sexta-feira, 14 de junho de 2019

ANDRÉ BRETON 1932 O REVÓLVER EM PELO CANO


A MORTE ROSA

Os polvos alados guiarão uma derradeira vez o barco cujas velas são feitas desse único dia hora por hora
Esta é a velada única após a qual tu sentirás subir em teus cabelos o sol branco e preto
Os calabouços ressumarão um licor mais forte que a morte
Quando a contemplamos do alto de um precipício
Os cometas se apoiarão ternamente nas florestas antes de as fulminar
E tudo passará no amor indivisível
Se jamais o motivo dos rios desaparece
Antes que se faça completamente noite tu observarás
A grande pausa de prata
Sobre um pessegueiro em flor aparecerão as mãos
Que escreveram esses versos e que serão os fusos de prata
Elas também e também as andorinhas de prata sobre o ofício da chuva
Tu verás o horizonte se entreabrir e aí se terá acabado tudo a golpe de beijo do espaço
Mas o medo já não existirá mais e os azulejos do céu e do mar
Voarão ao vento mais forte que nós
Que farei eu do estremecimento de tua voz
Rato valsista em torno do único lustre que não desabará
Chiado do tempo
Eu montarei os corações dos homens
Para uma suprema lapidação
Minha fome rodopiará como um diamante bem talhado
Ela trançará os cabelos de seu filho o fogo
Silêncio e vida
Mas os nomes dos amantes serão esquecidos
Como a adônica gota de sangue
Na luz louca
Amanhã tu mentirás à tua própria juventude
À tua grande juventude vaga-lume
Os ecos moldarão sozinhos todos esses lugares que se foram
E na infinita vegetação transparente
Tu passearás com a velocidade
Que comanda as feras das florestas
Meu destroço talvez tu o agarrarás
Sem lhe ver como quem se joga sobre uma arma flutuante
É que eu pertencerei ao vazio semelhante aos degraus
De uma escada cujo movimento se chama bem penoso
A ti os perfumes desde então os perfumes interditos
O angélico
Sob a espuma oca e sob tuas passadas não mais que passadas
Meus sonhos serão formais e vãos como o ruído das pálpebras d’água à sombra
Eu me introduzirei nos teus para lá sondar a profundidade de tuas lágrimas
Meus apelos te deixarão docemente incerta
E no trem feito de tartarugas de gelo
Tu não terás que disparar o sinal de alarme
Tu chegarás sozinha sobre esta praia perdida
Onde uma estrela descerá sobre tuas bagagens de areia


NÃO-LUGAR

Arte dos dias arte das noites
A balança das feridas que se chama Perdoa
Balança rubra e sensível ao peso de um voo de pássaro
Quando as amazonas de colo de neve as mão vazias
Empurram seus carros de vapor sobre os prados
Essa balança sem cessar enlouquecida eu a vejo
Eu vejo o íbis de belas maneiras
Que regressa do lago atado em meu coração
As rodas do sonho encantam os esplêndidos sulcos
Que se elevam bem alto sobre as conchas de seus vestidos
E o aturdimento salta daqui dali sobre o mar
Parte minha cara aurora não esqueças nada da minha vida
Toma estas rosas que trepam no poço dos espelhos
Toma os batimentos de todos os cílios
Toma até os fios que sustêm os passos das dançarinas de corda    e das gotas d’água
Arte dos dias arte das noites
Eu estou à janela bem longe numa cidade plena d’espanto
Lá fora os homens com cartola de molas se seguem a intervalos regulares
Semelhantes às chuvas que eu amava
Quando fazia tempo bom
“Com a raiva de Deus” é o nome de um cabaré onde entrei ontem
Está escrito sobre a fachada branca em letras mais pálidas
Mas as mulheres-marinhas que deslizam por trás dos vidros
São demasiado contentes para serem tementes
Aqui jamais o corpo sempre o assassinato sem provas
Jamais o céu sempre o silêncio
Jamais a liberdade senão pela liberdade


