Uma manhã muito cedo fomos, Alberto Beltrán e eu, com Luis Buñuel a
Lecumberri. Creio que soube mais de Buñuel nessa ida à prisão do que através de
nossa longa entrevista. Íamos visitar Alvaro Mutis (escritor colombiano
que esteve preso no México por 15 meses), mas como se tratava de
Buñuel-o-diretor-de-cinema, nos mostraram toda a penitenciária. Depois de nosso
tour senti por ele um grande respeito, reverência, quase. Examinamos cada um
dos pavilhões, inclusive os “J” – o dos homossexuais (jotos, no
original). Na solitária, no mesmo pavilhão, haviam prendido um que não
queria fazer a faxina. O castigado apareceu por uma pequeníssima fresta pela
qual só se podia ver sua cabeça e os olhos. Uma volumosa franja cobria sua
testa. Buñuel se aproximou da janelinha:
– Tem que
fazer a faxina, homem! O que é um pouco de faxina diante de ficar trancado aí?
Tem que fazer!
Os olhos
arregalados se fecharam como os de um chinês. O castigado tinha sorrido.
Durante
nossa “volta” (assim disseram os militares: “os senhores podem dar uma volta”),
Buñuel saudou a todos os reclusos que viu, tratando-os como se fossem o homem
mais importante do mundo. Pôs especial empenho em estender-lhes a mão, em dizer
umas quantas palavras cordiais. Recordo que quando estávamos em frente ao
cozinheiro, o senti preocupado por despedir-se da melhor forma possível, no
momento justo. Não queria ferir estes homens já por si tão vexados e se notava
que estava tenso por dentro, humanamente tenso e atento. Fazia-lhe perguntas
comuns e banais: sobre a comida, se era boa. E, ao comprovar que a sopa é
espessa, que os feijões, as lentilhas estão bem cozidas e a carne é tolerável,
ficou satisfeito como se fossem seus filhos ou seus irmãos que estivessem ali
encarcerados. Se surpreendeu que houvesse café e tabaco nos pavilhões: “Mas
isso é maravilhoso! Não é mais uma prisão!” Como se fosse um parente seu,
interrogava ansiosamente os presos: “Estão com frio?” “Estão se sentindo bem?
Posso fazer alguma coisa?” “O que está faltando a vocês?”, em um tom baixo,
familiar. Nas celas, as conversas são, em geral, docemente comuns:
– Aqui na
panela está o guisado que você tanto gosta!
– E meu
suéter, me trouxeste?
– O advogado
diz que vai apelar da decisão, e agora sim…
– O que acha
da minha mãe?
– Te trouxe
uma coberta…
Enquanto
caminhávamos, Buñuel seguiu saudando a todos e quando perguntavam com
deferência: “Senhor Buñuel, não o importunaram na entrada?”, respondia: “Não,
nada, deixei lá a maconha e a pistola”, os réus sorriam de orelha a orelha,
melhor dito, de grade a grade, contentes de conversar com “o senhor do cinema”.
Compartilhou seu Pall Mall, e ao médico espanhol que lhe perguntava:
– E que tal
o sucesso?
– Não sei,
porque não o ouço… Não posso saber! –respondeu.
Como nunca
faltam os detalhes buñuelescos, fomos ao campo desportivo e a primeira coisa em
que se fixou Luis Buñuel foi nas pegadas de uns ratos enormes no chão de terra
solta. Nos acocoramos para examiná-las e as patas me saltavam aos olhos.
Pensei: “Que estranho que estejamos aqui vendo pegadas de ratos! Que estranho!
Por que estamos assim agachados?” Buñuel explicou: “Não pode matar o macho,
podem vir atrás trezentas fêmeas!” Dissertou longamente sobre como se faziam as
campanhas de desratização, enquanto o policial que nos acompanhava, sem
participar da conversa, desenhava círculos com uma varinha no pó. De novo
revisamos as pegadas, as patinhas asquerosas.
– São do
tamanho de um coelho!
Sob a luz
cinza, um pouco dourada da manhã, não pude deixar de recordar A Peste,
de Camus.
– Por favor…
Depois de nossa
“inspeção” de Lecumberri, vi Buñuel em duas ocasiões mais: num coquetel na casa
de Jean Sirol (entre as bandejas com copos de uísque e as apresentações de
Sirol, desenhou grades no ar) e na mesa redonda sobre A Nova Onda que
aconteceu no IFAL (Instituto Francês da América Latina). Ainda com as palavras
de Mutis na mente (“…poucas pessoas têm uma integridade tão absoluta como este
velho. Este velho se conserva em estado puro, caray!”), disse ao finalizar a
conferência: “Por favor, senhor Buñuel, conversemos um pouco…” Não se negou,
mas sinto que esta entrevista, continuada em sua casa, é muito pobre ao lado de
tudo o que o homem deixou vislumbrar de si mesmo, na penitenciária.
