quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | O micróbio da música


No “The American Scene”, falando das cidades americanas, William James disse: “Et voilá, tout est lá; faites-en ce que vous pouvez. Pauvre chère beauté mécréante et effrontée; il est evidente qu’il y a quelque chose, lá-dedans…” Podemos dizer a mesma coisa do jazz americano. (Preferi não traduzir a expressão de William James, expressão por sua vez já traduzida, não achando uma frase adequada que exprimisse bem o pensamento do escritor).
Na sua exterioridade o jazz apresenta desordem e antagonismos. Não se chegou ainda a uma definição satisfatória dessa música, imprópria a toda a definição num dicionário, da qual os próprios executantes falam pouco claramente quando vão à procura de uma, antes de se refugiar na ambiguidade pitoresca da sua própria gíria. Eis algumas definições, recolhidas em 1935, época na qual a palavra “swing” era sinônimo de jazz:

O pistonista branco Wingy Manone: Sentir uma sensação de aceleração do tempo, conservando o mesmo tempo;
O grande baterista branco Gene Krups: Liberdade completa inspirada na interpretação rítmica;
O saudoso baterista Chick Webb: É como amar uma garota: brigar um pouco e achá-la logo depois;
O inimitável “Satchmo” Louis Armstrong: A maneira na qual eu julgo deve ser tocada um música; ou então: Falar com o coração, e com o coração não se mente;
A cantora Ella Fitzgerald: Mas, bom,… o swing é… enfim é: a gente o sente em qualquer modo… eu… eu não sei… toca-se swing!
Jelly Roll Morton, um dos primeiros grandes pianistas de jazz: A música de jazz é um estilo, não uma obra dada; qualquer tipo de música pode tornar-se jazz, se tocado, evidentemente.

Todos esses músicos procuravam um novo dicionário, mas não acharam palavras para explicar o tipo de improvisação para tocar jazz. O vocabulário simples, condensado, até muito elítico dos músicos de jazz nos dá muitas explicações sobre essa música; p.ex. nos ensina que o jazz não se interessa a esse substantivo senão no que significa no ponto de vista rítmico. De fato, ele pouco se importa se dizemos que jazz é uma deformação do nome de um músico chamado Charles (Chas, Jass, Jazz), ou então se o substantivo é uma deformação do verbo francês jaser. Entretanto, se nós lhe perguntarmos o que o “beat”, palavra que nenhum dicionário sabe definir, ele dará uma explicação apropriada, nem sempre com nossas palavras, mas sim, com sua linguagem: A música.
Antes de começar a escrever sobre uma estética do jazz, acredito que seja melhor dar algumas noções sobre essa música: Antes de tudo precisa-se dizer que o canto religioso negro é, com toda a certeza, tão antigo quanto a peregrinação de escravos de cor aos E.U.A. Alguns desses cantos, principalmente aqueles em que o padre prega ritmicamente, acompanhado pelos “Amen” dos fiéis, têm ainda alguma semelhança com os cantos de certas regiões do Oeste da África, onde foram recolhidos os escravos. A origem do blues se perde nos tempos. Não podemos supor uma origem africana direta, mas tudo parece indicar que o blues nasceu dos sofrimentos causados pela escravidão e com eles viveu. O que parece confirmar essa idéia é que os mais antigos blues conhecidos, e também os mais característicos, vêm de Estados com o Mississipi, Arkansas e Texas, Estados em que o problema racial foi particularmente violento.
É também impossível dar uma data precisa do nascimento do jazz, o que é certo, porém, é que as primeiras orquestras de jazz fizeram sua aparição durante os últimos anos do século 19º.
Não podemos também designar um lugar exato de nascimento para uma música criada coletivamente por um povo. Entretanto, é coisa legítima designar New Orleans e seus arredores como berço do jazz, pois é incontestavelmente o lugar onde a nova música floresceu e se desenvolveu, e é desse lado da Luisiana que vêm os primeiros músicos de jazz de grande qualidade, aqueles que ampliaram essa música, que lhe deram a sua forma orquestral inicial.
As primeiras orquestrar de jazz foram orquestras de rua e tocavam, como muito bem explica o guitarrista Danny Barker em “Hear Me Talking to Ya”, em bailes, soirées, banquetes, casamentos, batizados, primeiras Comunhões católicas, pique-niques à beira de lago, desfiles publicitários e enterros. (A esse respeito ver o filme “Taverna Maldita”, ou ouvir a célebre gravação de Louis Armstrong “New Orleans function” LP 10” Decca LTM 8363).
Alguns desses músicos tocavam nos grandes salões de dança de New Orleans, em orquestras que compreendiam:
1 (algumas vezes 2) pistão, trombone, clarinete, banjo, tuba, bateria e raramente um violino.
O piano só foi utilizado nas orquestras quando estas viraram orquestras de dança no início do séc. 20 (segundo George Ramsay), ou na segunda década do séc. 20 (segundo Hugues Panassié).
Mas existiam desde o fim do séc. 19 pianistas que tocavam como solistas: eram então chamados pianistas de ragtime.
De New Orleans, onde a nova música formou suas raízes, o jazz foi conquistando as cidadezinhas ao longe do Mississipi até St. Louis; os músicos eram contratados para distrair e divertir os clientes a bordo de navios de excursões sobre o rio. A partir de 1914, mas sobretudo em 1917 (quando foi fechado o célebre bairro “das luzes vermelhas” Storyville) os músicos se deslocaram para Chicago, que se tornou logo a nova capital do jazz, assim permanecendo até 1928.
No fim da primeira guerra mundial as orquestras (a primeira entre elas a Original Dixieland Jazz Band) foram para a Europa e começaram a fazer ouvir o novo tipo de música. Mas tanto na Europa como na América, o jazz “comercializado” teve mais aceitação do que o autêntico.
Os brancos começaram a tocar músicas até então tocadas somente por negros, com as mesmas orquestrações desses últimos. Eles pareciam apresentar as mesmas aparências da orquestra de jazz, mas na realidade faltava-lhes a coisa mais importante: o swing.
O swing (lit. balançar) é, segundo Panassié: “O balanço rítmico próprio da música jazz, o elemento vital dessa música. E a pulsação que anima toda boa interpretação, pulsação regular, mas viva e não mecânica. O swing está no executante e não se pode notá-lo.”
De outro lado, a maioria desses músicos brancos nem procuraram assimilar a linguagem musical dos Negros, tendo reparado que o grande público branco, pouco sensível ao verdadeiro jazz, preferia interpretações doces e sem variações às interpretações viris, finas, das orquestras de cor.
Depois da segunda grande guerra, em torno de 1945, temos o advento de be-bop ou re-bop, ou simplesmente bop, cuja expressão designa uma música que certos críticos (segundo Panassié) acharam que fosse jazz. A confusão, sempre seguindo as idéias do crítico acima citado, provem do fato de que o be-bop foi criado por músicos que já haviam tocado jazz puro, em orquestras de jazz, que se serviam dos mesmos instrumentos e tomavam as mesmas melodias como trampolim para suas improvisações.
Depois do bop, tivemos o “cool-jazz” e em nossos dias temos o “progressive-jazz”, cujo criador e principal figura é Stan Kenton, estilos que, ao ver de Panassié, em substância não têm nada em comum com o jazz.
Acredito que a posição tomada pelo crítico francês seja demasiado tradicionalista, e creio que esses últimos estilos possam ser encarados no âmbito do jazz, considerando-os como um desenvolvimento natural dessa música. Ainda hoje o jazz comercializado ocupa um lugar maior em todos os países.
Mas há um público cada dia mais numeroso pelo jazz autêntico, e os músicos brancos não são mais tão raros e alguém conseguiu assimilar a linguagem musical dos Negros.


