Em Janeiro de 1952, António Maria Lisboa escreve do
Sanatório da Quinta dos Vales (Covões, Coimbra) – onde se encontra em luta desesperada
contra a tuberculose –, a Mário Cesariny, anunciando o envio do “apontamento para
tareia no A. Casais Monteiro”, bem como de “um aviso que seria publicado na última
página do folheto conta o C.M.”[1]
A aproximação
entre os dois textos – “Carta aberta ao Snr. Dr. Adolfo Casais Monteiro” e “Aviso
a tempo por causa do tempo” – é sublinhada pelo próprio Mário Cesariny, quando da
sua publicação conjunta, em 1977, esclarecendo que o primeiro seria uma resposta
a opiniões emitidas pelo destinatário na revista Unicórnio, dirigida por José-Augusto França. Na verdade, o texto de
António Maria Lisboa responde, antes de mais, à entrevista concedida por Casais
Monteiro a João Gaspar Simões, inserta no Diário
Popular, de 30 de Agosto de 1950. Por seu lado, o artigo de Unicórnio, intitulado “Um Caminho para a
Poesia (a propósito da “Pedra Filosofal” de Jorge de Sena)”, data de Maio de 1951,
enquanto a “Carta aberta” traz, no final, a data de 31 de Agosto de 1950, fazendo
pressupor que foi escrita, num primeiro momento, na sequência da leitura do jornal.
Conquanto, nesse artigo, Casais Monteiro aluda à impossibilidade de vingarem na
poesia portuguesa quer a música pura,
quer o verbo puro – “eis porque não pôde
existir poesia surrealista”[2] – as referências explícitas
às suas palavras na dita entrevista, não deixam quaisquer dúvidas acerca do móbil
de António Maria Lisboa.
Casais
Monteiro apresenta-se, no início do seu diálogo com o companheiro presencista, como sendo homem com um “feitio
subversivo”, tecendo depois considerações acerca dos conceitos de “arte pela arte”
e “arte pela sociedade”. Discorre igualmente sobre o facto de ter de se admitir
“que o artista pode superar a sua condição de membro de determinada sociedade e
ser outra coisa que uma expressão dela, e em tal caso” poder admitir-se “que haja
um realismo socialista”. Casais Monteiro acrescenta: Mas temos de admitir também que o artista a supere noutro sentido, e para
exprimir outra coisa que não a sua posição pró ou contra a sociedade a que pertence.
Se a literatura é expressão de luta de classes, então toda a literatura de quaisquer
escritores portugueses de quaisquer tendências terá que ser uma literatura burguesa,
pois não existe um único escritor português que não pertença a essa classe (…) E
remata, dizendo: - Tive uma certa esperança
nos surrealistas, mas ficou tudo em promessas – porque lhes faltaram os “actos”.
E, quer creiam ou não, podem ter a certeza de que de actos é que se precisa. (…)
Mas não é a fingir realismo socialista, a fingir surrealismo, ou a fingir seja o
que for que se pode criar algo capaz de ir direito ao mais íntimo dos homens.[3]
É a
estas declarações que, visivelmente, António Maria Lisboa reage, quando interroga
o destinatário: “Mas subversivo em quê? por quê? por não estar de acordo com uma
Constituição e pretender outra? por não estar de acordo com o Realismo-Socialista
e querer outro (outro Realismo, outro Socialismo)?”.[4] Ou quando, mais adiante esclarece:
Nada teria dito se não fosse o ar paternal,
a boa vontade – ah! A boa vontade… – e
o castigo (“a fingir surrealismo…”) que Casais Monteiro achou por bem tomar, ter
e dar aos surrealistas quando da sua entrevista no Diário Popular.[5]
António
Maria Lisboa elucida ainda o seu interlocutor acerca da história (então recente)
do movimento surrealista em Portugal e lembra o modo como “se opuseram a essa tentativa
Realista-Socialista de submeter o poeta, o homem aos interesses de agrupamentos
políticos”.[6]
A “Carta
aberta”, dada, pela primeira vez, a público em 1966,[7] termina com a frase: “Todo
o acto premeditado ou o acto leviano tem a sua guilhotina-própria”. No entanto,
conforme anota Mário Cesariny, na cópia dactilografada em seu poder, corrigida pela
mão de António Maria Lisboa, há uma rasura do que seriam as palavras finais da frase:
“– como eu na U.R.S.S. teria o meu esquife
feito”.
