Eu, e creio que muitos,
busco não o que é verdadeiro em absoluto mas o que nós somos.
Cesare Pavese
"Todos os dias, todas as
tardes, pelo menos, tomávamos nós, poupadamente, o nosso café, lá descia ele da
alta escadaria, fumando o seu cigarro, o chapéu de aba larga, um tanto ou
quanto a manzantini - assim a minha deformada memória mo recorda -,
ligeiramente derrubado sobre a orelha, o bigodinho retorcido. Atravessava o
corredor e desaparecia para lá do guarda-vento. Acabava de almoçar no
restaurante mais afamado de Coimbra, aquele onde se dizia ser a cozinha de
qualidade e a conta de razoável preço…
Não sei como, não me
recordo graças a quem, mas o certo é que esse moço, que vestia fatos de bom
corte, entrou na nossa roda.".
O jovem a quem João Gaspar
Simões faz referência nascera no Porto em 1905 e era um dos poucos estudantes
coimbrões a frequentar o primeiro andar da pastelaria-cafe Central, local onde
a tertúlia da revista Presença habitualmente se reunia. De seu nome Francisco
José Lahmeyer Bugalho - Lahmeyer, nome de ascendência germânica pois seu pai
era alemão - estava em Coimbra a cursar Direito e ligava-se desta forma aos
presencistas, grupo onde, além do citado Gaspar Simões, pontificavam os nomes
de José Régio e Branquinho da Fonseca.
A primeira colaboração de
Francisco Bugalho, em prosa, apareceu no número 18 da revista, em Janeiro de
1929 (Detalhe de uma Novela). A sua poesia, por outro lado, demonstrando uma
sensibilidade muito sincera e profundamente humana, encontrava-se de acordo com
os preceitos teóricos defendidos pelos homens da Presença, os quais advogavam
uma arte "verdadeira e intima" . Independentemente do
antagonismo de posições que a sua poesia suscitou aquando da discussão que
sobre ela o grupo empreendeu, a verdade é que em Dezembro desse mesmo ano já a
folha coimbrã trazia a sua estreia poética (Obsessão).
Aquando desse
acontecimento, Francisco Bugalho "vivia sobre si, proprietário de uma grande
quinta no Alto-Alentejo". Aí lhe haviam sucessivamente falecido os
pais e uma irmã ainda bastante nova, pelo que o poeta, nas férias, residia
habitualmente dentro da vila com uma prima de idade avançada - a propriedade, a
"Quinta das Palmeiras", fica a um par de quilómetros de Castelo de
Vide.
Francisco Bugalho é
normalmente apelidado de "poeta da calma melancolia alentejana"
, em cuja poesia se nota um acento lírico vibrante "numa ansiedade
insatisfeita de identificação com nesgas de paisagem, sobretudo da bucólica
alentejana" . Poemas como Rega (“Longa, lenta, melancólica,/ Cantou
a velha canção/ a nora triste da horta./ E uns brados ares de bucólica/ -Oh,
lírica solidão! -/ Bateram à minha porta.[…]" ) ou Meio-Dia ("
Céu baço. Quente quebranto/ se espalha no longe, enquanto/ Cantam cigarras à
roda… […]" ), entre outros de temática semelhante, contribuem para que
essa classificação facilmente se transforme em cómoda etiquetagem com a
realização de leituras apenas superficiais.
José Régio, seu grande amigo
- Régio dedicou-lhe a célebre Toada de Portalegre - já em 1931 alertou para a
riqueza poética que Francisco Bugalho oferecia no seu primeiro livro, Margens
(1931), dado a lume sob a chancela das "Edições Presença". O autor de
Poemas de Deus e do Diabo frisou o cunho intimista e nada academicizante da sua
poesia: "Não grande livro, decerto, se nesse livro subtil e simples
procurarmos o que nos não procurou dar (interrogações, intuições, soluções (?!)
sobre o mistério do homem e o da sua posição no Universo), o livro de Francisco
Bugalho é notável pela graça, pela discrição, pela frescura, pela sinceridade.
