quarta-feira, 1 de novembro de 2017

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | O teatro de Sony Labou Tansi ou corre o rio Congo entre suas pernas


1. Introdução | Apresentar Sony Labou Tansi, desaparecido há pouco mais de vinte anos, [1] num projeto editorial da universidade brasileira sobre teatro contemporâneo em francês é um desafio por diferentes razões. Por um lado, a obra do poeta, ensaísta, romancista e dramaturgo congolês (dos vários Congos, criados artificialmente por diferentes colonizações) é extensíssima sem sombra de exagero (a publicação recente dos seus Poèmes, [2] na grande maioria inéditos, ocupa mais de 1200 páginas); por outro lado, a sua produção, nas suas várias vertentes, é não só instigante mas por vezes igualmente desconcertante, inclusive para a crítica, por problematizar, transbordar as margens e até mesmo sabotar, por dentro, alguns dos modelos de análise mais em voga.
Do ponto de vista estritamente teatral, Sony Labou Tansi, que se define como Kongo, fundou em 1979/1980 e dirigiu até a sua morte uma companhia teatral, o Rocado Zulu Théâtre, em Brazzaville: apesar das dificuldades iniciais da sua carreira literária, pode encenar as suas peças in loco e em diferentes cidades da Europa e dos Estados Unidos como gozou, e goza mesmo depois da sua morte, do apoio fundamental do Festival de Limoges (Festival des francophonies en Limousin) e de outros festivais francófonos.
Em busca de simplicidade e alguma eficiência, optou-se por apresentar o dramaturgo no seu contexto de formação e origem, resumindo as suas posições teóricas frente ao teatro africano e ocidental, [3] para analisar em seguida de mais perto uma das suas últimas peças, Une vie en arbre et chars… bonds [4] destacando algumas das suas intertextualidades: daí o nosso plano.

2. A terra de origem

Je suis un homem où sont embourbés tous les Autres.
Sony Labou Tansi.

Les cultures sont de contamination et de saveur humaine.
Kossi Efoni [in Encre]

Na peça de Césaire, Une saison au Congo, no último encontro entre Lumumba e sua mulher Pauline (III, 2), esta lhe diz: “Je n’ai pas nom de pays ni de fleuve!” e o marido responderá, num diálogo que exalta a importância da mulher no confronto com o herói: “Tant pis, je t’ai toujours appelée en moi-même, Pauline Congo” (Une saison, p. 96).
Nascido Marcel Ntsoni em Kimwenza (Léopoldville) a 5 de junho (ou julho) de 1947 e falecido em Brazzaville a 14 de junho de 1995 aos 48 anos, Sony Labou Tansi reúne os dois Congos atuais, além da memória do antigo Reino do Congo descrito pelos cronistas portugueses dos séculos XV e XVI. [5]
É o filho mais velho de uma fratria de sete irmãos da segunda mulher do seu pai (polígamo) e toma literariamente o sobrenome materno, que combina com uma homenagem ao escritor igualmente congolês Tchicaya U Tam'si (1931-1988). [6]
Alfabetizado em Kikongo, uma das línguas banto, numa missão protestante sueca, [7] é enviado em seguida por um tio para a escola francesa. Sobre esses anos de formação e de aprendizagem, dará um testemunho por vezes cômico, por vezes brutal:

J’écris en français parce que c’est dans cette langue-là que moi-même j’ai été violé. Je me souviens de ma virginité. Et mes rapports avec la langue française sont des rapports de force majeure, oui, finalement. Il faut dire que s’il y a du franaçis et de moi quelqu’un qui soit en position de force, ce n’est pas le français, c’est moi. Je n’ai jamais recours au français, c’est lui qui a recours à moi. (in Encre)

Diante da pergunta sobre as razões de escrever, Sony responde, citando sem citar Jahan: “j’écris parce que je suis kongo, c’est-à-dire muntu, c’est-à-dire homem”. Resumindo a sua posição, o congolês escreve sobre o silêncio de 600 anos da África:

J’appartiens à la partie de la Terre qui aujourd’hui compte six-cents ans de silence. Ce silence nous a enseigné deux ou trois choses capitales: la beauté de la différence, les rapports avec la nature, l’ouverture vers l’autre. Je ne veux pas dire que nous soyons les meilleurs. J’écris sans doute pour témoigner de ma différence, pour garantir celle-ci; parce qu’elle est un enrichissement pour l’humanité, parce qu’elle est la seule vraie possibilite d’ouverture sur l’ “autre”; la seule vraie voie de reencontre avec l’autre; enfin, la seule garantie contre l’uniformisation, l’intolérance et le fascisme. (in Encre)
  
3. Sony Labou Tansi, pensando o teatro africano | A leitura de alguns textos teóricos de Sony Labou Tansi sobre o teatro, [8] obriga o leitor a refletir o que vem sendo feito, no Brasil, no duplo campo dos estudos francófonos e lusófonos, e na sua necessária e desejada articulação. Ele é de longe o autor com maior experiência de teatro em África não só como produtor de textos mas também como encenador e diretor teatral. [9]
Como compreende Sony Labou Tansi o teatro e a obra teatral? Sua primeira resposta está num ensaio de 1983:

…je crois qu’on appelle aujourd’hui théâtre le fait d’emprisonner dans un texte (visuel ou oral) un certain nombre de symboles liés au profond besoin, à notre besoin fondamental d’une expression totale; car le but c’est justement l’expression totale. Là est la logique profonde du spectacle. (in Encre).

Na abertura do mesmo texto, Sony declara não querer ter antepassados nem na Grécia nem na Pérsia. A passagem é característica da sua ironia:

Dans l’entendement de l’Euro-Occidental, le mot théâtre renferme trois couches d’alibis qui se résument en trois mots: jouer, montrer, toucher. L’acte théâtral, si je peux me permettre de parler ainsi, serait consacré par d’autres petits alibis plus ou moins extérieurs. Masi je ne partirai pas du théâtre comme l’indiqueraient ses origines, sa croissance, sa récupération par le texte, la salle, les metteurs en scène, l’argent. Je n’ai aucune envie de me frapper des ancêtres en Grèce ou en Perse, aucune envie de fouiller dans le culte de Dionysos les senteurs de l’esthétique nègre. (in Encre).