NA ROTA QUE SOBE E DESCE

Diga-me aonde chegará a flama
Existe uma sinalização das flamas
A qual pena a chifrar o papel
Ela se esconde nas flores e nada a alimenta
Mas se vê nos olhos e não se sabe mais o que se vê nos olhos
Porque eles vos veem
Uma estátua está ajoelhada no mar mas
Não é mais o mar
Os faróis se erguem neste momento na cidade
Eles barram a rota aos blocos maravilhosos de gelo e de carne
Que precipitam na arena seus inumeráveis carros
A poeira adormece as mulheres em roupas de rainhas
E a flama corre sempre
É uma fresa de renda ao colo de um jovem senhor
É o imperceptível soar de um sino de palha na casa de um poeta ou de qualquer outro vale nada
É o hemisfério boreal inteiro
Com suas lâmpadas suspensas seus pêndulos que se posam
É o que sobe do precipício à hora do encontro
Os corações são os remos ligeiros deste oceano perdido
Enquanto os sinais contornam à beira das vias com um barulho seco
Que semelha esse estrépito especial sob os passos dos padres
Não há mais atriz em turnê nos vagões brancos e ouro
Que a cabeça à portinhola justamente dos pensamentos d’água muito grandes cobrindo os charcos
Não se espere a isso que a flama lhe confira o olvido definitivo de seu papel
Os rótulos esfacelados das garrafas verdes falam ainda de castelos
Mas esses castelos estão desertos à exceção de uma cabeleira vívida
Chateau-Ausone
E essa cabeleira que não se atrasa pronta para se desfazer
Flutua sobre o ar medusa É a flama
Ela volteia agora ao redor de uma cruz
Desconfiai vós ela profanaria vossa tumba
Sob a terra a medusa ainda está em sua casa
E a flama com asas de pomba não escolta senão os viajantes em perigo
Ela falseia companhia aos amantes assim que eles são dois a serem sós
Onde vá ela eu vejo se partirem os espelhos de Veneza à aproximação de Veneza
Eu vejo se abrir as janelas separadas de toda espécie de parede sobre um canteiro
Aqui os obreiros nus fazem o bronze mais claro
Esses são uns tiranos demasiado doces para que contra eles se sublevem as pedras
Eles têm os braceletes nos pés que são feitos dessas pedras
Os perfumes gravitam em torno deles estrela da mirra terra do feno
Eles conhecem os países chuvosos desvelados pelas pérolas
Um colar de pérolas faz um momento parecer cinza a flama
Mas de súbito uma coroa de flamas se incorpora as pérolas imortais
Ao nascimento de um bosque que deve salvar da destruição as solitárias essências das plantas
Tomam parte um homem e tudo no alto de um corrimão de escada de samambaia
Várias mulheres agrupadas sobre os últimos degraus
Elas abrem e fecham os olhos como as bonecas
O homem que eu não sou mais chicoteia então a última besta branca
Quem se evanesce na bruma da manhã
Sua vontade será feita
No primeiro berço de folhagem a flama tomba como um chocalho
Sob seus olhos jogamos a rede das raízes
Uma coberta de prata sobre uma teia de aranha
Mas a flama não saberá retomar o fôlego
Malograda a flama que retome o fôlego
Eu penso em uma flama bárbara
Como aquela que passando nesse restaurante de noite queima nos dedos das mulheres os leques
Como aquela que anda a toda hora em meu traçado
E reluz ao cair das folhas em cada folha que cai
Flama d’água guia-me até o mar de fogo


ALOTROPIA

A campainha elétrica retine de novo
Quem entra
Sou eu entrega-te se tu queres que eu te entregue
Há mesmo raios de lua que eu posso desdobrar
Tu mudaste
Aqui está a prova de que tu mudaste
Os dons que se faz aos mortos em seu caixão
Os dons que se faz aos recém-nascidos em seu berço
São quase os mesmos a seta indica a direção de onde tu vens
Aonde tu vais
Teu coração está no caminho desta seta
Teus olhos que vão estar de novo tão claros se preenchem com a neblina das coisas
Tuas mãos ao longo de uma via procuram a tatear a agulha escura para parar a catástrofe
Tu vês as mulheres que tu amaste
Sem que elas te vissem tu as vês sem elas te vissem
Como tu as amaste sem que elas te vissem
Os lobos negros passam às suas costas tu
Quem és tu
Sombra de malfeitor sobre os grandes muros
Sombra de sinalizador que vai mais longe que o sinal
Eu sou o principal culpado
Ao mesmo tempo em que o principal inocente
Minha cabeça rola lá de cima onde jamais se levarão meus passos
Qual maquiagem
Ninguém me reconhecerá
Mais tarde entre as pedras do desmoronamento
A janela está escancarada
Sobre este desmoronamento magnífico
Inclina-te
Inclina-te para mudar de novo
És mesmo tu quem te inclinas e quem mudas
Esta fotografia que tu esqueceste de fazer mudar
Como a ti