O BLUES

A influência que o cancioneiro afronorteamericano exerceu na estética, na estrutura e também no espírito das legítimas expressões do jazz, é, sem dúvida nenhuma, realmente única.
Os “spirituals”, os “shouts”, os “work song”, os “labor song”, os “hollers”, os cancioneiros de dança (“dance songs” e “reels”), os primitivos sermões pronunciados pelos velhos pregadores do Sul dos U.S.A.; todas essas manifestações da rica arte folclórica dos negros dos U.S.A., ocorreram na gênesis da música jazz. Mas não há a menor dúvida de que o blues, vocábulo que carece de uma definição, foi o que mais influiu na nova música.
O blues é um trecho curto de 12 medidas, dividindo-se em 3 partes, cada uma de 4 medidas: 4 medidas na tônica (com abaixamento de meio tom no sétimo grau durante a última meia medida); duas medidas na subdominante; duas medidas na tônica; duas medidas na sétima e duas medidas na tónica. Essa é a sequência harmônica normal do verdadeiro blues.
Somente a melodia escrita nesses acordes difere um blues do outro, e as mesmas frases se encontram na maior parte dos blues cantados. O que distingue um blues do outro são, de um lado, as palavras, do outro, ligeiras variações musicais que todo cantor eleva às fases clássicas do blues. A maioria dos blues antigos não comporta um refrão, mas consiste em uma série de estrofes. Algumas formam duplo refrão no mesmo grupo de doze medidas, as palavras das quatro primeiras medidas mudam cada vez, restando as das outras medidas iguais. Ex. “Somebody’s gotta go”, Big Bill Blues.
A principal característica musical dos blues é a alteração de duas notas: o terceiro e sétimo grau da gama que são abaixados de um meio tom. As notas assim alteradas são chamadas em inglês as “blue notes”. Essas alterações tornaram-se uma das maiores características do estilo melódico empregado no jazz.
Na maior parte dos blues, cada frase cantada ocupa duas medidas e meia, depois vem uma pausa de uma medida e mais durante a qual o ou os acompanhadores do cantor executam breaks instrumentais.
A maioria dos antigos cantores de blues acompanhavam-se com uma guitarra, sem nenhum outro acompanhador. Em seguida eles utilizaram ou um pianista, ou outro guitarrista, ou uma inteira secção rítmica.
Os blues utilizados no jazz não são sempre tão simples como os dos primeiros cantores de blues. São, muitas vezes, verdadeiras composições, tendo muitos temas. O celebérrimo St. Louis Blues contém três temas, dois pertencem à forma clássica do blues de doze medidas, enquanto que o terceiro possui dezesseis medidas.
Beale Street Blues compreende três temas: dois de doze medidas muito diferentes, uma em fá, a outra em si bemol. No jazz da época de New Orleans, os músicos partiam de um tema de blues dado como, p. ex., os dois acima citados. Em seguida eles se satisfaziam em improvisar sobre a sequência harmônica do blues de doze medidas, sem melodia nenhuma. Cada grupo de doze medidas foi então chamado “chorus”.
Existem blues de oito medidas, muito menos utilizados dos de doze, ex. “How Long How Long Blues”.
Por causa da extensão dá-se algumas vezes o nome de blues a algum trecho de estrutura diferente (de dezesseis medidas, com ou sem cauda de duas medidas), onde o estilo lembra mais ou menos o do blues de doze medidas quando interpretado no mesmo estilo desses últimos. Ex.: Baby won’t you please come home” e “Baby Doll”, cantados por Bessie Smith, o primeiro gravado em 1923 e o segundo em 1926.
A palavra blues aparece frequentemente em títulos que não têm senão uma longínqua relação com o verdadeiro blues. Ex.: “Wang Wang Blues”; “Wabash Blues”; de outro lado, a palavra blues está muitas vezes ausente em títulos que recobrem o clássico blues de doze medidas. Ex.: “Sugar Foot Stomp” (antigamente intitulado “Dipper Mouth Blues”); “Hey Ba Ba Re Bop”; “Time’s wastin’” (antigamente intitulado “Things ain’t what they used to be”). A palavra blues possui um sentido parecido com a palavra francesa “cafard”. Mas blues possui mais força do que o substantivo francês e sua utilização é muito mais variada. Ela está continuamente combinada com outras palavras para formar expressões intraduzíveis em português, como p. ex.: “That’s the only way I can get these thinkin’ blues off my mind” (lit.: é o único meio de dissipar da minha mente esse blues da reflexão, ou seja, “de livrar meu espírito da hipocrisia que me toma quando sou tomado de idéias amargas”).
Os mesmos títulos utilizam a palavra blues em uma maneira que dá a idéia precisa do trecho. Ex.: “He’s gone blues” (lit. ele partiu blues); será então um blues dado à cantora pela partida do homem amado. As palavras dos blues são frequentemente repletas de poesia: de uma poesia popular, colorida, muitas vezes humorística, uma poesia criada por pessoas sem nenhuma cultura literária, mas dotada de uma grande habilidade na imaginação verbal.
Os temas mais frequentes são aqueles da mulher morta ou abandonada pelo seu homem (e vice-versa), ou aqueles da miséria, que constituem muitas vezes uma sátira mordaz contra o estado social. Graças a duplos sentidos ou a expressões regionais, que não podem agradar aos brancos americanos, os blues vão mesmo protestar mais ou menos abertamente contra o prejuízo racial do qual são vítimas os Negros nos U.S.A.
Eis aqui as palavras de dois blues característicos (de Dictionnaire du Jazz):

Sittin’ in the house with everythin’ on my mind,
(Estou sentada em minha casa com tudo o que me passa pela cabeça,)
Sittin’ in the house with everythin’ on my mind,
(Estou sentada em minha casa com tudo o que me passa pela cabeça,)
Lookin’ at the clock can’t even tell time,
(Olha para o relógio e nem posso dizer as horas,)
Walkin’ to my window, lookin’ out of my door,
(Vou até a janela e olho fora da minha porta,)
Walkin’ to my window, lookin’ out of my door,
(Vou até a janela e olho fora da minha porta,)
Wishin’ that my man would come home once more,
(na esperança de ver meu homem regressar mais uma vez)
Trecho extraído de “In the house blues” de Bessie Smtih.