Sony estabelece uma diferença de olhar entre o Ocidental e o Africano, não apenas entre jouer e se jouer, mas, sobretudo, na função do mediador/ator, desqualificado ou valorizado socialmente:

En Occident le métier d’acteur porte en lui, un peu comme le sexe, une forme de honte, profonde, indélébile, une allure de besogne magouillante. [….] Chez nous, par contre, le nzonzi [médiateur, arbitre, juge] était l’homme adore et envié de tous. Il avait les meilleures faveurs et la meilleure admiration. (in Encre)

O seu texto mais conhecido sobre o teatro é aquele em que pergunta “Césaire, père du théâtre africain?”, modelo de ironia e de sabotagem consciente de certezas universitárias. Uma primeira resposta paradoxal nasce da oposição postura curva vs postura vertical:

Mais parlons de Césaire et de l’Afrique. De l’Afrique d’abord, parce qu’elle existe avant 1960. Du lien sacré qui la lie à Césaire et j’ose dire à Fanon. Le centre de ce lien est le fait que l’Afrique est le plus recourbé des cotinents – or le drame césairien reside grosso modo dans un rapport douloureux avec la station verticale; il est celui de la reconquête de la verticale. (in Encre, ibid.).

Para Sony, o problema central da África é o seguinte: um continente que não pensou durante 450 anos. “N’a pas pensé, n’a pas rêvé, n’a pas parlé… mais pose des questions”. Entretanto, apesar da tendência ocidental para generalizar e centralizar, é preciso descobrir e identificar diferenças:

Même si, pour le monde entier, l’Afrique est un bloc (agenouillement) et une unité culturelle (on y danse partout à l’ombre des fusils) nous serions plus prudents de parler des Afriques et des théâtres de ces Afriques. Je ne parlerai que du monde que je connais le mieux, le monde kongo. (in Encre, ibid.)

Sony, no seu panorama dos teatros tradicionais no grande espaço Kongo, enumera quatro tipos diferentes:

a) o teatro sagrado do Wala e do Lemba, cuja devisa era “Mia ku lemba ka miteko” (só se diz o que se passa no Lemba aos mortos e a Deus), implicando sempre um longo aprendizado e diferentes etapas de iniciação;
b) o teatro dos Nkoloba ou marionetas, mais popular: um contador narrava uma história, geralmente trágica, com a ajuda de bonecos de madeira, para que o corpo humano não fosse poluído por certos atos;
c) o Kingizila (teatro ou dervir, etimológica e literalmente) é um ato teatral de cura de um doente a partir do papel que devia representar uma vez e ainda de novo, no interior de uma história (cenas, costumes, texto);
d) o Bumungu ou teatro da purificação, o mais íntimo de todos, reagrupando um certo número de curandeiros (nganga) em espaço com quedas de água, grutas, fontes etc., a representação durando do nascer ao cair do sol. Neste caso, o nganga-e-bunungu devia viver uma história que podia atrair a atenção do Grande Espírito.

A conclusão de Sony é simples: outras formas de teatro (Yoruba, Fang, Ewe…) existem em África, monstrando que Césaire, dito o Africano, não é exatamente o pai, “mais le témoin (important) de la tragédie des agenouillés qu’ils soient d’Afrique ou d’ailleurs” (in Encre, ibid.). Em suma: Sony Labou Tansi encaminha os críticos que supõem ou afirmam uma filiação externa (antilhana, no caso) para o novo teatro africano, para o estudo antropológico das sociedades do universo banto, sem negar a importância de Césaire e a sua análise.
Há ainda dois outros textos de Labou Tansi interessantes do ponto de vista teatral: o “Avertissement”, provavelmente de 1989, que precede a sua peça “Qui a mangé Madame d’Avoine Bergotha?” (in Encre) e ainda uma reflexão sobre o teatro possível num mundo doente de “um vicioso traumatismo cinematográfico de essência americana” (ibid.).
Na realidade, a grande novidade que traz o dramaturgo Sony Labou Tansi ao teatro africano é o seu próprio método de trabalho que parte do corpo e da improvisação do ator a partir de temas nascidos da observação das ruas ou dos estádios.
O escritor congolês Caya Makhélé [10] (1952, Pointe Noire, Congo), numa entrevista gravada, assim descreve o método de trabalho de Sony:

 Son théâtre est avant tout un théâtre d'improvisation avec des thèmes choisis pour que chaque comédien, chaque membre de la troupe puisse apporter quelque chose. Et ensuite, il écrivait le texte à partir des propositions qui étaient faites. Et souvent ces textes évoluaient énormément et devenaient des textes d'une grande qualité littéraire et théâtrale en même temps. Mais il pensait également que les fondements du théâtre traditionnel congolais étaient importants pour comprendre et pour avoir la capacité de changer la manière de faire le théâtre. Et donc, en partant des bases traditionnelles, il a transformé le théâtre congolais et africain. Il a influencé le théâtre africain de telle sorte que la structure même des textes, la manière de mettre en scène, et la capacité de donner de l'espoir aux gens, a fait que son théâtre, comme il disait, ‘était le théâtre du corps, de la chair, de la sueur, du sang, et de la parole’.

Caya Makhélé assim descreve a origem do teatro do Outro, a observação atenta das ruas:

Sony disait qu'il s'inspirait de tout ce qu'il y avait autour de lui, il était souvent dans des endroits impensables, auprès de la population, il se rendait souvent dans les marchés pour écouter les gens et pour voir ce qui se passait, il allait beaucoup aussi sur les lieux de sport. Mais ses sources d'inspirations étaient également dans ses lectures.

Essas leituras podiam ser os amados latino-americanos (lidos em tradução francesa), Kafka ou Jules Verne.

