Pode-se dizer que durante
séculos a organização e estrutura dos saberes foram fundamentadas na
forma-Deus, tendo como pano de fundo, o infinito. Quando os pensadores já não
são mais condenados por dizer que a terra não é fixa e não é o centro do
universo, a crença em Deus é, de certa forma, abalada. Com isso foi preciso não
só uma reorganização dos saberes, como também uma nova forma, e as próprias
ciências começam a se reconfigurar e reorganizar tais saberes. O campo do
finito passa a ser o pano de fundo e o homem, em sua finitude, objeto das
ciências humanas. A forma-Homem parece tomar o lugar da forma-Deus.
Entretanto, se nos perguntamos
qual a forma atual da organização dos saberes, verificamos não ser simples
responder. Sabemos que não é mais Deus. Mas quem, ou o que, seria? A sombra de
Deus, talvez? Seria possível o homem ser sujeito, objeto e forma do saber, tudo
ao mesmo tempo? Já no século XVIII Kant pensava que há muitos problemas quando
o homem se propõe a estudar a si mesmo. O filósofo de Konigsberg foi o primeiro
a perceber que o homem surge como objeto e sujeito do saber. Mais tarde Freud,
em Além do princípio de prazer, dirá que quando lidamos com o objeto
homem, não há objetividade. Se o homem é objeto de estudo, quando o observamos,
ele não se mostra como é.
Será que a atualidade é
desprovida de forma? Vários pensadores sugerem respostas. Ater-me-ei ao
pensamento nietzscheano, tentando percorrer o caminho que poderia desembocar no
além-do-homem [1] como uma possível
nova forma.
Em seus escritos,
Nietzsche diz que Deus está morto. Em “Der tolle mensch”, aforismo 125
de A Gaia Ciência, o homem louco diz em praça pública que todos
nós somos os assassinos de Deus, mas que, apesar disso, esse feito ainda não
chegou aos ouvidos dos homens – “…feitos precisam de tempo, mesmo depois de
consumados, para serem vistos e ouvidos”. [2] É importante dizer que o homem louco, é louco para
o homem gregário.
Se Deus morreu – nós o matamos – e ainda não nos
demos conta disso, pode ser que a forma Deus ainda seja vigente. Mas, se
considerarmos Deus como representante do mundo inteligível de Platão, e o homem
como representante do mundo sensível, uma vez que, platonicamente, o primeiro é
verdadeiro e o último apenas uma cópia daquele, se o representante do primeiro
morre, o segundo, deixa de existir. Sendo assim, Deus deixa de ser forma, mas o
homem tampouco pode sê-lo. As chamadas ciências humanas seriam no máximo
ciências da sombra do homem, resquícios de um homem que teria existido somente
no mundo platônico. Seria, então, um equívoco chamar o homem atual de homem,
afinal, ele morreu junto com Deus. Mas, se esse homem não existe enquanto
homem, – não há homens, há fragmentos – para Nietzsche ele existe enquanto
meio. O homem é uma ponte para atingir outra forma – a de além-do-homem.
O homem é uma corda estendida entre o animal e o
super-homem, – uma corda sobre um abismo. (…) A grandeza do homem está em ser
uma ponte e não uma meta: o que no homem se pode amar é que é uma transição e
um declínio. Eu amo aqueles que não sabem viver de outro modo que não em
declínio, pois esses são os que passam ao outro lado. (…) Eu amo quem vive para
conhecer, e quer conhecer para que alguma vez viva o super-homem. E quer assim
seu próprio declínio. (…) Vede, eu sou um anunciador do raio e uma gota pesada
que cai da nuvem. Mas esse raio se
chama super-homem.
