quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

ANDRÉS-G. BOURASSA | Claude Gauvreau, o olhar e seus jogos no espaço: uma poética


A PUREZA
Quando Claude Gauvreau fala daquelas de suas obras que têm por título L'étal mixte, Brochuges, Poèmes de détention, Les boucliers mégalomanes et Jappements de la lune, ele o faz geralmente em termos de “poesia pura”. É evidentemente uma maneira de distingui-las dos “jatos dramáticos” que precederam e que têm por título coletivo Les entrailles. Mas a expressão faz igualmente referência a uma pesquisa que, nele, corresponde a um projeto muitas vezes formulado.
Numa primeira aproximação, “pureza” deve se tomar no sentido ético. Essa pureza não é exclusiva à poesia mas é a propósito de um poeta, Hector de Saint-Denys Garneau, que Gauvreau fala dela pela primeira vez. Num compte rendu de Regards et jeux dans l’espace, de Garneau, Gauvreau se compara - e nos compara, leitores eventuais - a um sol cujo olho derrama isenção e claridade:

Quando a impaciência de tuas mãos lança o dia sobre Saint-Denys Garneau, teu coração é também puro? […] Para abordar esse navio cintilante de amor e de eternidade, é preciso ser simples, é preciso ser homem. Não raspes com unhas sujas essa pureza impassível, tu só farias mal a ti mesmo. [1]

A pureza moral do leitor corresponde à do escritor. Eis porque, sem dúvida, algumas semanas antes de comentar o livro de Garneau, Gauvreau dera a conhecer os seus próprios projetos em termos de olhar no espaço, olhar cujo jogo lança o dia, talha o obscuro e espalha a clareza como um raio luminoso e cortante:

A pureza congela, unifica; a pureza da arte é pouco probante. Recoberto com seu véu em verniz, sua firmeza hermética encoraja a desconfiança. A negação e o desprezo. Os desconfiantes serão os meus inimigos. E preciso, é fatal. A vida é e será a minha lei. O dia das cismas dolorosas lesará nossas magistraturas se a probidade da vida exigir os desmembramentos sangrentos.
Uma espada está em mim, luminosa como um jato d'água ou uma fonte de prata, uma chaga eloquente. Uma espada que se levantou com o dia. A luz de um dia. O braço de bronze talha o luto da calçada, a vida torrencial e concreta servil à opressão de urna alguma, o tinido primitivo e insubmisso se desabrocha, claridade belicosa sobre as gengivas gretadas da terra. A terra está talhada, a lima do fervor recolhido e amarelo dos homens, que se empinam na pureza efervescente do dia que se ergueu, talha a terra. Essa paz amarela é a luz que fecunda a vida.
E a liberdade. [2]

Nada aqui em Gauvreau, contrariamente a Garneau, da busca mística de um ser superior. Ao contrário, poderíamos falar de uma visão nietzchiniana em que o próprio Gauvreau seria demiurgo cíclope de olho solar ou centauro de cascos de orignal. [3]
Comentando mais tarde um poema de Roland Giguère escrito em 1949, Gauvreau se detém nas primeiras palavras (“Para deixar traços de nós mesmos, foi preciso que nós nos despojássemos do que tínhamos de mais puro”) [4] que lhe permitem alargar a noção de puro para evitar que ela seja tomada num sentido redutor:

o poeta insinua que houve abdicação da pureza; […] não acredito que me engano ao interpretar essa formulação simplesmente como a aceitação de estreitar o horrível que é a beleza em claro-escuro realmente de preferência negra, de se curvar numa união estreita sobre a fraqueza para despojá-la de seu desconhecido que espanta sempre, como todo desconhecido, e para inundá-la de incêndio de lâmpada, o que implica regenerá-la, de empreender o comércio amical com o abjeto e o grotesco, o que é um meio de inventariar todas as facetas da natureza, a começar pelas mais repulsivas e, não negligenciando nada, de proclamar sem medo do equívoco a legitimidade do total absoluto. E uma dedicação e um altruísmo apostólico que Giguère chama com uma humildade exorbitante, a rejeição da pureza. Assim, tendo o ar de não ter ainda palpado o total, tendo absolutamente o ar de se sujar, o poeta efetua a entrada no interior do total sob todos os seus aspectos e, englobando o repugnante com o resto, ele assume toda a realidade; o que me parece uma edificação muitíssimo bela da magnificência. [5]