4. “Une tragique jouerie” | Assim é apresentada a peça Une vie en arbre pelo próprio autor na última linha do prefácio (in Théâtre 2). Jouerie é um termo do período que os linguistas denominam “Moyen français” (período da evolução da língua francesa correspondendo ao final da Idade Média e início do Renascimento), reutilizado por escritores do século XIX e XX. Significa: brincadeira, divertimento leve, fácil. Liga-se ao verbo jouer (brincar, representar). [11]
O termo nos permite estabelecer uma primeira diferença entre Une saison e Une vie en arbre: Césaire faz, a partir de uma documentação extremamente sólida do ponto de vista histórico, um panorama das forças em confronto (neocolonialismo belga, tribalismo, influência da Igreja, memória do profetismo e do messianismo, ingerências estrangeiras, intervenção dos capacetes azuis da ONU, pretensa neutralidade da ONU, guerra civil e anarquia, secessão do Katanga, desordem econômica etc.) enquanto Sony cria uma espécie de “moralidade” ao mesmo tempo alegórico-medieval e pós-moderna, reunindo cientistas loucos (americanos e europeus), duas jovens suecas apaixonadas, um ancião centenário, verdadeira encarnação da frase tornada proverbial “un vieillard qui meurt c’est une bibliothèque qui brûle”, [12] uma criança que permanece anônima e morre enforcada representando o futuro incerto não só dos Congos como de toda África e uma multidão de personagens igualmente sem nome num cenário simbólico que reúne os semas da árvore-mãe da humanidade, das águas que fertilizam da terra, da poluição física e moral da natureza anunciando sempre possível cosmocídio. Tentemos destacar algumas camadas de significação dessa “jouerie”.

4.1. Num cemitério de automóveis junto a uma árvore muitas vezes milenar
O título da peça, Une vie en arbre et chars… bonds, é um jogo de palavras, o primeiro de muitos outros jogos, praticamente intraduzível em português. Brincar com os Significantes e Significados, provocar curtos-circuitos ou contaminações imprevistas de sentidos, é falar a língua do trickster (ou seja: a língua de Exu, de Elegbá ou Legba). Esse personagem, tão comum nos cultos africanos, e essencialmente mediador, fala por enigmas, adivinhações ou trocadilhos, na intersecção explosiva dos conceitos e conotações: o trickster dialectiza o real e contorna as contradições lógicas. [13] Sua linguagem desabrida e sem regras encontra a do fool shakespeariano.
Ainda sobre o título: a árvore constitui um modelo de vida ao mesmo tempo enraizado e ascendente, unindo as profundezas da terra ao céu. Para que a árvore possa crescer para o alto é preciso descer cada vez mais na terra. É o grande modelo oculto do ponto de vista antropológico do imaginário de Césaire. Note-se a preposição en (Une vie en arbre): não se trata de uma vida de árvore mas como, à maneira de árvore. Enfim as sonoridades do último segmento do título fazem o espectador/leitor entender primeiramente charbon e não chars …bonds. Como se obtém o carvão vegetal? Pelo corte da floresta, pela queima das árvores em fornos primitivos. Ao separar por reticências dois segmentos chars… bonds (= carros aos saltos ou carros de assalto?), o autor prenuncia a entrada inquietante em cena do Homem-monstro e seus sequazes (o Homem-relógio, o homem H e seu adjunto, o genitor de empregos, o enviado-viajante, o preposto, os touros chicoteadores, as multidões). Essas personagens sem nome próprio inicialmente, pretendem, sob a direção do Homem-monstro, transformar o espaço da floresta e do grande estuário já poluído pelas carcaças dos carros abandonados e pelos ratos e baratas, numa aldeia planetária dos novos tempos e das novas políticas transnacionais. A própria descrição do cenário inicial – uma árvore, não centenária, mas multimilenar perto de um grande estuário de águas amareladas – apresenta-se como a grande metáfora visual de uma situação histórica: o desenvolvimento dos impérios coloniais (por ordem cronológica no caso do Congo: português, francês e belga) vivido pelos europeus como aberturas exaltantes de espaços de vida e de ação, tem como reverso da medalha, a experiência dos colonizados com o esfacelamento, poluição e apodrecimento dos seus lugares de vida. É desse espaço em decomposição que o autor interpela o seu público, cada um de nós.
As cenas da peça, não numeradas como é habitual, seguem-se, indicadas através de um cromatismo metafórico. Ao todo são dezasseis, distribuídas em dois grupos separados por um período de seis meses. No primeiro grupo, encontramos sucessivamente: 1) scène jaune d’oeuf, 2) entre-scène jaune, 3) scène mère, 4) scène rouge à lèvres, 5) scène bleu de nuit, 6) l’anti-scène bleu d’urgence, 7) avant-scène blanche, 8) scène blanche, 9) scène noire de charbon, 10) scène pourpre; no segundo grupo, temos: 11) scène gangue et boue, 12) scène bleu de méthylène, 13) scène-mère, 14) scène cuivre et thé, 15) scène noir de carbone e finalmente 16) scène rouge.
O cromatismo simbólico de cada cena constitui o primeiro fio de Ariadne na opacidade do texto. Note-se que as tonalidades podem repetir-se mas vão escurecendo com a entrada do Homem-monstro e seus acompanhantes a partir da cena nº 4: a ação desenrola-se do amarelo ovo, cheio de luz e prenhe de promessas de vida, ao negro carbono, que anuncia o fim sangrento.
Digamos uma palavra sobre os personagens iniciais. Ao levantar o pano, duas irmãs gêmeas (Colette e Charlotte) chegaram da sua Suécia natal para chorar a morte do seu irmão Georges, grande cientista interessado em estudar a estranha árvore. Fora atraído por um certo Balthasar de quem as irmãs falam mas nunca se saberá de quem se trata: é um dos enigmas da peça. Lembrança longínqua de um antigo Rei mago africano que seguiu outrora uma estrela?  O irmão morto viajou da Suécia em busca de uma árvore. Acompanha as irmãs um rapaz, Mensfields, louca e servilmente apaixonado por uma das gêmeas, Colette. Para esta, no entanto, é já o tempo do desprezo impaciente e do desamor.
As irmãs, acampadas ao pé da árvore, são visitadas todos os dias por um velho (este centenário: tem 116 anos) e por um adolescente sem nome, de 13 ou 14 anos. Colette apaixona-se com fúria pelo “menino [14] a ponto de desejar comê-lo. A área semântica da boca é uma das obsessões em Sony Labou Tansi. [15] Aliás também a árvore parece marcar o lugar de uma boca do mundo ou melhor do seu umbigo fechado pelo tronco portentoso. Um omphalos que reage, vivo.
O velho conta às jovens suecas dois contos ou fábulas sobre a árvore e o que a rodeia: a árvore não só provoca mortes porque ela se mexe (“bouge”, Théâtre 2, p. ) e causa acidentes mortais (assim terá morrido o irmão das gêmeas, já enterrado) como brinca com o grande rio e as curvas da estrada. Esta não leva a lugar nenhum e o viajante volta sempre, mesmo sem o querer, em direção à árvore. Estamos assim num lugar mágico ao mesmo tempo com poderes misteriosos e em decomposição.