– Desde
pequeno o senhor sentia vontade de fazer cinema?
– Não, que
nada! Comecei estudando Filosofia e Letras, mas me sentia sufocado na Espanha e
arranjei um pretexto para ir a Paris. Lá iam fundar um Instituto Nacional de
Cooperação Intelectual, em 1924; algo como a Unesco, ou como essa antiga
sociedade de Genebra, e este foi o meu pretexto…
– Ah, o
senhor se interessava por política?
– Não. Eu,
de política internacional, zero. Era um pretexto para fugir, e, além do mais,
um argumento muito consistente para que minha mãe me desse dinheiro para eu
poder ir.
– Quantos
anos o senhor tinha?
– 24. Vou
com o século, assim que é fácil recordar minha idade. Cheguei a Paris e durante
quatro ou cinco meses me dediquei a ler Le Temps, que era o
precursor do atual diário Le Monde; e também o Times,
de Londres. Folheava-os, porque, como lhe disse antes, eu, de política, zero.
Ia a uma escola de francês e outra de inglês, mas também languidamente.
Esperava que se fundasse este instituto, e enquanto isso assistia o teatro do
Vieux Colombier, e ia ao Les Ursulines, que era um cinema de arte…
– Igual aos
cineclubes?
– A
bilheteria ficava aberta para todo mundo; mas ali se exibiam filmes alemães sem
letreiros (ri) e o público batia os pés no chão porque saíam na tela coisas
como esta: uma mulher meditabunda, com a cabeça apoiada na mão, pensa em seu amante
que se vai num trem. Logo aparece o trem andando. E a terceira imagem é a
mulher em sobreposição com o trem. A propósito de público, lembro que em Madri,
no teatro Prisse, houve concertos (de Pérez Casas) aos que assistiram 2 mil
pessoas. Se tocava Prélude a l’aprés-midi d’un faune e os
únicos a aplaudir fomos um amigo e eu, porque 1998 pessoas entre os presentes
consideraram que A sesta do fauno era uma gozação. Foi um
escândalo: queriam nos bater porque aplaudíamos. Um agrediu meu amigo, mas como
eu era boxeador amador, lhe enfiei o chapéu sobre os olhos e as orelhas com um
grande tabefe. Isso aconteceu em 1918 (faz só 40 anos). Parece mentira que há
40 anos vaiassem Debussy!
– Agora
Debussy é um clássico…
– Mas nessa
época repudiavam Debussy, Stravinsky, Ravel…
– E quem era
o público?
– Uma plateia
de concertos: as pessoas que geralmente vão a concertos…
– A
vanguarda sempre foi apedrejada?
– Quase
sempre.
– Então o
senhor acredita que o abstracionismo, por exemplo, foi, em seus primórdios,
algo heroico?
–
Naturalmente, Elena.
– Não acha
que agora acontece o contrário? Que os heróis são os não-abstratos? O
abstracionismo conta já com um mercado mundial seguro em que se acham
investidos muitos milhões de dólares. Se um pintor quer vender, tem que ser
abstrato; a crítica e ainda as galerias se converteram em templos da abstração
pictórica. O que aconteceria se, um dia, se dissesse no mundo que a arte
abstrata não existe, que não vale nada?
– Eu nunca
vou a nenhuma exposição de pintura e, por tanto, não posso lhe falar do que
acontece nas galerias de arte.
– Luis nunca
sai de casa –intervém Jeanne Buñuel– e quando o faz é porque não pôde evitar.
– Mas se eu
o encontrei em dois coquetéis, senhora!
– Devem ter
sido compromissos. Não, Luis nunca sai, nem sequer vai ao cinema. Vê dois
filmes ao ano, e muitas vezes vai embora no primeiro rolo. Só viu Hiroshima
Mon Amour (1959) e A Ponte da Desilusão (1959),
mas em geral começa a se mover na cadeira, murmura, e finalmente me diz: “Te
espero na esquina!” Eu também acabo saindo…
– Senhor
Buñuel, voltemos ao tema da vanguarda. Então o senhor crê que os pintores
abstratos mais cedo ou mais tarde passarão a ser clássicos?