[3]
A humanidade não seria,
assim, centrada na forma-homem; mas o além-do-homem poderia vir a ser uma
forma. Pode-se observar em Nietzsche, que mesmo a humanidade como ponte não é
uma humanidade uniforme. Poder-se-ia dizer que temos diferentes graus. O
próprio homem louco, citado anteriormente, estaria em outro nível em relação à
multidão que se reúne no mercado. Vemos que ele salta na multidão, e que só ele
constata que nós matamos Deus. Além disso, a multidão fica em silêncio para
ouvi-lo. Alguém que se encontrasse no mesmo nível da multidão teria muita
dificuldade em silenciá-la, mas, estando em outro nível, pôde fazê-lo.
…O homem louco saltou em meio a eles e trespassou-os com o
olhar. “Para onde foi Deus?”, clamou ele, “eu vos quero dizê-lo! Nós o matamos,
vós e eu! (…) Que fizemos nós quando desprendemos esta Terra de seu sol? (…) Há
ainda um alto e um baixo? (…) Não nos bafeja o espaço vazio? Não ficou mais
frio? Não vem, sem cessar, sempre a noite e mais noite? Não se tem que acender
candeeiros pela manhã? (…) Jamais houve um feito maior – (…) “Chego cedo
demais”, disse ele então; “não estou ainda no tempo oportuno. Esse
acontecimento formidável está ainda a caminho e peregrina – ele ainda não
penetrou nos ouvidos dos homens”… [4]
Se contemplo a era presente com os olhos de uma era
longínqua, não vejo no homem atual coisa mais digna de nota do que sua
característica virtude e doença, denominada “sentido histórico”. É o começo de
algo inteiramente novo e estranho na história (…) Nós, os homens de agora,
começamos justamente a formar, elo e elo, a cadeia de um futuro sentimento
bastante poderoso – nós mal sabemos o que estamos a fazer. (…) quem é capaz de
sentir o conjunto da história humana como sua própria história sente, numa
colossal generalização, toda a mágoa do doente que pensa na saúde, do ancião
que lembra o sonho da juventude, (…) –; mas
carregar, poder carregar essa enorme soma de mágoas de toda a espécie e ainda
ser o herói, que, no romper do segundo dia de batalha, saúda a aurora e a sua
fortuna, como o ser que tem um horizonte de milênios à sua frente e atrás de
si, como o herdeiro de toda a nobreza do espírito passado, (…) – isso teria que resultar numa felicidade (…)
que, tal como o sol no princípio da noite, continuamente se desfaz de sua
inesgotável riqueza e a derrama no mar, e que, tal como ele, só vem a se sentir
verdadeiramente rica quando até o mais pobre pescador pode remar com remos de
ouro! Esse divino sentimento se chamaria então – humanidade! [7]
Vemos que
Nietzsche não coloca a futura humanidade como um conceito novo, mas como um
sentimento. Trata-se de uma humanidade que está para ser construída pelo
sentimento – sentir a história humana como sua própria história, acolhendo
tanto as perdas e mágoas, quanto suas conquistas e vitórias. Sentir todos os
seres humanos do passado e do futuro em sua totalidade, com suas alegrias e
tristezas, perdas e ganhos, e “poder carregar” tudo isso: – um feito de herói.
Essa seria a felicidade de um deus, ou a felicidade da doação, que, como o sol,
se desfaz de sua riqueza, e esta alcança a todos: “até o mais pobre pescador
pode remar com remos de ouro.” Esse sentido de humanidade que Nietzsche coloca
parece ter o papel de dar de volta ao homem as categorias de “fim”, “unidade” e
“ser”, que o próprio homem colocou e, posteriormente, retirou. Com a morte de
Deus temos a morte da verdade e o nascimento do niilismo. O mundo aparece sem
valor e sem sentido porque nós tínhamos dado as referidas categorias e depois
as tiramos.