Sabe bem, ao fim duma discussão metafísica, dobrarmo-nos a cheirar uma flor
sobre a própria terra-mãe; ou a beber água da própria nascente, depois duma
orgia".
Mas os poemas de Francisco
Bugalho são, a meu ver, bem mais que um simples refrigério intelectual. Se a
poesia não é sentimentos mas experiências, como disse Rainer Maria Rilke e que
"por amor de um verso têm que se ver muitas cidades, homens e coisas,
têm que se conhecer os animais, tem que se sentir como as aves voam e que se
saber o gesto com que as flores se abrem pela manhã" ,
compreender-se-á que a "modéstia" - palavra empregue por Régio - mais
não é do que a permanência de uma poesia sem qualquer característica cénica ;
ou seja, a poesia de Francisco Bugalho é uma poesia autenticamente pujante, que
se não confessa aos maneirismos e modernismos da época, dando-se de uma forma
espontânea e total quando fala das pequenas (?) coisas do quotidiano: a beleza
de uma paisagem, o passar inexorável do Tempo, as principais actividades da
vida agrícola, enfim, o cumprimento da passagem pela terra de homens e de
animais. É esta a poesia que Francisco Bugalho nos deu em Margens, concordando
eu inteiramente com Fernando J.B. Martinho quando este refere que o seu valor
não tem sido suficientemente salientado.
Depois de haver demandado
Lisboa em busca da conclusão do curso que em Coimbra lhe tardava, Francisco
Bugalho regressou definitivamente a Castelo de Vide para aí exercer o cargo de
Conservador do Registo Civil, dedicando-se simultaneamente à lavoura. Este
carácter "bipolar" da sua vida - homem de poesia e homem prático -
assume-o Francisco Bugalho nos seus versos: " Poeta sempre em luta
vã contigo,/ Que sofres de já seres aquilo que não és,/ Que sofres de não seres
aquilo que queres ser…(…)."
Quando voltou ao Alentejo
já o autor de Margens tinha um filho, fruto da sua união com Guilhermina Mimoso
Flores Bugalho. Este menino ficaria conhecido pelo pseudónimo de Cristóvam
Pavia. De seu nome Francisco António Lahmeyer Flores Bugalho, havia nascido em
Lisboa, na freguesia de Alcântara, a 7 de Outubro de 1933. Francisco Bugalho,
no dizer de David Mourão-Ferreira " um Conde de Monsaraz sem
pitoresco, um Fialho de Almeida sem dramatismos, um Mário Beirão sem veleidades
épicas " compartilharia, pois, com seu filho - pelo menos na
primeira idade deste - esse microcosmos rural que ambos, de maneira muito
pessoal, intuíram e expressaram de forma muito bela.
Para fazermos novo é
preciso regressarmos às origens, à humanidade na infância.
Gauguin
Terá o nordeste alentejano essa fascinante
característica de criar nos poetas as "asas e raízes " de
que fala Régio no seu Fado Alentejano? Não deixa de ser interessante sublinhar
este aspecto, bem como a atracção que poetas exteriores à região têm sentido
pelo seu perfil geográfico e humano, possuidor de uma atmosfera poética muito
especial. Além do conhecido e algo paradigmático caso de José Régio em
Portalegre, não podemos esquecer-nos do de Branquinho da Fonseca, por exemplo,
que dedicou interessantes páginas à vila de Marvão (o conto O Conspirador, do
seu livro Caminhos Magnéticos), onde foi Conservador do Registo Civil; mas
também o de Mário Saa, próximo de Avis e, um pouco mais para o sul, o de
Sebastião da Gama, que se deixou prender à bonita cidade de Estremoz, aí
encontrando, talvez, a fraternidade cósmica de que tantas vezes falou.
Os nascimentos de Francisco
Bugalho e de Cristóvam Pavia em Lisboa queremos considerá-los como meras
ocorrências acidentais. David Mourão-Ferreira teceu em tempos oportunas
considerações acerca da "adaptação" ou "adopção" de
Francisco Bugalho em relação ao Alentejo. No que se refere a António Luís
Moita, poeta de qualidade e com preocupações de cariz universal, há desde já a
certeza de que, como queria Apollinaire, ele terá encontrado a vitória ao ver
bem ao longe e ao ver bem ao perto e dando a tudo um nome novo. O facto de não
residir no Alentejo é pois, também aqui, simplesmente circunstancial.