Went down on the levee, workin’ the levee freight yard,
(Trabalhei nas digas, encavilhei nos entrepostos,
Went down on the levee, workin’ the levee freight yard,
(Trabalhei nas digas, encavilhei nos entrepostos,)
They paid a dolar an hour but the work was so dawg gone hard,
(Eles me davam um dólar por hora mas que verdadeira vida de cães)
My flour barrel is empty and meat I didn’t even have a bone,
(Meu saco de farinha é vazio, não tem mais carne, nem um osso,)
My flour barrel is empty and meat I didn’t even have a bone,
(Meu saco de farinha é vazio, não tem mais carne, nem um osso,)
And my best gal had quit me and my last dollar is gone,
(A mulher que eu amava me deixou, e meu último dólar também).
Trecho extraído de “Levee blues” cantando por Pleasant Joe.


HISTÓRIA

É impossível indicar, mesmo aproximadamente, a data de nascimento do blues. Somente temos certeza de que já era cantado nos U.S.A. durante o século 19º. durante os últimos tempos da escravidão. Esses trechos parecem haver nascido do imenso sofrimento do povo negro diante dos terríveis tratamentos suportados, pois traduzem com uma força singular a crise de dor e de revolta do homem duramente oprimido. Depois da abolição da escravidão os blues continuaram a ser cantados, pois a dura condição dos Negros foi modificada mais na teoria do que na prática.
No fim do século 19 e no início do 20, era coisa comum que cantores de blues fossem de cidade em cidade, parassem nas esquinas e cantassem alguns blues acompanhados por uma guitarra, recebiam algumas vezes esmolas das pessoas que se agrupavam para escutá-los. Esses cantores de blues não tinham feito o mínimo estudo musical e tinham aprendido tudo de ouvido. Esses blues não estavam submetidos ao quadro fixo de doze medidas. O cantor de blues, acompanhado por ele mesmo, não tinha que fazer concordar a sua interpretação com a de outros músicos e usava uma liberdade total. Não obstante gravados entre 1924 e 1928, os blues cantados por Blind Lemond Jefferson, acompanhando-se com a guitarra, dão uma idéia exata do primeiro estado dos blues, pois B.L.J. já cantava em 1890-1895 e nunca mudou seu estilo. Em seguida temos discos gravados por Barbecue Bob, Big Bill Broonzy, Sleep John. Estes, que são os mais parecidos com os blues originais, conservam o sabor original e dão uma idéia exata da maneira com a qual um blues deve ser cantado e acompanhado.
Desde que os Negros começaram a se utilizar de todos os instrumentos de música e a formar orquestras, no fim do século 19º, eles interpretavam, naturalmente, os blues, como também outros trechos, de uma forma diferente (nos quais aplicavam a técnica vocal e harmônica do blues). As palavras não limitando mais as frases, eles se lançaram nas variações dos acordes de base mais extensas dos cantores. Eles conservavam, entretanto, todos os elementos essenciais da técnica vocal. O blues orquestral, para que seja autêntico, deve ficar muito próximo do canto; também os efeitos de virtuosismo nos quais se lançam muito bem alguns músicos de jazz em certas execuções rápidas se chocam no blues.
Os músicos de jazz mais renomados na interpretação do blues são: Louis Armstrong, Joe “King” Oliver, Tommy Ladnier (pistão); Charlie Green, Triky Sam (trombone), Jimmy Noone, Johnny Doods, Milton Mezzrow (clarinete), Sammy Price, Pete Johnson, Count Basie (piano); Lonnie Johnson (guitarra) e Pops Foster (contrabaixo).
Durante sessenta anos, depois do nascimento do jazz, o blues ocupa um grande lugar no repertório das orquestras. Depois de 1937, o êxito de duas orquestras especializadas no blues, as de Count Basie e Luis Jordan, repuseram “na moda” os blues que haviam sido um pouco abandonados durante os anos precedentes. Surgiram então alguns cantores de blues de estilo diferente, tais como Jimmy rushing, Lips Paige, Sonnie Parker. Não é mais o blues com sabor rítmico dos cantores que vinham dos campos do Mississipi ou do Texas, como os já conhecidos Big Bill Broonzy e Bill Lemond Jefferson: é o blues da cidade, influenciado pelo estilo instrumental do jazz, mas sempre blues.
Mas o blues continua a viver uma vida dupla: a primeira que continua a fornecer-lhe os puros cantores de blues, vindos dos campos do Sul, entre os quais Muddy Waters e John Lee Hooker foram os mais recentes exemplois; a segunda que se refere aos executores instrumentais ou vocais do ambiente do jazz propriamente dito. Mesmo entre estes últimos, o blues continua tendo aspecto bem diferente de todas as outras formas de jazz.