Ao analisar as
três formas de niilismo como estado psicológico, Nietzsche fala sobre as
categorias de “unidade”, “fim’ e “ser”:
O niilismo como estado psicológico terá de ocorrer,
primeiramente, quando tivermos procurado em todo acontecer por um “sentido” que
não está nele (…) Niilismo é então o tomar-consciência do longo desperdício de força, o tormento do
“em vão” (…); ocorre, em segundo lugar, quando se tiver colocado uma
totalidade, uma sistematização, ou mesmo uma organização, em todo acontecer e
debaixo de todo acontecer (…) “O bem universal exige o abandono do indivíduo”…
mas, vede, não há um tal universal! (…) Dadas essas duas compreensões, de que
com o vir-a-ser nada deve ser alvejado e de que sob todo o vir-a-ser não reina
nenhuma grande unidade em que o indivíduo pode submergir totalmente como em um
elemento de supremo valor: resta como escapatória condenar esse inteiro mundo
do vir-a-ser como ilusão e inventar um mundo que esteja para além dele, como
verdadeiro mundo. Tão logo, porém, o homem descobre como somente por
necessidades psicológicas esse mundo foi montado e como não tem absolutamente
nenhum direito a ele, surge a última forma do niilismo, que encerra em si a
descrença em um mundo metafísico, que se proíbe a crença em um mundo
verdadeiro. (…)
…O sentimento da ausência de valor foi alvejado, quando se
compreendeu que nem com o conceito “fim”, nem com o conceito “unidade”, nem com
o conceito “verdade” se pode interpretar o caráter global da existência. Com
isso, nada é alvejado e alcançado; falta a unidade abrangente na pluralidade do
acontecer: o caráter da existência não é “verdadeiro”, é falso… não se tem
absolutamente mais nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo…
Em suma: as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos imposto
ao mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora o mundo parece
sem valor…
[8]
A princípio pode parecer
estranho Nietzsche falar em unidade, mas, se lembrarmos de sua admiração pelo
pré-socrático Tales, que percebeu a unidade na diversidade quando diz que tudo
é água, podemos presumir que nosso filósofo resgata o um, mas consciente de que
é uma invenção necessária para viver. [9]
Sabemos que no decorrer de sua filosofia, Nietzsche cria novas formas de
pensamento. Pela divisão tradicional de seus escritos em três períodos, é
somente a partir do segundo que tem início o pensamento propriamente
nietzscheano. [10] Mas não consigo
deixar de ver uma continuidade, principalmente no que se refere a sua posição
com respeito à Grécia antiga. Nesse sentido, retomo aqui uma reflexão que fez
ainda no primeiro período, nitidamente sob influência schopenhaueriana, que
traz a ideia de unidade:
Uma grande árvore cai, para nosso incômodo, e um
desmoronamento na montanha nos perturba. Cada noite de ano novo nos faz sentir
o mistério da contradição entre o ser e o devir. Mas o que faz o homem mortal
sofrer com mais intensidade é o desaparecimento de um instante da mais alta
perfeição universal, como que sem posteridade e sem herdeiros, como uma fagulha
fugidia. Seu imperativo soa, muito mais, do seguinte modo: o que alguma vez
existiu para perpetuar de modo mais belo o conceito de “homem” tem de estar
eternamente presente. Que os grandes momentos formem uma corrente, que conectem
a humanidade através dos milênios, como cimos, que a grandeza de um tempo
passado seja grande também para mim, e que a crença cheia de intuições realize
a glória ambicionada, é esse o pensamento fundamental da cultura. [11]
Essa reflexão, a meu
ver, tem relação com aquela que fará na quarta parte de A Gaia
Ciência, dez anos depois, citado aqui anteriormente. Em Cinco Prefácios
para Cinco Livros não Escritos ele diz: “o que alguma vez existiu para
perpetuar de modo mais belo o conceito de 'homem' tem de estar eternamente
presente. Que os grandes momentos formem uma corrente, que conectem a
humanidade através dos milênios, como cimos, que a grandeza de um tempo passado
seja grande também para mim, …”. Em A Gaia Ciência ele dirá: “como o
herdeiro de toda a nobreza do espírito passado, (…) e também o primogênito de
uma nova aristocracia, (…): tudo isso acolher em sua alma, as coisas mais
antigas e mais novas, perdas, esperanças, conquistas, vitórias da humanidade:
tudo isso, afinal, ter numa só alma e reunir num só sentimento: - isso teria
que resultar numa felicidade que até agora o ser humano não conheceu (…) Esse
divino sentimento se chamaria então – humanidade!”. Neste último texto ele fala
não só dos grandes feitos, como também das perdas e esperanças, sendo que em
ambos faz-se presente uma unidade.