– Nós
frequentávamos todos os salões de vanguarda.
– Nós quem?
– Federico García Lorca, Dalí, Pepín Bello. Víamos
filmes de Abel Gance (ator e diretor francês), que agora é
considerado um monstro do academicismo, mas que foi o primeiro em conseguir dar
a impressão de velocidade. Víamos, por exemplo, uma roda; logo um corte rápido
da roda; um close na máquina; outro corte; a câmara ia até a fornalha, ou ao
motor que impulsiona a máquina; corte, e de novo as rodas; corte, trilhos;
corte, corte, cortes rápidos. Agora ninguém se atreve a empregar essa técnica,
mas naquela época…
– O senhor
ia ao cinema porque já sentia sua vocação?
– Não! (Ri)
Era um pretexto para ir com uma namorada e me aproveitar da escuridão. O cinema
sempre foi um lugar recolhido, escuro e erótico, muito apropriado aos abraços,
às carícias…
– Então o
senhor não se indigna que em vez de verem seus filmes nos cinemas do México, os
namorados fiquem se beijando?
– Que nada!
Que façam o que quiserem! Eu adorava ver filmes de Buster Keaton e Harry
Landgon, todos nós gostávamos, até que em Paris descobri o verdadeiro cinema.
Vi A Morte Cansada (1921), de Fritz Lang, e me deslumbrou. Me
dei conta que o cinema era uma expressão humana e não uma caixinha preta… Você
não pode imaginar o que era o cinema nesta época, Elena; os 2 mil metros de
filme incluíam 500 de leitura, porque tudo se explicava a base de letreiros.
Estavam sentados dois namorados, por exemplo, um ao lado do outro, ou dois
amantes, e um dizia ao outro: “Te amo, querida Cunegunda, mais que a nenhuma
outra…” Corte. Isto é, os lábios do galã formulavam as palavras e ficavam
abertos, imóveis, enquanto o letreiro explicava o que tinha dito. Logo se via a
mulher, também com a boca aberta e sem que nenhum som se ouvisse. E outra vez o
letreiro. E ia assim até que terminava o filme. Por isso o primeiro filme sem
letreiros, Le Rail (Lupu Pick, 1921), causou verdadeiro
estupor. Então decidi me dedicar integralmente ao cinema e comuniquei isso a minha
mãe…
– E foi
fácil entrar no mundo do cinema?
– Sim. Fui
assistente de Jean Epstein, e ele por sua vez foi meu mestre. Eu o assisti no
filme Mauprat, em 1927; mas quando Epstein fez seu terceiro e
último filme eu já era meio surrealista; ainda que em um princípio ria dos
surrealistas… –se anima, fala mais rapidamente se é que isso é possível, e move
mais as mãos, agora com tudo e braços…– Uma vez assisti a um banquete em
homenagem a madame de Rotschild em La Closerie des Lilas, em Montparnasse. Ela
fazia 70 anos, se é que não já os tinha e fazia outros mais.
– Era uma
velhinha, então?
– Sim. O
banquete era algo como uma homenagem à literatura contemporânea e a ele
assistiam os grandes do surrealismo: Benjamin Péret, Max Ernst, Aragon, Eluard,
Sadoul, Dalí. Ao final do banquete houve discursos a cargo dos grandes
escritores da época e ela se levantou para agradecer. Perguntou aos
surrealistas se não iam dizer nada. E então um deles, que estava na cabeceira
da mesa, foi até a distinta senhora e a derrubou de uma tremenda, de uma grande
bofetada…
– A velhinha
de setenta anos.
– Sim. Era
um ato simbólico contra o talento oficial, contra essa porcaria de banquete,
contra o establishment, tudo o que representava essa senhora de Rotschild… Mas,
apesar disso, eu ainda ria dos surrealistas e não os levava a sério… No
entanto, no terceiro filme em que fui assistente de Epstein, já flertava com o
surrealismo… Um dia Epstein me disse que havia emprestado o estúdio de Epinay,
em que trabalhávamos, a Abel Gance, e que vinha fazer um bout d’essai (prova
de ator). Falou: “O senhor se ponha à sua disposição”. Era normal que eu, como
assistente de Epstein, assessorasse Gance como ele oferecera, mas respondi a
meu chefe: “Que o ajude a mãe dele!” (bom, algo parecido), e Epstein ficou me
olhando e me disse: “Amigo Buñuel, acabou”. Sempre me lembrarei do que me disse
quando observei: “Com o senhor, encantado de ser seu assistente, mas com Gance,
nada, nada. Gance não me interessa
nada”. Ele me respondeu: “Qu’un petit con comme vous ose parler comme
cela, d’une grande personalité que celle de Gance…” (“Que um
pequeno babaca como você ouse falar dessa maneira de uma grande personalidade
como Gance…”) Depois acrescentou: “Apesar de não trabalharmos mais juntos, vou
levá-lo a Paris em meu carro” (eu não tinha meio de locomoção, e Epinay ficava
longe). No caminho me aconselhou que eu não frequentasse essa turba
iconoclasta; sua última advertência foi que me afastasse do surrealismo, e a
segui tão ao pé da letra que ao final de um ano entrei no surrealismo…
– E o senhor
não se ofendeu por todas essas coisas?