BOOGIE WOOGIE

Durante a primeira guerra mundial, e mesmo depois dela, quando os Negros das plantações do Sul começaram a emigrar para as zonas industriais do Norte, enfrentaram uma série de problemas econômicos e sociais.
Foi uma duríssima crise, pois os donos de casas, quando se tratava de alugar uma casa a um homem de cor, exigiam somas exorbitantes. Os afronorteamericanos procuraram resolver o problema de uma maneira muito original: celebravam festas semanais, nas quais podia ir qualquer pessoa, sempre que pagasse 10 cents, quantia que prontamente subiu para 15 até chegar a 50. Também era costume deixar a entrada livre, obtendo lucro sobre as bebidas e comidas. Com o produto desses bailes a família necessitada procurava resolver, mesmo momentaneamente a precária situação econômica, e fazer frente ao elevado custo da vida.
Essas reuniões, hoje desaparecidas, segundo nos diz a conhecida socióloga, Irene Diggs, que alcançaram uma enorme divulgação antes da Proibição, se popularizaram extraordinariamente nos bairros negros de várias cidades, como Chicago, South Side, New York – Harlem, Kansas City, Baltimore, Filadelfia, e se converteram em uma verdadeira instituição, recebendo os nomes de: “house rent parties, parlor socials, socials whist parties”, e os lugares onde se efetuavam estas festas denominavam-se “buffet flats”.
A música estava a cargo de um pianista, e, ocasionalmente, de um guitarrista, pistonista e baterista. Às vezes se encontravam vários pianistas, estabelecendo-se então, competições parecidas com as das bandas de New Orleans, denominadas “cutting session, cutting contest ou carving contest.”
Nestes bailes tomou incremento uma escola pianística “em cujo ritmo palpita o germe africano” (Nestor R. Ortiz Oderigo, Historia del Jazz, Buenos Aires 1952). Nós nos referimos ao boogie woogie, em cujas versões se adverte a influência das maneiras características dos guitarristas que atuam nos “suckey jumps”, festas populares realizadas pelos Negros.
Nos boogie woogie as melodias dos blues dão passo a uma torrente rítmica, cuja maré cresce até chegar, às vezes, a um “climax” de força irresistível e frenética. Sob o ponto de vista rítmico o boogie woogie é, com toda a certeza, mais primitivo do que a própria música africana; mas, de outro lado, mais complexo e mais polifonicamente rítmico que o estilo de um Fats Waller ou Teddy Wilson.
Os movimentos rápidos da mão esquerda, que produzem um efeito hipnótico, são frequentemente postos em oposição aos ritmos sempre variantes da mão direita: o resultado é um movimento muito dinâmico, de um ritmo entrançado.
Construído sob o ponto de vista melódico, sobre frases curtas, com numerosas repetições de notas, é, entretanto, mais cromático que um blues ordinário. O motivo mais frequente parece ser uma passagem de três notas na gama descendente.
Entretanto, algumas vezes a melodia, num chorus inteiro, consiste em uma única nota (frequentemente a sexta em dó maior: lá, ou a nona, ré), repartida com muitas variantes de ritmo e entoação.
O ritmo usual por esta forma de variação consiste, pela mão direita, em um acorde sobre o primeiro tempo e repetido pouco antes do 4º tempo de cada medida. Muitas vezes utiliza-se o trenado, que tem uma função de repercussão e ritmo.
Quase sempre o boogie woogie possui a forma de um blues de doze medidas que se repetem com variações infinitas e sempre no mesmo tom. A harmonia é essencialmente tónica dominante. Não tem nenhuma procura de uma harmonia a quatro parte: o acento principal é frequentemente posto no contraponto, do qual não utilizam-se que duas partes. Nesse caso a melodia pode ficar, durante muito tempo, separada do baixo, fazendo um movimento inverso. De um lado ao outro do trecho, há uma ignorância total de harmonia convencional, quase um desafio às regras clássicas. É uma música baseada não sobre um tratado de harmonia, mas sobre um piano. O boogie woogie fez sentir a sua influência nas orquestras modernas, e os grandes conjuntos têm, frequentemente, a “sua” versão do boogie woogie. Mas é, antes de tudo, um estilo de piano e dá o máximo de efeito quando tocado num solo de piano. Se o boogie woogie foi, no início, uma música de dança, é também, duma maneira secundária, um acompanhamento. Nos nossos dias é reconhecido, universalmente, como um estilo independente.
Os mais renomados especialistas de boogie woogie são: Pine Top Smith, Jimmy Yancey, Sammy Price, Pete Johnson e Albert Ammons; entretanto, existem pianistas que se utilizam do boogie woogie somente ocasionalmente, como Fats Waller, James P. Johnson, Art Tatum, Count Basie, Earl Hine, Oscar Peterson. Além disso, existe uma dança que se chama “boogie woogie”, mas nos Negros não a dançam necessariamente no ritmo de boogie woogie.


A ESCOLA DE NEW ORLEANS

No início, a música que cultivavam os primitivos criadores surgidos em New Orleans, era embrionária. Os executantes, em sua maioria intuitivos, se viam obrigados a investigar por si próprios, os desconhecidos recursos que lhes eram oferecidos pelos novos instrumentos, com os quais entraram em contato recentemente. Tocavam uma música anônima, pois ainda não tinha sido batizada com o nome que iria percorrer o mundo. Quando o povo se referia ao “jazz” dizia: “That reggedy uptown music” (essa música sincopada da parte alta da cidade).
Dos primeiros balbucios emitidos pelos grupos precursores, a técnica da nova música foi conquistando maior franqueza, enquanto que as improvisações ampliaram a esfera de sua expressão. Entretanto, o jazz perfilava suas leis estéticas básicas, que o afastavam da tradição europeia da música e que, consequentemente, devem ser focalizadas num prisma diferente.
Nasceu a denominada escola de New Orleans: chamada também polifônica, pois nela se cultiva a improvisação a várias vozes ou coletiva, que pode ser uma reminiscência do caráter social da arte negra e que, sem dúvida, constitui uma herança do alto desenvolvimento polifônico observado na África Ocidental. Essa modalidade é a primeira, mais original, expressão mais castiça e representativa do jazz.
Não temos a menor dúvida de que, através desta modalidade, o jazz alcançou a sua máxima manifestação formal e expressiva; chegou ao “climax” de sua originalidade e de sua qualidade.
Produto espontâneo do executante Negro, que criou essa expressão artítistica à margem da música escrita e da tradição européia da linguagem sonora, a sua característica fundamental é, precisamente, o germe que deu a vida: a improvisação.
Ao calor da influência coral e polifônica do cancioneiro afronorteamericano, os intérpretes de New Orleans não se consagraram a improvisação individual, mas abraçaram, simultaneamente, as várias vozes instrumentais. A improvisação tripartida – corneta ou pistão, trombone e clarinete – que era mais reduzida na sua instrumentação, mas muito mais rítmica e geradora de swing do que os conjuntos “modernos” – é a pedra inicial da “New Orleans school”.
Neste tipo de improvisação predomina o trabalho em conjunto. Se excluem quasi totalmente os solos instrumentais, com exceção dos tradicionais “breaks” de dois compassos. As três vozes melódicas improvisam simultaneamente, procurando criar um “entramado” polifônico, sem que sobressaia nenhuma delas; mas esse trio se move em perfeito equilíbrio, reinando uma claridade e ordem, obtendo assim o “ensemble” um robusto corpo melódico.
Semelhante maneira interpretativa exige um absoluto domínio técnico dos instrumentistas, e sobretudo, uma perfeita compreensão do que deve ser a parte que cada executante improvisa, em relação aos demais componentes da orquestra, pois, do contrário, se produziria o caos absoluto.
A corneta, ou o pistão, ocupa, na escola que estamos estudando, um lugar de destaque, pois está encarregada de levar o tema melódico, improvisando sobre seu desenho: ocupa o papel dominante a causa de seu som dominante.
Em suas mãos se encontra a condução dos demais instrumentos nas improvisações coletivas, e neste trabalho de chefia emprega frases curtas, executadas, geralmente, no timbre médio, destacando a amplitude de seu “vibrato”, que é peculiar a essa maneira de interpretação.
No caso em que a orquestra conta com duas cornetas (Creole Jazz Band de King Oliver ou a Ragtime Band de Buddy Bolden), a segunda toca, geralmente, a parte aguda ou grave, que corresponde a do clarinete ou do trombone, respectivamente.
Na “New Orleans School” o trombone proporciona uma sólida ponte rítmica, efetuando curtos “glissados” que constituem uma das características expressivas mais genuínas do jazz.
Os clarinetistas que cultivavam o sistema tradicional da cidade de New Orleans possuíam o “vibrato” rápido e muito pronunciado, e uma intonação fluida e cheia. Sua frase é ligeira, cheia de notas ligadas. As frases, de estrutura às vezes sinuosa, quebrada, se constroem com abundantes notas rápidas, executadas com uma vivacidade admirável. Frequente é o uso de “glissandi” que vão do agudo ao grave, para retornar ao agudo.
Nos conjuntos que conservam esta tradicional concepção “jazzística”, a seção rítmica distribui um pulso permanente e fluido. O baterista acentua a síncopa com o “snare drum”, o prato, no contratempo, enquanto que com o pé marca os tempos fortes, ou os quatro tempos de compasso no “bass drum”; o contrabaixo, assinala os tempos fortes, enquanto que o piano – quando existe – marca com a mão esquerda os tempos fortes e os fracos com a direita; e a guitarra ou o banjo apoia os quatro tempos.
Com o decorrer dos anos, as orquestras de New Orleans foram introduzindo, pouco a pouco, alguns solos mais extensos que os simples “breaks” de dois compassos. A origem desses solos é, segundo o crítico Rudi Blesh (Shinning Trumpets, N. York, 1946) devida ao fato de que, depois de longas marchas, os integrantes das bandas de desfile, ou “Street parade”, sentiam a necessidade de gozar de um momento de descanso. Então o diretor da orquestra fazia sinal a um dos instrumentistas para que executasse um solo, enquanto que seus companheiros fumavam ou descansavam.
Por causa dos absurdos prejuízos que ainda hoje imperam nos USA, os músicos não tiveram as mesmas oportunidades de trabalho que seus irmãos brancos, efetuando-se uma discriminação étnica que falta de fundamento, e o jazz foi divulgado através do disco fonográfico (Original Dixieland Jazz Band, Earl Fuller’s Famous Jazz Band, Louisiana Five, etc., etc.) por muitos brancos, e não por aqueles que imprimem sua autêntica vibração “hot”.
Esse mal-intencionado misonegrismo, que não é senão uma pequeníssima parte das tremendas injustiças cometidas com quasi quinze milhões de homens, que não fizeram outra coisa senão trabalhar e lutar, nos privou de uma genuína prova documentária necessária para julgar o período ao qual nos estamos referindo.
Porque, não obstante terem alguns veteranos se acostumado nestes últimos tempos às salas de gravações de discos fonográficos, o fizeram em condições desfavoráveis, pois, ou já se tinham retirado da carreira musical, dedicando-se a outras atividades, ou por motivos de saúde, ou por sua idade avançada não puderam tocar da mesma maneira em que o haviam feito na juventude.


