Embora pareça mentira, Sérgio Milliet nasceu aqui em
São Paulo a 20 de setembro de 1898. Com efeito, seria incrível, se não fora realidade,
que ele está prestes a completar o seu quadragésimo terceiro aniversário. E parece
mesmo mentira, conquanto seja verdade, que Sérgio é paulista.
O seu todo jovial
e esportivo não deixa de estar em desacordo com a idade, mesmo se aceitarmos que
"a vida começa aos quarenta", porque, então, Sérgio parecerá um pouco
maduro para ter apenas três anos. Mas é o tipo do "quarentão" bem conservado.
Por isso mesmo, porque se ufana disso, foi que não hesitou em dizer-me o ano, o
mês e o dia em que nasceu.
Por outro lado,
o seu jeito de europeu, o seu nome afrancesado, estão sempre em conflito com o que
anotou o oficial do registro civil:… "nasceu nesta cidade de São Paulo".
.. Estou a apostar que ele cultiva esse "europeísmo". Não é por outra
coisa, creio, que sacrificou, no nome literário, o sobrenome paterno, pois que seu
nome é Sérgio Milliet da Costa e Silva. É pela mesma razão, acredito, que detesta
os vinhos que não vêm da França e não sabe vestir-se senão à francesa…
De qualquer maneira,
Sérgio consegue fazer tudo isso trajar-se como um parisiense, apreciar os vinhos
franceses, manter o seu quê de europeu sem pedantismos irritantes e ridículos. Faz
tudo com naturalidade, sem alardes ostensivos.
E a verdade é
que, embora tenha começado a sua formação intelectual em Genebra e ali tenha publicado
os seus primeiros versos, foi aqui, foi em São Paulo, que prosseguiu no caminho
iniciado. Prosseguiu... E venceu.
Venceu como poeta,
venceu como romancista, venceu como ensaísta. Conquistou um posto de relevo no clã
de nossa inteligência e aí vem desempenhando uma função, como um dos membros, que
é, da Academia Paulista de Letras. De vez em vez publica um livro. E quando a gente
ainda pensa que ele está lendo as últimas críticas, Sérgio está entregando ao prelo
os originais de outro volume…
Sérgio Milliet
está à minha frente, em seu gabinete, no Departamento de Cultura de São Paulo. Não
foge à entrevista que lhe solicito; resigna-se e submete-se, displicentemente, ao
interrogatório.
- Quando, como
e por que você começou?
Você é bacharel?
- Ainda não…
É inacreditável.…
Já está senhor da técnica das inquirições! É nisso, é nos "quandos", nos
"por quês" e nos "comos", pronunciados em tonalidade de voz
mais ou menos impressionante, que se resume toda a ciência dos interrogatórios doutoralmente
feitos pela gente que usa aquelas soleníssimas saias pretas, a que se dá o nome
de beca…
- Ou toga…
Isso mesmo. E é todo um ensaio de psicologia o que você
está exigindo de mim com essa pergunta. É um teste de memória, também… Quando?…
- Quando?
Lá pelos dezessete
anos.
- Como?
Não sei…
- Por quê?
Também não sei
ao certo…
- Estamos na
mesma…
Ele sorri. Depois,
reflete um pouco. Recolhe uma lembrança aqui, consegue apanhar uma recordação acolá...
Observo que Sérgio está a querer reconstituir o início de sua vida de escritor.
Agora começa a falar:
Quer saber de
uma coisa? Não acredito na predestinação literária. São circunstâncias acidentais
que fazem o escritor e é o acaso de um primeiro êxito que o leva a perseverar. Um
homem de inteligência média faz qualquer coisa; basta que a vida o exija. Qualquer
camarada de algumas letras escreveu versos na mocidade; se não continuou foi porque
outra coisa lhe interessou.
- A vocação literária,
portanto…
É uma figura
de retórica, igual a todas as figuras de retórica.
- No seu caso?
Também. Mas não
quero fugir, com um paradoxo, à sua pergunta. Prefiro, com alguns dados que me ficaram
na memória, fazer-lhe uma confidência em regra. Eu era estudante...