4.2 A primeira cena-mãe

Je n’aime pas l’amour en soi. J’aime le poids savoureux qu’il prête à notre être fragile.
Colette, in Une vie en arbre, p. 29

Não podendo analisar a fundo cena por cena, optamos por concentrar nossa atenção sobre os seus momentos chaves.
A cena inicial, a mais longa de toda a peça, intitulada scène jaune-oeuf (ibid.), desenrola-se segundo o seguinte esquema: apresentação dos três estrangeiros (as gêmeas e Mensfields), entrada do ancião com o menino sem nome, este anuncia repetidas vezes a chegada terrificante dos américasseurs/américassés [16] no horizonte, o ancião decide dormir enquanto todos esperam o ataque iminente.
A primeira scène-mère [17] (ibid.) constitui uma espécie de intermezzo lírico. Colette, inspirada e radiante, diz o seu amor com conotações evidentes de um novo Cântico dos cânticos pelo menino que a trata cerimoniosamente por Madame e as duas irmãs conversam sobre as suas concepções opostas sobre o amor, enquanto a árvore, no final da cena, põe-se a uivar. A natureza em pânico grita.
O diálogo lírico das gêmeas, sobre fundo sonoro de uma cavalgada furiosa, desenvolve-se a partir do célebre amare amabo de Agostinho de Hipona: o leitor atento percebe que está diante de uma discussão com o verso e o reverso de uma corte medieval de amor provençal. Colette canta longamente em versos sensuais a sua paixão súbita e incoercível pelo menino: a paixão a faz renascer, outra. Charlotte, por sua vez, faz o elogio do amor na sua diversidade e variação, desfiando o elenco dos seus amantes: de forma reveladora, como uma reincarnação feminina de Don Giovanni (o de Mozart) inclui até mesmo o ex-amante da sua irmã Colette, Mensfields. Por outras palavras: Charlotte brincou, num determinado momento, de ser a Outra, igual a si própria. E ambas já conheceram e viveram a tentação de amar o Mesmo, isto é, o seu próprio irmão, como nas teogamias do antigo Egito em que os deuses se casam entre irmãos e irmãs. [18] O tema aparece sub-repticiamente em ambas as gêmeas. [19]

4.3 A reescritura da narrativa de Joseph Conrad, Heart of darkness.

J’ai fini d’être Wattmans. Je me suis sacré Homme-Monstre et croyez-m’en, ça ne sera pas pour des bagatlles.
In Une vie.

O núcleo central da peça que vai, de certa forma, da scène rouge à lèvres até a scène pourpre (in Théâtre 2) parece-nos inicialmente uma releitura alucinante da novela de Joseph Conrad sobre o Congo, Heart of darkeness. [20]
Todos conhecem a assustadora novela de Conrad [21] (publicada pela primeira vez em folhetim em 1899) em que um jovem oficial da marinha mercante britânica, Charles Marlow, sobe o curso de um grande rio em busca de um certo Kurtz, aventureiro cruel que criou um reino seu no interior do Congo belga, se não pelo texto em inglês, pelo menos na genial transposição feita por Francis Coppola, para a guerra do Vietname, no seu Apocalypse now (1979) em que o sádico louco tem, para cada um de nós, o rosto de Marlon Brando de cabeça raspada. Sony Labou Tansi, que certamente conhecia a narrativa de Conrad (não esqueçamos que ele foi, inicialmente, professor de inglês) elimina a busca rio acima e concentra-se na organização do novo reino sob o comando do Homem-monstro ao pé da árvore gigantesca junto ao grande estuário de águas barrentas.
O espectador descobre por acaso que o Homem-monstro e alguns dos que o cercam, já tiveram nomes americanos ou europeus. Wattmans é o verdadeiro nome do Homem-monstro e o Homem-relógio, seu principal auxiliar, chama-se na realidade Angelotte. Aventureiros mercenários empreendem agora a criação ex-nihilo de um reino, uma aldeia global para turismo de massa com previsão de três milhões de visitantes por mês (ibid.) em torno da árvore. Os Opositores patéticos ao projeto louco são apenas cinco: um menino sem nome, duas gêmeas, um velho mais um “pantin” (um mamulengo). [22] Com esse turismo de massa pretendem o Homem-monstro e seus acólitos criar pequenos “empregos” suplementares (ibid.) porque descobriram que os pobres não dão mais lucro no mundo de hoje: “personne n’a plus besoin des pauvretés non rentables et non payantes” ( ibid.).
Na sua peça, Sony retoma um dos temas centrais dos seus ensaios. A nova forma de escravização prescinde da violência, exercida de forma fulminante ou teatral apenas quando necessária:

Toute la nuit durant, nous avons essayé de faire enttendre à ces mulets que cette idée grandiose est à la base de l’entreprise. Nous l’avons fait suivant une logique claire telle que l’eau de source: plus de boulots égale moins de chômage et moins de chômage égale moins de vagabondages migratoires. C’est-à-dire plus de paix, du moins socialement parlant. Et plus de paix égale paradis sur terre, au moins pour quelques quarts de siècle. (ibid.)

Dentre os Opositores ao Homem-monstro, o mais patético é Mensfields que fala de si próprio em termos quase ridículos de herói trágico grego (furar os olhos, tapar os ouvidos, perder-se) num universo sem regras para serem quebradas, tornado absurdo. Ele é definitivamente um homem do passado, vítima da paixão e da idolatria. O comentário final do ancião sobre Mensfields é revelador. A Charlote que pergunta: “quel vide avons-nous creusé en cette pauvre âme?”, o velho responde: “Il s’en va vivre d’autres métiers. Lui au moins ne verra pas la vanité des vanités des américasseurs. Mourir aujourd’hui a plus de sens que vivre demain” (ibid.).