A parte
rasurada serviria, sem dúvida, para tornar ainda mais clara a ligação deste texto
com o manifesto “Aviso a tempo por causa do tempo”. A referência à União Soviética
constituiria, portanto, uma explicitação desses “agrupamentos políticos”, explicitação
da qual, talvez atendendo ao regime censório vigente, António Maria Lisboa decide
abdicar.
Na
leitura de “Aviso a tempo por causa do tempo” não pode deixar de se encontrar um
eco desta carta-aberta, que acabaria por ser dada a conhecer apenas dez anos depois
da distribuição do manifesto, impresso em folha copiógrafa, feita por Luís Pacheco.
O aviso-manifesto
(que, com a data de Julho de 1953, teria ou não assinatura colectiva) é, em primeiro
lugar, um aviso à navegação, melhor dizendo,
uma declaração de princípios, um esclarecimento ou, se se preferir, uma tomada de
posição dos “surrealistas” face a “certos
intelectuais-emissores de grupos, organizados ou não, com células ou não células”,
a que alude a “Carta aberta”[8]. Aí se declara (logo no ponto
1º) o não-apoio a “qualquer partido, grupo, directriz política ou ideologia”[9]. É, pois, um aviso-manifesto
feito “a tempo”, isto é, oportunamente, ou, talvez, feito “antes que fosse tarde”,
num tempo em que ao totalitarismo e organização policial do estado (novo) português se opõem, do outro lado da
barricada, os adeptos de uma ideologia cujo modelo é o do estado totalitário soviético.
A equidistância
de António Maria Lisboa relativamente a estes dois “estados de coisas” está bem
expressa, aliás, numa outra sua carta, de 1 de Abril de 1950, a Mário Cesariny,
na qual afirma: O Liberalismo é a última arma
dos Fascistas e Comunistas. Cautela! (…) é um caso de reorganização totalitária
ou caso comunitário (Ex.: espírito de grupo, a boa camaradagem entre sujeitos que
não se toleram, a salvação dos valores literários, dos conceitos de pátria, regionalismo
e, o que é mais perigoso, a tentativa para retirar do vocabulário os termos Reaccionário,
Revolucionário, Filhos da Puta etc.[10]
Saliente-se
que, com a mesma data de Abril de 1950, existe um manifesto assinado por Mário Henrique
Leiria, João Artur Silva e Cruzeiro Seixas[11] onde se lê, de forma bem menos
sibilina, que o “surrealista não é um mártir da ciência ou de qualquer outro mito
aceite pela sociedade dita organizada, nem um combatente pago (ou não-pago) para
servir ordens emanadas de qualquer partido ou organização mais ou menos política
ou filantrópica. (…) Debaixo de qualquer ditadura (fascista ou estalinista) não
é possível uma actuação surrealista organizada sem as respectivas consequências
de represálias policiais. (…) A acção surrealista, neste caso particular, está limitada
a uma série de actos que poderíamos chamar de guerrilhas (…)”.[12]
Mais
à frente, assumindo um completo distanciamento em relação ao “novo academismo”,
o neo-realismo, afirmam também que “Qualquer espécie de realismo-socialista com
todo o seu cortejo de estéticas, literaturas e políticas de partido, é tão prejudicial
à liberdade do Homem como uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar
de deus um outro deus igualmente absurdo”, pois que o “Homem só será livre quando
tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa
e quando for universalmente capaz de existir sem limites. Então o Homem será o Poeta
e a poesia será o Amor-Explosivo”[13].
António
Maria Lisboa não poderia deixar de subscrever estas palavras. No “Aviso a tempo
por causa do tempo”, o signatário ou signatários, já que o texto é assumido na 1ª
pessoa do plural, declara(m) a sua não-simpatia por “qualquer organização policial
ou militar” (ponto 2º) - elementos necessários a uma sociedade que não lhe(s) merece
também e obviamente nenhuma simpatia – e apresenta(m)-se como “indivíduos livres
de compromissos políticos” (ponto 3º), para quem “a crítica é a forma da [sua] permanência”
(ponto 6º).