- Em Genebra…
Em Genebra, sim.
Era estudante de ciências econômicas e sociais. Ligara-me a uns rapazes brasileiros
que lá mantinha uma pequena revista literária. Desde os bancos do ginásio vinha
escrevendo alguns versos…
- Inspirados
em quê?
Não me recordo
muito exatamente. Lembro-me muito bem é de que eram utilitária e utilissimamente
empregados para o bom êxito de meus primeiros namoros... Eram inspirados, portanto,
pelo desejo de brilhar aos olhos de uma "pequena"... Mas também serviram-me
para outras coisas. Assim é que, uma vez, numa prova de química, ignorante da matéria
e precisando de um "2" para não repetir o ano, escrevi uma epístola em
versos ao professor…
- E ele?
Concedeu a nota
solicitada. Foi esse o primeiro encorajamento, foi o primeiro êxito…
- Os primeiros
trabalhos que você publicou?
Foi na tal revistazinha
editada em Genebra que comecei a publicar algumas
coisas.
- Versos?
Versos. Um dia
tive a emoção de ser convidado para uma reunião na casa do poeta Henri Mugnier.
E dessa reunião surgiu a minha primeira ambição literária. Passei a colaborar em
jornais suíços; em pouco estava transformado em poeta genebrino... A guerra mundial
de 1914 foi outra circunstância que contribuiu para a minha perseverança na literatura.
- A guerra mundial?!
Exatamente. É
que, então, se reuniam em Saconnex d'Arve na casa de Charles Baudouin, hoje professor
de Psicologia na Universidade de Genebra, mas na época simples "grande ferido”
internado na Suíça, alguns espíritos brilhantes: Romain RoIland Stefan Zweig, Remi
Spiess, Karl Spitteler, Ivan Goll, Jeal Violette... Pintores e escultores de nomeada,
como Rodler, Vibert, Fehr, também apareciam. E apareciam, também, alguns estudantes,
meus companheiros, entre os quais Charles Reber, que o jornalismo conquistou definitivamente.
- E você também
aparecia…
Também. O cenáculo
caracterizava-se por uma preocupação de humanismo, de serenidade, de universalismo,
de objetivismo, que marcou profundamente o meu espírito. Na tormenta da guerra tudo
isso eram ideais de poetas... Mas nós éramos principalmente poetas!
- Explica-se,
dessa maneira, o seu "europeísmo" e, também, o motivo por que você escreveu
em francês os seus primeiros livros… No sorriso de Sérgio Milliet há um pouco de
saudade e um tanto de displicência.
É... Foi esse
ambiente que me levou a escrever em francês. Eu queria tornar-me digno da amizade
desses homens e, para isso, era necessário que eles me entendessem. Tinha a escolha
entre o português e o francês... Com este seriam facilitadas as preocupações literárias
e, ainda, certa vaidade pessoal de brilhar entre os companheiros.
Faz uma pausa.
E continua, com uma tonalidade de voz diferente:
Interessante
é que nunca perscrutei suficientemente essa sublimação visível de algum misterioso
complexo de inferioridade. Deve existir alguma razão obscura para que não me esforce
por entende-la... Di-la-ão os psicanalistas... É inegável, porém, que dos aplausos
suíços eu tirava uma satisfação indizível
- As críticas…
Você não pode
imaginar o que representaram para mim as primeiras críticas dos jornais e revistas
suíços! Eram elogiosíssimas !…
- Foi quando
você publicou o primeiro livro...
Sim. Foi quando
saiu Par le sentier...
- Em francês…
Em francês, como
os três primeiros volumes.
- Versos?
Naturalmente.
Contam-se nos dedos os escritores que não começaram pelo mesmo pecado. Com dezessete
anos a gente visa ao gênio poético e despreza profundamente o bom senso da rosa.
A gente quer asas.
- E o livro foi
inspirado…
No amor, na volúpia
e na morte, como todo livro de moço e, principalmente, todo primeiro livro. Haverá
outros assuntos poéticos nessa idade das estreias?