…Em verdade, meus amigos, eu caminho entre os homens como
entre fragmentos e membros de homens! (…) Eu caminho entre os homens como entre
os fragmentos do futuro: daquele futuro que eu contemplo. E todos meus
pensamentos e desejos tendem a pensar e reunir em unidade o que é fragmento e
enigma e espantoso acaso. E como suportaria eu ser homem se o homem não fosse
também poeta e adivinhador de enigmas e o redentor do acaso! Redimir aos que
passaram, e transformar todo “Foi” em um “Assim o quis” – só isso seria para
mim redenção!
[12]
Pode-se dizer que essa
redenção é pressuposto para a tarefa de Zaratustra, como podemos ver em Ecce
Homo. Ao se referir ao aforismo “Da Redenção”, Nietzsche diz que
“Zaratustra define certa vez com rigor sua tarefa – é também a minha – de modo
a não haver engano sobre o sentido: ele é afirmativo a ponto de
justificar, de redimir mesmo tudo o que passou.” [13] Redimir o que foi, para Nietzsche, é colocar o querer para o
passado – o querer liberta – “O querer liberta: esta é a verdadeira doutrina
sobre a vontade e a liberdade – assim vos ensina Zaratustra.” [14]
E é no segundo aforismo
desta mesma segunda parte de Zaratustra que Nietzsche parece esculpir o
além-do-homem e colocá-lo como algo tangível, possível de ser criado e não
apenas passível de ser pensado; que possa ser algo pensável, visível e sensível
para o homem:
Um vento do norte sou eu para figos maduros.
Assim, qual figos, caem esses ensinamentos até vós, meus
amigos (…)
Vede que plenitude há em vosso entorno! E é belo olhar desde
a sobreabundância, para mares longínquos.
Em outro tempo dizia-se Deus quando se olhava para mares
longínquos; mas agora eu os ensinei a dizer: super-homem.
Deus é uma suposição; mas eu quero que vossa suposição não
vá mais longe que vossa vontade criadora.
Poderíeis criar um Deus? – Pois então não me fales de
deuses! Mas o super-homem sim poderíeis criá-lo . (…)
Poderíeis vós pensar em Deus? – Mas a vontade de verdade
signifique para vós isto, que tudo seja transformado em algo pensável para o
homem, visível para o homem, sensível para o homem! (…)
Deus é um pensamento que torna torto tudo o que é direito e
que inverte tudo o que está de pé. Como? Estaria abolido o tempo, e tudo o que
é perecível seria unicamente mentira? (…)
Criar – essa é a grande redenção do sofrimento, assim é como
se torna ligeira a vida. Mas para que o criador exista são necessários
sofrimento e muitas transformações. (…)
O querer liberta: esta é a verdadeira doutrina sobre a
vontade e a liberdade – assim vos ensina Zaratustra. (…)
Agora meu martelo se enfurece cruelmente contra sua prisão.
Da pedra saltam pedaços: que me importa? (…)
A beleza do super-homem chegou a mim como uma sombra! Ah,
meus irmãos! Que me importa ainda – os deuses! –
Assim falou Zaratustra. [15]
Nietzsche inicia o aforismo supracitado dizendo
ser Zaratustra um vento do norte para figos maduros. Nos Salmos, os ventos são
mensageiros divinos - equivalentes aos anjos, são o sopro de Deus, que dá ordem
ao caos primitivo, animando o primeiro homem. Estaria Nietzsche dizendo que
Zaratustra anima o primeiro além-do-homem? Note-se que não é qualquer vento,
mas o vento do norte. O norte parece ser considerado devastador na escritura
sagrada judaico cristã. Em Jeremias, por exemplo, lê-se:
A palavra de Iahweh foi-me dirigida, uma segunda vez, nestes
termos: “O que estás vendo?” Respondi: “Vejo uma panela fervendo, cuja boca
está voltada a partir do norte.”