António Luís Pinhão de
Jesus Moita nasceu em Lisboa em 1925, aí tendo feito os estudos liceais. No
entanto, muitas das suas férias escolares foram passadas exactamente em Castelo
de Vide, em casa de parentes seus. Foi nessa vila - Castelo da Vida, como já
alguém lhe chamou - que António Luís Moita, então com uma dúzia de anos,
contactou pela primeira vez com Francisco Bugalho e com Cristóvam Pavia. É o
próprio poeta quem o recorda: "Na estrada que liga Castelo de Vide a
Marvão, junto ao portão da quinta de uns primos meus, Francisco Bugalho,
montando uma égua, pára uns minutos para saudar o meu pai, seu velho amigo.
Veste de linho branco. A cor do fato (sei-o agora) acentua-lhe o negro do
cabelo escorrido e do bigodinho estreito, à John Gilbert. Usa botas altas,
castanhas, quase da cor da montada, cuja impaciência as rédeas refreiam. À sua
frente, escarranchado, seguro pelos braços fortes do cavaleiro, um menino de 4
anos, estranhamente quieto e silencioso, fita-me do fundo muito claro de dois olhos
enormes","olhos verdes como as águas", no dizer de
Francisco Bugalho. Esse olhar o poisou o jovem desde muito cedo sobre tudo o
que o rodeava, precocemente inquirindo e perscrutando, como mais tarde António
Luís Moita e seu pai ouviram a um Francisco Bugalho preocupado mas
agradavelmente surpreendido: ao que parece, o pequeno "Chico"
António, com apenas oito anos, foi apanhado a ler um dos últimos volumes de uma
enorme História de Inglaterra, isto pouco depois de ter dito ao pai a sua primeira
poesia: "O paizinho lê livros na salinha/ Enquanto a mãe faz bolos na
cozinha". António Luís Moita, agora com 16 anos, havia entrado no
espaço intimo de Francisco Bugalho por o poeta saber pelo pai do jovem que este
também já fazia versos, meio às escondidas…"Promovido, assim, a
confrade incipiente ou, talvez melhor, a pessoa crescida, a aparência um tanto
austera do poeta de Margens, que a principio me intimidava, liquefez-se. Aquele
homem grande - que ria pouco - sabia afinal sorrir. E o sorriso, ao abrir-se, transmitia
bondade imediata".
Num livro editado mais ou
menos por essa altura, Canções de Entre Céu e Terra (1940) e tal como o próximo
organizado graficamente pelo pai de António Luís Moita, Francisco Bugalho fixou
com grande ternura e carinho a ânsia curiosa do filho:"Meu menino ama
os cães/ Os gatos, as aves e os galos/ (S. Francisco de Assis em menino
pequeno) / E fica horas sem fim / Enlevado a olhá-los".
Por essa época já a
Presença se tinha afundado. A sentença de morte da revista, que o poeta tanto
amava e que, aquando da cisão de Junho de 1930 (saídas de Branquinho da
Fonseca, Edmundo de Bettencourt e Miguel Torga) foi "um dos mais fiéis
pilares da revista salva do naufrágio" , fora lavrada precisamente na casa
onde António Luís Moita e seu pai ouviam aquelas novas sobre o pequeno
"Chico" António.
Foi ainda por essa altura -
Outubro de 1940 - que este passou a residir em Lisboa, em casa do avô materno,
o Prof. António Flores, docente da Faculdade de Medicina.
Aquando desta sua ida para
a capital já Cristóvam Pavia transportava consigo uma sólida - apesar de curta
- vivência familiar ligada ao mundo rural e que ao longo de toda a sua vida
sempre o acompanhou. Giovanni Papini disse um dia ser a cidade uma represália à
natureza selvagem. Nada mais justo para o jovem poeta, para quem Lisboa, plena
de "pasmo, calor e moscas", seria o espaço urbano opressor por
excelência, essa Lisboa cuja aproximação o angustiava e da qual ele expressou
mais tarde na sua Litania da Rua dos Fanqueiros aquele que entendia ser o seu
ambiente físico e espiritual: " Ó porque será este chulé ibérico/
Em Espanha é pitoresco mas aqui é pindérico/ Ó Rua dos Fanqueiros/ Ó Salazar
com teu rebanho de sacristas/ Pensar que isto já foi terra de sardinha e de
fadistas […]."