- Quando teve
em mãos os primeiros exemplares?...
Confesso que
foi das mais intensas a emoção que experimentei. Não tanto por ver o livro impresso,
mas por vê-lo nas vitrinas dos livreiros. A gente tem a impressão de que todos os
curiosos de livraria estão interessados na obra... E quando alguém o folheia, então
o coração bate mais forte!... Mas vem logo a desilusão deprimente de verificar que
o curioso passou a outro volume. Parece, até, que com um sorriso de pouco caso,
de comiseração. É odioso!
- Esse livro...
A tiragem?...
Foi reduzida.
Quinhentos exemplares apenas. Vendeu-se bem.
- Atualmente
que é que você acha dele?
Não o desprezo
totalmente.
- Você publicou
depois?...
Le départ sous Ia pluie…
- Versos, também…
Sim, versos…
E meio amuado
acrescenta:
Também em francês.
- Não é preciso
dizer…
Mas convém acentuar.
Com esse segundo livro, o eco dos meus trabalhos repercutiu em Paris, em Marselha,
em Bruxelas. Eu não me desnacionalizara, entretanto, com o sucesso alcançado. Comecei
a escrever em francês e em francês publiquei os meus três primeiros volumes, como
já disse há pouco. E teria continuado se as circunstâncias não me tivessem chamado
novamente ao Brasil.
- Mas algum sinal
ficou…
Sim. É claro
que de uma experiência fica sempre algum sinal... Um crítico maldoso já afirmou
que eu penso em "suíço", embora escreva em português. Outro me xingou
de estrangeiro, o que é perigosíssimo para a vítima, no mundo de nacionalismos exasperados
de hoje. Você mesmo aludiu a "europeísmos"...
Mas que equivale
a dizer que sou um tanto estrangeirado. Curioso é que vários críticos europeus,
mesmo ignorando minha origem, encontraram em meus poemas raízes de inspiração tropical...
Há em mim, sem dúvida, algo pouco comum no Brasil. E a propósito quero citar Carlos
Drummond de Andrade. Parece-me que ele acertou e pôs bem em relevo a minha anomalia.
Diz êle, falando de um de meus livros, que não tenho "nenhum entusiasmo baratoa,
mas também nenhuma passividade intelectual". E acrescenta que a minha sensibilidade
"vem depois, para corrigir a secura da inteligência". Conclui afirmando
que sou um "caso raro entre nós e, por isso mesmo, digno de atenção".
- Você, então,
foi promovido a caso raro...
Foi Drummond
de Andrade que disse. E eu confesso que esse esforço em prol da razão já me custou
grandes conflitos interiores. Meus primeiros livros são apaixonados e tropicais.
A serenidade foi uma conquista difícil e talvez aí resida a influência mais séria
de minha longa permanência na Europa.
Somos interrompidos
pelo contínuo que entra com uma bandeja de café.
Você quer café,
com toda certeza… - diz-me Sérgio Milliet.
- Você já viu
defunto enjeitar cova? É entre dois goles da rubiácea - a indefectível rubiácea,
que já figura em meio a quase todas estas reportagens - que pergunto:
- Como nasceu
o Roberto?
Quem?
- O seu primeiro
romance.
Foi de umas notas
encontradas numa tentativa de diário íntimo
- Uma autobiografia?…
Não. Conquanto
o herói tenha sido evidentemente inspirado nas minhas experiências pessoais, o romance
não é uma autobiografia, principalmente em relação ao enredo. Visei, com esse romance,
a um objetivo demasiado ambicioso - o de escrever o drama de uma geração, a minha
geração, a geração dos que estão a cavalo entre duas épocas. Roberto foi bem compreendido
pelos homens de minha idade, de quarenta anos, mas não impressionou muito os moços
e os velhos não o entenderam. Havia também, nesse livro, um problema que me preocupava:
o do desterrado. Talvez tudo isso não estivesse bem amadurecido dentro de mim...