O preposto do novo Rei absoluto do centro do mundo em torno da árvore recebe a visita do enviado do Rei dos Sete, que pretende fazer uma visita a árvore em condições “civilizadas”. O espectador deve imaginar esse novo Rei como o chefe supremo do consórcio dos centros mais poderosos do mundo. Uma querela ridícula (ibid.) tem lugar entre um aristocrata regional (du coin) e um aristocrata mundial (de sang et de jus). A cena em questão termina por uma declaração reveladora do Homem-monstro: “Notre monde ne saura plus vivre que de folie furieuse” (ibid.). Loucura shakeasperiana de Ricardo III, de Macbeth ou do Rei Lear, loucura hitleriana nas ruínas fumegantes de Berlim, loucura de Bokassa no seu trono dourado, loucura de Idi Amin Dada com seu exército inspirado no King's African Rifles, regimento colonial britânico, loucura do Apocalyse now.
Uma diferença, no entanto, impõe-se. A scène noire de charbon dá um passo a mais no desvelamento da realidade: o espectador descobre que as duas figuras mais inquietantes, Wattmans e Angelotte, o Homem-monstro e o Homem-relógio, fazem parte de um grupo de cientistas. O antigo nome do Homem-relógio revela que este ainda tem pruridos de educação religiosa ou veleidades de antigo seminarista. Wattmans vai além. A morte de Angelotte, de forma irônica, aparece no texto através de datações de tipo cristão: “Je n’ai point d’autre déclaration à donner en pâture avant mon jour fixé au 10 du mois de Marie” (ibid.). Todos os que se deixaram levar por Angelotte, assim como o seu líder, serão mortos par “ces traîtres de conjurés de la Pentecôte” (ibid.). Por quem exatamente? A resposta cabe ao espectador/leitor. [23]
Uma cerimônia de bobos (profissionais) para bobos (que se ignoram como tal) é encenada sem maiores comentários: quem quiser nela acreditar só revela o seu grau de ingenuidade e a sua incapacidade de ler a realidade. O Homem-monstro, joelho ao chão antes de cair por terra de dor fingida, representa teatralmente o seu pesar diante do corpo morto do seu maior Adjuvante até então:

L’Homme – monstre: (écroulé sur un genou): Mort, que me fais-tu là, à quels sinistres baisers m’as-tu voué? Quelles noces tragiques veux-tu me faire fêter? Parle!… je ne suis plus qu’un chiffon de chair périmé. (Il titube jusqu’au corps de Angelotte) (ibid.).

4.4 Seis meses depois, uma virada inesperada e mais outra ainda.

A História se repete duas vezes, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa.
Marx, Le 18 Brumaire de Bonaparte.

Virada inesperada para quem tem em mente a novela de Conrad ou o filme de Francis Coppola.
A scène gangue et boue (ibid.) passa-se seis meses depois dos funerais pomposos de Angelotte, o Homem-relógio. O espectador/leitor acha-se agora diante do imprevisto ou melhor: do inimaginável. Aliás, como em Césaire, a lama da mangrove (pântano, charco, mangue à beira-mar etc.) é o lugar primevo, fecundo de todas as metamorfoses e nascimentos inesperados. O Homem-monstro ama e põe-se a falar a linguagem do amor quase cortês. Ele confia ao seu escudeiro os seus novos sentimentos:

L’Homme monstre:
Ecuyer, comprends, réalise comme à mon tour j’appelle cette femme du haut de mon être effondré. Colette amie, rigoureuse Colette, c’est de vous que mon coeur gonfle. Et c’est vers vos mains nues que toute mon âme vient béamment rêver […..] Colette aimée. Ah si je pouvais, dans les bras de cette nuitée, boire tes lèvres par petites gorgées insensées, et être ivre mort de tes mains et de ton sein effréné…. (ibid.)

Interrompemos a citação que poderia continuar e parece sair de uma peça desconhecida de Claudel. Na cena seguinte, intitulada scène bleu de méthylène (ibid.), o Homem-monstro declara-se diretamente a Colette. A recusa desta provoca uma tirada digna do teatro barroco ou romântico. O espectador/leitor hesita, num primeiro momento, em levar a sério, ou não, essa nova linguagem. O exagero anuncia a paródia.
A cena seguinte, intitulada scène-mère (ibid.), entre o preposto e Colette elimina qualquer dúvida. Estamos diante de uma mistura de paródia, farsa rasgada e artifício de malandro. A lembrança das Fourberies de Scapin ou da commedia dell’arte italiana impõe-se. O preposto encarregado de pressionar a jovem sueca para ceder aos avanços do seu senhor todo-poderoso, confessa que colocou um sonífero no café do Homem-monstro, o que lhes dá 48 horas de descanso.
Na cena seguinte, dois dias depois, – scène cuivre et thé (ibid.) – prepara-se a execução dos rebeldes declarados culpados, amarrados a quatro postes. O discurso do ancião repete o velho Panoramix, criação de Uderzo e Goscinny. O leitor de histórias em quadrinhos reconhece várias frases entre as quais: “il faut arrêter cette galère avant que le ciel ne nous tombe sur la tête”. Duas palavras medievais voltam no discurso: “jouerie” e “menterie”. Mas o ancião morre, o que nunca acontece nas histórias de Astérix e Obélix, nem nas pantomimas jocosas dos jograis medievais.
A farsa continua com a entrada de Colette nua e, aos gritos, perseguida pelo Homem-monstro em pelo (sic). Colette ajoelha-se e pede pela vida do menino. A explicação do preposto é de farsa rasgada: [24] cansado de ser sodomizado pelo Homem-monstro, ele decidiu fazer o seu amo amar uma mulher (ibid.). Assim, foi ele que convenceu o Homem-monstro de que Colette o amava. Estamos diante de um conto para rir, digno dos Contes drolatiques, de Balzac. [25]
Colette, numa longa tirada, volta-se contra o menino, “imposteur marmot”, como ousa ele “importuner un coeur fatigué”? Nova versão feminina, do cansaço atrasado e romântico de um Rolla, ela afirma: “je suis en ce monde périmé, venue quelques siècles trop tard”, frase patética que retoma as confissões de um dandy [26] do século XIX, antes de apelar para o mito degradado do andrógino primordial, dividido como as duas metades de uma laranja cortada ao meio: “tout homme fut créé inachevé: il faut une femme pour l’accomplir dans cette putain de vie” (ibid.). A resposta desabrida e vulgar do menino encerra o diálogo: “Nous sommes arrivés au merdier de la fin et à la fin de tous les haricots”. A cena se encerra com a última réplica de Colette que ordena em vão: “je t’en prie, fais de moi ta putain de femme” (ibid.). [27]
A penúltima cena da peça – scène noir de carbone (ibid.) – é o falso clímax. É a retomada da cerimônia da Revolução de 1792, aprendida na escola francesa, da Fête de l’Être suprême, celebrada pouco antes do Terror, a 20 prairial de l’an II ou seja a 8 de junho de 1794. Mas agora são multidões “imundas” que desfilam e vêm visitar a árvore: homens “com números” vão e vêm. O Homem-monstro acabou de fazer o seu último número para a plateia: perdoa o escudeiro que o acusou de pederasta, os reféns são libertados. Ele anuncia: “ce monde va changer de fesses” (ibid.).
Se o fim das grandes peças históricas de Shakespeare é sempre o fim do caos com a volta da linhagem legítima e o restabelecimento (mesmo temporário) da ordem no mundo, o fim da peça de Sony Labou Tansi faz-nos pensar: e se Marx estivesse enganado? A História se repete ainda uma vez, mesmo depois da farsa, uma derradeira vez, ainda mais assustadora.
Diante do Homem-monstro, surge agora o Homem H (com H maiúsculo) e anuncia uma nova reviravolta: “nous sommes venus protéger l’arbre du professeur Wattmans”. A árvore da época do ictiossauro [28] será transferida para a Califórnia. A criança que protesta será enforcada em cena sem mais delongas. Dois gigantes oferecem os seus braços que servem de forca improvisada para o menino que morre. Colette desmaia. As últimas palavras são do novo Senhor que tem nome de rap, Pick Mc Powell:

L’homme-H (à son adjoint): Quand madame aura retrouvé ses esprits, emmenez-la dans mon bureau. Je lui expliquerai comment le monde désormais va être actionné et par qui. (A l’attention des indigènes) NOus brûlerons la cervelle à tous ceux qui se comporteront ou bien agiront en dehors des normes attendues par notre lourde mission. Le monde n’a plus de temps à jeter. Rompez! (ibid.)

5. À guisa de conclusão provisória | Autor prolífico, ao mesmo tempo dramaturgo e crítico, encenador e diretor de companhia teatral, representado com sucesso na cidade onde viveu na maior parte da sua vida (Brazzaville) e em festivais internacionais, herdeiro (ou bebedor noturno) de uma tradição ancestral e iniciador de um teatro popular, tudo isso faz de Sony Labou Tansi não só uma figura incontornável em África como uma espécie de homem encruzilhada do teatro contemporâneo na África. Praticamente ausente dos programas universitários brasileiros, nossa primeira preocupação foi apresentá-lo de forma sintética sem escamotear a sua complexidade. Para tal, escolhemos abordar uma única peça e escolhemos uma das suas últimas obras. Demos particular atenção às notas: por um lado, era preciso fornecer indicações precisas e por outro lado, sugerir novas pesquisas comparadas entre lusofonia e francofonia, textos clássicos e modernos, literários e não-literários. Deixamos de lado, no entanto, os incontáveis jogos de palavras que exigiriam uma análise ainda mais próxima do texto.
Enfim, imaginamos os dois textos sobre Aimé Césaire e Sony Labou Tansi interligados e articulados entre si, o que explica as inúmeras remissões entre as duas obras teatrais sobre o Congo, a do antilhano e a do congolês, sem que haja uma estrita filiação do mais velho para o mais moço, cada um dos poetas guardando a sua originalidade e a sua geo-poética particular assim como sua bagagem cultural. [29]
A obra de Césaire constrói-se sobre uma base cultural que só pode impressionar os seus leitores: conhecimento aprofundado das literaturas clássicas e modernas não só bom latinista como anglicista precoce que faz o seu mémoire de fim de curso na Ecole normale supérieure de Paris sobre os poetas negros americanos, dotado de enorme curiosidade e rigor intelectual que o leva a tomar nota de legendas em museus de Belas Artes ou de Ciências (Antropologia ou Etnografia, sobretudo), leitor apaixonado de enciclopédias e dicionários antigos, livros de botânica e/ou zoologia assim como de História etc. Qualquer exploração atenta da sua intertextualidade abre novos caminhos com resultados por vezes muito surpreendentes.
A bagagem de Sony Labou Tansi é a de um congolês nascido no espaço colonial belga e enraizado no espaço ancestral do Congo, consciente da diversidade étnica do seu país natal e da unidade supranacional, – obscurecida, mas profunda –, do universo banto, formado na infância por missões estrangeiras (católicas e protestantes) e pela escola francesa, alfabetizado em Kikongo e aprendendo o francês em condições pelo menos duras, um autodidata apaixonado por literatura francesa e francófonas certamente mas que descobre o que chama la littérature sud-américaine (na verdade, latino-americana) através de traduções. Estas constituem sempre um filtro: quem trabalha com tradução sabe disso. As cartas escritas a Sônia Oliveira Almeida o confirmam: Sony usa a língua francesa para descobrir o mundo europeu e americano. Seus conhecimentos de geografia podem às vezes fazer sorrir: numa carta sobre uma possível viagem ao Brasil (partindo evidentemente de Paris) sonha que poderá sobrevoar o México ou os Incas.
Foi realizado em 1999 um filme documentário sobre Sony Labou Tansi que deveria ser analisado porque, de certa forma, é revelador ver o homem de teatro em ação, no contato com seus atores, com seus amigos congoleses e no estrangeiro, seu sorriso e sentido de humor, sua audácia e sua franqueza desarmante. Os centros de estudos francófonos brasileiros deveriam comprá-lo. O filme chama-se Le Diogène de Brazzaville, de 1999, de Léandre-Alain Baker e Ferdinand Batsimba. O filme foi distribuído igualmente com outro título Le hasard en se mouchant fit l’homme. Un film sur Sony Labou Tansi

Le Diogène de Brazzaville, 1999
Pays Concerné: République du Congo
Réalisateur: Léandre-Alain Baker, Ferdinand Batsimba
Pays du réalisateur: République du Congo
Avec: Sony Labou Tansi
Production: Huit Production (La), Tv10 Angers
Pays de production: France
Distribution : La Huit Production
Diffusion: TV 10, C.F.I., Canal+Horizon, T.V.5
Durée: 52'
Genre: portrait
Type: documentaire
Festivals: Vue d'Afrique Montréal, Amiens, Fespaco, Namur, Milan, Lisbonne.

