sábado, 22 de junho de 2019

EMERSON GIUMBELLI | Macumba surrealista: observações de Benjamin Péret em terreiros cariocas nos anos 1930


Benjamin Péret (1899-1959), escritor francês, não é muito conhecido no Brasil, sobretudo se o compararmos a André Breton (1896-1966). Mas ambos compartilharam, desde o início dos anos 1920, o compromisso com o movimento surrealista. Assim como Breton, Péret permaneceu ligado ao movimento até o fim da vida, assinando todos os manifestos e declarações. Foi um dos editores da revista La Révolution Surréaliste (1924-1929), publicada pelo grupo liderado por Breton, e ao longo da vida e logo após sua morte teve lançados 12 livros de poesia e alguns de prosa, dos quais muitas peças já haviam sido divulgadas em publicações surrealistas. Seus textos, alguns compostos com o método da escrita automática, são povoados de referências e linguagens que encontramos em quadros e filmes surrealistas de outros artistas. Sua literatura é ainda permeada por seu envolvimento em atividades políticas, sobretudo nos anos 1920 e 30: movimentos comunistas, Guerra Civil Espanhola, resistência à Segunda Guerra. O poeta viveu três vezes fora da França: na Espanha, no México e no Brasil (Bédouin, 1973; Ponge, 2006; Palmeira, 2000).
Este texto dedica-se a explorar alguns aspectos de sua passagem pelo Brasil entre 1929 e 1931. Mais precisamente, interessa-me discutir os posicionamentos e relatos expostos pelo surrealista francês em uma série de artigos publicada no jornal paulistano Diário da Noite[1] entre novembro de 1930 e janeiro de 1931. Intitulada “Candomblé e macumba”, a série teve como objeto as religiões africanas no Brasil e, como base, observações realizadas em terreiros cariocas no segundo semestre de 1930 e leituras de trabalhos científicos e jornalísticos.[2] Procurarei situar os escritos de Péret no quadro de duas problemáticas. Primeiro, as abordagens sobre grupos e práticas existentes no Brasil a que se atribuem origens africanas.[3] Se considerarmos o interesse científico que se forjou em torno desse universo, é com Nina Rodrigues que se costuma iniciar sua história. Nina Rodrigues, no entanto, viveu e escreveu em Salvador na passagem entre os séculos XIX e XX. Para o Rio de Janeiro, os registros pioneiros editados em livro tiveram que esperar os trabalhos de Arthur Ramos, o primeiro deles lançado em 1934 (O negro brasileiro). Ainda que publicados em um jornal e elaborados por um literato, os relatos de Péret, como veremos, não estão destituídos de ambições científicas. Apresentados como observações de campo, eles contribuem para o caudal de textos divulgados em jornais – alguns dos quais indicarei adiante – que foram os principais responsáveis pelo trabalho de representação lançado sobre as religiões afro-brasileiras nas primeiras décadas do século XX no Rio de Janeiro.[4] Eis a pergunta: como Péret observa esses grupos e práticas e como se situam seus escritos em relação a essa tradição de observadores?
O segundo quadro em que se inserem meus comentários sobre os textos de Péret dedica-se a uma questão que pode ser depreendida do primeiro. A observação dos grupos e práticas de origem africana no Brasil fez-se, desde o final do século XIX, tendo como pano de fundo o problema da formação nacional. As crenças e rituais africanos – que assumiram diferentes configurações e designações na América – atraíram a atenção por permitirem levantar a questão do lugar das criações negras no país que, com a República, declarou formalmente a igualdade de todos os seus cidadãos.[5] A construção de uma identidade nacional ganharia um novo capítulo nos anos 1920 com o modernismo artístico, movimento com o qual, como veremos, Péret dialogou em sua passagem pelo Brasil.[6] Para o poeta francês, contudo, “Brasil” não era uma realidade autoevidente e autoexplicativa: era uma realidade que poderia ser melhor compreendida se se atentasse para os seus componentes – caso da África –, se fosse inserida em um quadro mais amplo – a América –, ou ainda se fosse percebida em contraste com seus ideais – a Europa. Tais deslocamentos podem ser associados às concepções surrealistas, em seus diálogos com outras fontes intelectuais. O que desejo mostrar é que, mesmo não sendo uma referência precípua para Péret, as condições e sínteses históricas ocorridas no Brasil teriam um impacto sobre seus relatos. Isso seria possibilitado pelo fato de as elaborações em torno do que constituiu e de como se constituiu o Brasil não terem sido matéria apenas de intelectuais, como os modernistas, mas também de práticas e imaginários religiosos, sobretudo os que envolviam diásporas culturais. Minha sugestão é que tais elaborações podem ser particularmente vislumbradas em um dos rituais observados por Péret. Isso é parte das conclusões deste texto, mas também de seu início, que especula sobre o que teria trazido Péret ao Brasil.
A relação de Péret com modernistas brasileiros já foi tematizada em outros estudos (Ginway, 1992; Palmeira, 2000; Ponge, 2004). Detenho-me neste texto em destacar aspectos, a meu ver compartilhados por parte do modernismo brasileiro e do surrealismo, que propiciavam um encontro entre arte e ciência, literatura e pesquisa. Quanto à relação de Péret com a historiografia acerca das religiões afro-brasileiras, os estudos sobre o autor dedicam menos atenção a essa dimensão (ver observações breves em Ginway, 1992: 549ss; Palmeira, 2000; Moura, 1985 apud Puyade, 2005: 18). Ao abordá-la, procuro dar continuidade ao investimento que tenho feito nesse tema (Giumbelli, 1997, 2002, 2011, 2013). Creio que ainda temos muito a avançar na recuperação de materiais que nos deem o devido acesso às condições em torno das quais se processou no sudeste brasileiro a formação das religiões que a literatura agrupa sob a categoria “mediúnicas” (espiritismo, umbanda, candomblé...) e se traçou o destino que tomaram as crenças e práticas de origem africana em sua relação com outras matrizes culturais. As observações de Benjamin Péret merecem ser agregadas a esses materiais. Os comentários que sobre elas teço neste texto procuram – ao destrinchar pressupostos, caminhos, concepções e argumentos dos artigos do poeta francês – atingir um grau de atenção que considero inédito.