A ORQUESTRA DE JAZZ

Duas seções constituem o corpo instrumental da orquestra de jazz: a seção rítmica, que é a espinha dorsal do conjunto, cuja função é de assinalar os quatro tempos do compasso, desenvolvendo um trabalho de fundo, não obstante que na atualidade, seus integrantes se transformam em solistas; e a seção melódica, em cujas mãos se encontra a exposição do trecho interpretado e a realização das diversas combinações melódicas e polifônicas.
Numa maneira geral podemos apontar dois tipos diferentes de orquestra de jazz: o pequeno agrupamento, indicada pelo cultivo das escolas clássicas do gênero, e integrada por instrumentos cujo número varia entre cinco e oito, e o grande que pode contar de nove a vinte membros. Também é possível executar excelente jazz através de um só instrumento – o piano –; de um instrumento com acompanhamento de outro ou outros – clarinete, saxofone, pistão, trombone secundado por piano; por piano e percussão; por piano, percussão e guitarra ou banjo; ou por piano, percussão, guitarra e contrabaixo.
As velhas orquestras de New Orleans não eram numerosas como as que hoje ouvimos, salvo raras exceções. Geralmente contavam com um número reduzido de instrumentos, que raramente passava de sete. Na seção melódica figuravam uma clarineta, uma corneta, um trombone, e, em certos casos, de um violino (utilizado sobretudo porque um violinista sabia geralmente ler as notas musicais). Mas este último instrumento foi eliminado do âmbito da música “hot”, pois a sua débil sonoridade se perdia nas atuações ao ar livre. Era frequente que se duplicasse algum dos instrumentos melódicos. O legendário Buddy Bolden, por exemplo, empregou simultaneamente dois clarinetes ou duas cornetas, e Joe “King” Oliver, na sua famosa “Creole Jazz Band”, tinha Louis Armstrong como segunda corneta.
Compunha a seção rítmica de três membros: guitarra, contrabaixo – que ao redor de 1925 foi frequentemente substituído pela tuba – e bateria (ou percussão), que não incluía complicados instrumentos que presentemente são utilizados pelos executantes “modernos”.
Como vimos, esses primitivos agrupamentos não empregavam saxofones – contrariamente a crença dos não iniciados de que a criação de Antoine Joseph Sax seja típica do jazz, ou até que foi obra dos negros – instrumento que se incorporou à música sincopada em época posterior anexado aos demais instrumentos da seção melódica; algumas vezes o saxofone substituiu alguns instrumentos como o trombone (como ocorreu nas clássicas expressões do estilo de Chicago), ou o clarinete (ouvir a esse respeito os discos do conjunto de Jimmie Noone).
Os saxofones se constroem em seis registros diferentes: sopranino, soprano, alto, tenor, barítono e baixo, geralmente nas tonalidades de si bemol e mi bemol.
No jazz, os registros preferidos, em virtude da flexibilidade de suas vozes, são o alto e o tenor, não obstante se utilize também o soprano, no qual Sidney Bechet é um maestro inigualável; o barítono, utilizado maravilhosamente por Harry Carney, da orquestra de Duke Ellington, e o baixo cujo “astro” tem sido, durante muito tempo, Adrian Rollini, são pouco utilizados; desconhecido o uso do sopranino.
Pouco a pouco, dos seis ou sete instrumentos que compunham a primitiva orquestra de jazz – corneta ou pistão, trombone, clarinete, piano, guitarra ou banjo, contrabaixo ou tuba e bateria – formação esta que acabou sendo aceita como clássica, o número dos membros foi crescendo até chegar a atualidade, em que há agrupamentos que contam com cinco saxofones, cinco pistões, cinco trombones e quatro elementos da sessão rítmica. O corpo destes numerosos organismos – que não praticam a improvisação senão em breves e determinadas passagens da interpretação, e além disso, se vêm obrigados a substituir esse importante recurso do jazz por arranjos, com o objetivo de “manter a ordem”, sendo suas execuções cuidadosamente ensaiadas e convenientemente preconcebidas – não compreende duas sessões, como nos pequenos conjuntos, mas sim três, pois o setor melódico se subdivide em sessão de metais (ou bronze) “brass section”, integrada por trombones e pistões, e sessão de madeiras “reed, ou woodwind section”, constituída por saxofones e clarinetes. A sessão rítmica, ou “rhythm section” é integrada por quatro instrumentos: piano, contrabaixo, guitarra e bateria. Acrescentamos que a guitarra com amplificador, ou guitarra elétrica, substitui frequentemente a comum.