Sete anos mais tarde
começou a frequentar o 4º ano do Liceu D. João de Castro. Nada sei do que
Cristóvam Pavia escreveu durante estes anos (1940-47) - a sua pouca idade
certamente não foi óbice a um aprofundamento do seu sentir poético - até porque
muitos dos seus escritos se encontram ainda por revelar, escondidos por vontade
expressa do poeta, que começou por esta altura a utilizar o pseudónimo. Que nos
revelariam eles? Certamente uma poesia bastante precoce, fruto de uma vida
extremamente viva e vivida - afinal, a "bagagem" com que se fazem os
versos, como queria Rilke e que seu pai, numa das sua últimas poesias, intuiu :
"Perdeu de todo seu brilho/ A esperança de dias novos/ E embora haja os
renovos/ Com que me não maravilho/ Vou sentindo que são novos/ No fresco olhar
de meu filho". O poema, significativamente, intitula-se Reverdecer.
Expressariam ainda, creio-o, partes do seu mundo interior, vasto, sensível e
complexo mas sempre muito ligado às pessoas, aos animais, às coisas e aos
acontecimentos. Numa tão lúcida quanto bela abordagem à sua produção poética, o
poeta José Bento referiu ser esta " expressão do homem que ele foi: há um
profundo paralelismo entre os seus poemas e os dias que ele viveu". E mais
adiante acrescentou: "A poesia de Cristóvam Pavia é a revelação de si
próprio, duma personalidade em conflito com o mundo em que vive e em que
procura uma fuga pela recuperação da infância morta […]. Pode considerar-se a
sua poesia uma continuação e uma superação do espírito da Presença, a que não
podia deixar de sentir-se ligado por seu pai […]."
Enquanto Francisco Bugalho
demonstrava nos seus versos reconhecer no filho não apenas o germinar de uma
expressão lírica fundamental mas também o continuador com novas planícies para
descobrir e editava, em 1947, o seu último livro (Paisagem), Cristóvam Pavia
passava no liceu pelo que considerava ser " a horrível e impossível Arte
Social". Num poema intitulado Aspiração, desabafou: "Oh, ser eu
qualquer palerma/ Vestindo decentemente/ Viver sempre bem alegre/ E agradar a
toda a gente. / Ser um rapaz mais vulgar, / E deixar as fantasias./ (Este
sentir e pensar/ só serve para arrelias) / E ser o campeão da bola/ Na equipa
do liceu, / E ser o moço estarola / que nunca se comoveu." . Neste
singelo e muito sincero poema encontram-se já expressas duas características
fundamentais da sua personalidade e que de forma marcante se projectaram nos
seus poemas: uma timidez profunda e algo doentia e a inadaptação a
conveniências sociais e literárias, derivadas, a meu ver, do fascínio pelas vivências
infantis e subsequente tentativa de regresso à infância (mesmo que realizada
apenas através da reconstrução interior e espiritual das suas coordenadas
básicas), o esforço de um quimérico enraizamento num paraíso que o poeta
apercebia cada vez mais perdido. Estes aspectos, bem como a sua grande
religiosidade, são essenciais para a compreensão da sua poesia e, talvez, de
toda a sua (curta) vida. Como fundamental é também um acontecimento que no ano
seguinte o marcou decisivamente: a morte prematura de seu pai em 29 de Janeiro
de 1949.
Os poetas voltarão a ser o
que nunca deixaram de ser: mandarins inclinados sobre o mundo uns dos outros,
balbuciando segredos.