E Iahweh me disse: Do norte derramar-se-á a desgraça sobre
todos os habitantes da terra. [16]
Por outra parte, vemos que na Grécia antiga o
norte não traz nenhum augúrio fatídico. Pelo contrário, no país dos hiperbóreos
reinavam todas as idades de ouro. Lá nasceu Leto, mãe de Apolo. Este lá esteve
muitas vezes, refugiando-se das vinganças de Zeus. E também foi de lá que
partiu a flecha que formou no céu a constelação de Sagitário.
Retomando o início do aforismo, Zaratustra se
coloca como o vento do norte para figos maduros. A figueira é a árvore que
simboliza a abundância. Lembrando que über, de übermensche,
significa “mais”, não me parece aleatório Nietzsche falar em figos ao iniciar
um aforismo que trata do além-do-homem. A abundância da figueira seria o “mais”
que o além-do-homem tem? Ao unir os fragmentos de homens, [17] tem-se mais que a soma de tais fragmentos. Seria a
sobreabundância:
Vede que plenitude há em vosso entorno! E é belo olhar desde
a sobreabundância, para mares longínquos.
Em outro tempo dizia-se Deus quando se olhava para mares
longínquos; mas agora eu os ensinei a dizer: super-homem. [18]
Nas escrituras sagradas da Índia,
especificamente nos Upanishades e no Baghavad Gita, a figueira aparece como a
árvore do mundo que une a terra ao céu. Parece-me que o mundo do além-do-homem
é um mundo no qual terra e céu estão unidos, são o mesmo mundo. Depois da morte
de Deus não há mais céu e terra. Zaratustra já falou que “o superhomem é o
sentido da terra. (…) Eu vos conjuro, meus irmãos, permaneceis fiéis à terra e
não credes em quem vos fale de esperanças ultraterrenas!” [19] Sem falar que, na Grécia antiga, a figueira é consagrada a
Dionísio. Vimos que em sua autobiografia, ao falar de sua obra mais singular,
Nietzsche diz que a tarefa de Zaratustra, que é também a sua, é criar o
além-do-homem. Trata-se de uma tarefa dionisíaca – “Entre as precondições para
uma tarefa dionisíaca, é decisiva a dureza do martelo, o prazer mesmo
no destruir.” [20] Nenhuma
criação é feita a partir do nada. A criação do além-do-homem é feita a partir
dos fragmentos do homem. Zaratustra vê a imagem do além-do-homem contida no
homem, e, depois de redimido e transmutado todo o “foi”, pode esculpir o
além-do-homem a partir do homem, dando forma ao que é informe. A redenção do
sofrimento vem pela criação, inclusive a criação do além-do-homem. Zaratustra
vê a imagem do além-do-homem contida no homem, que, para ele, é “algo informe,
um material, uma pedra feia que necessita de escultor”. [21] A tarefa de Zaratustra é lapidar essa pedra feia e informe para
que ela revele a forma que ele antevê em imagem: a forma do além-do-homem.
A meu ver, a forma além-do-homem não seria uma
forma da mesma maneira que o foram Deus e o homem. Deus, como vimos, para
Nietzsche, é uma suposição. Mas foi fundamento, e, enquanto durou como
suposição, foi centro – a era do teocentrismo. Também o homem foi (ou tentou
ser ) fundamento, passando a ser o centro – a era do antropocentrismo. No caso
de Deus e no caso do homem, temos como referência um ponto de vista e
sentimento. Mas essa hipertrofia de um ponto de vista e sentimento não
existiria no além-do-homem. Neste teríamos o perspectivismo de um espírito livre.
O além-do-homem não poderia ser centro, uma vez que centro remete a algo fixo.