- Por isso…
Faltou qualquer
coisa para completar o romance. Quero também sublinhar uma característica de Roberto que
somente Mário de Andrade soube discernir: o do complexo de Édipo. Toda a luta de
Roberto resume-se na hostilidade contra o pai, na saudade enternecida da
mãe, no contínuo paralelo que se estabelece dentro dele, entre as qualidades e os
defeitos que herdou de ambos.
- Entre os seus
livros, qual é o que você reputa o melhor?
O que ainda está
inédito e ao qual venho dando os últimos retoques - Duas cartas no
meu destino, que a Editora Guaíra lançará em breve e que, por sinal, já teve
vários títulos.
- Por que mudou
o título?
Os anteriores
eram muito compridos.
- É um romance?
É uma longa novela.
O enredo é muito simples e aí procuro analisar um Don Juan falido, uma mulher fatal
e a destruição de um lar, tudo numa atmosfera de covardia morna, em que a vida amassa
sem dificuldades os vários heróis.
- As tiragens
alcançadas? Sérgio Milliet sorri displicentemente. E é com displicência que responde:
Sou um escritor
de muito poucos leitores. Minha literatura não entusiasma as massas. Não comporta
nenhum pitoresco, não tem brilho, é demasiado sintética, difícil em suma. Tenho
sempre ótimas críticas. Mas quanto à venda... É pequena. Confesso-o sem amargura.
- Não lhe interessa,
então, a conquista do grande público?
Quem ousaria
dizer o contrário? Mas não farei nenhuma concessão para conquistá-lo. Aliás, o leitor
comum não me interessa. Se tivesse de ganhar a vida com a literatura…
- Então?
O caso seria
outro e talvez também fosse outra a minha orientação.
- Em sua formação
intelectual sofreu influência de algum autor?
Não posso responder
com segurança. O problema das influências intelectuais é por demais complexo para
ser abordado nos limites de uma entrevista. Há autores que a gente lê mais e, entretanto.
não deixam vestígios de sua influência. Outros, que se leem pouco, permanecem mais
tempo no inconsciente. Li toda a literatura francesa de alguma importância, desde
a idade média até o simbolismo. Depois comecei a peneirar um pouco mais. Da literatura
portuguesa devorei Camões em criança e alguns clássicos. Volto a eles, hoje, com
prazer. Do século XIX. Eça foi o meu predileto. Com a literatura brasileira fiz
o contrário: comecei pelos modernos e fui subindo…
Faz uma pausa.
Observo que ele está recordando alguma coisa. Recomeça a falar:
Releio sempre
os que mais me impressionaram e, se da citação dos nomes for possível tirar alguma
conclusão, aí vão eles: Pascal, Montaigne, Shakespeare, os poetas simbolistas, Remy
de Gourmont, Eça, Machado de Assis... Entre os mais recentes: Appolinaire, Kipling,
Conrad, Sinclair Lewis, Mário de Andrade, Lima Barreto, Antônio de Alcântara Machado...
A lista seria imensa. E seria, também, fastidiosa.
- Como você prefere
escrever?
Escrevo indiferentemente
a máquina, a lápis ou a tinta. Depende tudo do dia, do lugar, do assunto.
- Quer dizer
que em certas horas sente melhor disposição...
Não é bem assim.
Escrevo a qualquer hora, embora prefira trabalhar à noite. E confesso que escrevo
com dificuldade, a não que se trate de "trololó" para jornal...
- Precisa de
ambiente?...
O ambiente é
uma convenção... Mas a comodidade é um fato. Para escrever, o único ambiente que
exijo é o que se apresente com uma boa mesa, bastante ar, bastante luz e papel.
- Caneta, lápis…
Não fazem falta.
Carrego-os, sempre, comigo.
- Quais, a seu
ver, os fatores que um livro deve reunir para alcançar êxito?
Quer saber de
uma coisa? Não ouso responder. Até os editores se enganam!
- Tem alguma
superstição?
Tenho. Uma
única: a de não andar em automóvel vermelho!
- Por quê?
Não sei. Para
sabê-la, seria necessário fazer uma pesquisa psicanalítica…
- Você a princípio
era poeta. Voltou-se depois para a crítica. Como foi isso?
