Não foram as canções de ninar, nem o repertório de rezas e ditos e pregões, que se constituíram nas primeiras fontes da obra literária de José de Alencar. O escritor brasileiro forjou-se em chão mais árduo. As primeiras e decisivas lições, as que seriam por ele reconhecidas, estiveram afetas a outras reminiscências de infância. Reservou lugar primordial ao romanceiro popular nascido da luta dura contra o deserto cearense, das cantigas de boi e canções de pastoreio – os aboios. Foi da escuta das toadas dos vaqueiros, nos fins de tarde no sítio do Alagadiço Novo, em Messejana, que Alencar menino guarda a primeira impressão da beleza perene. Com estas reminiscências irá construir a cena tocante da corrida do Boi Dourado, sucedâneo do mítico Boi Espácio, em seu último romance, O sertanejo, de 1875. Haveria outras lições.
A segunda marca a comparecer no seu projeto literário reúne a literatura e a política. Por este tempo o menino seguia os estudos no Colégio da Instrução Elementar, do Rio de Janeiro. Alencar reconheceu a valia da disciplina, desde as primeiras letras, a dele austera e gravíssima, para o garoto de nove anos, de quem se exigia rigor monástico e desempenho escolar quase à perfeição. O menino passa a ter um lugar destacado nos repetidos saraus familiares do sítio em que vivia a família do Senador Alencar, seu pai. Nasceu daí o menino ledor da família, que lia romances para a mãe e as tias, nos saraus familiares. Estes livros eram alguns exemplares traduzidos, pertencentes à pequena biblioteca familiar. Lia, repetidas vezes, os mesmos romances. O menino lia, enquanto as mulheres fiavam ao redor da mesa de jacarandá. No centro da mesa, um candeeiro, a lembrar que entre as luzes do século, a rebaterem tênues na Corte embelezada, havia esta penumbra, exigindo muito esforço do menino para cumprir o destino de tornar-se o futuro romancista e um político brasileiro.
O terceiro aprendizado do jovem Alencar se inicia durante o período preparatório para a faculdade de Direito, em São Paulo. Foi para lá com apenas 13 anos de idade. Passou a conviver com parentes e amigos da família, todos mais velhos que ele, leitores dos românticos ingleses e franceses. O garoto tímido exercitou a escuta paciente – que já conhecia do mestre da Escola, o severo Januário Mateus. Teve acesso à vasta biblioteca do amigo Francisco Otaviano e pôs-se a ler Balzac, na língua original, debulhando palavra a palavra sobre um dicionário. Depois leu Dumas, Chateaubriand, Hugo, Vigny e outros romancistas. Mas não esqueceu a descoberta do primeiro romance brasileiro, de 1848, que o encantou, A moreninha – “gentil romance” - do médico Joaquim Manuel de Macedo. Os jovens estudantes fumavam charutos, discutiam e liam as sombras de Byron. Alencar, o mais garoto, passou sem nenhuma simpatia pela mancha negra da melancolia. Já a possuía de sobra – declarou – e a empregaria na vida e nos romances.
A literatura de Alencar não teve, não poderia ter o traço do descompromisso em face da história. Fez literatura como missão, tal como o fizeram quase todos os escritores e poetas românticos, desde Gonçalves Dias – estes que assentaram um chão com a língua portuguesa no Brasil, e criaram figuras e nomes próprios da terra. Alencar fala com orgulho cerimonioso do Dicionário da Língua Tupi, do seu predecessor, o “Senhor Gonçalves Dias” – reconhecendo-lhe presente no caminho de sua própria aventura.
Tanto a literatura brasileira, quanto os lances decisivos do Primeiro e Segundo Reinado passariam por esta família Alencar, de tradição insurgente, forjada na política em lances dramáticos das lutas libertárias, como os da Confederação do Equador. Registre-se ainda a vocação eclesiástica desse clã cearense de origem pernambucana, que resultaria em muitos padres católicos. O espírito missionário estava na alma exaltada de seus descendentes.