Ele seria uma forma que está sempre se movimentando, ocupando diferentes
espaços, como um dançarino, que passa pelo centro, mas não pára aí, e, além
disso, está sempre driblando a gravidade. Enquanto Deus como forma era algo
fora do homem, o homem como forma era algo por demais centrado no próprio
homem. O além-do-homem seria uma terceira possibilidade, nem fora, nem dentro,
mas além. Se essa forma vir-a-ser, não podemos falar como ela será. Da mesma
maneira que você só se torna o que é se não premeditar o que quer ser, o
além-do-homem só se tornará o que é se não determinarmos o que queremos que ele
seja. E seja lá o que ele venha a ser, não poderá ser algo estático. O além-do-homem
é aquele que tem o domínio da Terra, onde tudo é movimento. Ele pode ser forma
enquanto unidade, mas mantendo a multiplicidade e a diversidade, necessárias à
continuidade de espíritos criadores. Do contrário, poder-se-ia ter o eterno
retorno como peso, caindo-se novamente no sono antropológico, ou, pior, no sono
dogmático. Como sabemos, após Kant, saímos do sono dogmático, no qual os
pensadores não questionavam, e, segundo Foucault, caímos no sono antropológico.
O além-do-homem como forma seria para um mundo
de espíritos livres, um mundo onde não se quer falsas seguranças, como quer o
homem moderno. Enfim, o além-do-homem pode ser a forma de um mundo no qual se
concebe a realidade como ela é, sem dissimulações, e com outro critério de
avaliação que não o nosso. Um mundo criado pela razão, pela imagem, pela
vontade e pelo amor: “E isso ao que haveis dado o nome de mundo, isso deve ser
criado primeiro por vós: vossa razão, vossa imagem, vossa vontade, vosso amor
devem devir esse mundo!” [22] Não
significa que todos nessa “nova humanidade” serão espíritos livres nos mais
diversos graus. Outros tipos poderão aparecer, e remanescentes de “humanidades
anteriores” poderão continuar existindo. Se esse mundo existirá efetivamente,
não se sabe. Se a flecha for lançada, talvez… Zaratustra adivinha que os bons e
os justos chamariam de demônio ao seu além-do-homem. Em “Por que sou um
destino”, escreve Nietzsche:
Zaratustra não deixa nisso dúvidas: diz haver sido
precisamente o conhecimento dos bons, dos “melhores”, que lhe inspirou o horror
ao homem; desta repulsa lhe teriam crescido as asas para “voejar para futuros
longínquos” – ele não esconde que o seu
tipo de homem, um tipo relativamente sobre-humano, é sobre-humano precisamente
em relação aos bons, e que os
bons e justos chamariam de demônio
o seu super-homem…
[23]
O além-do-homem parece ser forte o bastante para
conceber a realidade como ela é. Mas nós também teremos que ser fortes o
bastante para não conceber o além-do-homem como suposição, ou ainda, como demônio,
mas sim, como vontade criadora. Atiremos pois a flecha, mas não com o arco
frouxo, tampouco estirado demais.
NOTAS
1.
A palavra usada por Nietzsche em alemão é Übermensch. Alguns traduzem
por superhomem, outros por além-do-homem. A palavra Über também pode ser
traduzida como “mais”.
2.
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, § 125, “O homem louco”, tradução de
Oswaldo Giacoia Junior, in Nietzsche, Coleção Folha Explica, p.19.
3.
Idem, Así habló Zaratustra, prólogo, § 4, p.38-40, tradução espanhola de
Andrés Sánchez Pascual. A tradução do espanhol para o português é de minha
autoria.
4.
Idem, A Gaia Ciência, § 125, “O homem louco”, tradução de Oswaldo
Giacoia Junior, em seu livro Nietzsche, da coleção Folha Explica,
p.18,19.
5.
Idem, Além do bem e do mal, § 19, p. 24, tradução de Paulo César de
Souza.
6.