Mas pureza, em “poesia pura”, tem um sentido estético que é inseparável do sentido ético. Definir - ou melhor, descrever - essa poesia, é ir, de uma maneira bastante comparável à que Gauvreau reconhece em Giguère, na direção de uma escritura que encontra sua estrutura e sua urgência em si mesma mais do que em regras exteriores (rima obrigatória, ritmo medido…) em que se acreditava antigamente ter que consignar a poesia para distingui-la da prosa:

Giguère dá […] razão a Breton quando ele se serve de uma linguagem sem pontuação poética tradicional, sem equilíbrio onde os espaços contribuem de ordinário a uma misteriosa significação obrigatória, sem moldura entrecortada, quando ele escreve em fila, quando ele parece fazer prosa […]. Em Giguère, poesia e prosa são indestrutíveis pois  nelas se encontram, em igual densidade, a fluidez do verso, o conteúdo onírico sem amputação e uma dose similar de milagre sonoro e de indizível capturado. [6]

Estamos assim colocados em face de uma poética que não quer por regra e por intenção a não ser aquelas de não tê-las. Uma poética em que o real das cores, das formas e das palavras deve oferecer o menos de resistência possível e deixar, ao contrário, correr automaticamente o surreal (inconsciente individual e coletivo) que tende a se exprimir. Isso vale tanto para os objetos plásticos quanto para os objetos poéticos, tal como muitas vezes definido a propósito do conceito central da produção dos membros do seu grupo, o automatismo.

O AUTOMATISMO
O automatismo constituiu o objeto de numerosas reflexões do grupo que Gauvreau frequentava no momento da exposição conjunta das Obras plásticas de Jean-Paul Mousseau e Jean-Paul Riopelle, em dezembro de 1947. Estes últimos acabavam de voltar da Europa. A definição formulada por Gauvreau se lia assim:

Existem três espécies de automatismo, grosso modo: o automatismo mecânico, que reside na utilização dos movimentos puramente mecânicos e funcionais do corpo humano […]; o automatismo psíquico, que reside na utilização dos ditados ordinários do inconsciente recebidos num estado de neutralidade emotiva tão completa quanto possível […]; enfim, e é o que interessa aos canadenses, que é sua criação original, o automatismo ou “plástico”, ou “crítico”, ou “inspirados”.

Qualquer que seja o termo escolhido (deviam alguns dias mais tarde optar por “surracional”), o importante, para o momento, era exprimir que os automatismos recusavam o estado de neutralidade emotiva ordinariamente procurada na escritura automática dos surrealistas, de onde a ideia de lirismo ou de barroco para designar a experiência montrealense:

Há um puro automatismo neste fato de que os materiais do ato criador forneceram exclusivamente pelo livre jogo do inconsciente, mas ele teve lugar num estado particular de emoção, de inspiração, poderíamos dizer, e em certos casos na medida em que a obra de arte se compõe, a autocrítica segue o gesto intuitivo, inconsciente, que fornece a matéria da obra e julga essa matéria na medida em que ela aparece. A autocrítica não precede o gesto mas o segue […].
Experimentalmente está evidenciado que os quadros automatistas, produzidos por um sentimento que não fracassou de maneira alguma, por uma submissão rigorosa aos ditados imperiosos do inconsciente, são plasticamente impecáveis; só um descanso do sentimento em curso de execução pode produzir falsas notas no quadro. O problema é, portanto, manter a emoção, o sentimento, tão puro, tão integral quanto possível em todo o decorrer da execução; é uma empreitada esgotante e severa. [7]