Péret e o Brasil: um poeta que pesquisa

O Brasil não tinha um lugar destacado no mapa surrealista. E isso literalmente, já que em 1929 os surrealistas franceses publicaram um mapa do mundo em que continentes, países e arquipélagos apareciam redesenhados.[7] No centro do mapa estava o Oceano Pacífico, e várias terras adquiriam um tamanho avantajado. À esquerda, a Rússia tomava praticamente todo o espaço, ficando a Europa Ocidental reduzida a alguns traços e pontos. A África, ao contrário do que se podia esperar, conhecendo-se a atração que Breton e outros tinham pela “arte negra”, não tinha relevância; ainda assim era nomeada, ao contrário da Europa. À direita do Oceano Pacífico, as Américas, a do Norte desenhada bem maior que a do Sul. O Alasca tinha um tamanho descomunal, parecendo pertencer mais à Polinésia do que ao continente americano. Os Estados Unidos pareciam não existir; abaixo do que seria sua fronteira sul vinha nomeado o México, em letras grandes. Mais ao sul, abaixo de uma linha do Equador que serpenteava, jamais retilínea, pelo mapa, as duas únicas denominações eram as que designavam o Peru e a Terra do Fogo, cujas ilhas tomavam quase a metade do continente. Nesse mapa que singularizava e engrandecia os ideais políticos e o culto do exótico pelos surrealistas, o Brasil não era nomeado. Péret, aliás, parece ter sido o único francês do núcleo duro surrealista a ter visitado as terras tupiniquins (Ponge, 2004).
O que, então, poderia tê-lo trazido até aqui? Se o Brasil não atraía os surrealistas, por outro lado havia brasileiros que estavam interessados no surrealismo e em outros movimentos da vanguarda europeia dos anos 1920. Em Paris, Péret conheceu a brasileira Elsie Houston, com quem viria a se casar em 1928. O evento foi testemunhado por André Breton e por Heitor Villa-Lobos. Elsie, filha de pai estadunidense e mãe brasileira, fizera seus estudos na Europa. Havia se tornado intérprete de composições de Villa-Lobos e uma divulgadora da “canção popular”. A exemplo de Villa-Lobos, fazia pesquisas nesse campo, que incluía temas religiosos. Em 1930, já casada com Péret e vivendo no seu país natal, Elsie publicou na França um livro com letras e partituras de 42 “cantos populares do Brasil”, entre os quais dois indígenas e dois “temas de makumba”. Em fevereiro de 1934, Elsie apresentava-se em concerto em Paris, “Cantos Mágicos e Populares do Brasil”, entre os quais figuravam músicas de rituais religiosos afro-brasileiros. A valorização e o registro de ritmos populares era uma das marcas de parcela do movimento modernista no Brasil, em especial aquele articulado pelo Manifesto Antropofágico (1928). Elsie fazia parte desse círculo, e isso deve ter contado para o interesse que Péret manifestou por “candomblé e macumba”; tal interesse, em contrapartida, parece ter impactado o trabalho artístico de Elsie.[8]
O encontro entre Elsie e Benjamin evoca o tema das relações entre o modernismo brasileiro e o surrealismo francês, que passa por questões estéticas e políticas, reunindo afinidades e dissonâncias (Ponge, 2004; Ginway, 1992; Karepovs, 2010). Péret foi bem recebido pelos entusiastas da Antropofagia, Oswald de Andrade à frente. Entretanto, o mesmo Oswald escrevera, no Manifesto, que no Brasil já se tinha, antes dos franceses, “a língua surrealista”. Péret despertou antipatias entre outros modernistas no Brasil, como Mário de Andrade (Ginway, 1992: 545). Em relação ainda a Oswald, o engajamento deste no Partido Comunista Brasileiro contrastou com os rumos políticos de Péret, que se havia filiado ao Partido Comunista na França em 1927, mas seguia a linha dissidente no Brasil, o que o aproximava de Lívio Xavier e de Mário Pedrosa,[9] com quem fundou um grupo trotskista em 1930. A militância política causaria em 1931 sua prisão e sua expulsão do país, logo depois do nascimento do filho com Elsie. Em 1955, Péret voltaria ao Brasil, por ocasião do casamento desse filho, e novamente teria problemas políticos. Pesava ainda sobre ele o decreto de expulsão de 1931, e ele só pôde deixar o país com a sua revogação, depois de uma campanha de amigos e intelectuais. Péret ficou cerca de um ano nessa segunda estada no Brasil (Ponge, 2012).
Voltemos então ao final dos anos 1920, e meu esforço será mostrar como o surrealismo de Péret produziu, em sua incursão pela América, um projeto de conhecimento, havendo aí um ponto de contato com uma característica de parcela do modernismo brasileiro. Por meio de cartas enviadas ainda da França, sabemos que Péret pretendia fazer uma expedição, durante a qual coletaria objetos e cantos populares e indígenas e realizaria dois filmes. Tinha mesmo em mente uma rota para a expedição, que se embrenharia pelo Amazonas até o Peru, passando por Lima e Cuzco, daí entrando novamente no Brasil pelo Centro-Oeste, servindo-se do Araguaia para alcançar o litoral. Péret levantou várias cartas de apresentação, mas teve dificuldades em obter recursos. Em agosto de 1929, seus planos já eram mais modestos: enquanto um postal de Paul Éluard, outro poeta surrealista francês, lhe indagava sobre o Amazonas, Péret vislumbrava um filme sobre os índios que viviam em Minas Gerais, Pará e Goiás. Mesmo assim, o projeto da viagem não se realizou, a não ser em 1955 e 56, quando o poeta foi a Manaus e Belém e a cidades do Nordeste, e também à região do Xingu, onde conheceu várias aldeias, e escreveu a respeito alguns artigos. Provavelmente animado por essa experiência, ele concluiu o que seria a introdução da Antologia de mitos, lendas e contos populares da América. O livro foi publicado postumamente, em 1960, mas começou a ser preparado desde 1942, quando Péret vivia no México, já com sua segunda esposa, a artista Remedios Varo (Palmeira, 2000). Note-se que o interesse de Péret em 1928-9, quando preparava sua planejada expedição, recaía sobre a principal “civilização pré-colombiana” – o que explica sua incursão pelo Peru. Nas viagens de 1955 e 56, eram sobretudo os ameríndios que lhe interessavam, e é fácil constatar que a grande maioria do material compilado em sua Antologia provém de registros sobre sociedades indígenas. Isso nos permite concluir que, em Péret, o interesse surrealista pelo exótico correspondia à busca pelo indígena, o primitivo nativo das Américas (Courtot, 1999). Em 1930, vendo se frustrarem seus planos de conhecer esses primitivos, o poeta, que durante sua primeira estada no Brasil ficou apenas entre Rio de Janeiro e São Paulo, voltou-se para as religiões de origem africana. O tema, como veremos, lhe impôs uma abordagem política, que estava relacionada à crítica da religião em chave marxista e freudiana. Com efeito, Péret cultivava um verdadeiro ódio às religiões e à figura de Deus.[10] Isso não o impedia de apreciar aquilo que observava nos terreiros cariocas, pois neles, sobretudo em alguns deles, podia reconhecer o primitivo que tanto buscava. Eis o que ele escreveu na segunda frase da série de artigos “Candomblé e macumba”: “Eu as considerarei [as religiões africanas no Brasil], sobretudo sob o ponto de vista poético, pois ao contrário do que se passa com as outras religiões mais evoluídas, delas transborda uma poesia primitiva e selvagem que é quase, para mim, uma revelação” (Diário da Noite, 25.11.1930).