Utilizo aqui a tradução de Paulo César de Souza, que em nota esclarece que a
palavra humanidade usada pelo autor é Menschlichkeit, que significa
humanidade no sentido de natureza do que é humano, e não no sentido de
totalidade do gênero humano, que seria Menschheit (nota 68, p.326), Cia
das Letras, 2004.
7.
F. NIETZSCHE, A Gaia Ciência, livro IV, § 337, p. 225, 226, tradução de Paulo
César de Souza.
8.
Idem, textos de 1884-1888 sobre a vontade de potência, selecionados por Gerard
Lebrun, reunidos sob o nome: Sobre o niilismo e o eterno retorno, intitulado
Queda dos Valores Cosmológicos – A, § 12, in: Nietzsche. Obras Incompletas,
Vol.II. Trad. Rubens R. Torres Filho. Coleção Os Pensadores, SP: Nova Cultural,
1987, p. 160, 161.
9.
Com respeito ao elogio de Nietzsche a Tales, veja-se, por exemplo, A
Filosofia na Época Trágica dos Gregos, e Humano, Demasiado Humano, §
261.
10.
Oswaldo Giacoia, ao se referir ao primeiro livro desse período, Humano,
Demasiado Humano, diz: “Ele demarca assim o território de seu próprio
pensamento, já que, ao se propor a fazer a história e a crítica das categorias
morais, Nietzsche, ao mesmo tempo, se coloca em radical oposição tanto a
Schopenhauer quanto a seu amigo Rée, que, em 1877, publicara a Origem dos
Sentimentos Morais.” (in Nietzsche, Folha explica, p. 85).
11.
F. NIETZSCHE, Sobre o pathos da verdade, in Cinco prefácios para
cinco livros não escritos, p.24, tradução de Pedro Süssekind.
12.
Idem, Así habló Zaratustra, Da Redenção, p. 208, 209, tradução espanhola
de Andrés Sánches Pascual. A tradução do espanhol para o português é de minha
autoria.
13.
Idem, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, § 8, p.93, tradução de Paulo
César de Souza.
14.
Idem, Así habló Zaratustra, parte II, Nas Ilhas Afortunadas, p.137,
tradução espanhola de Andrés Sánches Pascual. A tradução do espanhol para o
português é de minha autoria.
15.
Ibid., p.135-138.
16.
Jeremias, 1, 13-14.
17.
Ver citação nº 12.
18.
F. NIETZSCHE, Así habló Zaratustra, parte II, Nas Ilhas Afortunadas,
p.135. Ver citação nº 15.
19.
Ibid, prólogo, § 3, p. 36.
20.
Idem, Ecce Homo, “Assim falou Zaratustra”, §8, p. 94, tradução de Paulo
César de Souza.
21.
Ibid, p. 93.
22.
Idem, Así habló Zaratustra, parte II, Nas Ilhas Afortunadas, p.136,
trad. espanhola de Andrés Sánches Pascual. A tradução do espanhol para o
português é de minha autoria.
23.
Idem, Ecce Homo, “Por que sou um destino”, § 5, p. 113, tradução de
Paulo César de Souza.
ESTER FRIDMAN (Brasil, 1963).
Filósofa e escritora, pesquisadora da linguagem simbólica, seu tema de mestrado
foi A Linguagem Simbólica no Zaratustra
de Nietzsche. Estudiosa também das filosofias da Índia, escreveu Kriya-Yoga e a Filosofia dos Kleshas no Yoga
Sutra de Patanjali.
Contato: ester8fri@gmail.com. Página ilustrada com obras de Paulo Aguinsky
(Brasil), artista convidado desta edição.
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Número 105 | Dezembro de
2017
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Parabéns, Ester. Belo ensaio que nos propicia várias reflexões. A página está ricamente ilustrada com as obras de Paulo Aguinsky. Gostei muito de tudo.
ResponderExcluirMuito obrigada, Virgínia!Fico muito feliz com sua leitura e comentário.
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