O RITMO

Os negros, tanto na África, como nos diversos países americanos, se destacam por sua inegável capacidade musical. Ora, se este conceito é indiscutível, é também indiscutível que o seu principal dote artístico é constituído pelo seu extraordinário sentido do ritmo. Exploradores, viajantes, etnógrafos, missionários, que visitaram o continente africano, o demonstraram generosamente em uma rica bibliografia.
Não existe a menor dúvida de que na música africana a preeminência do ritmo é evidente, porque o sentido do ritmo no homem de cor é claramente superior ao dos demais povos do mundo. Todas as expressões dos negros africanos, a palavra, o verso, o canto, o coro, o instrumento, a orquestra, a dança, estão unidas por um encadeamento de ritmos.
Três são os elementos que constituem a música “culta”: a melodia, a harmonia e o ritmo, dos quais a melodia sempre foi considerada como fundamental.
A música sincopada reconhece o ritmo como componente de valor capital. Ora, assim como nas canções de trabalho, nos “negro spirituals”, nos “blues”, a regularidade rítmica básica impera no jazz, que deriva desses fontes melódicas e constitui um elemento imprescindível. O ritmo negro se caracteriza pela peculiar diversidade e complexidade de suas acentuações, complexidade e diversidade que não respeitam as normas comuns nos ritmos conhecidos até que se tomou contato com a música africana: de fato, os acentos se antecipam, se atrasam, se interrompem de maneira inesperada.
As duas principais características do jazz são: a síncope e a polirritmia, que, segundo Copland (Jazz Structure and Influence) “é a verdadeira contribuição da estética que nos ocupa ao aspecto rítmico do idioma universal.”
Elemento que tanta influência exerce na produção do ingrediente estético chamado “swing”, a polirritmia é mais fundamental do que a síncope, que podemos definir como “alteração do ritmo regular, produzida pela colocação da ênfase mais vigorosa na parte do compasso que geralmente não se acentua.” Poliritmia é uma execução simultânea de dois ritmos distintos, e o recurso polirrítmico mais comum é o uso de metros opostos; geralmente o metro de 3/4 ou 3/8 se superpõe ao básico 4/4. Entretanto, a polirritmia não é uma invenção do jazz – não é encontrada na música negra do Brasil, de Cuba, de Trinidad? – mas constitui uma herança proveniente da linguagem sonora africana.
A pulsação do jazz se exprime através da sessão rítmica que, como os tambores na música africana, dá o ritmo fundamental de maneira ininterrupta, detendo-se somente nos “breaks” de dois compassos. Da execução do setor rítmico depende a coesão da obra, porque uma boa sessão rítmica inspira o solista e o grupo de intérpretes, assim como uma que atue com fraqueza ou desarticulação, impede a criação mais inspirada.
Para que o ritmo do jazz surja com a fluência própria da música sincopada, a sessão correspondente deve mostrar, antes de tudo, uma coesão imutável. Seus três ou quatro membros devem atuar como um só homem, completando-se em sua tarefa com absoluta compreensão; devem reunir a pulsação mecânica e trocar a rigidez em espontaneidade e plasticidade. Nada se obtém com um setor rítmico no qual um dos elementos seja deficiente, mesmo sendo os outros excelentes. É preferível que todos possuam qualidades médias, mas que toquem com unidade e coerência.
Os conjuntos pequenos, que às vezes contam com um ou dois instrumentos melódicos, procuram sempre manter a sessão rítmica completa, na qual todos os seus integrantes, até a bateria, atuam como solistas.
O baterista é o músico essencial da sessão rítmica. Em suas mãos se encontra, em grande parte, a produção do “swing”, assim como a conservação da coesão e homogeneidade das interpretações. De fato, todos os membros da orquestra devem segui-lo em seu trabalho de assinalar com rigidez o pulso fundamental em 4/4, ao redor do qual se criam os polirrítmos.


O SWING

Em torno do vocábulo swing teceram-se não poucas inexatidões, pois é aplicado indistintamente à genuína arte sincopada de New Orleans e ao pseudo jazz de orquestras numerosas, que constroem suas versões sobre a base de intermináveis “riffs”, assim como a qualquer musiquinha de baile.
Durante muito tempo os críticos, historiadores e musicógrafos de jazz procuraram uma correta definição técnica do que constitui o swing. Apesar da ampla discografia que a música sincopada desenvolveu nestes últimos tempos, esta face da concepção artística permanece ainda bastante obscura. O musicógrafo suíço Edgar Willems disse que o swing é uma espécie de quarta dimensão da música sincopada, sendo o ritmo a primeira, a melodia a segunda e a polifonia a terceira.
Escreveu o crítico Charles Delaunay: “o swing dá à nota uma espécie de mobilidade contida no ritmo, que se traduz graças a uma maior intensidade de vida” (De la vie et du jazz – Lausanne, 1946).
Segundo o crítico holandês Joost Van Praag: “o swing constitui uma tensão psíquica nascida da uma atração do ritmo pela medida.”
André Hodeir define o vocábulo como “alguma cousa que determina uma espécie de tensão, física e psíquica, e se manifesta, no plano material, mediante um contínuo balança rítmico; cada tempo (ou fração de tempo) parece sofrer a atração dos tempos precedentes, e o mesmo exerce uma atração sobre os seguintes.”
“Swing” – segundo Albert Bettonville, é alargadamento dos tempos fortes, com uma ligeira contração dos tempos fracos, tocados muito secamente.” (Paranoia do Jazz, Bruxelles, 1939).
Irving Kolodin, no capítulo “Swing is here”, da autobiografia de Benny Goodman, escreve: “é um produto do mero entusiasmo pela ação de executar, uma expontaneidade que não se podem indicar mediante acentos, valor das notas ou outros símbolos escritos.”
Resulta evidente que o “swing” constitui um elemento estético inseparável do autêntico jazz. É um dos diversos ingredientes – entre os quais figuram também o ataque, o vibrato, a entonação “hot”, o glissado… de cuja coesão germinam as legítimas improvisações dos grandes criadores deste gênero artístico. O ouvinte acostumado e sensível às expressões da música sincopada o percebe, o SENTE. Portanto, podemos concordar com Nestor R. Ortiz Oderigo quando define swing como “ênfase e vigor rítmicos que brotam das genuínas improvisações dos melhores cultores do gênero, quando chegam ao máximo de excitação, de abandono à inspiração. É o sopro vital, a seixa que anima e mantém vivas as raízes das expressões jazzísticas” (Historia del Jazz – Buenos Aires, 1952).
Uma legítima manifestação de jazz pode gerar maior ou menor dose de swing. Mas, se falta completamente este básico elemento estético, seu nível artístico se abaixa, pois o swing é o que dá o tom ao puro jazz.
A sua presença ou ausência em uma criação determina se ela é “hot jazz” puro ou adulterado; as manifestações da arte sincopada privadas de swing constituem uma música automática, sem vida, sem alma. Poderíamos compará-las a uma poesia bem rimada, mas isenta de conteúdo humano ou social.
Acrescenta-se que o swing, para que surja com generosidade, requer certas condições. Antes de tudo, precisa que a execução se funda sobre um compasso binário, pois todas as tentativas que se efetuaram de criar verdadeiro jazz sobre outra classe de compassos se viram irremediavelmente condenadas ao fracasso. Exige também que o tempo não seja nem muito lento, nem muito acelerado, pois sobre áreas velozes ou lentas demais, somente artistas do calibre de Louis Armstrong, Bessie Smith, Jelly Roll Morton, Trummy Young, Ma Raney, Johnny Doods, Barney Bigard, Sidney Bechet… podem gerar swing.