O anúncio de “um ponto de vista poético” levanta de imediato a questão da natureza do olhar lançado por Péret aos cultos que conheceu. Na introdução de sua Antologia (Péret, 1960), ele contrapõe claramente um critério poético a um critério etnográfico – e isso correspondia a certa recusa a uma perspectiva racionalista, pois o compilador dizia preferir reconhecer o parentesco entre os mitos que recolhera e a obra que praticavam os poetas. No entanto, não é propriamente um texto poético que temos a oportunidade de encontrar nos artigos de 1930-31. Afora algumas passagens, o tom é outro. Podemos dividir os artigos em duas partes. Na primeira delas, o que lemos é uma “descrição minuciosa” (Diário da Noite, 25.11.1930) do que Péret presenciou em alguns cultos, com interpolações de referências a autores lidos ou pessoas que funcionaram como intermediárias de contatos. Em foco estão as cerimônias que Péret frequentou, em três ou quatro locais, com seus personagens e operações rituais, com poucos elementos acerca das configurações espaciais e sem preocupações em exaurir a apresentação do que foi visto. Com esse perfil, são, sem dúvida, descrições. Na segunda parte, temos quatro artigos com o mesmo título – “As origens das crenças dos negros brasileiros”. Trata-se de um texto único, dividido em várias edições do jornal, no qual o autor adota um tom analítico, desenvolvendo sua interpretação sobre as religiões de origem africana. Na verdade, esse tom já aparece no primeiro dos artigos, mas é interrompido pelas descrições. Em suma, enquanto a primeira parte corresponde a uma descrição que lembra as enquetes jornalísticas sobre o tema – como a que João do Rio (2006) realizara no início do século –, a segunda parte assume o formato de análise erudita e distanciada. Sugiro que a junção de ambas constitui uma espécie de etnografia.
O texto de Clifford (2011) acerca do surrealismo etnográfico não menciona Péret. Este, contudo, poderia ser apresentado para corroborar a tese do historiador estadunidense, de que o surrealismo produziu um modo de conhecimento objetivo acerca de formas de vida e que isso propiciou diálogos e passagens entre arte e antropologia. Péret parece jamais ter confessado alguma atração pela antropologia, e isso não o impediu de produzir relatos a que podemos conferir estatuto etnográfico. O Brasil não apenas propiciou a ocasião e o campo para o surrealista francês desenvolver esse conhecimento. Os diálogos que Péret travou durante sua estada com alguns modernistas apontam para algo compartilhado: além do interesse pelo “popular” que motivava buscas e viagens, também a possibilidade de trânsito entre distintos gêneros textuais. Afinal, esse trânsito ocorreu igualmente entre autores associados ao modernismo, e talvez Mário de Andrade represente o melhor exemplo, como literato e pesquisador ao mesmo tempo.[11] Saliento, portanto, que os relatos de Péret acerca das religiões afro-brasileiras dialogam com essa característica de parcela do modernismo brasileiro, combinando arte e ciência, poesia e conhecimento.
A dimensão de um projeto de conhecimento não era estranha ao surrealismo. Ao contrário, pode-se sustentar que ela era parte mesmo de sua definição. Afinal, o surrealismo se propunha como uma exploração da realidade. Em 1924, ano do primeiro manifesto do movimento, seus participantes criaram o Bureau de Recherches Surréalistes. A pesquisa sobre aspectos psicológicos abriu caminho para outras incursões, sobre dimensões culturais. É disso que trata o texto de Clifford (2011). No caso de Péret, gostaria de considerar como algo significativo o fato de que esse projeto de conhecimento foi ativado por conta de sua passagem pelo Brasil. E o que ele encontrou no Brasil foram artistas e religiosos que estavam formulando um novo entendimento acerca do que compunha esse pedaço da América. Sem deixar de levar em conta as fontes europeias, estava em jogo “a vontade de criar e identificar uma realidade civilizatória tropical própria” (Subirats, 2001: 58), explorando as potencialidades estéticas e espirituais do ameríndio e do africano. Procurarei mostrar como essas formulações sobre o Brasil impactaram os relatos do surrealista francês enquanto Péret exercitava sua sensibilidade poética a serviço de um projeto de conhecimento. Mas, antes, vejamos no conjunto de textos que constitui o foco deste artigo como ele se relacionava com as abordagens então existentes sobre as religiões afro-brasileiras.

Péret e a etnografia das religiões afro-brasileiras

Péret não disfarça a simpatia por um dos personagens que conheceu, tema de duas das três imagens que ilustram a série de artigos “Candomblé e macumba”. Os oficiantes descritos nos artigos são quase sempre identificados por iniciais e nunca há indicação precisa dos locais de culto. Ao revelar esses cultos, Péret não deixava de ocultá-los, explicitando sua divergência quanto à política repressiva contra essas práticas que predominava no período.[12] Tio F é o herói de Péret, alguém que ele reconhece como “poeta”. Péret descreve quatro eventos no terreiro desse “babalorixá” e ainda transcreve as duas entrevistas com ele que fecham a primeira parte dos artigos. Péret acompanhou algumas operações rituais de Tio F, como os preparativos para “um jantar de santo”, que compreendeu o sacrifício de galinhas; e também, em outra ocasião, parte de uma cerimônia de iniciação, que envolveu novamente mais sacrifícios de aves. O sangue é um elemento recorrente nas descrições, sobretudo quando era manipulado por Tio F. Péret presenciou vários transes ao som de atabaques e se impressionou particularmente com a dança de uma negra: “Mas que dança! Religiosa e erótica ao mesmo tempo... O corpo inteiro se movia. Parecia ao mesmo tempo um gato brincando com um camundongo, uma cobra e uma flama sacudida pelo vento. Quantas pobres coitadas passam anos saracoteando em cursos de danças para figurar como estrelas nos bailados e não chegam nunca a apresentar uma dança tão pura quanto aquela. Foi talvez a única realmente bela que vi em minha vida. Em qualquer palco da Europa esta dançarina inata teria um sucesso triunfal, sem precedentes” (Diário da Noite, 28.11.1930).