Foi Paul-Émile Borduas, em Commentaires sur des mots courants que acompanham o manifesto Refus global, em agosto de 1948, que forneceu o termo “surracional». Gauvreau volta a ele numa carta pessoal de 1950:

Para ir mais fundo no inconsciente, para dinamitar certas barreiras aparentemente intransponíveis, é necessária precisamente toda a comoção do vulcão emotivo.
Sem nenhuma espécie de ideia ou de métodos pré-concebidos, ela irá permitir o crescimento de uma forte emoção que venha a abalar e enlouquecer todas as muralhas do cérebro, e então inscrever sucessivamente todo um elo que virá a se desenrolar em réptil ininterrupto (até o sentimento de plenitude) eis o meio de trazer à luz do dia cavernas e redobras que o ronronar do inconsciente superficial não permite suspeitar. Assim é o automatismo sensacional. [8]

Teremos reconhecido, no fato de que o automatismo está localizado na base do ato criador e de que a sua definição é feita aqui em termos de submissão aos ditados do inconsciente, [9] um parentesco do movimento automatista com o movimento surrealista. Mas se esse parentesco “poético” é inegável, e se as referências a André Breton são particularmente numerosas há entre ambos diferenças sociológicas evidentes, o produto dos surrealistas sendo geralmente figurativo e o dos automatistas não-figurativos:

Um figurativo da imaginação é um produtor artístico que constrói sua obra inscrevendo escrupulosamente as figuras que flutuam em sua cabeça sem ser visíveis no exterior dele, registrando as combinações de maneira alguma veristas dessas figuras, as associações de suas imagens ditas subjetivas ou de seus fantasmas permanentes ou fugitivos; ele obedece cientemente à estranheza indissociável do mundo interior de todo homem… de todo homem meditativo, pelo menos […]. Entretanto, houve a abstração geométrica; sobretudo na pintura, é verdade, mas também na poesia. A abstração, no sentido próprio da palavra, é uma forma de arte figurativa conforme modelo… a última possível, se quisermos, mas é uma forma mesmo assim. Limita-se, não sem paixão devorante, quando um grande artista está com uma bola de ferro acorrentada aos pés, a se deixar invadir pelas formas do mundo exterior e a abstrair dele interpretações que historicamente se evidenciaram cada vez mais depuradas; não há abstração propriamente dita sem modelo exterior […]. Em revanche, há o não-figurativo sem modelo exterior; o célebre automatismo é dessa veia.
[…] A poesia atual, inovadora, turbulenta, absorvida pela obscuridade do desbravamento no temerariamente novo, é unanimemente não-figurativa. Essa poesia não-figurativa não apenas ergue sua identidade cronologicamente após o surrealismo, mas vai infinitamente mais longe que ele, evolutivamente.
[…] O que é certo é que o figurativo de imaginação e o não-figurativo de imaginação ocupam ambos um duplo lugar para além do figurativo regular, e que o não-figurativo de imaginação não poderia nunca ter nascido sem o figurativo de imaginação. [10]

EXPLORADIANO
Gauvreau falava sempre do poema como de um objeto concreto. Ele volta frequentemente sobre as palavras que dizem o empirismo de uma “poesia onde a linguagem, ao invés de permanecer um signo convencional para evocar os estados previamente conhecidos, se torna organicamente uma realidade sensível autônoma e absolutamente concreta”. [11] Ele traz também uma distinção importante para se compreender a sua produção, a distinção entre o alvo e a consequência, distinção entre o que uma obra quer dizer (sua intenção) e o que ela “diz” (seu efeito):

Acredito que estaríamos errados ao supor à “intenção” - a “boa intenção” - um poder que ela jamais teve e que jamais terá.
Não basta acariciar o alvo intencional de ajudar os outros, de fazer avançar o conhecimento para conseguir realizar essa intenção. Da mesma maneira, há multidões de consequências extremamente excelentes que são inteiramente imprevisíveis. [12]
O conhecimento poético de um objeto não reside absolutamente na laicidade de saber como seu nascimento funciona, ele reside na capacidade inenarrável de VIBRAR em cada uma de suas flutuações, em cada uma de suas espessuras e finuras, em cada um de seus contrastes, em cada uma de suas explosões, internas ou externas. [13]
[…] descoberta capital […] que abrirá as portas mais vastas sobre o inexplorado: “a confluência é mais importante que o alvo”. [14] [15]