O TIMBRE

Dentro das séries de recursos originais de que se serve a linguagem de jazz e cujo caráter se distingue das outras escolas musicais, um dos mais peculiares é seu timbre característico. Seu significado na genuína produção jazzística resulta indiscutível, pois constitui um dos pontos mais sólidos sobre os quais se forma a música “hot”.
Valendo-se de uma série de timbres de maior amplitude do que a do músico “culto”, obtida sobre a base de um ataque incisivo, de um vibrato sustentado, do emprego contínuo de “glissandi”, o músico de jazz põe a disposição do timbre orquestral uma série de descobertas de elevada originalidade. Devido a uma consumida habilidade, reconhecida até pelos mais ardentes acusadores, procura imprimir às suas versões acordes e acentos surpreendentes. De fato, o timbre da orquestra de jazz é completamente diferente do da música clássica ou de qualquer outra classe de música: o jazz possui sua voz própria.
Um fato ocorrido a Armstrong nos mostra claramente este fenômeno: depois de seus concertos efetuados na capital britânica, os músicos da B.B.C. o entrevistaram para que lhes explicasse como conseguia obter os coloridos acordes, e insistiam também de que devia utilizar algum pistão especial… Se ensaiam as execuções de música clássica até a obtenção de sonoridades apuradas, e, nos instrumentos de vento, o vibrato é desconhecido. Ao contrário, o músico de jazz, devido ao fato de que, em sua origem, não era um realizador académico, nem tinha efetuado seus estudos num conservatório, mas foi um músico intuitivo e espontâneo, que nada sabia de regras escolásticas, pois era um autodidata, fez uso dos instrumentos da maneira que julgou mais conveniente, de acordo com a própria inspiração. Não obstante que as normas académicas eram defeituosas, esta forma de interpretação abriu novos caminhos e possibilidades novas na técnica dos instrumentos antes deixados num segundo plano pelas orquestras sinfónicas, como, por exemplo, o trombone, a corneta ou o pistão.
Os músicos tocavam de uma maneira diferente do que se tinha feito até então. Utilizavam posições falsas e empregavam uma técnica original; a sonoridade que arrancavam de seus instrumentos, segundo a concepção do músico “sério”, não era pura, mas, ao contrário, suja, “dirty”. Na execução dos instrumentos de vento, além dos lábios, intervém a língua e até a garganta, pois os afronorteamericanos “cantam dentro dos instrumentos de vento”.
Era a característica “maneira negra” de executar um trecho, a forma típica que o negro consegue fazer vibrar as notas, de atacá-las com uma ligeira antecipação ou atraso relativo ao valor exato da medida; tudo isso, acrescentado ao uso do vibrato, originou uma profunda renovação na técnica instrumental.
Para produzir o típico timbre de que falamos, o músico de jazz se utiliza de diversas surdinas, colocadas na extremidade do pistão, corneta e trombone.
Buddy Boden, figura legendária na história da música sincopada, utilizava diversas classes de surdinas, ou simplesmente colocava a mão, ou um copo na extremidade de sua corneta, para efetuar variações tímbricas. Com a ajuda de surdinas especiais, particularmente a denominada “wah-wah” – que recebeu este nome da onomatopeia de seu som, e que foi utilizada, pela primeira vez por “Papa” Mutt Carey – se produz o típico “growl” (grunhido), que dá às criações “hot” uma notável intensidade expressiva, apesar de quem não está ao corrente das autênticas versões do gênero, o julguem um efeito “cômico” ou “grotesco”.
A este ponto pode surgir uma pergunta: Qual é a fonte de procedência desse timbre característico? Antes de tudo, não devemos nós esquecer, como muito bem assinalou Rudi Blesch em Shinning Trumpets, que “a música africana e afroamericana que precederam o jazz são, em sua maior parte, vocais. O jazz revela estes antecedentes em qualidade altamente vocalizada com que se executam os instrumentos melódicos.”
Nos blues vocais, acompanhados por uma corneta ou pistão, se repara perfeitamente o que observamos enquanto a imitação da voz humana que realizam os instrumentos de vento. Ouça-se, p. ex., os acompanhamentos de Louis Armstrong a Ma Raney, Chippie Hill ou Bessie Smith.
Outro fator que contribui poderosamente a imprimir à orquestra de jazz o timbre “sui generis” é a peculiar constituição de sua instrumentação, de cuja sessão melódica foram desprezadas as cordas. O violino, que integrou o corpo dos primeiros conjuntos do gênero, foi logo eliminado, por causa de sua limitada esfera de seu campo expressivo, em comparação com a amplitude que possuem a corneta, o pistão e o trombone. De início, o pequeno agrupamento de cinco a oito elementos imprimiu um caráter próprio ao timbre do jazz. O timbre, ou cor tonal, de que falamos, é inseparável do jazz, e em sua qualidade “dirty” reside a autêntica beleza da sonoridade das orquestras sincopadas. A pureza do som, tal como é entendida na música clássica, nada tem a ver com o gênero de que tratamos, pois, assim como um músico culto é julgado pelo seu som cristalino que obtém de seu instrumento, o músico de jazz é apreciado pela sua capacidade de obter o “dirty tone”, que é uma das pedras angulares do jazz.
Além disso, o intérprete de jazz demonstrou tal preocupação de obter um determinado timbre, que sua qualidade não somente difere do da orquestra sinfônica ou de câmara, mas que, dentro das próprias fronteiras, cada executante ou conjunto, possui seu vibrato próprio, seu timbre especial, sua particular intonação, sua voz característica, peculiar; detalhes estes que uma pessoa com o ouvido acostumado pode identificar sem esforço este ou aquele músico, como se identifica a voz de uma pessoa.