Transparece nesse trecho o reconhecimento de uma pureza, e também de uma fisicalidade, que podemos associar à busca de Péret pelo primitivo. Tio F pertence, segundo o poeta, à Lei de Nagô, que ele contrapõe à Lei de Angola. Vejamos o que diz em seu primeiro artigo: “Pude examinar de perto dois ritos: o de Nagô e o de Angola. O primeiro era adotado quase exclusivamente por negros puros pertencentes à classe operária (...), enquanto que no segundo aderiam muitos mulatos e crioulos de um plano social mais elevado” (Diário da Noite, 25.11.1930). Esse par é retomado por Péret na segunda parte da série de artigos, na qual cita uma série de autores e textos que se preocupou em ler, incluindo Nina Rodrigues. Péret procura apontar as “nações africanas que forneceram maior contingente de escravos ao Brasil”, dando destaque à Costa dos Escravos (referidos ao Nagô) e aos povos do Gabão, do Congo e de Angola (Diário da Noite, 8.1.1931). Quem representa a Lei de Angola nas observações diretas de Péret é Mãe M. Ele descreve uma festa de Xangô no terreiro dessa mulher, cuja solenidade e rigidez lhe desagradaram. Péret ficou impressionado com a “orquestra” que encontrou naquela festa, sobretudo com o percussionista do atabaque; observou os passos das dançarinas e acompanhou transes de algumas delas. Sua impressão final é significativa:

Mas nenhuma dessas danças hipnóticas deu ensejo àquelas cenas selvagens e majestosas que presenciei no terreiro de Tio F. Davam a impressão de ser um pálido reflexo daquelas, uma fotografia apagada, guardando apenas, das imagens, o contorno principal. A civilização passara por ali! (Diário da Noite, 16.12.1930).

Vemos assim como é na Lei de Nagô que Péret encontra a pureza e a selvageria que o atraíam. A isso corresponde certa poesia que ele identifica em Tio F, o babalorixá que conversa “em africano” com as divindades incorporadas e cujas palavras em português ganham uma transcrição que capta sua fala “errada”. Péret admira o jeito como aprendeu os preceitos de seu culto. Péret conta histórias que sugerem os poderes de Tio F (inclusive da sua imaginação). Péret aprecia o vatapá que Tio F prepara em uma lata de gasolina. Duas fotos o mostram tocando atabaque e agogô, enquanto outra exibe o altar dedicado a Iemanjá em seu terreiro. Péret registra o modo como Tio F trabalha para infundir força em sua inicianda, recorrendo à mediação das plantas e dos animais, que se tornam, graças à culinária e aos sacrifícios, “comida para a cabeça”. Péret se encanta com a conclusão que Tio F tira de um mito nagô: “Vosmicê nunca viu o raio entrando na terra, nunca ouviu o barulho da trovoada? Pois é Xangô fugindo na terra e Ogum gritando atrás dele” (Diário da Noite, 27.12.1929). Essa forma de relação do humano com a natureza ocorre, segundo comentaristas (por exemplo, Bédouin, 1973), na poesia do próprio Péret.
Nessa mesma entrevista com Tio F, surge um assunto que é desenvolvido nos comentários posteriores de Péret. Trata-se da associação entre as divindades africanas e os santos católicos. Em uma primeira formulação, Péret recorre ao argumento do disfarce: “para evitar a repressão os negros foram deste modo levados a encobrir suas crenças com um ligeiro véu de catolicismo” (Diário da Noite, 8.1.1931). Mais adiante, Péret apresenta uma segunda formulação: teria ocorrido uma “troca de ideias selvagens” entre as crenças africanas e católicas. Ou seja, os negros perceberam certa afinidade entre os orixás e os santos, evidenciada pela materialidade que caracteriza a ambos. “Efetivamente, para os negros, os deuses são homens que viveram, amaram e deixaram uma descendência. Seus espíritos, seus ‘duplos’ ficam errando pelo mundo, mas a palavra espírito não tem para eles, como tem para os civilizados, uma significação imaterial. É uma emanação, com uma vida independente, algo como o ar que se respira” (Diário da Noite, 15.1.1931).
Péret vai adiante na sua investigação das palavras, pois apresenta uma discussão sobre a noção de “deus”. Segundo ele, é estranha aos africanos a noção de um deus imaterial, invisível, distante. Quando ela se faz presente, é por influência da religião monoteísta, ou vem marcada por uma espécie de atrofia ritual. Daí a frase que introduz a tese da troca de ideias selvagens: “Não é por acaso que se chamam [as divindades africanas] ‘santos’ e não ‘deuses’” ( Diário da Noite, 15.1.1931). Note-se uma diferença fundamental: no catolicismo, os santos estão subordinados a um deus; nas religiões africanas, os deuses são santos.