Teremos notado na passagem a palavra “inexplorado”, ela liga a noção de exploração a uma das proposições mais importantes de Borduas. Essa noção tomava em Gauvreau um sentido particular, já que sua poesia, além de se definir pela pureza, pelo lírico e pelo barroco, vai por fim se definir pelo exploradiano. Esse termo nos conduz à imagem poética que ele define como “a associação ou a colocação em confrontação de não importam quais elementos verbais: sílaba, palavra abstrata, palavra concreta, letra, som, etc.”, [16] e que ele divide em quatro: rítmica, devorante, transfigurante e exploradiana. [17]
A primeira é a imagem rítmica, quer dizer, uma onomatopeia ou uma percussão que não seria necessariamente sonora (como o retorno periódico de uma cor ou de um símbolo). A segunda é a imagem memorante, quer dizer, a substância imagética já conhecida que são as metáforas e as metonímias. A terceira é a imagem transfigurante, relembrando, entre outras, o que se chama frequentemente de “palavras-valises” ou “palavras-parideiras”, [18] quer dizer, um procedimento linguístico análogo à superimpressão fotográfica, à totemização verbal praticada pelos surrealistas (ver Mattatoucantharide) [19] ou ainda à colagem verbal. [20] A quarta é a imagem exploradiana, quer dizer, uma espécie de sarabanda inconsciente de deboche verbal; passa-se neste caso do conteúdo manifesto ao conteúdo latente:

O conteúdo manifesto seriam as proporções intrínsecas do objeto: a progressão e o entremear dos ritmos, os choques verbais, as particularidades imagéticas, as relações […]
O conteúdo latente seriam as preocupações inconscientes […] ditando tal escolha de epítetos, tal acento, tal amálgama, tal quebra, tal disjunção, etc. [21]
Falamos de imagem exploradiana quando os elementos constitutivos dos novos elementos singulares não são mais imediatamente reveláveis por uma operação analítica. Diria também que há imagem exploradiana quando a situação presente da psicanálise não permite a essa ciência - ao menor preço, talvez, de uma operação laboriosa da qual não existem ainda exemplos - descobrir no objeto poético o conteúdo latente. [22]

Se nos referimos a certas análises de Serge Leclaire, de René Major ou de Michel van Schendel, [23] podemos crer que essa análise é agora possível; em todo caso existem alguns ensaios dela. Mas está claro que ela requer um tipo de análise particular à decriptação do inconsciente.

ÉTAL MIXTE
A primeira coletânea de poemas de Claude Gauvreau, Étal mixte, foi escrita de junho de 1950 a agosto de 1951. [24] Nessa obra, encontramos em estado bruto os primeiros verdadeiros esforços de automatismo literário de Gauvreau. Esse último, tendo descoberto a poesia de Breton, de Artaud e de Tzara, a partir de 1949, se põe a seguir-lhes os rastros, particularmente os do último. [25]
O livro, para além dos traços que ele revela sobre o autor através de certos signos oníricos, por vezes não somente vagidos, “parônimos de vocábulos conhecidos um pouco à maneira de Michaux” … [26] Às vezes também imagens límpidas, mas reveladores de um difícil equilíbrio entre lira e delírio, entre explosão e implosão, entre potência e impotência em desconstruir a imagem de um mundo para melhor reconstruir o próprio mundo.
Esse difícil equilíbrio é frequentemente apresentado em amplidão cósmica:

Não se pode realmente dissociar L'étal mixte de Refus global; o primeiro é a contrapartida lírica do segundo […] a expressão apaixonada, irracional, não menos cortante mas à maneira de uma necessidade vital mais do que sob o aspecto dogmático que o manifesto revestia. Uma temática semelhante o anima, os ataques são dirigidos para as mesmas instituições; uma necessidade similar de liberação e de liberdade se manifesta nele selvagemente. Réplica a uma situação social julgada como inaceitável, denúncia veemente de todos os tabus e medos que fundam essa sociedade, impotente a se destacar de estereótipos depoentes e a criar os mitos suscetíveis de desempenhar o papel indispensável de mediação entre passado e futuro. Também esse livro se coloca bem naturalmente sob o signo de uma revolta radical, através da qual é possível ouvir numerosos ecos do manifesto de Borduas. [27]

Isso é verdadeiro quanto à temática, para quem sabe ler esse gênero de hieróglifos, mas é necessariamente verdadeiro quanto ao modo de escritura posto às claras pelo autor nessa época; estamos em plena abstração lírica ou barroca.

BROCHUGES
A escritura do segundo livro data de 1954, ou seja após as experiências dramatúrgicas de Cinq ouïes e de L'asile de la pureté, intercalada com a experiência do romance Beauté baroque. A edição se faz entretanto bastante rápida, desde 1956, e é portanto o primeiro livro de Gauvreau que afrontou os críticos: relâmpagos de uma carga singular, vocabulário desorientador, letrismo sem laço com o movimento, comenta um deles. [28] Há ali, no entanto, imagens oníricas que se liberam com insistência, notadamente aquela do olho de Deus, olho de Tibério, de Trajano e de Nero, olho de imperador-deus, olho solar. Uma imagem que corresponde a essa concepção da escritura que se quer jogo do olhar no espaço, como esse texto sobre a lei do olho o demonstra tão claramente:

Se é imperfeita a visão que fazia companhia à minha, é necessário e fatal que a minha prossiga sua etapa pedregosa como um prisioneiro perpétuo. Visão e prisioneiro: eis o núcleo do qual não se evade. Se tal axioma de outrem merece uma dúvida, se tal princípio audacioso e tentador como um túmulo, humilha o lugar universal que foi sempre a lei do meu olho, é absolutamente fatal e necessário que a luta seja travada por um homem só. Temporariamente só, mas só, enquanto ele viver. Combaterei bem só, se for preciso, se a probidade dos companheiros desvia sua generosidade para uma outra rota, porém o testemunho será sem eclipse. [29]

A lei do olho é, portanto, lei do abraço versal, lei do testemunho sem eclipse. E a lei do sol. Esse poeta que foi por tanto tempo considerado mesmo como ocultado, [30] alfinete ou espeto, por suas brochuges de anjo exterminador, os inimigos da luz, da liberdade, da vida.
O que encontraremos em Brochuges? Os sintomas e as armas de uma profunda revolta e, no sentido mais pleno, como em Étal mixte, de uma recusa global. Revolta e recusa que expõem, como Refus global, um parti pris pela anarquia resplandecente, anarquia da forma tanto quanto do fundo.

POEMES DE DETENTION, LES BOUCLIER MEGALOMANES, JAPPEMENTS A LA LUNE…
Após a publicação simultânea, em 1956, de Brochuges e de Sur fil métamorphose (uma seleção de quatro peças dramáticas extraídas deEntrailles), Gauvreau, que tinha passado por períodos bastante ocos, ganhou nova vitalidade: “[…] o lirismo que eu acreditava pulverizado para sempre tornou a rebentar como um furacão”. [31] E virá uma peça de teatro, Le rose enfer des animaux. Alternarão em seguida, entre as depressões e as tentativas de suicídio, outras peças para o palco, dramatizações para rádio ou TV e livros de poesia como Poèmes de détention e Jappements à la lune.
Os Poèmes de détention, era preciso se ater neles, são notáveis sobretudo pelo leitmotiv da liberdade. Essa palavra de liberdade volta sem parar e escorre, se encarna na liberação total da escritura.
É preciso, além disso, declarar o lado megalômano do projeto poético de Claude Gauvreau… Mas mesmo assim não o projeto de uma “mitocracia”, que repousaria sobre a intencionalidade. Estranhamente, é a propósito de Giguère que Gauvreau faz a declaração da onipresença da visão cósmica. Com Les boucliers mégalomanes, estamos sempre numa poética do olhar e de seus jogos no espaço:

Como o visionário que todo poeta de raça é, Giguère é a presa voluptuosa do sentimento de soberania; ele não vê limite para sua força mágica, ele sabe tudo poder, e para ele um simples copo d’água se torna um mar agitado pelos nossos destinos; ele diz “copo d’água”, mas ele poderia dizer o Oceano Pacífico ou os mares do planeta Vênus.
Um imenso poeta lírico é sempre um megalômano e esse megalômano é um presbita que divulga para o profano o que as distâncias radiosas escondem das multidões ignaras contra sua vontade. Há razão ao se dizer que o poeta é a última espécie de adivinho que o século XX encerra. Ao gesto cotidiano, Roland Giguère imagina esforços formidáveis que se realizam apenas no espírito e é assim que ele transfigura as aparências: […] com os dados do corpo, o poeta põe no mundo uma vasta exposição que existia sem dúvida em alguma parte no intemporal mas que tinha sempre permanecido intangível aos pobres cegos que somos. Não saímos entretanto do real, já que o concreto do cérebro e de seus produtos não pode ser contestado. O espírito é a qualidade pensante da matéria; com os jogos do espírito não saímos nem mesmo da matéria. [32]

Não há nenhuma intenção nos objetos intitulados Les boucliers mégalomanes mas sim, muito pelo contrário, um estopim de uma carga explosiva. Ora o poema começa por um rastilho de sílabas que se inflamam e fazem saltar o paiol de munição; o navio do leitor explode então em imagens tão conscientes e identificáveis quanto “as duas coxas de Françoise Arnoul”. [33] Ora, ao contrário, são pontos que demarcam o trajeto, como a imagem de Goya ou a do arco (importante em Gauvreau), ou ainda as palavras-tótens como “rosamiondée” ou “Zogrota” ou “babarmandragore”, antes que o leitor seja levado a toda velocidade em expressos onde nada parece mais com um fluxo que um outro fluxo; entre os soluços os borborigmos e os parônimos, o trajeto se torna cada vez mais perigoso. Les boucliers mégalomanes são armas do braço esquerdo, armas de defesa, mas são armas de guerra.
Em Jappements à la lune, a abstração lírica se reduz a um jogo de sons que lembram, num dos poemas em particular, os uivos noturnos de um lobo (“loup”) solitário e a sílaba principal da palavra “lu”. O poema em questão se abre aliás sobre as primeiras letras da palavra “Gauvreau” e se fecha sobre a última. É preciso lembrar, para quem conhece a paixão de Claude Gauvreau por Muriel Guilbault, que “lu” e “ul”, que encontramos nele em abundância (perto de 60), se reencontram nos nomes próprios “Claude” e “Muriel”, bem como nas duas sílabas de «Guilbaul”?

JOGOS DE ESPAÇO
Gauvreau, dizem, um dia duvidou dessa poesia que, encontrada já quase ao final de sua vida, desafiava todas as classificações linguísticas e deixava tão pouca apreensão à comunicação verbal. [34] Mas a abstração lírica que ele praticava com os sons não equivalia àquela que praticavam então com as formas e as cores seu irmão Pierre e alguns de seus amigos pintores como Jean-Paul Riopelle e Fernand Leduc? É verdade que Claude Gauvreau reduziu progressivamente as imagens de ordem onírica, até essa repetição dos “ga”, dos “go” e dos “lul” (discerne-se entretanto a imagem “Aragon”) [35] de Jappements à la lune, o que explica sem dúvida o pouco de apreensão que é oferecido à média dos leitores. Mas procuramos analisar - para saber o que elas “querem dizer” - esses grandes mosaicos de Riopelle que detêm os dez primeiros lugares do mercado da pintura quebequense e canadense? É preciso absolutamente racionalizar o irracional? Podemos realmente pretender tornar patente tudo o que é latente?
O mais belo, na experiência da abstração lírica, talvez seja observar hoje, em Pierre Gauvreau, por exemplo, esses trípticos estranhos dos quais não se sabe se eles abrem ou fecham o armário das imagens subterrâneas; ou em Fernand Leduc esses tabuleiros de cores e de formas vivas cobertos de véu que, talvez, se erguerá para o espectador no alvorecer. Ou ver definitivamente surgir, como esses desenhos recentes de Riopelle, a aparência do Rei Thulé, o manto de ganso de Agoromo e o penacho do “Orignal épormyable”. Da mesma maneira, é preciso se deixar impregnar pela poesia de Gauvreau, olhá-la longamente como se lê uma pintura.