Não me inclinei
para o terreno da crítica depois de abandonar a poesia. O gosto das ideias e o pendor
pela especulação eu os tive desde os primeiros ensaios literários. Mas desde logo,
também, verifiquei que os homens preferem as obras de ficção e só a essas consideram
arte. Houve sempre duas personalidades distintas dentro de mim...
- Duas pessoas
distintas, numa só verdadeira...
Duas personalidades
distintas. De um lado, a do poeta, a do sentimental. De outro lado, a do crítico.
Levaram muitos anos para se entenderem e se acostumarem a viver juntas... Escrevo
versos, ainda hoje, e, em 1938, publiquei um pequeno volume de poemas em tiragem
reduzida: cem exemplares. A propósito, e para evitar possíveis dúvidas, quero salientar
que não limitei a tiragem por uma questão de orgulho ou de desprezo pelo grande
público, mas tão-somente por motivos de ordem econômica. Tenho poucos leitores e
uma edição maior encalharia...
- O crítico que
há em você…
Comecei a fazer
crítica desde os bancos escolares, na análise exaustiva dos clássicos franceses.
E a verdade é que a crítica sempre me pareceu um refúgio para a inteligência e um
corretivo para os excessos de meu brasileirismo. É uma escola de disciplina e a
ela me sujeitei de bom grado. Uma infância sentimental atormentada levou-me, por
outro lado, a uma concentração favorável ao desenvolvimento do espírito crítico.
- Por que ainda
não se fez crítico militante?
Mais de uma vez
fui tentado a seguir esse caminho. Há, em tudo, porém, uma questão de oportunidade.
Esta ainda não apareceu. Sou ainda candidato... Depende de encontrar o empregador.
- A propósito,
como é que você compreende a crítica?
A pergunta é
perigosa… para a vítima.
Enquanto dependura
nos lábios uma sombra de sorriso, Sérgio reflete. Depois resolve-se:
A crítica pode
ser encarada como obra de arte, como realização análoga à obra de ficção. E pode,
também, ser encarada como uma pesquisa da verdade.
No primeiro caso?
É expressão.
No segundo?
É discussão.
- De um modo
geral?
É necessário
que procure convencer ou acertar.
- Assim, a função
do crítico?...
Deve ser a de
acertar. Só assim pode ser justificada a sua posição no mundo das letras. Mas é
terrivelmente difícil acertar! Ninguém se intelectualiza suficientemente para levar
a bom termo essa tarefa ingrata. Por outro lado há o perigo da perda de contato
com a vida. A vida é amor, luta, paixão, e a gente não se coloca impunemente fora
da vida. Tudo isso são frases... No fundo eu não me sinto capaz de especular, assim
de momento, sobre a concepção mais louvável da crítica.
- Em todo caso…
Creio que é preciso
amar para acertar .. Uma das mais belas qualidades do crítico me parece essa - a
de saber admirar, resultante, de resto, da capacidade de entender. Daí a impossível
dissociação entre a razão e o sentimento no verdadeiro crítico. Talvez a indicação
de alguns nomes facilite as coisas e mostre qual o gênero de crítica que considero
desejável: Remy de Gourmont e André Gide, por exemplo. São homens completos nesse
articular porque souberam entender, admirar, explicar. Por isso esmo sua influência
é das mais profundas no mundo inteiro.
- Qual a concepção
que tem você de romance?
Prefiro citar-lhe,
antes do mais, um fato ocorrido aqui em São Paulo, em plena Avenida Paulista, na
época em que eram distribuídos pelas ruas, a pobres transeuntes semi-analfabetos,
punhados de manifestos propagandistas de ideias avançadas. Todos olhavam com displicência
e sem entender o vasconço palavreado, jogavam fora os papeizinhos. Todos entenderam,
porém, e calou fundo em todos, o gesto de um chofer que, ao passar por uma criadinha,
lhe gritou, bem alto, puxando-lhe o avental; "Um dia tu hás de passear sem
"isto"!"