O VERBO SER

Eu conheço o desespero em suas grandes linhas. O desespero não tem asas, ele não se senta necessariamente a uma mesa posta sobre um terraço, à noite, à beira-mar. É o desespero e não o retorno de uma quantidade de pequenos feitos como os grãos que deixam ao cair da noite um sulco por outro. Não é o musgo sobre uma pedra ou o copo para beber. É um barco crivado de neve, se queres, como os pássaros que caem e seu sangue não tem a menor espessura. Eu conheço o desespero em suas grandes linhas. Uma forma muito pequena, delimitada por uma joia de cabelo. Esse é o desespero. Um colar de pérolas para o qual não se pode encontrar um fecho e cuja existência nem sequer se prende a um fio, eis aí o desespero. O resto, nós nem falamos. Nós não havemos de terminar de nos desesperar, se começamos. A mim, desespera-me o abajur por volta das quatro horas, desespera-me o ventilador ao redor da meia-noite, desespera-me o cigarro dos condenados. Eu conheço o desespero em suas grandes linhas. O desespero não tem coração, a mão resta sempre ao desespero falta de alento, ao desespero de que os espelhos não nos digam jamais se está morta. Eu vivo desse desespero que me encanta. Eu amo essa mosca azul que voa no céu à hora em que as estrelas cantam. Eu conheço em suas grandes linhas o desespero com longos estupores delgados, o desespero do orgulho, o desespero da cólera. Eu me levanto a cada dia como todo mundo e distendo os braços sobre um papel de flores, não me lembro de nada, e é sempre com desespero que descubro as belas árvores desenraizadas da noite. O ar da sala é belo como as baquetas de tambor. É feito um tempo de tempos. Eu conheço o desespero em suas grandes linhas. É como o vento da cortina que me arqueia sua vara. Temos ideia dum desespero semelhante? No fogo! Ah! eles vão ainda vir… Ao socorro! Ei-los aí caindo na escada… E os anúncios de jornal, e os anúncios luminosos ao longo do canal. Pilha de areia, espécie de pilha de areia! Em suas grandes linhas o desespero não tem importância. É um mutirão de árvores que vão ainda fazer uma floresta, é um mutirão de estrelas que vão ainda fazer um dia a menos, é um mutirão de dias a menos que vai ainda fazer minha vida.


A FLORESTA NO MACHADO

Acabamos de morrer, mas estou vivo e no entanto não tenho alma. Não tenho mais que um corpo transparente no interior do qual as pombas transparentes se lançam sobre um punhal transparente segurado por uma mão transparente. Eu vejo o esforço em toda a sua beleza, o esforço real que não se cifra por nada, pouco antes da aparição da última estrela. O corpo que eu habito como uma cabana e a reboque detesta a alma que tive e que sobrenada ao longe. Esta é a hora de dar fim a essa famosa dualidade que me tenho tanto repreendido. Acabou o tempo em que os olhos sem luz e sem anéis extraíam o turvo aos charcos da cor. Não há mais nem vermelho nem azul. O vermelho-azul unânime se apaga à sua volta como pintarroxo nas sebes da desatenção. Acabamos de morrer — nem tu nem eu nem eles exatamente, mas todos nós, exceto eu, que sobrevivo de diversas maneiras: tenho ainda frio, por exemplo. Eis o suficiente. Do fogo! Do fogo! Ou bem das pedras para que eu as fenda, ou bem dos pássaros para que eu os siga, ou bem dos espartilhos para que eu os aperte ao redor da cintura das mulheres mortas, e que elas ressuscitem, e que elas me amem, com seus cabelos fatigantes, seus olhares desfeitos! Do fogo, para que não se seja morto pelas ameixas à aguardente, do fogo para que o chapéu de palha da Itália não seja somente uma peça de teatro! Alô, céspede! Alô, chuva! Sou eu o irreal fôlego deste jardim. A corona negra pousada sobre minha cabeça é um grito de corvos migratórios pois não havia até aqui senão os enterrados vivos, aliás em pequeno número, e eis que eu sou o primeiro aerado morto. Mas eu tenho um corpo para não mais me desfazer, para forçar os répteis a me admirar: as mãos sangrentas, os olhos de visco, as bocas de folhas mortas e de vidro (as folhas mortas se movem sob o vidro; não são tão vermelhas quanto se pensa, quando a indiferença expõe seus métodos vorazes), as mãos para te colher, tomilho minúsculo dos meus sonhos, alecrim da minha extrema palidez. Eu não tenho mais sombra. Ah minha sombra, minha cara sombra. É preciso que eu escreva uma longa carta para essa sombra que perdi. Eu começarei por Minha cara sombra. Sombra, minha querida. Tu vês. Não há mais sol. Não há mais que um trópico entre dois. Não há mais que um homem entre mil. Não há mais que uma mulher na ausência de pensamento que caracteriza em preto puro esta época maldita. Esta mulher segura um buquê de sempre-vivas da forma do meu sangue.