NOTAS
1. Claude Gauvreau, “Figure de vivant -- Saint-Denys Garneau”. Le Sainte-Marie, vol. II. no 2, 30 octobre 1945. p. 2.
2. Claude Gauvreau, “Le jour et le joug sains”, Le Saint-Marie, vol II, no. 1, octobre 1945, p. 2
3.  “Orignal” é uma espécie de alce típica do Canadá. [NT]
4. Roland Giguère, “Au futur”, La main au feu, 1949-1968, Montreál L’Hexagone, Typo, no. 12, 1987, p. 19.
5. Claude Gauvreau “Les affinités surréalistes de Giguère”, Études littéraires, vol. 5, no. 3, décembre 1972, p. 506.
6. Ibid, p. 504-505.
7. Claude Gauvreau, “L'automatisme ne vient pas de chez Hadès”, Notre temps, 13 décembre 1947, p. 6.
8. Claude Gauvreau, Carta a Jean-Claude Dussault, 13 de abril 1950 ; trecho que apareceu em La barre du jour, nos. 1720, janvier-août l959, p. 358-559.
9.  «Surréalisme, n.m. Automatisme psychique pur par lequel on se propose d'exprimer, soit verbalement, soit par écrit, soit de toute autre manière, le fonctionnement réel de la pensée. Dictée de la pensée en l'absence de tout contrôle exercé par la raison, en dehors de toute préoccupation esthétique ou morale.” (André Breton, Manifeste du surréalisme (1924), dans Manifestes du surréalisme, Paris, Jean-Jacques Pauvert, 1962. p. 40.)N. T: «Surrealismo, n.m. Automatismo psíquico puro pelo qual nos propomos a expressar, seja verbalmente, seja por escrito, seja por qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento na ausência de todo controle exercido pela razão, fora de toda preocupação estética ou moral.”
10. Claude Gauvreau “Les affinités surréalistes de Giguère”, Études littéraires, vol. 5, no. 3, décembre 1972, p. 508-511.
11. Claude Gauvreau, Lettre inédite du 7 janvier 1950 à Jean-claude Dussault, p 3.
12. Ibid, p. 9.
13. Ibid., 19 avril 1950, p. 8-9.
14. Paul-Émile Borduas, Projections libérantes em “Refus global” et d’autres écrits, Montréal, L’Hexagone, “Typo”, no. 48, 1990, p. 110-111.
15. Claude Gauvreau, Lettre inédite du 30 mars 1950 à Jean-Claude Dussault, p. 22-23. Os itálicos são nossos.
16. Ibid, 1er. février 1950, p. 8.
17. Ver a análise desses quatro tipos de imagens feita por Fernande Saint-Marie “Rapproche sémiológique de l'oeuvre visuelle et verbale de Claude Gauvreau”, in Luis de Moura Sobral et al.Surréalisme périphériquedu colloque Portugal, Québec, Amérique Latine: un surréalisme périphérique. Montréal, Université de Montréal, Département d’histoire de 1'art, p 119-125.
18. N. T: No original: “Mots-gigognes”.
19. Marcel Jean, Histoire de la peinture surréaliste, Paris, Seuil, 1959, p. ?
20. Max Ernst, Écritures, Paris. Gallimard, “Point du jour”, 1979, p. ?
21. Claude Grauvreau, Lettre induite du 1er. février 1950 à Jean-Claude Dussault, p. 12-15.
22. Ibid, 13 avril 1950; La barre du jour, nos. 17-20, janvier-août 1969, p. 357-361.