- Daí, você deduz…
O artista era
o chofer e nunca o autor dos papeizinhos. Neste caso, digno das notícias dos jornais,
ressalta, com bastante relevo, uma admirável definição de romance e da obra de criação
em geral.
- É o que chamariam
de romance social...
Mas que é romance
social? Creio que estão dando ao termo "social" uma significação especialíssima.
A definição sociológica traria, como resultado, englobar gêneros bem diversos numa
mesma categoria. Seria o romance dos homens na sociedade, em oposição ao romance
subjetivo, à autobiografia interior, ao ensaio disfarçado. O emprego, porém, que
se vem dando à locução é muito outro.
- É o de romance
socializante.
Sim, é o de romance
de tese socialista. Daí regras especiais - e especiosas - estabelecidas pela crítica,
para julgar o grau do "social" de um romance. Para uma completa saturação
que satisfaça plenamente a moda, é preciso que reúna; a) ambiente proletário; b)
terminologia revolucionária; c) termos de gíria e calão; d) considerações explicativas
baseadas no materialismo histórico. De social, passa o romance, portanto, a socializante
e desanda, então, para o panfleto. E na expressão feliz de André Malraux, "a
arte. deixa de ser arte quando pretende provar".
- Assim, você
acha...
Acho que o nosso
romance social está num período de tentativas o mais das vezes abortadas. Falham
por não existir uma integração suficiente do autor no objeto e, também, por deficiência
de base filosófica. O romance de tese, como o teatro ou outro qualquer gênero literário
que se oriente para a propaganda de uma idéia, necessita, para pesar na balança
dos valores definitivos, de um lastro filosófico sério, além da arte da narrativa
e do estilo sugestivo.
- A ideia não
deve ser exposta abruptamente...
Não pode ser
exposta abruptamente, sob pena de dar-se com os costados na demagogia. Deve ser
tão-somente apontada, entre muitas, insolúvel no molde das idéias correntes ou comumente
admitidas. Mas nem só de tese é o romance socializante. Dois outros aspectos apresenta
que talvez sejam mais propícios ainda à arte e mais eficientes para atingir certa
finalidade: a descrição rigorosamente realista de um padrão de vida miserável que
levará o leitor naturalmente a uma comparação edificante e a crítica humorística,
impiedosa, de dogmas e preconceitos julgados absurdos. VoItaire, escrevendo os Contos e o
Dicionário Filosófico, fez literatura socializante. Anatole France mesmo, na
descrição da sociedade de sua época, pelo tom demolidor que empregou, realizou também
obra socializante. Por outro lado, tomando ainda exemplos do passado, temos com
Zola e com os naturalistas em geral o romance socializante em plena floração. Diz
Malraux que o grande erro da literatura francesa tem sido o de procurar sempre as
diferenças individuais em vez de focalizar as semelhanças coletivas. Daí não serem,
em geral, os contos de Maupassant - embora não lhes possamos negar a verdade realista
- literatura socializante.
- Porque...
Neles estuda
Maupassant as diferenças individuais. Seus personagens não se integram, senão por
aspectos secundários, na comunidade. São espécimes originais, únicos, vítimas ou
heróis de estados de espírito excepcionais.
- No caso de
Roberto?
Alguns críticos
já o compararam a Os condenados, de Oswald de Andrade. Estará certo?
Até que ponto são os personagens de ambos os romances produtos de uma época e até
que ponto concentram em seus casos individuais a parcela do coletivo indispensável
ao romance socializante? Há nos dois um personagem que se revolta, aberta ou surdamente,
contra o meio, mas dele não consegue safar-se, evoluindo mornamente numa atmosfera
pesada em que a regra do jogo não é observada, onde a trapaça é comum, mas que a
ela não se submete: Roberto e Alma.
- Alma?
É, no romance
de Oswald, quem constitui o quadro realista, digno de meditação. No meu romance
é o personagem o produto triste de uma sociedade burguesa. Conjugados, Alma e Roberto
formariam a dupla inquieta e característica de uma época - as figuras centrais de
um grande romance que não foi escrito por nenhum de nós. Porque, para ambos, a preocupação
de marcar as diferenças foi, embora involuntária, essencial.