Lembre-se,
a este propósito, o conflito entre os surrealistas e comunistas franceses, que eclode
em 1927 com a Carta ao Partido Comunista Francês,
assinada por Breton, Éluard, Péret e outros, na qual vituperam o facto de no interior
de um partido revolucionário se negar o direito à crítica. Ou a denúncia da posterior
adesão de Louis Aragon às directrizes estalinistas e à literatura propagandística.
É Natália
Correia que chama a atenção para a tensão permanente entre o surrealismo e o comunismo
militante, considerando que “A bandeira negra dos anarquistas é a única que verdadeiramente
guia a marcha do surrealismo contra a ordem e toda a espécie de constrangimentos”.
Essa “linha que persistirá através dos acidentados contactos com a acção comunista”[14] é a mesma que será seguida
pelo surrealismo português, da qual António Maria Lisboa é um dos principais representantes.
A confirmar
esta asserção de Natália Correia, leia-se também uma carta recebida por Mário Cesariny,
em 28 de Abril de 1950, em que António Maria Lisboa expõe de forma exemplar a sua
concepção de uma Metaciência (uma “ciência”-síntese, onde entroncariam todas as
ciências, e que poderíamos hoje entender como uma genial antevisão da “unificação
dos campos” que a ciência contemporânea tão incessantemente busca), considerando
que “Politicamente a Metaciência ao pronunciar-se dirá que a verdadeira democracia
só será possível quando todos os homens forem poetas. Mas a isso não chama ela democracia
– mas Anarquia!”.[15] De resto, como escreve também
nesta carta, essencial para o conhecimento da sua obra, a Anarquia e a Poesia “são
uma obra de séculos e irrompe espontaneamente ou não irrompe!”.[16]
Como
se vê, a guerra (quase sempre aberta) que opõe o surrealismo ao comunismo e, por
derivação, os surrealistas portugueses aos seus compatriotas neo-realistas, não
pode estar mais acesa nos anos 50 (“por causa do tempo”). António Maria Lisboa alimenta-a
precisamente pela via libertária, declarando com extrema ironia (ponto 4º do “Aviso”)
que, “sendo individualmente e portanto abjeccionalmente
desligados das normas convencionais”, têm “o máximo regozijo em ver essas mesmas
normas nos componentes da sociedade”. E dizendo (ponto 5º), com igual e extrema
ironia que, não sendo “contra a ordem, o trabalho, o progresso, a família, a pátria,
o conhecimento estabelecido”,[17] preferem a tudo isso Liberdade,
Amor e Conhecimento.
Esta
tríade, como nota Carlos Filipe Moisés, “acaba por constituir uma espécie de “plataforma”
ideológica da poesia de António Maria Lisboa, em termos de infatigável rebeldia
e, ao mesmo tempo, libelo e apelo”.[18] Libelo, dizemos nós, contra
as convenções, mas também contra os princípios grandiloquentes do discurso salazarista
que naquele ponto do “Aviso a tempo por causa do tempo” ecoam. Apelo a uma intervenção
surrealista, poética (poiética) e política,
plasmada em três pilares fundamentais. A Liberdade que assenta, em primeiro lugar,
numa exigência de respeito – o respeito tantas vezes negado pelo Estado, pelos governos,
pela sociedade; e, em segundo lugar, na capacidade de “algumas vezes achar bom outras achar mau” (como se diz
no ponto 1º do aviso), mas também na opção, crítica e alternativa, de seguir sozinhos,
sem vínculos ou compromissos, sem “Dieu ni maître”.