Péret quer com isso apontar distinções entre o que ele mesmo chama de religiões do homem primitivo e de religiões mais evoluídas. Esse é um tema que ressurge na Introdução à Antologia do amor sublime (Péret, 1985) e, sobretudo, que atravessa sua Introdução à Antologia de mitos, lendas e contos (Péret, 1960). Para Péret, os mitos – principalmente as interpretações cósmicas, as explicações que o primitivo oferece para a origem do mundo e para a sua própria origem e natureza – seriam o primeiro estado da poesia e o eixo em torno do qual ela continua a girar. É na medida em que expressam um pensamento em modo poético que os mitos lhe interessam. Com base nisso, ele formula uma homologia entre o poeta e o feiticeiro: ambos são malditos, um desacreditado por todo tipo de linguagens pobres, outro perseguido pelas religiões instituídas. Ele sugere então uma oposição entre os mitos e os dogmas religiosos: de um lado, a exuberância poética e a busca exaltada do maravilhoso guiada pelo inconsciente e pelo desejo; de outro, os preceitos morais e um mecanismo de compensação, fabricado para consolar os despossuídos e para prometer-lhes no além aquilo de que não desfrutam na terra. Assim, enquanto a religião está relacionada com uma ordem social marcada por desigualdade, os mitos correspondem a uma relativa homogeneidade de condições sociais. Nessas condições é que se realiza, através dos mitos, o ideal anunciado por Lautréamont e abraçado pelos surrealistas: “La poésie doit être faite par tous, non par un”.[13]
Podemos agora voltar aos artigos de 1930-31 e falar de suas conclusões (Diário da Noite, 30.1.1931). Elas assumem um tom político: é preciso ver, diz Péret, nas religiões africanas, tal como se manifestam na sua atualidade, “uma forma elementar de protesto contra a opressão que a sociedade faz pesar sobre seus membros, sobretudo sua classe mais miserável”. Em apoio à sua interpretação, Péret cita as revoltas de escravos do início do século XIX na Bahia, notando a presença constante de motivações e elementos religiosos. E insiste que “esse espírito revolucionário das religiões africanas subsiste em nossos dias”. O autor reserva um último comentário ao catolicismo, afirmando que a Igreja desempenhou sempre, na política, “um papel ultra-reacionário”, mesmo que tenha nascido entre os oprimidos. Isso sugere que, para Péret, o componente teológico ou mitológico é crucial – e somos assim remetidos novamente à diferença que existiria entre uma religião calcada em um deus imaterial e um culto dirigido a divindades materiais, cujo número Tio F afirma ser maior que dois mil…[14]
Tendo exposto a estrutura e os principais traços da descrição e da interpretação de Péret, passo a situar sua etnografia tendo como referências as abordagens contemporâneas acerca das religiões afro-brasileiras. Um primeiro ponto relaciona o surrealista francês com o panorama mais local que caracteriza o Rio de Janeiro. É interessante notar que os autores mencionados ao longo dos textos, sobretudo aqueles que merecem constar em notas de rodapé, não tratam especificamente da região sudeste brasileira. Para se movimentar entre terreiros cariocas, Péret contou com guias que nos textos são citados com menor formalidade. É o caso de Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, jornalista que o poeta descreve como “altamente cotado nos meios macumbeiros” (Diário da Noite, 28.11.1930). Foi Nóbrega da Cunha, segundo o próprio Péret no mesmo artigo, que reconheceu nas mãos do francês “o livro de Leal de Souza sobre o espiritismo e a macumba” e indicou um terreiro que é descrito no mesmo livro para ser visitado. Indo até o tal terreiro, Péret e alguns acompanhantes (incluindo o casal Pedrosa) descobrem que o pai de santo havia falecido. Depois desse insucesso, um outro guia, de que falarei adiante, os leva ao terreiro de Tio F. Nóbrega da Cunha e Leal de Souza estiveram entre os intelectuais que se interessaram pelo campo das práticas religiosas de origem africana no Rio de Janeiro. Suas descrições são anteriores àquelas, mais conhecidas, elaboradas por Arthur Ramos, que chegara à capital federal vindo de Salvador. Nóbrega de Cunha e Leal de Souza publicaram originalmente seus relatos em jornais cariocas, dando continuidade ao formato consagrado por João do Rio (2006) para tratar do panorama religioso da então capital brasileira.[15]
Os artigos de Péret dialogam com essas descrições locais e contribuem para percebermos uma característica da situação carioca: enquanto na Bahia o termo candomblé operava como referência para a descrição dos demais cultos, no Rio de Janeiro a categoria macumba cumpria esse papel (Giumbelli, 1997, 2002). Retomemos a discussão que Péret elabora logo em seu primeiro artigo. O que poderia ser tomado como prova de imprecisão é melhor compreendido se levarmos em conta as peculiaridades que afetam a situação no sudeste brasileiro. O texto aventa a hipótese de que macumba seria palavra corrente na Bahia e teria sido transplantada para o Rio de Janeiro juntamente com o candomblé. Ao mesmo tempo, Péret afirma: “Sob o nome makumba (ou macumba) designa-se comumente no Rio o conjunto de ritos de origem africana praticados em vários pontos do território brasileiro” (Diário da Noite, 25.11.1930). Ocorre que, nota o poeta, ainda que candomblezeiros e macumbeiros sejam termos utilizados com pouca distinção, “vários adeptos me afirmaram ser o candomblé a expressão mais pura da religião africana. A macumba seria o filho natural, por assim dizer, do primeiro, das crenças indígenas e da simplificação progressiva do rito no meio ‘branco’ onde se perpetua” (idem). Ou seja, no Rio de Janeiro, o termo que servia como descrição geral do campo estava associado com impureza.
Essa impureza, entretanto, não deve ser confundida com desorganização ou degradação, como parece ocorrer nas interpretações de Arthur Ramos, as quais participam de um longo caudal de escritos que preza a pureza (Cavalcanti, 1986; Dantas 1988). No texto de Péret, o campo de práticas de origem africana guarda uma lógica conferida pela noção de “lei”. O poeta recorre novamente ao auxílio de Nóbrega da Cunha para citar as 12 leis que existiriam no Rio de Janeiro: “a de Nagô, a de Mina, a de Kabinda, a de Umbanda, a de Aruanda, a de Angola, a de Benguela, a de Moçambique, a de Gêgê, a de Mussurumi, a dos Caboclos e a das Almas” (Diário da Noite, 8.1.1931). Como já foi mencionado, Péret estrutura sua apresentação tomando como básica a oposição entre “Lei de Angola” e “Lei de Nagô”. Mas ele mesmo reconhece que não mais que 8 das 12 “leis” estão recobertas por essa oposição. As demais designam ritos que recebem outras influências, como a do islã e a dos índios com sua “religião própria”; no caso da “lei das Almas”, “é uma mistura de crenças espíritas e negras e sua eclosão deve ser recente” (idem). Voltamos, então, a encontrar o tema da mistura. Ao mesmo tempo, tal multiplicidade de “leis” aproxima-se da lógica que vai prevalecer para organizar as entidades na Umbanda. Os artigos de Leal de Souza, em 1932-3, estão entre os primeiros textos preocupados em expor essa lógica, apresentando as “sete linhas de umbanda” (Giumbelli, 2002). Péret, portanto, ao mesmo tempo em que busca certa pureza, apreende na mistura determinadas lógicas que descrevem a configuração dos grupos e práticas de origem africana no Rio de Janeiro e as transformações pelas quais passam.
Em se tratando da pureza, é importante assinalar algumas diferenças no modo como o poeta francês a concebe, quando percebemos que o mesmo tema aparece em outras etnografias e análises das religiões afro-brasileiras. Impossível não reconhecer aqui a discussão sobre a “pureza nagô”, paradigma de acordo com o qual o pertencimento à nação ou rito nagô implicaria maior fidelidade às origens africanas no culto aos orixás (Dantas, 1982). Arthur Ramos, por exemplo, foi um dos contemporâneos que ajudaram a consolidar esse paradigma (Cavalcanti, 1986). Como vimos, ao descrever as cerimônias protagonizadas por Tio F, que Péret associa à “Lei de Nagô”, o texto reconhece nelas a pureza valorizada pelo poeta. No entanto, Arthur Ramos explica essa pureza com base na superioridade cultural dos povos de origem sudanesa em comparação com os de origem angolana. Para Péret, a pureza é admirável exatamente pela ausência de “civilização”. Entra aqui em ação o primitivismo surrealista, que preza o rito nagô não exatamente por ser mais fiel às origens africanas, mas porque suas manifestações conseguem manter a poesia – e seu “ponto de vista” – que é pervertida pela “civilização”. Assim, o interesse de Péret pelas “origens” funda-se menos em genealogias históricas – mesmo que ele se preocupe em traçá-las – e mais na busca de uma alternativa à civilização europeia.