-Os inadaptados
de Oswald?
Julgam o mundo
ruim e consideram-se exceções infelizes.
-Quanto a
Roberto?
Sabe-se mais
errado ainda do que o mundo. Sabe o que lhe competiria fazer, não se acredita uma
exceção infeliz mas apenas o produto de uma sociedade apodrecida. Não se evade porque
não consegue.
- Ambos, portanto?
São romances
de uma mesma época e por sofrerem influências idênticas assemelham-se bastante.
Sérgio Milliet
prossegue, fluentemente:
Mas passemos
a outros. O quadro da confusão demagógica brasileira é asperamente pintado por Antônio
de Alcântara Machado em Cinco panelas de ouro, com uma verve destruidora
que atinge a obra-prima. Se não corrige nem prova, põe em relevo um dos aspectos
mais ingratos da nossa psicologia, desmoralizando as revoluções e mostrando o vácuo
das regenerações operadas dentro de uma mesma classe dirigente, igual, na sua diversidade
aparente. É literatura socializante pois destrói um conceito errado e, por conseguinte,
aponta e sugere soluções outras que só podem ser a revisão da estrutura social e
a redefinição de valores. Mário de Andrade, nos contos de Belazarte, obra aparentemente
inofensiva, dá-nos, em Nizia Figueira, sua criada, a pintura fiel do ridículo e
sentimental pequeno burguês brasileiro, cuja vacuidade, indecisão, conformismo desfibrado,
são bem uma das causas da chamada penetração imperialista.
- José Lins do
Rêgo?...
Em Doidinho, Bangüê,
Menino de engenho, apresenta a vida dos grandes latifúndios na sua realidade
crua, apontando os defeitos de uma vetusta organização social e denunciando os graves
danos que dela advêm para a formação da elite nortista e nordestina - defeitos e
danos que, facilmente explicáveis pelas condições econômicas, se repetem com pequenas
variantes no sul.
- Jorge Amado?
Em Cacau, por
exemplo, já com pretensões doutrinadoras, apresenta cenas de alto valor estético
e que, na sua verdade, são profundamente socializantes. Amando Fontes tem, em Corumbas,
a tela quase apaixonada da vida do proletariado nortista, tão admirável de humanidade,
esmagado entre uma natureza hostil e uma classe dirigente feudal. Carlos Lacerda,
em Quilombo de Manoel Congo, esboça aspectos comoventes da luta pela abolição, encaixada
tão visivelmente na teoria marxista; é socializante e o seria mais se não estragasse
a obra com a preocupação da tese.
O assunto é desses
que se provam e que se defendem sem retórica pela simples exposição. Parece, pois,
socializante toda obra que espelha uma face errada da humanidade e que imprime no
leitor a certeza do erro, a vontade de corrigi-lo, a revolta contra a trapaça. Será
simplesmente realista toda obra que se limitar à anotação pictural de um pedaço
de vida, de uma paisagem, de um acontecimento, diferençados, embora verdadeiros,
da coletividade.
- Você disse
que o romance social no Brasil...
Seria aquele
que refletisse o sentir de uma elite desorientada e seu anseio por um novo estado
de coisas. Dava, então, à palavra "social" o sentido sociológico de romance
do homem na sociedade. Por isso não me parece viável o romance proletário no Brasil.
- Por quê?
Não temos movimentos
conscientes de massas. Ao contrário de muitos países, em que as massas empurram
as elites para a frente, aqui são as elites que empurram as massas. Oitenta por
cento de analfabetos não poderiam, com efeito, ter atuação direta no movimento social
nem sentir próprio. Estamos, ainda, no período intelectual de renovação. Como a
França do século XVIII do Contrato social e dos romances de Voltaire. Havia, então,
uma literatura proletária ou camponesa? Não. Mas havia uma literatura liberal burguesa,
dirão, e a revolução de 89 foi uma revolução burguesa. É visível, porém, que essa
literatura liberal burguesa era produto de uma elite formada, havia séculos. Só
agora, depois da guerra, com a alfabetização geral, é que vem surgindo na França,
na Alemanha e nos Estados Unidos uma literatura proletária. Na Rússia, mesmo, só
agora ela aparece, em razão de causas idênticas.