– Não, ao
contrário; achei muito bom e me orgulhei que ele se preocupasse comigo. No
fundo já não me interessava nada terminar o filme e Epstein o concluiu sozinho.
Mergulhei fundo no surrealismo junto com Salvador Dalí e fiz meu primeiro
filme: Um cão andaluz.
– Por que
esse título?
– É de um
poema meu.
– Não o
declama para mim?
– Não me
lembro.
– Não se
lembra de seu próprio poema?
– Não… Esse
filme eu fiz com dinheiro do meu próprio bolso; ou melhor, do bolso da minha
mãe (ri). Fiz o filme porque minha mãe me mandou 5 mil duros (25 mil pesetas);
140 mil francos da época.
– Antes de
filmar o senhor se preparou? Suponho que deve ter estudado, lido…
– Que nada!
Nada disso! Estava era bebendo em cabarés, fazendo bobagens…
– É a época
desse retrato de Salvador Dalí?
(Numa das
paredes da nada surrealista casa dos Buñuel está pendurada uma pintura de Dalí
que representa o mesmo Buñuel, sério, com uma bata sacerdotal sobre um fundo de
elementos lânguidos e esmaecidos).
– Sim, em
Figueres, em 1921. Eu imitava um pouco Unamuno e usava um casaco negro, mas que
não chegava no queixo como o de Unamuno (ri). Mas espero que você não esteja
escrevendo tudo! Em cinco dias, Dalí e eu escrevemos o argumento de Um
Cão Andaluz, na mesma época que Man Ray e Louis Aragon foram à Rússia…
– É verdade
que Aragon andava pela rua com um gafanhoto dentro de uma gaiola pendurada no
nariz?
– Não, não é
verdade! Isso não é verdade. Você está confundindo com o dadaísmo. O
surrealismo era um movimento muito sério que ia muito além de ofender ou
escandalizar o burguês. Foi uma verdadeira revolução do ponto de vista
moral-poético.
– E Aragón?
– Espere um
momento… Por que você é tão agoniada? Então conheci em Paris aos viscondes de
Noailles, Charles e Marie Laure, que são os melhores mecenas do mundo, os
únicos, porque depois vi outros, como o conde de Beaumont, os Polignac; mas
ninguém como os de Noailles. Eles se dedicavam a ajudar artistas jovens, e em
seu castelo, em Hyère, uma abadia, cujo nome não lembro, patrocinaram a
filmagem de um curta de vinte minutos, Les mystéres du château du Dé (Man
Ray, 1929). Este foi um curta surrealista do qual participei e me fez ingressar
no sofisticado grupo dos Noailles. Entrei no cinema pela porta grande, graças a
eles! A propósito da generosidade dos Noailles: um dia, entre sua numerosa
correspondência (que mais que nada consistia em pedidos), Charles abriu a carta
de um jovem poeta que prometia se suicidar se não recebesse o necessário para
poder sobreviver. No ato, Charles lhe mandou uma soma em dinheiro. Assim fazia
com todos!
– Sobretudo
com os artistas?
– Sim,
sobretudo com eles.
– Quem eram
os surrealistas daquela época?
– Maxime
Alexandre, Aragon, André Breton, René Char, René Crevel, Salvador Dalí, Paul
Eluard, Georges Malkine, Benjamin Péret, Man Ray, Georges Sadoul, Yves Tanguy,
André Thirion, Tristan Tzara, Pierre Unik, Albert Valentin e outros mais.
Quando Um Cão Andaluz foi exibido pela primeira vez, eu
ia preparado para reprimir o furor do público e enchi os bolsos de pedras, por
prevenção… Bom, para o que fosse… Eu estava detrás da tela operando o
gramofone…
– Gramofone?
– Sim.