Jean Cocteau
José Régio foi uma das personalidades que apoiou
o General Norton de Matos na fase de ditadura mitigada a que correspondeu o
período da sua candidatura à Presidência da República. Planeando ir a Beja ao
comício que o candidato aí realizaria em 30 de Janeiro de 1949, " uma
ocorrência inesperada e dolorosa impedirá essa viagem. Francisco Bugalho morre
em Castelo de Vide no dia 29, e José Régio vai acompanhar o corpo do camarada
das lides presencistas até à sua última morada. A amizade sobrepôs-se ao ardor
- se por acaso o havia - da luta politica."
Para Cristóvam Pavia foi um golpe duríssimo.
Mais do que um modelo, seu pai era para si o garante da permanência da sua
infância, pelo que o jovem poeta se sentiu como um garoto desamparado e
obrigado, em consequência, a assumir a sua "situação de adulto". O
braço forte do pai já não mais o poderia amparar.
Aquele que se pensa ser o
primeiro poema de Cristóvam Pavia escrito após esse trágico acontecimento
possui marginalmente uma nota dolorosa: "Para ser lido muito
devagar". Chama-se "Écloga": "Na folha bailada, / levada
/ no vento, / vai meu pensamento. / Na cinza dolida, /espargida / pelo rio, / o
meu olhar frio…/ E no teu sorriso / da mais lisa / quietação, / o meu coração.".
Cito António Luís Moita: "Francisco Bugalho (que intuíra, num poema
escrito anteriormente, vir a chegar, sem dar por isso, ao fim, sem viver o que
quis) morrerá pouco tempo depois de ter escrito Reverdecer. Mas a sua voz, ao
calar-se, não fica de facto silenciosa. Outra, dela nascida, vai iniciar uma
rápida e dolorosa ascensão, até atingir, nos seus melhores momentos - como
afirma José Bento - 'a mais funda expressão mística da poesia portuguesa da
segunda metade do século'."
António Manuel Couto Viana,
que com David Mourão-Ferreira e Luís de Macedo dirigiu a revista Távola Redonda
(1950-54; 20 números) onde Cristóvam Pavia colaborou, dá o seguinte retrato do
poeta, um ano depois: "Tinha então dezasseis anos (menos 10 do que eu),
era alto e espesso, com uma face menineira onde um farto buço aloirado
destoava. Os olhos, límpidos, escondiam-se por detrás dumas lentes grossas. […]
Vestia de luto e, na lapela do casaco, exibia um distintivo da Causa
Monárquica. Falava com frases curtas, rápidas, quase com brusquidão, num
atropelo de tímido. Olhava fixo, olhos nos olhos, acenando, violentamente, com
a cabeça, a uma concordância ou a uma negativa." . E mais adiante,
ainda: " Apesar da sua poesia adulta (adulta no rigor com que se
estreitam fundo e forma), Cristóvam não passava, nessa época (e por quanto
tempo ainda?) de um adolescente." . É o próprio Cristóvam Pavia que
conta a A.M. Couto Viana a procura do estado de pureza, a busca insistente da
infância: "Sentia que o menino que fui estava irremediavelmente morto,
sentia uma grande saudade e ao mesmo tempo uma pena enorme - é o único morto a
quem ninguém põe flores, o único de quem ninguém se lembrava, nem a mãe."
. Na continuação deste seu estado de espírito, surge o seu magnifico
"Réquiem", dedicado ao menino que habitava em si - e que continuaria
a habitar.
No início da década de 50
os contactos com António Luís Moita intensificaram-se e aprofundaram-se. Este
poeta, conjuntamente com António Ramos Rosa, Raul de Carvalho, Luís Amaro e
José Terra tinha fundado em 1951 a revista Árvore (1951-53; 4 números) - a cujo
titulo tiveram de acrescentar "folha de poesia", por o regime salazarista
não permitir "a publicação de colectâneas de versos ou prosas sob a
designação de revistas" . Cristóvam Pavia colaborou nessa revista, levado
pela mão de António Luís Moita. Nesse mesmo ano, este editou o seu livro Rumor,
aparecido sob a chancela das "Edições Árvore". O seu poema Rumor:
"Ah, que não venham lúcidos, falar/ localizar a fonte da torrente…/
como podem sentir que há-de ser mar / esta indizível, trémula nascente?/ Como
podem sentir que há-de ser mar/ este indizível, trémulo perfil?/ Ah, que não
venham lúcidos falar…/ Penso Dezembro quando canto Abril.".