O último homem nele, a aparecer, tardio, foi o político – o parlamentar e o polêmico. Mas como imaginar um destino diverso para um menino que teve o pai e a avó, Bárbara de Alencar, presos na Confederação; a velha matriarca, exilada, reaparecendo depois em paradeiro misterioso, numa fazenda em Fronteiras, pelos confins do Piauí, lugar em que veio a falecer… É muito enredo para um só romancista – que necessitou do fôlego de algumas mil páginas para ocupar-se com as incríveis aventuras das minas de prata. Este foi o espanto de Afrânio Coutinho, ao coordenar a edição das obras completas do romancista. Alencar viveu 48 anos, alternando-se quando jovem bacharel em Direito, entre o jornalismo, a literatura de folhetim, o teatro. Depois, sem deixar a literatura e o jornalismo, dedicou-se ao parlamento, duas vezes Deputado pela Província do Ceará, e à gestão ministerial, na pasta da Justiça. Ainda que sob o peso desta divisão, escreveu mais de cinco mil páginas conhecidas, e pesando-lhe ainda a sombra ameaçadora a lhe espiar, “a mão descarnada” da moléstia.
É bastante fútil dizer-se de um escritor, que navegou em diversas tradições lingüísticas, que limitou-se a seguir este ou aquele romancista moderno que o precedeu. O Guarani, atravessado pela lenda de Tamandaré, abarcando um trecho épico da colonização portuguesa, no plano histórico, é principalmente um espetacular romance de aventuras, no plano narrativo e no plano discursivo da história. Permanece lenda e aventura ainda quando traz à luz o fundamento histórico, as lutas entre conquistadores portugueses e toda sorte de aventureiros, e os índios que habitavam a região da Serra dos Órgãos, ao interior do litoral fluminense.
Não espanta que romance tão bem urdido se fosse transmitir e impregnar a cultura brasileira, ao longo de mais de 150 anos. Publicado em folhetim no Diário de Noticias do Rio de Janeiro, os exemplares do jornal eram a cada capítulo disputados, lidos em grupo “até em pontos de bonde”, na fria garoa paulista – dão conta relatos da época. Não surpreende que a verve popular deste folhetim assentado em projeto literário consistente - um horizonte ao reconhecimento para a língua e a nação ainda informe - tenha sido recebida com tanto entusiasmo e se feito ademais decisivo na constituição do público leitor no Brasil – como já foi analisado pela crítica.
Mas o recuo alencariano à lenda e à fábula, para desenvolver argumentos históricos, feito em O guarani, daria por fim o fruto mais original – e para este seria necessário espaço mais largo para falar. Trata-se de Iracema, a heroína indígena que cumpre ainda sua vocação popular, em todo o Brasil. Nascida no ano de 1865 mereceu o subtítulo de Lenda do Ceará. Era sua obra mais acalentada, criada na plenitude de sua experiência estética e política. Não se disse o suficiente da beleza do seu estilo e da função histórica que coube a este livro na cultura brasileira, nele convergindo individualidade do estilo com a desejada nacionalidade da língua literária; da sua presença na reorientação do campo estético e político nacional.
Como um rei ou patriarca, ainda prepara o primeiro elo da sucessão genealógica, de sua obra, com o nascimento do nomeado Moacir, o filho do sofrimento, que ganha ainda outro epíteto, o primeiro cearense – no plano histórico, o primeiro mestiço brasileiro. Nesta cena condensada podemos, nós todos, até hoje nos reconhecer. A criação do romance e a formação do povo brasileiro podem incluir o sacrifício de escrever no deserto a epopéia moderna de uma língua antiga, trazendo à luz o sacrifício dos primeiros donos da terra. Feita pela via fabular, a lenda, esta forma da sabedoria que ensina a dor com um acalanto. Unindo na lenda o que a história apartou – conforme escreveu comovido Machado de Assis.
Alencar vai além, no estabelecimento da “pátria da liberdade”, como designava o continente Americano. Que alegria suplementar tem ainda, entre os brasis, um cearense de lei, em descobrir no cenário da lenda os significantes e a beleza da toponímia que faz parte de seus próprios roteiros diários? Mecejana (com c), Mocoripe, Maranguape, Parangaba, Meruoca, Baturité, Aracati, Aratanha, Camocim… Nunca mais nos perderíamos de forma irremediável.
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Ana Maria Roland (Brasil, 1949). Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília/Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais. Publicou Fronteiras da palavra, fronteiras da história (1997), vencedor do Prêmio Tribuna Americana-Aula Simon Bolívar, da Casa de América, Madri, 1996. Pesquisadora no Observatório das Nacionalidades (Universidade Federal do Ceará), membro da comissão editorial da Revista Tensões Mundiais.Contato: anamariaroland@uol.com.br. Página ilustrada com obras da artista Aline Daka (Brasil).
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