Punha Tristão e Isolda e tango argentino, Tristão e
Isolda e tango… Tristão e tango, tango e Tristão, até que acabou… Eu
vigiava a plateia, espiava sua reação, mas não vieram mais que aristocratas e
artistas, que encheram as 300 ou 400 poltronas do Ursulines… Le Corbusier foi,
e pessoas que leem Les Cahiers d’Art ou que os escrevem. O
entusiasmo enorme que suscitou Um Cão Andaluz me deixou
estupefato. Ao final se levantaram e aplaudiram muito; as pedras me pesavam nas
calças. Estava perplexo, mas no fundo contente…
– Era um
público de seguidores do surrealismo?
– Creio que
sim.
– E a partir
desse momento o senhor se consagrou como diretor de cinema?
– Eu só me
tornei profissional quando vim para o México. Não queria fazer cinema
comercial, me repugnava tudo aquilo…
– Mas como o
senhor ficou tão famoso? Eu nunca vi discutirem tanto um filme quanto Um
Cão Andaluz...
– Nenhum
desses filmes jamais foi exibido em cinemas comerciais. São filmes de
cineclube, de cinematecas… Nós, surrealistas, tínhamos uma regra moral muito
rígida (cada vez que Buñuel fala do surrealismo, seu semblante fica mais grave
e o faz com uma seriedade que não admite comentários ou opiniões superficiais.).
Nada de frivolidade nem de ironia! O surrealismo era uma necessidade da época;
contra a pequenez intelectual dos grandes burgueses, da ordem estabelecida, da
moral enrijecida, da retórica de todos os sentidos, dos velhos valores
acadêmicos. Os surrealistas opuseram o desaforo à convenção, o escândalo à
moral burguesa, a burla sangrenta à mentalidade estreita e mesquinha. Nós, os
surrealistas, dizíamos que o talento não perdoa nada, e que a fome tampouco
perdoa nada.
–
Exatamente. Essa foi a época em que conheci Alejo Carpentier (desde então somos
amigos) e ele assinou um manifesto contra Breton, junto com Georges Bataille,
Queneau, Jacques Prévert e Rivemont de Seigne. Robert Desnos, que também era
anti-surrealista depois de haver sido seguidor de Breton, foi outro dos que
assinaram.
– Por que se
separou do grupo?
– Porque
Desnos pôs o nome num cabaré de Lautréamont, que era um personagem sagrado para
os surrealistas, o que provocou a ira de Breton… Nesse tempo a Metro Goldwin
Meyer me contratou e eu lhes disse: “Vou a Hollywood como representante
surrealista para ver o que acontece”. Aragon foi à Rússia e voltou
entusiasmado; como intelectual revolucionário emitiu conceitos que desagradaram
o grupo (não se pode esquecer que Aragon, Breton e Pierre Naville eram
fundadores do grupo surrealista) e o obrigaram a retificar. Ele não quis
fazê-lo e desde esse momento virou comunista.
– Mas o que
tem a ver o surrealismo com ser comunista?
– Um
momento! A revolução surrealista lutava por uma revolução mundial, a revolution
totale, enquanto Hegel e Marx queriam a transformação da sociedade. Nós
púnhamos o surrealismo a serviço da revolução proletária mundial (Le surrealisme
au service de la révolution é o título de um dos muitos manifestos).
“Transformar o mundo”, dizia Marx; “mudar a vida”, escreveu Rimbaud, e Breton
declarou que para ele os dois princípios não eram mais do que um só.
– Mas os
surrealistas se inclinavam mais à poesia que às teorias socializantes…
– Não é
isso! Os movimentos revolucionários no mundo enfrentaram unicamente as
realidades materiais, econômicas e políticas; a repartição das riquezas entre
grupos opostos. Nós, os surrealistas, quisemos uma revolução do pensamento que
condiciona a vida humana. Atacar o espírito e não a matéria! Mudar as bases
sociais!
– Mas se
negam todos os valores, o que sobra para o mundo, pobrezinho?
– No
surrealismo só cabem duas palavras: liberdade e amor. Estes dois valores
humanos sempre virão à tona.
– Os
surrealistas não foram comunistas porque lhes entediava?
– Os
surrealistas compreenderam que não encaixavam com o comunismo. Nós nos
dirigíamos ao espírito, e uma de nossas armas principais era a poesia. Hegel
via na poesia “a verdadeira arte do espírito, a única arte universal…”
– A arte que
vai além?