Os contactos entre os dois
poetas ganharam maior intimidade no Verão de 1951: “As formais visitas
de família - que tinham sempre lugar em Castelo de Vide - serviram-me de
pretexto para a aproximação. Eu mal lhe conhecia os versos; mas adivinhava,
naquele adolescente tímido, sempre fugitivo, um ser invulgarmente sensível. Por
gratidão à memória do pai, estendi a mão ao filho. E ele acabou por aceitá-la,
estreitando-a na sua. Tinha, nessa altura, 17 anos e eu 25. A amizade que
ligara nossos pais iria - como veio a acontecer - apadrinhar a nossa,
prosseguir em nós. E, como era tradicional, cimentar-se nas férias."
Este estreitar de laços
tinha muitas vezes tradução em longas caminhadas conjuntas pelos contrafortes
da Serra de S. Mamede, após o que os dois poetas conversavam sobre tudo um
pouco. Contudo, quando a conversa tocava o tema "Cristóvam Pavia",
este, sempre tímido e reservado, defendia-se, aflito: "Logo escrevo e
digo-lhe tudo!". Era através dessas epistolas - cartas e postais - que
Cristóvam Pavia deixava escapar um que outro projecto, realizações ou estados
de espírito. Estes, ora pendiam para uma salutar alegria ora para a tristeza
profunda, numa rápida e desconcertante alternância de humores."Eis a
minha Vida: / Um sorriso entre lágrimas…/ Uma lágrima entre sorrisos…/ E a
Poesia pairando sobre tudo!", como ele mesmo um dia afirmou num poema
dedicado a David Mourão-Ferreira. Na vida desse "poeta de fasto talento e
nefasto signo" como lhe chamou João Gaspar Simões, uma das maiores
alegrias foi um filme que certo dia viu em Lisboa, intitulado “O Retrato de
Jennie, "a coisa mais maravilhosa que conheço". A película, com
Jennifer Jones, Joseph Cotten e Lilian Gish, entre outros, é - resumidamente -
a história de um jovem pintor que encontra uma rapariga de 13-14 anos, pela
qual se apaixona. Contudo, se a moça umas vezes lhe parece ser uma realidade,
noutras parece-lhe ser um sonho, nomeadamente porque nalgumas semanas envelhece
vários anos, tornando-se uma mulher. Este tema, tão caro Cristóvam Pavia por
coincidir com um problema pessoal de amor escondido, movendo-se portanto entre
o que é e o que não é, entre a realidade e o sonho - que se expressaria também
na sua poesia, de forma nada sensual mas antes reflexo de um "amor todo
alma" - fascinara este eterno menino, ainda mais feliz quando Sebastião da
Gama, poeta que muito admirava, expressou opinião idêntica à sua em relação ao
filme. No entanto e ao contrário do poeta de Estremoz, o jovem
"Chico" António nunca encontrou aquela pessoa que lhe "enchesse
a vida" (sic), como ele desejaria. Durante esse período de estreitas
relações com António Luís Moita, Cristóvam Pavia matriculou-se na Faculdade de
Direito de Lisboa. Certamente muito pouco identificado com a temática do curso,
o seu espírito dirigia-se continuamente para as planícies tão suas. O poema
Planície ("Das folhas dos lameiros amarelos, / Da baixa neblina
gotejante, / O manso sortilégio veio chegando…/ E vós, Amigos, vós julgais-me aqui ")
tem a indicação marginal "Lisboa, Faculdade de Direito, dia 9 de Novembro
ou 10 de Novembro de 1951". Apesar desta sua inadaptação, nos três anos
seguintes persistiu em matricular-se em Direito. Ao contrário de seu pai, não
chegou a terminar o curso. Em 1954, finalmente, matriculou-se na Faculdade de
Letras, em Filologia Germânica, curso que, aliás, nunca completou já que,
apesar de ter concluído a parte curricular, não apresentou a tese então
requerida.