MATERIAL TEMÁTICO

Entre os problemas mais difíceis a serem resolvidos se encontra o da existência na nova música de um temário próprio, e o grau de valor que precisamos dar ao mesmo, como ponto de partida de uma criação em mãos dos intérpretes, que no jazz são autênticos criadores. Não foram raras as afirmações de que a música nascida em New Orleans não conta com nenhuma melodia autóctone, mas que as toma emprestadas de outros gêneros musicais. É verdade que, entre a temática imposta por óbvios motivos de ordem comercial, abundam os trechos melódicos inspirados ou copiados de forma textual da “literatura musical culta”, ou de músicas forâneas, como, por exemplo, AVALON, no qual se copia, com evidente mau gosto, um tema de Puccini; Old Man River copiada de uma velha canção francesa pelo seu “criador” Jerome Kern…
Mas estes fragmentos não pertencem ao temário primitivo e genuíno do jazz de Louisiana, nem ao puro repertório de “ragtime” de St. Louis. Sua introdução na temática da nova música não somente constitui um profundo erro estético e uma falta de gosto, mas põe em evidência o motivo a que obedecem esses embriões: a busca do fácil éxito entre o público mal informado ou desprevenido.
Negar a existência de uma excelente face de fragmentos melódicos germinados ao calor da execução improvisada e adaptados especialmente para abordar sobre os mesmos novas variações “hot”, é não querer ver o evidente. Além disso o jazz tem nos “spirituals”, nos hinos religiosos, nos cantos de trabalho, nas canções crioulas da Luisiana, nos “rags”, nos “stomps”, e, sobretudo, nos “blues”, um temário que lhe basta.
O erro de que falamos tem sua origem no fato de que, na realidade, o tema melódico em que o criador apoia suas improvisações, possui uma importância secundária. O que conta fundamentalmente, como já sabemos, é a interpretação do grupo de improvisadores ou do solista, pois o improvisador, sobre a base de seu desenho melódico, realiza suas variações “hot” imprimindo-lhe a marca de sua personalidade e de seu estilo. Na realidade, nos autênticos conjuntos de jazz, o núcleo de executantes é o que cria, o que compõe. Consequentemente, a tarefa do compositor é secundária.
Por isso, a música de jazz não está integrada por páginas inalteráveis, estáticas, invariáveis, e que se repetem numa forma estereotipada através de diversas versões, como sucede em outras classes de expressões da arte sonora. Mas, como sucede na música folclórica, desempenha um papel predominante a dinâmica fantasia do executante que realiza todas as classes de modificações de ordem melódico, harmônico, rítmico e tímbrico. Por isso não se pode falar de uma versão definitiva deste ou daquele trecho, pois cada executante lhe comunica seu próprio respiro, lhe inculca um novo tom. Os temas que o jazz emprega comumente consistem em um “chorus”.
As frases destes fragmentos melódicos se desenvolvem ao longo de unidades de quatro, oito, dezesseis ou trinta e dois compassos. Geralmente, nas genuínas versões do gênero, somente se utiliza o “chorus” para abordar sobre sua melodia ou seus acordes as improvisações “hot”.
Como já dissemos, o jazz tem no cancioneiro afronorteamericano e na música afrocrioula da Luisiana sua melhor fonte de seu temário.
Os músicos de jazz utilizaram, durante muito tempo, temas de blues de 12 medidas, de ragtimes (16 medidas), de spirituals (geralmente 16 medidas), de velhas áreas de origem francesa (16 ou 32 medidas), ou de trechos compostos por eles mesmos parecidos com os precedentes. Em seguida, sobretudo a partir de 1929, os músicos, impulsados pelos managers, editores de música e companhias de discos, tiveram que interpretar principalmente áreas de sucesso da Broadway, de qualidade musical geralmente inferior.
A maioria dos temas empregados pelo jazz depois do período de New Orleans são de 32 medidas, e a maioria consiste somente de duas frases de 8 medidas cada uma: a frase principal (frase A) que é repetida três vezes no tema, e a frase secundária (frase B) que aparece somente uma vez depois de duas repetições da frase A, da maneira que podemos descrever o trecho como tendo a forma de A, A, B, A. Ex. Honeysuckle Rose, Stomping at the Savoy, Body and Soul. Em outros temas de 32 medidas a frase principal aparece durante as 8 primeiras medidas, e se desenvolve de uma maneira diferente durante as 8 seguintes; ao meio (17 medidas), a frase principal reaparece, mas termina de uma maneira diferente. Podemos representar esse tema pela fórmula A, B, A, C. Ex. I can’t give you anything but love, Indiana, Margie.

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Hugues Panassié e Madeleine Gautier: Dictionnaire du Jazz – Paris, 1954.
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Hugues Panassié: Quand Mezzrow Enregistre – Paris, 1952.
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Rex Harris: The Story of Jazz – New York, 1955.
Barry Ulanov: Histoire du Jazz – Paris, 1955.
Écoutez-moi ça l’Histoire du Jazz Raconté par Ceux Qui L’ont Faite – Paris, 1956.
Nestor R. Ortiz Oderigo: Historia del Jazz – Buenos Aires, 1952.
Bernard Huvelmans: De la Bamboula au Be-Bop – Paris, 1951.
Satchmo Louis Armstrong: My life in New Orleans – New York, 1955.
Gérard Legrand: Puissances du Jazz – Paris, 1953.
Alun Morgan, Peter Gammond, Don Rendell, Raymond Horricks: Modern Jazz - London, 1956.
Albert J. McCarthy: Jazzbook – London, 1955.
Orrin Keepnews and Bill Grauer Jr.: A Pictorial History of Jazz – New York, 1955.
Blesh Rudy: Shinning Trumpets – New York, 1946.
Blesh Rudy: This is Jazz – San Francisco, 1943.
Hodeir André: Le Jazz, Cet Inconnu – Paris, 1945.
Barry Ulanov: Duke Ellington – New York, 1946.
Aaron Copland: Jazz Structure and Influence of Modern Music
Coeuroy André: Histoire Générale du Jazz – Paris, 1942.
Bragaglia Giulio: Jazz Band – Milão, 1929.
Albert Bettonville: Paranoia do Jazz – Bruxelles, 1939.
Charles Delaunay: De la vie et du Jazz – Lausanne, 1946.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


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20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
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