– Sim. Os
surrealistas não podiam se dar bem com o comunismo e este separou a todos os
surrealistas do movimento proletário, exceto quatro ou cinco, entre eles
Aragon, Sadoul e Eluard…
– Apesar de
comunista, Aragon é um dos grandes poetas da França…
– Aragon é
um dos que mais devem ao surrealismo!
– Mas e o
senhor, o que aconteceu depois do cão?
– Que cão? –
põe a mão no cocuruto.
– O andaluz…
– Depois
de Um Cão Andaluz, que foi um sucesso de esnobismo, continuei sendo
amigo dos Noailles, que um dia me pediram que fizesse um filme com música de
Stravinsky. Desta vez seriam dois rolos. Almocei com os Noailles…
– Em Paris,
os melhores negócios se resolvem ao redor de uma boa comida…
– Com
Georges Henri Riviera, diretor do Museu Trocadero, e Stravinsky, e depois disse
aos viscondes que não podia fazer filmes com gênios ou com místicos…
(Não deixa
de ser um paradoxo; Buñuel tem todo o aspecto de um místico e de um gênio).
– Assim era
Stravinsky, místico?
– Sim,
colocava a mão no peito… Então me disseram que eu tinha liberdade para o que
desejasse e me deram meio milhão de pesos em um cheque. Já vê você, éramos os
meninos prodígios da época! E, no entanto, lhes devolvi o dinheiro que me
restou depois de terminado o filme! Foi então que fiz La Edad de
Oro (A Idade do Ouro), que se exibiu no cine Panthéon. Na porta, os de
Noailles recebiam a tout Paris e se saudavam com beija-mãos e
abraços. Ao final todos saíram sem sequer estender-lhes a mão. Obrigaram
Charles de Noailles a renunciar ao Jockey Club, a princesa Despoix teve que
intervir junto ao papa para que não os excomungassem, houve um protesto na
Câmara. Os Camelots do Rei, uma ação francesa, destruíram o cinema; o comandante
da polícia M. Chiappe proibiu La Edad de Oro. Em suma, com todos os
ataques surrealistas contra a pátria, a religião e a família, meu filme
provocou a maior indignação…
– Mas de que
trata o filme?
– Um amor
louco e contra todas as instituições sociais.
– E como é
possível, senhor Buñuel, que um pintor como Dalí fosse proibido de expor suas
obras em público?
– Se fosse
só isso! Toda a exposição surrealista que ornava as paredes do Studio 28 foi
saqueada, e as telas de Max Ernst e Salvador, particularmente laceradas e
postas raivosamente em pedaços.
– O sr. crê
que os Camelots consideraram o filme e os quadros uma farsa?
– Não! Se
indignaram justamente porque sentiram que outra coisa atravessava o filme que
não um sopro de farsa. Julgaram, tanto a obra como as pinturas, revolucionárias
e perniciosas demais.
– Por isso a
censura e a polícia!
–
Naturalmente!
– No
entanto, sr. Bunuel, vocês contavam com os elogios e o apoio de pessoas
inteligentes. E apesar destes ataques, o sr. e Dalí continuaram serenos?
– Sim.
Aceitamos com tranquilidade. Tratamos de levar o filme adiante, através do
plano moral, até um ponto de vista revolucionário integral.
– O que é
isso?
– Nos
propúnhamos uma revolução moral; sacudir a moral aburguesada… A partir desses
ataques dos espectadores que queriam proteger a si mesmos, e seguir com a força
das tradições de honradez e decência que estão na base da cultura francesa.
– E depois
desse filme, sr. Buñuel, o senhor se tornou profissional?
– Não queria
fazer cinema profissional. Eu o usava como meio de expressão, mas me repugnava
a indústria. Eu vivia bem (minha mãe me dava dinheiro). Quanto aos filmes, pude
realizar Terra Sem Pão graças a um amigo anarquista, um
operário, que ganhou na loteria, e com suas 20 mil pesetas, com isso, fizemos um
filme. Se chamava Ramón Acín e foi fuzilado com sua mulher no primeiro dia da
revolta franquista, em Huesca. Ele era aragonês (Buñuel se cala).
– E Terra
Sem Pão?
– É um filme
de Las Hurdes, na Espanha, vista através do surrealismo. Las Hurdes me parecia
então a região mais estranha do mundo. Fui com três amigos, Elie Lotare,
fotógrafo (Marc Allègret emprestou a câmera), Pierre Vogel e Pierre Unik. Vogel
ia fazer uma reportagem para uma revista muito importante, a mais lida daquela
época, algo como Paris Match… Ao fazer Terra Sem Pão decidi
me dedicar totalmente ao cinema, e assim disse à minha mãe. Naquele tempo, o
cinema era coisa de palhaços, de circo, um ultraje à dignidade do homem, e ser
diretor era como ser ator: saltimbanco. “Um ator, a desonra da família: o
bufão!”.