A partir de 1954 o contacto
de Cristóvam Pavia e de António Luís Moita atenuou-se. Este último casara-se,
pelo que Castelo de Vide lhe começou a rarear, acabando por se frustrarem
muitos dos possíveis encontros. Em 1956 Cristóvam Pavia foi obrigado a cumprir
serviço militar em Mafra, enquanto António Luís Moita deu à estampa o seu
segundo livro, Teoria do Girassol. Com um lirismo autêntico que continuou
Rumor, expressa a meditação e posterior cristalização de experiências e emoções
- José Gomes Ferreira dele disse um dia que "escrevia com a vida" - o
que, em meu entender, é o elo de ligação de toda a sua poesia, e que igualmente
explicará os seus por vezes longos silêncios literários.
Entretanto, em 1959,
Cristóvam Pavia publicou o seu único livro de poemas, a que simplesmente deu o
título de 35 Poemas, tinha então 25 anos. Morreria precisamente dez anos mais
tarde. António Manuel Couto Viana observou que a sua vida teve várias
coincidências deste género. Uma delas, prolongada no tempo, relatada pelo poeta
Nicolau Saião: seu tio Adolfo Bugalho (médico, pintor e autor de apontamentos
teatrais) com quem Cristóvam falara várias vezes do seu interesse por ”O
Retrato de Jennie” e que aquele não tivera oportunidade de ver no cinema,
faleceu precisamente horas antes da sua única projecção na RTP.
Numa critica ao livro, já
após a morte do poeta, exactamente 20 anos após o passamento de seu pai e 40
depois da estreia deste na Presença, José Régio, que Cristóvam considerou
"le plus grand poète du Portugal", disse:"Antes de
mais, autenticamente, trinta e cinco poemas. Quero dizer que se me afigura
impossível possuir o sentimento da poesia e não sentir, ao ler essas
composições, que se está comunicando com um verdadeiro poeta. Nem, de outro
modo, haveria a comunicação. […] Como também sucede com muitos outros, que a isso
devem grande parte do seu triunfo público e da sua força intrínseca, - da sua
poesia comunicativa - as coisas ditas no livro de Crist’vam Pavia foram vividas."
. É bem isto a poesia de Cristóvam Pavia: uma nostalgia tornada comunicação.
Apesar da sua timidez extrema, tinha uma profunda necessidade de comunicar.
Exemplo deste imperativo foi o que ocorreu certa vez em Lisboa: viajando de
eléctrico avistou António Luís Moita, que passava. Distraído, desceu
impetuosamente do veículo em pleno andamento. Com naturais consequências, que
quase foram trágicas…
E José régio foi
verdadeiramente imparcial na sua critica, uma vez que já anteriormente havia
elogiado a sua poesia, ainda antes de saber ser Cristóvam Pavia o pseudónimo do
jovem filho do seu amigo e companheiro de Coimbra - uma vez chegou mesmo a
fazê-lo à mãe do poeta, quando ambos viajavam de comboio.
O vasto e complexo mundo
interior de Cristovam Pavia, no entanto, não se preenchia em pleno com este
pseudónimo, tendo o poeta sentido necessidade de escrever, mais tarde, também
sob os "semi-heterónimos" de Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo
Menezes da Cunha Ferreira, " que traduzem, respectivamente, e
grosso modo, um humor anárquico e surreal, um erotismo exaltado e um
portuguesismo lorpa." . E Cristóvam Pavia, para além do simples
pseudónimo que impossibilitasse qualquer tipo de confusão com o nome do pai,
que significará? A opinião de António Luís Moita sobre este assunto é bastante
interessante. Segundo ele, o nome de Cristóvam deriva de "Cristovão",
santo protector dos viajantes (dos caminheiros, portanto - e como ele gostava
de andar!) , terminando numa forma mais bela e inacabada do que
"Cristóvão", deixando assim tudo em aberto. Esta presença do
inacabado também aparecerá na escolha de Pavia (como diz o provérbio, "Roma
e Pavia não se fizeram num dia"). Seria como se o poeta se
reconhecesse como um homem em construção permanente. Por tudo isto lhe chama
António Luís Moita "Caminheiro do Sonho". Como ele próprio refere,
"toda a grande poesia é ambígua, embora clara"…
Cristóvam Pavia chamava aos
poetas "mastigadores do mundo". Este deixou na sua boca um travo
amargo, suficientemente amargo para nos primeiros anos da década de 60 o ter
obrigado a alternar a sua permanência entre Portugal e Haidelberg, na Alemanha
- para onde partiu em Agosto de 1960, aí trabalhando como ajudante de pedreiro
integrado numa cura psico-terapêutica. Pelo meio, breves passagens por França e
pela Suiça.