APÓS O GRANDE TAMANDUÁ

As meias de mulheres tamisam a luz de Londres
As docas são as estações negras de mundo mas brancas de gerações desaparecidas
E quando eu digo Londres é para a forma do poema
Mas as meias de mulher são verdadeiros ponteiros do relógio
Sob o nácar negro das jarreteiras
Elas pertencem ao que eu não posso nomear
Falta de uma criatura que se distinguiria bastante da criação
E da destruição para fazer a ela só a noite em meu pensamento que viravolta
Elas foram usadas no tempo pelo espaço
Pelo espaço feminino muito distinto do outro e isso é tudo
Acima das meias a carne e de uma parte e de outra dessa carne os buldogues
O branco e o preto como eu disse
E mais alto ainda o jogo languescente que se joga com um lenço
Todo mundo em círculo
E nem mais alto nem mais baixo os fios telegráficos encantados
Os perfumes encerrados nas tigelas vagas
Há também o roçar de uma prisão contra o ar da paixão
Desse roçar nasce a flor escura da paixão
Que quebra tudo à sua passagem com seus dedos de vidro
Que absorve o ar circundante o ar respirável bolha por bolha
E a esta altura há o morango das quatro estações
Que se colhe de manhã e à noite nos tições
Que se abre sobre o prazer em uma estrela de ágata
A armadura aqui apresenta um defeito tão encantador
Uma bem velha terra com casca de rosa se faz desejável
Que as palavras saltem os precipícios luzentes de todas as suas raízes
E procurem o mais tenro do ouvido
A erva elétrica está momentaneamente deitada
A luz desvia até a cinza do olho
Que resta aberto como diante do impossível
Esta flor que seria a bela-do-dia-e-da-noite
A força e a fraqueza jogam bem perto seus cordames
E já começam os passeios que nos maravilham
Os dramas cor de punhal as comédias em forma de cachecol
Sobem então de uma nota
E bem longe na floresta o futuro entre dois ramos
Se põe a estremecer como a ausência impossível de acalmar de uma folha
Aqui os dois pratos da balança os dois lados do linguado
Se impõem por turnos a privação de avaliar e de ver
Eu penso na Ursa Maior mas não é ela
Eu gostaria que os mineiros me compreendessem
E que a hera se sinta interessada no que eu digo
A linha brusca o desvio traiçoeiro do fogo que descobre o rosto
Não será na cidade abstrata mais que um chamado de demônio
Para o reino de impossível pacto da crepitante
Mulher sem nome
Que quebra em mil pedaços a joia do dia


A UNIÃO LIVRE

Minha mulher com cabeleira de fogo de lenha
Com pensamentos de clarões de calor
Com silhueta de ampulheta
Minha mulher de talhe de lontra entre os dentes do tigre
Minha mulher com a boca de roseta e de rama de estrelas de derradeira grandeza
Com dentes de rastos de roedor branco sobre a terra branca
Com língua de âmbar e vidro esfregados
Minha mulher com a língua de hóstia apunhalada
Com a língua de boneca que abre e fecha os olhos
Com a língua de pedra incrível
Minha mulher com cílios de lápis d’escrever de criança
Com sobrancelhas de borda de ninho de andorinha
Minha mulher com têmporas de ardósia de teto de estufa
E vapor nos vidros
Minha mulher de espáduas de champanhe
E de fonte com cabeças de delfins sob o gelo
Minha mulher com punhos de fósforos
Minha mulher com dedos de acaso e ás de copas
Com dedos de feno ceifado
Minha mulher com as axilas de marta e de faias
De noite de São João
De alfena e de ninho de acarás
Com braços de espuma do mar e de eclusa
E de mistura de trigo e moinho
Minha mulher com pernas de foguete
Com gestos de relojoaria e desespero
Minha mulher com panturrilhas de polpa de sabugueiro
Minha mulher com pés de iniciais
Com os pés de molho de chaves com os pés de calafates que bebem
Minha mulher com pescoço de cevada perolada
Minha mulher com garganta de Vale do Ouro
De encontro no leito mesmo da torrente
Com seios de noite
Minha mulher com seios de toupeira marinha
Minha mulher com seios de crisol de rubis
Com os seios de espectro da rosa sob o rocio
Minha mulher com o ventre de abrir-se do leque dos dias
Com o ventre de garra gigante
Minha mulher com dorso de ave a voar vertical
Com dorso de azougue
Com dorso de lume
Com a nuca de pedra rolada e giz molhado
E de queda dum copo de que se acaba de beber
Minha mulher com as ancas de navicela
Com ancas de lustre e de penas de flecha
E de hastes de plumas de pavão branco
Que balança insensível
Minha mulher com nádegas de arenito e amianto
Minha mulher com nádegas de dorso de cisne
Minha mulher com nádegas de primavera
Com sexo de lírio roxo
Minha mulher com sexo de garimpo e de ornitorrinco
Minha mulher com sexo de alga e bombons antigos
Minha mulher com sexo de espelho
Minha mulher com olhos plenos de lágrimas
Com olhos de panóplia violeta e agulha imantada
Minha mulher com olhos de savana
Minha mulher com olhos d’água para beber na prisão
Minha mulher com olhos de lenha sempre sob o machado
Com olhos de nível d’água de nível d’ar de terra e de fogo.