Ce documentaire raconte comment un jeune homme, Sony Labou Tansi, né à Kimwanza, un petit village des bords de la Loya, petit affluent du fleuve Congo, est devenu un écrivain de réputation internationale après la parution de son premier roman La Vie et demie aux Editions du Seuil en 1979. Cet homme de théâtre, modèle incontournable pour toute une génération, fut le témoin majeur de la vie sociale, politique et intellectuelle du continent africain, et un acteur important de la francophonie, jusqu'à sa disparition des suites du sida le 14 juin 1995.

O primeiro título do filme-documentário não deixa de ser interessante. A quantidade de anedotas legendárias sobre o filósofo cínico da Antiquidade – as mais conhecidas sendo: “procuro um homem” com a sua lanterna acesa em pleno dia nas ruas de Atenas ou “sai do meu sol”, resposta ao rei da Macedônia, Alexandre, que viera perguntar, ao homem semi-nu que vivia reduzido ao estritamente essencial no seu tonel, se precisava de algo – correspondem de certa forma à independência surpreendente do jovem dramaturgo e autodidata congolês que escreve uma carta aberta ao presidente Mitterrand sobre a política econômica e cultural francesa em relação à África mas não diz a sua sensibilidade exacerbada nem a sua preciência aliada a uma certa dose de ingenuidade de quem olha a realidade com olhos de criança. Desse ponto de vista, o segundo título Le hasard en se mouchant fit l’homme – sob a forma quase de um enigma corresponde melhor à aparição desse meteoro imprevisto. Esperemos que a edição crítica do seu teatro venha à lume rapidamente.