– Como na
Idade Média, quando não tinham direito nem aos cemitérios?
– Sim. Para
minha mãe era um pouco isso, não é? Mas eu lhe disse: “Hombre, não
acredite, há gente importante que faz cinema no mundo”, e a convenci, e como me
amava muito (sorri), me deixou ir. Me dediquei a ser diretor de cinema em uma
época em que sê-lo era igual a perambular com uma trupe numa caravana de circo…
Nesse tempo, na Espanha, não havia possibilidade de fazer as coisas que me
interessavam. Atuei como supervisor e dirigi sem dar meu nome. Em Madri
estourou a guerra, estive a serviço da república espanhola e logo fiquei em
Paris como agregado a serviço da embaixada.
– Foi quando
conheceu Octavio Paz em Paris e ficaram amigos?
– Que nada!
Conheci Paz muito depois. Por sinal, o único mexicano que estava em Cannes
quando levei Los Olvidados (Os Esquecidos) ao festival. Era
secretário da embaixada e Torres Bodet (escritor e político mexicano) estava
na ONU. Octavio Paz escreveu um artigo sobre Los Olvidados, e como
o México não fez publicidade alguma (Torres Bodet não gostou do filme) e não
havia uma só autoridade do governo mexicano em Cannes, o próprio Paz pagou de
seu bolso as viagens a Cannes e chegou até a porta do cinema para distribuir
seu artigo como programa.
– Sim, ele
fez cópias… Começava a ser muito conhecido na intelectualidade francesa.
– Ele é
impulsivo como os jovens que estão na moda na Inglaterra!
– Durante a
guerra estive a serviço e à disposição do embaixador da Espanha. Fui aos EUA em
uma missão oficial com passaporte diplomático e ali me pegou o final da
contenda e fiquei. Permaneci sete anos nos EUA, sete anos trabalhando no Museu
de Arte Moderna como diretor e produtor de curtas culturais para toda a
América. Meu chefe supremo era Nelson Rockfeller, mas o vi uma única vez em
minha vida; abaixo dele estava Jack Withny e a esse eu via uma vez a cada cinco
meses. Creio que no total falei com eles três vezes…
– É pior que
conseguir uma audiência com a rainha!
– Depois fui
produtor associado de Kenneth McGowan durante quatro ou cinco anos. Eu estava
em Hollywood como produtor da Warner quando, na casa de René Clair, vi Denise
Taul, a primeira produtora de Bresson: Les anges du péché (Anjos
do Pecado, 1943). Me propôs levar ao cinema A Casa de Bernarda Alba e
viemos ao México, Denise e eu, assinar o contrato no hotel Montejo… Denise foi
embora. Eu fiquei para trabalhar no México e já como profissional.
– O senhor
não poderia trabalhar em outro país?
– Na França,
naturalmente. Sou mais francês que espanhol. Na Espanha, de jeito nenhum…
– Mas
preferiu o México…
– Sim.
– O que é a
moral para o senhor?
– A moral
burguesa é o imoral para mim, contra o que se deve lutar. A moral fundada em
nossas injustíssimas instituições sociais, como a religião, a pátria, a
família, a cultura; enfim, os chamados pilares da sociedade.
(Quando
Buñuel se interessa por um assunto, o martela tanto quanto Fidel Castro).
– Mas o senhor
pertence a essa sociedade, não? Está educado nessa justiça. O senhor é
católico.
– Por isso
posso falar do que foi meu. Por sorte, e desde muito jovem, vislumbrei algo que
espiritual e poeticamente superou essa moral cristã. Não tenho a pretensão de mudar
o mundo; sei que prego no deserto, mas me ajuda a iluminar um pouco mais meus
filmes. Sei que prego no deserto (sorri e balança a cabeça), mas não posso
trair a mim mesmo. Minha moral é…
– A moral
de Nazarín?
– Nazarín cabe
perfeitamente na minha linha moral.
– O Nazarín que
fracassa? O Nazarín que não pode com a igreja? O Nazarín
sem hábito que vai pelos campos, seguido por duas mulheres histéricas?
– Sim,
Elena, esse Nazarín.
– Mas por
que? Cristo…
– Cristo foi
crucificado depois de condenado. Você não considera isso um fracasso?