CARTEIRO CHEVAL

Nós os pássaros que tu encantas sempre do alto desses belvederes
E que a cada noite não fazemos senão um ramo florido de teus ombros aos braços de tua carriola animada
Que nos arrancamos mais vivos que as faíscas a teu punho
Nós somos os suspiros da estátua de vidro que se soergue sobre o cotovelo quando o homem dorme
E que das brechas brilhantes se abrem no seu leito
Brechas pelas quais se pode  perceber os veados de chifres de coral numa clareira
E as mulheres nuas bem no fundo de uma mina
Tu te lembras tu te levantavas então descias
Do trem
Sem um olhar para a locomotiva presa às imensas raízes
barométricas
Que se lamuria na floresta virgem de todas as suas caldeiras magoadas
Suas chaminés fumegantes de jacintos e movidas pelas serpentes azuis
Nós te precedíamos então nós as plantas sujeitas a metamorfoses
Que cada noite fazíamos os sinais que o homem pode surpreender
Ao passo que sua casa desmorona e que se admira diante dos encaixes singulares
Que rebusca seu leito com o corredor e a escada
A escada se ramifica indefinidamente
Transporta a uma porta de moenda ela se alarga toda de golpe sobre uma praça pública
É feita de dorsos de cisnes uma asa aberta para o corrimão
Ela gira sobre si mesma como se fosse se morder
Mas não ela se contenta sob os nossos passos de abrir todos os seus degraus
Como as gavetas
Gavetas de pão gavetas de vinho gavetas de sabão gavetas de espelhos gavetas de escadas
Gavetas de carne com puxador de cabelos
À esta hora em que milhares de patos de Vaucanson se alisam as plumas
Sem se voltar tu agarravas tua espátula de que se fazem os seios
Nós te sorríamos tu nos seguravas pela cintura
E nós tomávamos as atitudes do teu prazer
Imóveis sob nossas pálpebras para sempre como a mulher ama ver o homem
Depois de ter feito amor.


O GRANDE RECURSO MORTÍFERO

A estátua de Lautréamont
Em pedestal de comprimidos de quinino
Em campo aberto
O autor das Poesias está deitado de barriga para baixo
E perto dele vela o heloderma suspeito
Seu ouvido esquerdo aplicado ao solo é uma caixa vítrea
Ocupada por um raio o artista não se esqueceu de fazer figurar acima dele
O balão azul céu em forma de cabeça de Turco
O cisne de Montevidéu cujas asas estão desdobradas e sempre prontas para bater
Quando se trata de atrair do horizonte os outros cisnes
Abre sobre o falso universo dois olhos de cores diferentes
Um de sulfato de ferro sobre a treliça dos cílios o outro de borra diamantina
Ele vê o grande hexágono em funil no qual se crisparão em breve as máquinas
Que o homem se encarniça para cobrir de ataduras
Ele reaviva de sua vela de rádio os fundos do crisol humano
O sexo de plumas o cérebro de papel-manteiga
Ele preside às cerimônias duas vezes noturnas que têm por fim a subtração feita do fogo de interverter os corações do homem e do pássaro
Eu tenho acesso próximo a ele na qualidade de convulsionário
As mulheres arrebatadoras que me introduzem no vagão estofado de rosas
Onde uma rede que elas tiveram a atenção de fazer de suas cabeleiras me está reservada
De toda a eternidade
Me recomendam antes de partir não pegar frio na leitura do jornal
Parece que a estátua perto da qual o dente-de-cão das minhas terminações nervosas
Chega ao destino é afinada toda noite como um piano



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: Amirah Gazel (Costa Rica, 1964)
Poemas traduzidos por Davi Araújo (Brasil, 1979)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 136 | Junho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



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