Quanto a António Luís
Moita, uma série de problemas pessoais graves tornaram-no incomunicável e
incapaz mesmo de escrever durante vários anos, logo após a edição pela
"Portugália" do seu livro Sal (1962), que reuniu poesias de 1957 a
1961.
Este, alguns anos mais
tarde, ao folhear um jornal da tarde, leu a notícia simples, fria e dura, da
morte do amigo "Chico" António, em 13 de Outubro de 1968, sob o
rodado de um comboio, em Belém. Morrera Cristóvam Pavia, por coincidência no
mesmo dia em que no Brasil falecera também Manuel Bandeira, um dos poetas (se
não mesmo o poeta) que o jovem mais admirava…
Por que tento durar/ além
da minha morte?/ Num
poema ou num beijo/ Por que
tento durar?
António Luis Moita
"A última imagem que
retenho do 'Chico' António adulto é a de um homem forte e grande que copiou do
pai o bigodinho estreito. Mas, ao fitar-lhe os olhos, é sempre o menino que me
surge - o mesmo que, vai para quarenta e cinco anos, vi em Castelo de Vide,
suspenso num pégaso de luz. O mesmo S. Francisco de Assis. Sem a aptidão
prática de Francisco Bugalho (aquela que permite, a uma natureza invulgar,
adaptar-se, sem grande sofrimento, ao ramerrão e às arestas da vida) Cristóvam
Pavia herdou do pai toda a aptidão lírica - que viria a sublimar, mais tarde,
marcado o espírito por aquela aceitação de tudo ( expressão insistente na sua
poesia ) que só os eleitos são capaz de sentir profundamente e transmutar em
beleza.". Apesar de, como diz António Luís Moita, os
poetas terem sido feitos para resistir, Cristóvam Pavia escolheu a "saída
pelo fundo" (expressão de um poema seu).
Nicolau Saião é da opinião
que Cristóvam Pavia optou pelo comboio como forma de abandonar a existência
devido ao facto de, desde pequeno, se sentir fascinado por esta máquina, a qual
diariamente observava da Quinta da sua infância e na qual se transportava de
Lisboa a Castelo de Vide, ficando mesmo à sua porta. Simbolicamente, foi essa a
viagem derradeira, mergulhando-o para sempre no mundo perdido. Realizou assim a
buscada consubstanciação " com a criança morta que trazia em si e isso não
o podia fazer sem caminhar definitivamente na morte até a encontrar e serem um
só, na unidade derradeira e total.".
António Luís Moita, além de
ter trabalhado numa empresa petrolífera, foi membro da direcção da Associação
Portuguesa de Escritores e editou em 1985 o livro Cidade sem Tempo. Nele, além
da interessante incursão pela temática alquímica, nomeadamente decorrente do
contacto com o pensador Abel Teixeira, inclui um profundo e comovente poema
dedicado aos amigos Francisco Bugalho e Cristóvam Pavia - Reencontro, de seu
nome.
Em 1991, o poeta participou
em Portalegre no programa de rádio Mapa de Viagens, realizado por Nicolau Saião
("Um Serão com Cristóvam Pavia"), meses depois de haver publicado uma
evocação deste seu amigo num jornal de Castelo de Vide.
Como ele próprio disse,
"mortos e vivos completam-se em transmissão permanente, um fio que,
embora invisível, se escuta, para perdurar, aqui e além, em surdina".
JOÃO GARÇÃO (Portugal,
1968). Poeta, pintor e ensaísta. Contato: jfvgarcao@sapo.pt. Página ilustrada com obras de Egon Schiele (Áustria),
artista convidado desta edição de ARC.
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