– Seu reino
não era deste mundo, Sr. Buñuel. Só uns poucos, os apóstolos, o entenderam…
– Você mesma
está dizendo. Crê que é possível ser cristão no sentido absoluto da palavra?
– Sim,
despojando-se de tudo, afastando-se do mundo…
– Não, não,
eu falo do mundo, dessa terra em que estamos agora. Se Cristo regressasse o
crucificariam novamente… Pode-se ser relativamente cristão, mas ser
absolutamente puro, inocente, está condenado ao fracasso. Está derrotado de
antemão. Estou seguro de que se Cristo voltasse os sacerdotes o condenariam, a
igreja…
– Não creio,
senhor Buñuel; Nazarín, como filme, me parece ambígua, estranha,
até inalcançável. Por que, se o senhor queria tratar um problema de
consciência, não escolheu o tema, por exemplo, de Bernanos (Georges
Bernanos, escritor e jornalista francês)? Um sacerdote que desperta um dia
pela manhã e bruscamente se dá conta de que não crê em mais nada, que já não
tem fé. É muito mais aterrador, mais direto…
– Há
instantes você disse a palavra “ambígua”, Elena. Estou de acordo; o estilo é
ambíguo e por isso me interessa. Se uma obra é óbvia, está terminada para mim.
Quanto ao problema religioso, estou convencido que o “cristão”, em seu sentido
puro, ABSOLUTO, não tem o que fazer sobre a Terra…
– E por que?
– Porque não
tem outro caminho a não ser o da REBELIÃO nesse mundo tão mal feito…
– Ao senhor
lhe interessam os que se insurgem? Os que duvidam? Os que buscam?
– A mim me
interessa o mistério, Elena. O mistério é o elemento essencial de toda obra de
arte. Não me cansarei de repetir…
– Para o
senhor, o que é necessário para se fazer um bom filme?
– Um bom
filme deve ter a ambivalência de duas coisas opostas e afins. Por isso me
interessaria muito filmar o Pedro Páramo, de Juan Rulfo, porque o
que me atrai na obra de Rulfo é a passagem dos mistérios à realidade quase sem
transição; gosto muito dessa mistura de realidade e de fantasia, mas não sei
como levá-la ao cinema…
– Esse
Cristo (em seu filme Nazarín) que sai do enquadramento para gargalhar
da moribunda me parece bastante atroz, sr. Bunuel.
– Você nunca
sonhou coisas assim?
– Que Cristo
ri da minha cara? Não, nunca! Mas falando da realidade, o senhor nunca cairia
no neo-realismo?
– Creio que
os únicos bons filmes que produziu o neo-realismo são Umberto D.
e Ladrões de Bicicleta (ambos de Vittorio de Sica).
– Sr.
Buñuel, o senhor não ama a burguesia porque mantém uma ordem criada?
– Eu
pertenço a uma sociedade burguesa contra a qual me rebelo. Na Espanha, quando
era muito jovem, me rebelei e fui a Paris, onde descobri o mundo surrealista
maravilhoso que me iluminou. Vi que havia outras pessoas que pensavam igual a
mim; a moral sem travas ao final de uma sociedade dominante, ou seja, o amor
como instituição social. Eu não tenho a ingenuidade de defender o amor livre!
São coisas muito sabidas, mas prefiro o amor de duas pessoas pobres de Toluca
ao matrimônio como instituição social no qual se unem “as partes” diante do
arcebispo de Guadalajara. Prefiro os de Toluca!
Jeanne
exclama: “Mas Luis, se você é o maior burguês que há sobre a terra…! Preste
atenção! Ele sabe tudo o que acontece na casa. Outro dia, na cozinha,
perguntava: ‘onde está a faca de cabo vermelho que eu pus na gaveta?’ Sabe na
ponta da língua o que temos em casa. Seu closet está fechado a chave e é tudo
guardado nele com uma ordem meticulosa, maniática. Outro dia o abri para buscar
algo e movi imperceptivelmente uma caixa. Ao chegar no seu quarto, depois de um
momento, perguntou: ‘Quem entrou no meu closet?'”
A casa e sua
rotina se parecem às que saem na televisão, onde a mãe com avental vigia a
panela de pressão na cozinha, o pai se refresca enquanto lê o jornal, o
filhinho brinca com seu trenzinho e a adolescente fala interminavelmente ao
telefone. A televisão exala um sufocante cheiro de estabilidade.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: Winsor
McCay (Estados Unidos, 1869-1934)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 142 | Setembro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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