Exu conversa com Péret: o Brasil em formação

A leitura global dos textos nos permite concluir que Péret valoriza sim o primitivo originário – puro e selvagem, para o poeta –, mas o que ele vislumbra é uma espécie de ultrapassagem da civilização. O que lhe interessa é imaginar o “homem de amanhã”, não apenas admirar o “homem de ontem”. Em torno desse tema, Péret cita o mesmo texto de Marx nos artigos da década de 30 e na introdução escrita muitos anos depois para sua Antologia americanista. Trata-se do trecho no qual Marx trata do papel da religião na sociedade de classes (“ópio do povo”) e da necessária crítica filosófica sobre ela. No texto da introdução, Péret anuncia que a superação da religião, junto com a criação de uma sociedade igualitária, levará à elaboração de novos mitos. “A religião se esvai, mas o mito poético não se torna menos necessário, depurado de seu conteúdo religioso” (Péret, 1960: 26). Em “Candomblé e macumba”, Marx se junta a Freud para explicar a sobrevivência das religiões no meio moderno, inclusive as religiões africanas. Assim, apesar da visão positiva sobre estas por parte de Péret, sua profecia prevê também sua superação: “À medida que os negros forem adquirindo consciência de sua situação de oprimidos, essa forma [religiosa] de revolta irá desaparecendo, transformando-se em revolta consciente” (Diário da Noite, 30.01.1931). É significativo que, depois de se dedicar à macumba, Péret tenha feito uma pesquisa sobre a Revolta da Chibata, quando o levante liderado por um negro se fez sem a interferência da religião. Em 1956, escreveria um estudo sobre o Quilombo dos Palmares (Ponge, 2006). Talvez a utopia imaginada por Péret exigisse uma abolição total da religião em proveito do mito, coisa que os cultos africanos não respeitavam à risca. É ainda preciso considerar que Péret jamais despreza a inserção das religiões africanas em uma sociedade de classes, o que modifica o seu significado em relação ao lugar que tinham em sociedades mais homogêneas. Seja como for, em 1931 Péret conclui seu texto com um dilema, uma aporia (Ginway, 1992). O elogio do primitivo vem acompanhado da denúncia de sua limitação, como se passado e futuro estivessem cruelmente dissociados, como se a América fosse apenas outro cenário para o embate de forças concebido, por Marx e Freud, a partir da Europa.
É possível, no entanto, vislumbrar outra conclusão, apontando nos artigos do Diário da Noite algo que, mesmo que de maneira menos redentora, entrelace mais simetricamente esses tempos e espaços. A chave pode ser encontrada em outros textos do próprio Péret, exatamente na parte da introdução à Antologia que foi escrita no Brasil durante sua segunda estada. Nela, o poeta demonstra interesse pelas transformações que percorrem um mesmo conjunto de mitos, que ele propõe que entendamos como “um vai-e-vem intelectual constante entre as camadas superiores e inferiores da população, entre magos e sacerdotes (…)” (Péret, 1960: 37). Ele sugere que isso se evidencia quando se observa a organização social das grandes civilizações pré-colombianas, mas se intensifica após a descoberta da América. O último parágrafo trata especificamente do Brasil, onde ocorreu a associação entre mitos e ritos africanos com elementos católicos, processo que acarreta transformações em todos os elementos implicados. Vejamos a conclusão de Péret: “Com o tempo, se esse processo prossegue, não há dúvidas de que novos mitos nascerão dessa fermentação à qual estão submetidas as crenças africanas, cristãs, espíritas e talvez mesmo indígenas” (idem: 38).
Isso foi escrito em 1955 ou 56. Voltemos a 1930, especificamente ao sétimo artigo da série “Candomblé e macumba”. Ele narra, nas palavras de Péret, “uma sessão espírita meio macumbeira” (Diário da Noite, 24.12.1930). Portanto, algo que não se encaixava nem na Lei de Nagô, nem na Lei de Angola; talvez, especula o francês, preenchesse a lei das Almas, com sua “mistura de crenças espíritas e negras”, coisa não confirmada pelo oficiante, que se dizia um espírita da “linha de terreiro” – por oposição à “linha de mesa”. Eis aí o primeiro ponto: essa mistura é algo desconcertante para Péret. O evento que descreve parece um corpo estranho às suas classificações, ao mesmo tempo em que introduz outras (linha de terreiro / linha de mesa). E, no entanto, ele estava lá, incontornável, talvez porque o oficiante fosse o próprio guia de Péret, ou seja, a pessoa que o conduziu aos terreiros de Tio F e de Mãe M, alguém que ele descreve como “um músico mulato, meu amigo”, a quem chama “P”.
A sessão ocorreu na casa de P, na região suburbana do Rio de Janeiro. Seu objetivo era livrar uma moça do feitiço preparado por um “apaixonado desprezado”. Assim começava: “P e sua mulher estavam sentados, um em frente ao outro, diante de uma mesa onde, ao lado de uma estatueta colorida de São Jorge montado a cavalo, via-se uma vela acesa, um copo cheio de água e um livro que, mais tarde, soube ser um livro de rezas espíritas de Allan Kardec”. A mulher recebeu o “Caboco veio”, a primeira de várias entidades que transitaram entre ela e o marido. Péret registra que eram “15 protetores, negros, brancos, mulatos, índios e caboclos”, o que inspira o subtítulo do artigo: “‘Mané Kuru’, ‘Perekê’, Allan Kardec e Cia”. Depois de vários protetores manifestados, a mesa foi levada para um canto da sala. P, em transe, muniu-se de um charuto e de uma garrafa de cachaça, com a qual tentava atrair Exu, sob cujas ordens outros espíritos perturbavam a moça – eis a explicação para as perturbações que sofria. P alternava entre o africano e o português no idioma. Depois de muito custo, Exu deu sinais de sua presença, mesmo invisível. O que aconteceu em seguida – em torno de uma oferenda a Exu – vale a longa transcrição:

Começou então a parte mais importante da cerimônia: o despacho a Exu. Trouxeram farinha de mandioca, azeite de dendê e 20 vinténs que P misturou bem dentro de um alguidar. Apanhou depois um galo preto que estava no chão embrulhado em um jornal e chamou a pessoa para quem era feito o sacrifício. Com grande pavor foi ela obrigada a segurar pernas e asas do galináceo para que P lhe cortasse o pescoço. Enquanto o sangue escorria dentro do alguidar P tratou de convencer Exu a deixar a moça em paz. E mostrando-lhe a comida, o galo e juntando a tudo isso duas notas de dez mil réis, dizia no tom mais convincente:
– Oh! Exu, c’est pour vous... c’est pour vous...