É uma
Liberdade que pressupõe o Amor. Não o amor - “nem o amor de si mesmo, nem o amor
do objecto amado, nem o amor do amor – mas o amor de algo outro, o Oculto”.[19] O “Amor-Explosivo” ou o Amor
como via para o Absoluto, pois
–
onde está o Amor deve estar o Grande Amor
Mágico Amor Meu
– onde estou Eu deves estar Tu
– onde estão os lábios da nossa vida
HÁ
uma porta secreta minúscula
O-AMOR
MEU AMOR[20]
Amor,
com maiúscula, também porque, como diria o poeta em Isso Ontem Único, “nunca como agora o Amor foi tão significativo / tão
único baluarte da realidade real/ da negação negada, da perca total que procuro”.[21]
E a
Liberdade e o Amor escoram-se no Conhecimento, um Conhecimento sábio, superior,
esotérico, aquele que, porventura, permitiria determinar esse ponto do espírito,
intuído por André Breton, a partir do qual “la vie et la mort, le réel et l’imaginaire,
le passé et le futur, le communicable et l’incommunicable, le haut et le bas cessent
d’être perçus contradictoirement”.[22] Um Conhecimento que só a Poesia
– a Grande Iniciação -, pelo seu poder alquímico, transfigurador (transmutador)
pode atingir, operando uma síntese futura, da qual a Metaciência concebida pelo
poeta português é, sem dúvida, a expressão maior. Dito de outro modo, com as próprias
palavras de Erro Próprio, proferidas por
António Maria Lisboa na Casa da Comarca de Arganil, em 3 de Março de 1950: Trata-se de INVENTAR O MUNDO! Descobrir as semelhanças
e dissemelhanças, pôr a nu o rendilhado que une o Invisível ao Visível, estabelecer
um Arco-voltaico entre o Consciente e o Inconsciente, entre o Passado e o Futuro,
provocar um Curto-circuito para os destruir isolados, perfurar a Razão com a Loucura
e vice-versa – todas as formas são boas, todas as conjugações possíveis![23]
Este
programa está, de certa maneira, implícito no “Aviso a tempo”, sendo, como é também,
um aviso sem tempo, para todos os tempos.
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EDIÇÃO
COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista
convidada: Leonor Fini (Argentina, 1907-1966)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO
CONOSCO
Número 138 | Julho de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS
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editor assistente | MÁRCIO
SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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ARC Edições © 2019
[1] Poesia
de António Maria Lisboa, texto estabelecido por Mário Cesariny de Vasconcelos,
1ª edição, Lisboa: Assírio & Alvim,, 1977, p. 295. Já numa carta anterior, de
10 de Janeiro, escrevera: “Penso ser bom, mesmo antes do manifesto, ofender o C.
Monteiro. (…) No rascunho que tenho falo nos loucos da crítica que não se criticam.
Julgo que é o melhor para o J. Gaspar Simões.” (op. cit., p. 294).
[2] Artigo citado, Unicórnio, Antologia de inéditos de autores portugueses contemporâneos,
organizado por José-Augusto França, Lisboa, Maio de 1951, p. 7.
[3] Diário
Popular, 30 de Agosto de 1950, p. 4.
[4] Poesia
de António Maria Lisboa, ed. cit., p. 107.
[5] Ibidem.
[6] Ibidem,
p. 109.
[7] Ver A
Intervenção Surrealista, Lisboa: Ulisseia, 1966.
[8] Ibidem,
p. 107.
[9] Ibidem,
p. 110.
[10] Ibidem,
p. 267.
[11] Destinado, tal como o “Aviso…”, segundo Perfecto
Cuadrado, a uma revista projectada em Londres por Simon Watson Taylor – revista
que não chegaria a publicar-se. Cf. Perfecto E. Cuadrado, A Única Real Tradição Viva, Antologia da Poesia Surrealista Portuguesa,
Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, p. 15.
[12] Ibidem,
pp. 15-16.
[13] Ibidem,
p. 17.
[14] Natália Correia, “O mito e o ultimato surrealista
a todas as formas de opressão”, excerto do ensaio O Surrealismo na Poesia Portuguesa (1973), reproduzido no Apêndice a
Poesia de António Maria Lisboa, ed. cit.,
pp. 339-340.
[15] Poesia
de António Maria Lisboa, ed. cit., p.280.
[16] Ibidem,
p. 279.
[17] Ibidem,
p. 110.
[18] Excerto do livro Poesia e Realidade – Ensaios acerca da poesia portuguesa e brasileira
(São Paulo: Ed. Cultrix, 1977), reproduzido no Apêndice a Poesia de António Maria Lisboa, ed. cit., p. 380.
[19] Idem,
ibidem, p. 378
[20] Final do poema “Recusa” de António Maria
Lisboa, ibidem, p. 156.
[21] Ibidem, p.168.
[22] “Second manifeste
du surréalisme”, in André breton, Manifestes du surréalisme, Paris: Gallimard,
1979, pp.72-73.
[23] Poesia
de António Maria Lisboa, ed. cit., p.93.
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