NOTAS
1. Sony morre aos 48 anos incompletos de aids a 14 de junho de 1995, três dias depois da sua mulher Pierrette Kinkala. O casal deixou três filhas.
2. LABOU TANSI, Sony. Poèmes. Edition critique. Coordinateurs Claire Riffard et Nicolas Martin-Granel en collaboration avec Céline Gahungu. Planète Libre, CNRS éditions, ITEM, août 2015. Daqui por diante: Poèmes.
3. Ver LABOU TANSI, Sony. Encre, sueur, salive et sang. Avant-propos de Kossi Efoul. Edition établie et présentée par Greta Rodriguez-Antoniotti. Seuil, septembre 2015, indicado daqui por diante por Encre.
4. LABOU TANSI, Sony. Théâtre 2. Une vie en arbre et chars…bonds. Une chouette petite vie bien osée. Lansman, 1995, edição indicada daqui por diante por Théâtre 2.
5. Cf. a pesquisadora romena, naturalizada italiana RADULET, Carmen Maria. “O reino do Congo: manuscrito inédito do “Códice Riccardiano 1910”. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1992, 160 p. Ver igualmente: BALANDIER, Georges. La vie quotidienne au royaume de Kongo du XVIe au XVIIIe siècles. Hachette, 1965 e GONÇALVES, António Custódio. História revisitada do Kongo e de Angola. Lisboa, Estampa, 2005.
6. A escolha do último nome, ligeiramente modificado, é significativa: Gérald-Félix Tchikaya toma em 1957 o pseudônimo de U Tam’si (o que fala por/para o seu país, o Congo). Em Sony, há assim a afirmação de uma dupla filiação: filiação interna (propriamente congolesa, em que o mais jovem escolhe o seu “antepassado”) e filiação segundo a negritude (especificamente de Césaire, para quem a escolha do nome é um tema central do seu teatro).
7. Césaire, em Une saison au Congo, dá testemunho indiretamente da presença, no Baixo Congo, da Mission évangélique suédoise (MES), que dispunha de sete missões na região a partir dos anos 1920. Isso explica por um lado, a citação de Mestre Eckhardt no texto de Dag Hammarskjöld e por outro lado, uma tirada do tocador de quissange diante de Lumumba: “Tu es notre guide inspire, notre messie! Rendons gloire à Dieu, mes enfants, Simon Kimbangu est de nouveau parmi nous!” (II, 2). No Congo belga, Simon Kimbangu (1871-1951) está na origem da igreja kimbanguista. Ele profetizou a dipenda dianzole (a segunda independência em Kikongo). As autoridades belgas, alertadas pelos missionários católicos e protetstantes, prendem-no assim como seus principais seguidores em 1921. Condenado à morte, é graciado pelo rei Alberto I e sua sentença comutada em prisão perpétua. Hoje a Igreja Kimbangusita é membro do Conselho ecumênico das Igrejas desde 1969 na Inglaterra. Em suma, a documentação propriamente histórica da peça de Césaire é muito mais densa; ela praticamente inexiste em Une vie en arbre: a sua poética não busca escrever uma peça histórica mas alegórica.
8. Ver “Donner du souffle au temps et polariser l’espace” (in Encre, 2015), “Pourquoi le théâttre” (ibid.), “Césaire, père du théâtre Africain?” (ibid.), “Avertissement” (ibid.), “Quel théâtre dans un monde atteint d’un vicieux traumatisme cinématographique d’essence américaine?” (ibid.).
9. A experiência de Sony Labou Tansi é a de um Molière africano.
10. Consultar indicação de filme-documentário no final deste texto.
11. A palavra, que não consta do Petit Robert, é utilizada por Balzac numa narrativa pouco conhecida do grande público ou por Claudel nos seus poemas em prosa sobre a China. Os dicionários especializados dão os exemplos: “Griffith a été la seule dans le secret de ma jouerie à la poupée” (BALZAC, in Mémoires de deux jeunes mariées,1842). “Au printemps, dans la turbulence de sa jouerie, le dragon aux anneaux bouillonnants envahit nos rues et nos maisons (…) aujourd'hui c'est la fête du fleuve: nous célébrons son carnaval avec lui dans le roulant tumulte des eaux blondes” (CLAUDEL, Paul, in Connaissance de l’Est, 1900).
12. Na África negra, muitos provérbios são em realidade frases de pessoas cuja pertinência as transformou em “verdades”. A frase em questão seria a reformulação de uma parte do discurso de do escritor e etnólogo do Mali, Amadou Hampaté Ba na UNESCO em 1960.
13. Um texto fundamental sobre a linguagem do trickster permanece ainda hoje o de Roger Bastide em homenagem a Lévi-Strauss: BASTIDE, Roger. “Le rire et les courts-circuits du sens”, in Echanges et communications: mélanges offerts à Claude Lévi-Strauss à l’occasion de son 60ème anniversaire. Mouton, 1970. Exu (com seus diferentes avatares e nomes) aparece no teatro de Césaire sobretudo em duas peças: La Tragédie du Roi Christophe (no discurso de Hugonin que encarna Baron-Samedi por ocasião da morte do rei) e Une Tempête (sob a forma literal de Eshou, personagem que semeia a desordem na ordem injusta ou inversamente a ordem na desordem caótica). Nesta última peça, Césaire re-cita vários orikis colhidos diretamente de estudos antropológicos.
14. Na peça de Sony, o menino ou adolescente sem nome é sempre chamado “enfant”, “bambin”, “marmot”.
15. Vários ensaios críticos abordam a questão nos romances de Sony Labou Tansi. No entanto, o tema não é exatamente o do canibalismo nem da antropofagia brasileira. Uma análise comparada sobre o tema nos contextos lusófono e francófono traria resultados interessantes. Seria igualmente necessário alargar a análise para o conjunto do teatro de Sony Labou Tansi. Ver o ensaio “Bouche et cannibalisme sexuel dans Une Vie en arbre et chars…bonds”, de LOBLI BOLI, Armand, in La Bouche plurielle. Sous la direction de Michelle Tanon-Lora. L’Harmattan, 2011.
16. Os dois termos, criados evidentemente a partir de “américains”, é um duplo jogo de palavras sobre a forma ativa e passiva da ação de casser (= quebrar) dos que estão a chegar contra a árvore: casseurs e cassés. Os que vão chegar quebram e vão deixar quebras/ruínas. Os ensaios de SLT em Encre mostram como a guerra do Iraque de 1991 exacerbou o anti-americanismo do autor: ver “La guerre des menteurs”, ibid.. A peça que ora analisamos, na sua primeira versão, data de 1995.
17. Note-se que haverá uma outra scène-mère depois da chegada do Homem-monstro, no segundo grupo de cenas, seis meses mais tarde.
18. Ver: Shu e Tefnut, Geb e Nut, Osíris e Ísis, Seth e Neftis, incesto mítico repetido pelos faraós no tempo histórico. Uma pesquisa comparada deveria ser feita sobre as leituras feitas por Sony das teses de Cheikh Anta Diop sobre o Egito antigo e a África Negra.
19. No volume Poèmes, há um duplo texto interessante “Parcours à deux voix autour d’Eros”, assinado recto/verso alternadamente por Sony Labou Tansi e por Daniel Maximin (ibid.): poderia ser o ponto de partida para uma análise comparativa entre o congolês e o guadalupeano sobre o tema do amor.
20. O romance de Joseph Conrad tem duas traduções brasileiras, Coração das trevas: Hamilton Trevisan (São Paulo, Global, 1984) e José Roberto O’Shea (São Paulo, Hedra, 2008).
21. Joseph Conrad é igualmente uma das leituras fundamentais de Césaire na composição da sua peça Une saison au Congo, e não se trata apenas do Heart of darkeness. Uma referência na discussão entre Dag Hammarskjold, o secretário-geral da ONU, e um dos seus auxiliares o comprova. Césaire re-cita uma situação que os leitores de Conrad identificam facilmente: “Vous n’allez quando même pas croire que je dirai comme Jim devant Doramin: ‘Je prends tout sur ma tête? Et que je me tairai?” (III, 4). A passagem sai de Lord Jim. Isso sugere que Césaire (e provavelmente outros) não escreve sobre a loucura cruel da colonização sem referir-se direta ou indiretamente à obra de Conrad.
22. Este evidentemente é Mensfields, desesperadamente perdido no seu amor impossível (cf. Théâtre 2).
23. A morte de Angelotte ordenada pelo Homem-monstro pode ser comparada à morte do Arcebispo Juan de Dios na Tragédie du Roi Christophe mas o registro é diferente: em Césaire, estamos ainda numa tragédia moderna, em Sony, numa farsa rasgada e grotesca.
24. Para alguém com alguma memória da cena teatral brasileira, a reviravolta parece saída do teatro de rebolado da antiga Praça Tiradentes no Rio, de uma das improvisações enlouquecidas de Dercy Gonçalves na TV Globo ou das velhas chanchadas da Atlântida com Oscarito e Grande Otelo.
25. Os Cent Contes drolatiques, de Balzac, publicados em 1832, são um projeto insólito de escritura lúdica e de imitação para “demourer soy-mesme en pastissant devant le moule d’aultrui”. O conjunto, pela sua verve truculenta e rabelaisiana, provocou escândalo na época.
26. Cf. “Rolla”, de Musset ainda jovem, de 1833: “je suis venu trop tard dans un monde trop vieux.”
27. Um estudo a ser feito poderia ser a rescrita em Sony Labou Tansi de um certo Shakespeare, em particular Tróilo e Créssida (de 1602, publicada em 1609), peça onde impera um tom ambíguo entre obscenidade, desmistificação dos heróis e história sombria sem sentido trágico. Em 1964, Roger Planchon fez uma admirável montagem da peça para o TNP.
28. O ictiossauro (do lat. Ichthyosauria) era uma ordem de répteis marinhos extintos, que se extingue pouco depois da extinção dos dinossauros. Sony Labou Tansi brinca de parque jurássico, com Steven Spielberg: o filme é de 1993, pouco antes da redação de Une vie
29. Sugerimos igualmente que uma pesquisa comparada triangular possa ser tentada: Aimé Césaire, Sony Labou Tansi e Caya Makhélé.


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LILIAN PESTRE DE ALMEIDA (Brasil, 1936). Ensaísta. Página ilustrada com obras de Jair Glass (Brasil, 1948), artista convidado desta edição de ARC.

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Agulha Revista de Cultura
Número 104 | Novembro de 2017
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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