizeram seus julgamentos e expurgos, de que sofreram, entre outros, Dalí, e De Chirico… Não houve muito tempo para André Breton e seus próceres do comando do Movimento se indagarem se estariam agindo corretamente, porque logo veio a Segunda Grande Guerra, que levou tudo o mais de roldão. Finda a Guerra, palco das matanças e barbaridades inenarráveis, e dividido o Mundo em dois Blocos irreconciliáveis, as antigas ideologias e movimentos artísticos perderam sua atualidade. Agora, então, aquele sistema de Comitê-Central, acusações e expurgos, não fazia mais sentido. Talvez por isso, um ano após o falecimento de Breton, a Chefia de então, do Movimento em Paris, resolveu dar o Surrealismo como Movimento que passava para a História e se extinguia. O que talvez tenha sido o melhor que poderia acontecer, pois o Surrealismo ficou assim livre de suas cartilhas de mandamentos e dogmas dos Pais Fundadores, que haviam, justamente, passado pra História.

FM | O problema das cartilhas é que sua intromissão se dá também no plano da criação, pelo estabelecimento de regras – pendam para o conteúdo ou para a forma – que brochuras inaceitáveis. Em 1935 dizia Breton: Nós nos levantamos em arte contra toda tendência regressiva que tenda a opor o conteúdo à forma para sacrificar esta àquele. A passagem dos poetas autênticos de hoje para a poesia de propaganda, muito exterior, como tem sido definida, significa a negação, para eles, das determinações históricas da própria poesia. O que não se percebia então é que logo seria dado um passo no sentido inverso, o de retornar ao Parnaso em que o conteúdo era submisso à forma. A França foi um desses países que sofreu muito com a extinção da força criativa do Surrealismo. Naqueles ambientes em que composição e discurso atuavam de modo alquímico – podemos pensar no Japão e em grande parte do continente americano – surge um Surrealismo renovado, que, mesmo no caso do surgimento de novos grupos surrealistas não perdem sua potência criativa que não comprometa o plano individual. Evidente que entraram em campo alguns elementos que os surrealistas da primeira hora sequer poderiam imaginar, no que diz respeito à produção e consumo de obras de arte. Breton chega a dizer, em 1952, que era inaceitável a humilhação da arte frente à ciência, mas não era este propriamente o caso, a humilhação era determinada pelo próprio homem e a usura que lhe era lastimavelmente peculiar.

ZS | A frase de Breton, de 1935, foi corajosa e lapidar!… face à poesia de propaganda  ideológica que então aumentava, estimulada pelo antagonismo crescente entre fascismo e comunismo. Nos dias de hoje o perigo persiste,  face à arte de propaganda… comercializada, que organiza os valores da moda. Inicialmente eram bons artistas, que criavam obra conceitual, tal Duchamp, Schwitters, Beuyus, mas o sucesso público desses poucos, não tanto pela qualidade, mas sim pela singularidade pessoal, valorizada pela imprensa, serviu de plataforma de lançamento da arte neo-dada comercial, um saco de gatos onde se enfiam artistas diversos, pouco importa eventuais qualidades, produtos de galeristas-empresários, com grande senso de mercado, mas nenhum preparo cultural.

FM | O cenário foi se degradando de modo a perder-se Ariadne e não saber mais como regressar ao lar. É uma árdua tarefa hoje imaginar como dissolver o mercadão e seus efeitos corrosivos sobre a cultura. A começar pela confusão intencional entre arte e entretenimento, piorada com a entrada em campo de um receituário moralista o mais fraudulento possível. Evidente que os tempos mudam, os conceitos se modificam, as tolices proliferam e o mundo persiste em um encadeamento de baixos costumes. Impossível dizer se as escolhas foram desastrosas, se os mitos foram insuficientes. A publicidade coseu o espírito humano dentro da boca de um sapo de louça e o reproduziu como a peça mais kitsch de seu bestiário. O próprio consumidor se tornou um objeto de consumo, o mais abjeto possível.

ZS | Os Consumidores entrarão proximamente entre as mais pífias mercadorias, apresentados somente pra valorizar a qualidade dos produtos de luxo da loja… E sempre jogados na oferta de 50% de abatimento. Madame Xaxocavel manda chamuscá-los, para serem mostrados como salvos do incêndio. Saturno, quando a barba branqueja demais, manda pintá-las dum roxo espalhafatoso, e a nova geração aprova entusiasta e pinta de ciclame a melena, e também os velhos que não querem perder a liderança, são os primeiros a pintar dum belo solferino as venerandas…

FM | No saldão de ofertas nada restou do Amor, da Poesia, da Liberdade. Posso continuar e retomar algumas discussões sobre Surrealismo, mas indago – sem que isto signifique cair nas mãos da dona preguiça – se este ensaio-diálogo não pode ser finalizado aqui mesmo ou avançamos um pouco mais…

ZS | Mestre, o texto já está de bom tamanho, já demos boas tascadas, a continuar o leão vira tapete, a plateia s’esquiva, e derrete-se a Calota Polar. Já destroçamos o Passado (Breton escapou por pouco), o Presente foi massacrado (os Neo-Dadas vão aprontar a manifa de protestos), e o Futuro procura s’escapar… Espichemos só um poucochito para dares o Gran Finale. Já temos vários leitores-consumidores escorchados, o camburão vai chegar.  Melhor com tua próxima tirada tu aprontares o Gran Finale. Lembre-se dos filmes da época de ouro de Hollywwood: mortes, estupros, empalações, mas quando tudo parecia perdido, vinha o Happy End

FM | Não me confesso muito afeito ao Happy End… Até acho curioso que a teia cinematográfica tanto se apresse a dizer que suas obrinhas são baseadas em fatos reais e não perde a noz dourada do Happy End. O Surrealismo é um desses momentos raros na história da humanidade. Sua persistência é benfazeja, porém quando nos for possível o distanciamento crítico talvez concluamos por uma inabalável situação-limite. Desde o princípio o movimento foi prendado no modelo seita mal disfarçada, e gerou um sem-número de malucos seguidores de uma ortodoxia inconsequente. Claro, mesmo diante de seus equívocos, foi o movimento artístico de maior influência em todo o mundo – para o bem e para o mal – e ainda hoje se multiplica como um verdadeiro disparo casual na rua. Como ficamos? Contando os corpos e semeando as melhores apólices. Matutando sobre o entendimento de Luis Buñuel de que o surrealismo triunfou no acessório e fracassou no essencial; sobre as impossibilidades de cumprir, ao dizer de Jacques Sénelier, seu primeiro desejo, o de desmoralizar; investigando sempre, como queria Artaud – para quem o surrealismo não foi mais do que uma espécie de magia – de que modo se conseguiu introduzir profundas transformações na escala das aparências, no valor de significado e no simbolismo do criado… Enfim, o substantivo se tornou múltiplo, ao mesmo tempo em que o adjetivo foi virulentamente desqualificado. E aqui estamos. Por sorte, sem Happy End. Como a própria vida, incessante.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Jan Dočekal (República Checa, 1943)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 134 | Maio de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



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