E com grandes gestos, mostrando a moça, o marido, o despacho, o dinheiro, insistia, dessa vez em africano.
Para ser agradável a Exu nos fez beber a todos um gole de cachaça em sua honra, apresentando-nos cada um por sua vez. Exu ficou assim sabendo que eu ia escrever esses artigos, que era francês, que tinha vindo de vapor para cá e outras coisas. E permitiu que escrevesse os artigos recomendando que não falasse mal dele e ainda mais, que não o esquecesse, e que recorresse a ele quando precisasse. (Diário da Noite, 24.12.1930)

Depois disso, P entabulou novo diálogo com Exu e traçou nove pontos riscados (desenhos com função invocatória, reproduzidos em desenho de Péret para o jornal); a pólvora que os contornava foi incinerada. Era a partida de Exu, seguida de alguns procedimentos de purificação e da remessa, pelo marido da moça, do despacho. Esperava-se assim convencer Exu a não mais perturbar a moça que procurara a casa de P.
Péret não emite comentários sobre esse evento. Ele não merece a admiração dedicada a Tio F ou a decepção suscitada por Mãe M. Não notamos, na sua narrativa, as formulações poéticas que surgem a propósito dos rituais e da mitologia nagôs. Minha sugestão é que vejamos a poesia se manifestar de outra maneira, mas ainda em conexão com temas e procedimentos surrealistas. Refiro-me à proliferação de referências e à passagem brusca entre elementos díspares: entidades negras, brancas, mulatas, índias e caboclas; idiomas francês, português e africano; espiritismo e macumba, mesa e terreiro; Exu e Péret. Não haveria nisso – incluindo o modo como “Exu” e “vous” podem rimar – algo parecido com a beleza do “encontro fortuito de uma máquina de costura e um guarda-chuva sobre uma mesa de dissecação”? Essa outra frase de Lautréamont foi também adotada pelos surrealistas para sintetizar suas concepções estéticas (Moraes, 2002). Para eles, a matéria da arte não pode se separar da vida, e o que, em nome daquela, se busca é a perturbação dos sentidos para que dimensões extraordinárias da realidade se tornem acessíveis. A descrição de Péret capta encontros entre elementos disparatados na casa-terreiro de P e não creio que o vínculo de seu autor com o surrealismo seja sem consequências para essa observação.
Note-se logo que é possível reconhecer configurações semelhantes no terreiro de Tio F, como a dançarina que incorpora o que parece ser um preto-velho que fuma charutos e dá conselhos, ou ainda a transformação de Omulu em são Cosme e são Damião, com seu palpite para o jogo do bicho... (Diário da Noite, 9.12.1930). Ou seja, Péret, mesmo concordando que a Lei de Nagô é uma “expressão mais pura” de suas origens africanas, não deixa de observar a fermentação por que passam essas concepções. Indagado sobre os “santos” e suas características, Tio F associa o diabo a Exu (Diário da Noite, 27.12.1930), evidenciando a aproximação entre referências cristãs e africanas.[16] Na seção anterior, procurei mostrar como a categoria macumba servia como uma espécie de descritor geral da configuração dos cultos de origem africana no Rio de Janeiro. Um corolário dessa situação é a criação e valorização de operadores que produzem passagens entre arranjos que são ritualmente distintos (como as “leis” observadas por Péret). A figura de P é exatamente uma materialização da existência desses operadores, em sua capacidade de se movimentar no interior do universo com o qual se identifica. Mas nos fixemos ainda em Tio F. Em outro diálogo com Péret, que lhe pergunta o “que pensa do espiritismo”, o babalorixá responde: “quem trabalha com espiritismo não tem a força que nóis temo, porque eles trabalham com qualqué espírito que quizé aparecê, e nóis só trabalhamo com os espírito de luiz que tem muinto mais podê que os outro” (Diário da Noite, 31.12.1930). Percebe-se como a noção de “espírito” não é descartada pelo representante da Lei de Nagô em favor de outra noção, a de orixá; ao contrário, ela é assumida, o que gera um plano de continuidade entre essa “lei” e o espiritismo de feição kardecista.
A “sessão espírita meio macumbeira” que aconteceu na casa de P é, por definição, um exemplo privilegiado das passagens que poderiam ocorrer em rituais radicados no Rio de Janeiro dos anos 1920 e 30. Destaco o fato de que nela convivem entidades de negros, brancos e índios, em uma antecipação daquilo que alguns anos depois seria institucionalizado com o nome de “espiritismo de umbanda”. Uma das diferenças que se estabelecem com essa institucionalização com o kardecismo é a aceitação, na umbanda, de “protetores” que não são médicos, legisladores, padres ou filósofos; são “pretos-velhos” e “caboclos” (Giumbelli, 2013). Péret testemunha na casa de P a expressão de um processo do qual importa reter não apenas a heterogeneidade de elementos com suas várias procedências, mas também o fato de que se trata de uma espécie de reflexão e de elaboração acerca da desigualdade como questão. A umbanda é a afirmação paradoxal do poder de entidades marginais, é a invocação feita aos negros escravizados (pretos-velhos) e aos índios fugidos (caboclos) – ambos figurações do primitivo – para auxiliar na construção da civilização – não qualquer civilização, mas uma capaz de reconhecer a sua incompletude (Giumbelli, 2002). Péret registrou: “Há casos, disse-me P, em que a linha de mesa é impotente; só mesmo meus protetores da linha de terreiro é que poderão conseguir qualquer coisa” (Diário da Noite, 24.12.1930). Eis uma demonstração de como a civilidade kardecista reconhecia os poderes de entidades primitivas.