- No Brasil?
Estamos no período
pré-revolucionário. Só reflete uma verdade para a arte e só tem valor humano, por
isso mesmo, a literatura que reflita este estado de alma. Estado de inquietação,
principalmente; estado de auscultação, de pesquisa da verdade, de uma verdade. Neste
estado de espírito é inegável e já a simples anotação realista parece insuficiente.
Mas a literatura proletária, a nossa literatura proletária, situa-se igualmente
longe da arte desejada. Não é mais do que arma de propaganda, panfleto, tese econômico-social.
Nem mesmo como literatura de propaganda tem grande valor, pois, pela sua "inteligência",
fica longe das massas e, pela sua pobreza voluntária de expressão artística. afasta-se
das elites. E' uma literatura falsa e falha que erra a meta visada e não mais se
justifica, num momento de codificação e de crítica, como o que! atravessamos.
- Uma coisa:
como pode você conciliar sua atividade literária com a pesquisa de assuntos tão
áridos quanto o de Roteiro do Café?
Você não deve
esquecer-se, meu caro, dos meus estudos de ciências econômicas e sociais na Universidade
de Genebra... Nem de minhas funções burocráticas. A história econômica do café é,
aliás, um assunto apaixonante para qualquer paulista, mesmo crítico de arte, mesmo
poeta. Tudo está por se fazer nesse campo. Salvo Afonso d'E. Taunay, ninguém se
ocupou ainda seriamente do café. Talvez seja cedo demais para o romance, para o
poema. Mas as monografias já são possíveis e servirão ao escritor do futuro.
- Você está se
desviando da pergunta. O que me espanta não é a importância do café, mas o antagonismo
entre a atividade literária e principalmente artística - não é você um dos nossos
raros críticos de arte? (*) - e a preocupação econômico-histórica.
O antagonismo
é apenas aparente. O que me interessa na arte não é somente a expressão estética,
mas também o reflexo de uma situação social. É o aspecto sociológico; é a mesma
coisa que me atrai na história do café. No fundo o ponto central de minha atividade
é a sociologia. História, pesquisas, crítica de arte ou literária, ligam-se, fortemente,
a esse núcleo. E você há de ter verificado que mesmo em meus livros menos pretensiosos
(Pintores e Pinturas, por exemplo) essa entrosagem se observa a olho nu. Já se foi
a época do literato "inspirado", do "gênio criador" espontâneo.
Na sociedade complexa em que nos é dado viver, o literato é um estudioso, antes
do mais. E maior será a sua importância quanto mais aprofundadas se revelarem suas
leituras. E' natural que se lhe exija sensibilidade pois sem ela poderia ele ser,
quando muito, um pesquisador; mas só a sensibilidade, só o talento formal, não bastam
.. Um parnasiano será, hoje. em dia, uma coisa de grande comicidade; e observe-se
que os mais respeitados, atualmente, são aqueles que tinham. além da forma, um fundo
filosófico sólido. Amadeu Amaral, por exemplo.
- Quais os livros
que você tem em projeto?
Duas cartas no
meu destino…
- Desse você
já me falou. E disse que está prestes a entrar para o prelo.
Além desse...
- Além desse?
Tenho versos
inéditos, tenho um segundo volume de ensaios já quase terminado.
- Mais um?
Sim. Mais um.
É Ventura galego.
- Que nome?!
É a biografia
de "seu" Manoel da esquina... Se houver editores...
- Se houver?
Tudo sairá breve.
Se houver!...
Entrevista conduzida
por Silveira Peixoto em 1938, publicada em seu livro Falam os escritores
(vol. 2. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 19710. Edição preparada
por Floriano Martins. Página ilustrada com obras de Paul Delvaux (Bélgica, 1897-1994),
artista convidado da presente edição.
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Agulha Revista de Cultura
Número 123 | Novembro de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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