23. Serge Leclaire, PsychamalyserEssai sur l’ordre de l’inconscient et la partique de la lettre, Paris, Seuil, 1968. René Major, “Le logogrophe obsessionnel”, Interprétation, vol II, no. 1, janvier-mars 1968, p. 5-13 ; aussi Rêver l’autre, Paris, Seuil, 1977. Michel van Schendel, Rebonds critiques IQuestions de littérature, 1993 (chapitre sur Artaud et Gauvreau).
24. Ele será editado apenas em I958, pelas Edições Orphée, e distribuído em 1977, após a publicação do volume Oeuvres crétarices complètes!.
25. «Tzara certamente influenciou o meu primeiro livro de poesia, Étal mixte(Claude Gauvreau, Lettre inédite à Jean-Marc, Montréal 6 avril 1968). CONFERIR ESTA NOTA.
26. Alain Bosquet, La poésie canadienne, Paris/Montréal, Seghers/ ? , 1962, p.118. CONFERIR.
27. Marcel Bélanger, “La lettre contre l'esprit ou Quelques points de répère sur la poésie de Claude Gauvreau”, Études littéraires, vol V, no. 3, décembre 1972. p. 483-484.
28. Alain Bosquet, op. cit., p. 118. Gauvreau se defendeu muito de pertencer ao letrismo, um movimento que ele assimilou à extração geométrica; ver a entrevista telévisada concedida a Renée Larochelle para o programa Femmes d’aujourd’hui, 13 de maio de 1970, incorporado no filme de Jean-Claude Labrecque, Claude Gauvreau poète, Montréal, ONF, 1975. Ver igualmente a conferência sobre “Les affinités surréalistes de Giguère”, op. cit. p. 508-509.
29. Claude Gauvreau “Le jour et le joug sains”, op. cit., p. 2.
30. Paul Chamberland, “Fondation du territoire”, vol IV, no. 12, mai-agoût 1967, p. 41-42 ; Ver André-G. Bourras, “Claude Gauvreau: La fin d'une occultation”, Magazine littéraire, no. 134, mars 1978, p. 8.
31. Claude Gauvreau., “Notes biographiques”, Le journal des poètes (Bruxelles), 37e. année, no. 5, juillet 1967, p. 19.
32. Claude Gauvreau “Les affinités surréalistes de Giguère”, op. cit 507.
33. N. T: As duas coxas de Françoise Arnoul .
34. Jacques Ferron, Du fond de mon arrière-cuisine, Montréal, Éd. du Jour, 1973, p. 219.
35. Pensamos no artigo que Gauvreau escreveu contra o assujeitamento dos artistas ao Partido; ver “Aragonie et surrationnel”, La revue socialiste, no. 5, printemps 1961, p. 57-68.



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André G. Bourassa (Canadá, 1936). Ensaísta e crítico de arte e teatro. Sua tese de doutorado intitula-se Surréalisme et littérature québécoise (1977). É atualmente professor da Escola Superior de Teatro da Université du Québec à Montréal (UQÀM), bem como diretor da revista L'Annuaire théâtral. Este ensaio consta do livro Étal mixte et autres poèmes 1948-1970, de Claude Garvreau (L’Hexagone, 1993), e se encontra aqui reproduzido com a devida autorização do autor e seu editor. A tradução é de Éclair Antonio Almeida Filho. Agradecimentos a Enrique Lechuga. Contato: bourassa.andre_g@uqam.ca. Página ilustrada com obras de Iván Tovar (República Dominicana). Agulha Revista de Cultura # 54. Dezembro de 2006.






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