Desigualdade, marginalidade, primitivismo e civilização, na configuração apontada acima, estão necessariamente referidos a realidades históricas e imaginários narrativos que são situados e específicos. O que está em jogo, em outras palavras, são as condições e concepções que, naquele contexto, constituíam o Brasil. A partir do final dos anos 40, intelectuais umbandistas reivindicariam para a sua religião a qualidade de ser “genuinamente brasileira”. Tal afirmação pode conter vários sentidos. Entre eles, destaco aquele que aproxima o processo pelo qual passavam macumbeiros cariocas do projeto formulado pelos intelectuais modernistas, sobretudo os vinculados à Antropofagia, tal como Oswald de Andrade. Era preciso descobrir o Brasil, fazendo o primitivo atuar sobre o civilizado, o americano e o africano interpelar o europeu. Em suma, o que quero sugerir é que o ponto de vista poético de Péret não ocorre apenas onde é mais evidente, gerando, como vimos, um dilema talvez insolúvel. Ele pode ser surpreendido também no relato de encontros (não tão) fortuitos, cujos elementos estão condenados a remeter aos tempos e espaços do trajeto do país que o poeta conheceu, sem eludir os dilemas de sua formação. Se o elogio relativo dirigido sobretudo à Lei de Nagô evoca o olhar europeu de Péret sobre a América, a narrativa desconcertada da “sessão espírita meio macumbeira” pode sugerir, de um modo que articula surrealismo e antropofagia, um Brasil a devorar o francês. Afinal, Péret, ao vir para a América, talvez não tenha senão respondido ao chamado de um Exu macumbeiro.



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidada: José Ángel Leyva (México, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 137 | Julho de 2019
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[1] O jornal Diário da Noite circulou em São Paulo entre as décadas de 1920 e 1980. Em 1925 foi comprado pelos Diários Associados, importante grupo de comunicação de massa. O Diário da Noite era conhecido por veicular temáticas e linguagens voltadas para as camadas populares. Sobre o jornal, ver Romero (2011).
[2] Os textos foram publicados em 13 edições do jornal. A revista Religião & Sociedade os reproduziu “quase na íntegra”, introduzidos e apresentados por Elizabeth Ginway (1986). Consultei os recortes do original que estão disponíveis no Arquivo Mário de Andrade do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. Registro meus agradecimentos a Marta Amoroso, colega que me guiou na sede do IEB quando lá estive em 2008.
[3] Sobre essa discussão, pode-se consultar, entre outros, Cavalcanti (1986), Dantas (1982) e Silva (1996).
[4] Este trabalho de representação não pode ser dissociado da própria constituição dessas religiões. Por ora, prefiro utilizar a expressão mais genérica – “religiões afro-brasileiras”; em seguida, darei atenção às categorias utilizadas por Péret; por fim, procurarei relacionar tais categorias com outras, presentes em relatos de observadores externos e em reivindicações dos próprios religiosos.
[5] Referências importantes nesse debate são, entre outras, Correa (2000), Birman (1997), Montero (1999) e Schwarcz (1995). Estes textos tratam do pioneirismo do médico maranhense Nina Rodrigues no registro e análise de grupos religiosos afro-brasileiros e da linhagem de pensadores e de questões que dele descendem.
[6] Estou ciente, mesmo sem ser especialista no tema, de que o modernismo no Brasil é um movimento heterogêneo, inclusive com fortes dissonâncias. O mesmo pode ser dito sobre o surrealismo na Europa. No diálogo em que se envolve Péret, são sobretudo os nomes ligados à vertente da Antropofagia que entram em cena.
[7] O mapa foi publicado exatamente em 1929 na revista belga Variétés. Pode ser visto em: https://mappingthemarvellous.files.wordpress.com/2007/09/i2-world-map.png.
[8] Elsie e Benjamin se separaram ainda nos anos 1930.
[9] Lívio Xavier destacou-se como tradutor; foi ele quem verteu para o português os artigos de Péret sobre “macumba e candomblé”. Mário Pedrosa trabalhava como jornalista e se tornaria um importante crítico de arte. Era casado com a irmã de Elsie Houston.
[10] Há uma fotografia célebre de Péret, divulgada em várias publicações surrealistas, mostrando “nosso colaborador... injuriando um padre”. A foto pode ser vista em http://susauvieuxmonde.canalblog.com/archives/2010/05/23/17982661.html. Sua intransigência em relação às religiões, sobretudo o catolicismo, foi um dos motivos de críticas por parte de alguns intelectuais brasileiros.
[11] Sobre Mário de Andrade, remeto o leitor a um trabalho recente (Jardim, 2015). Ver o estudo de Peixoto (2000) sobre Roger Bastide, sociólogo francês que também transitou entre gêneros textuais e manteve diálogos com parcela do modernismo brasileiro.
[12] Significativamente, Péret não utiliza em momento algum nos textos do Diário da Noite as expressões “baixo espiritismo” e “falso espiritismo”. Essas expressões, respaldadas em reportagens e etnografias, serviram para orientar o trabalho repressivo de autoridades policiais e sanitárias, que atingiu sobretudo práticas e grupos com traços africanos (Giumbelli, 2003).
[13] Sobre a importância de Lautréamont (1846-1870) para os surrealistas, ver, por exemplo, Moraes (2002).
[14] Goldman (2012) desenvolve uma análise acerca do cultivo da multiplicidade no candomblé.
[15] Sobre o trajeto de Ramos, ver Corrêa (2000). O livro a que Péret se refere é No mundo dos espíritos, que compila a série de reportagens e entrevistas que Leal de Souza realizou em centros espíritas no Rio de Janeiro e arredores para o jornal A Noite em 1924. Leal de Souza, que era também um literato, publicaria em 1933 outro livro, Espiritismo, magia e as sete linhas de umbanda, já então convertido em um intelectual da religião que se formava (Giumbelli, 2002). Nóbrega da Cunha foi jornalista e dirigiu o jornal carioca Diário de Notícias, onde os textos do livro de 1933 foram originalmente publicados. Teve participação importante na IV Conferência Nacional de Educação, realizada em 1931 (Rocha, 2004: 149ss). Péret se refere a um estudo sobre “as religiões africanas no Rio” (Diário da Noite, 8.1.1931) publicado na revista Vanguarda em 1926 (que jamais consegui consultar); há registros da presença de Nóbrega da Cunha no I Congresso Afro-Brasileiro de Recife em 1934, no qual este apresentou o trabalho “Macumba no Rio de Janeiro”. Outro exemplo de relato sobre religiões originalmente publicado em jornais (nesse caso, Correio da Manhã) é Magalhães Corrêa (1936).
[16] Sobre as diferenças entre o Exu africano e o Exu brasileiro, ver Ortiz (1978). A associação entre Exu e o Diabo é crucial na migração daquele orixá para as Américas. Negociar com as potentes forças de exu – como se vê no ritual na casa de P – é uma das características da umbanda.

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