No “The American Scene”, falando das cidades americanas, William James disse:
“Et voilá, tout est lá; faites-en ce que vous pouvez. Pauvre chère beauté
mécréante et effrontée; il est evidente qu’il y a quelque chose, lá-dedans…” Podemos dizer
a mesma coisa do jazz americano. (Preferi não traduzir a expressão de William James,
expressão por sua vez já traduzida, não achando uma frase adequada que exprimisse
bem o pensamento do escritor).
Na sua exterioridade
o jazz apresenta desordem e antagonismos. Não se chegou ainda a uma definição satisfatória
dessa música, imprópria a toda a definição num dicionário, da qual os próprios executantes
falam pouco claramente quando vão à procura de uma, antes de se refugiar na ambiguidade
pitoresca da sua própria gíria. Eis algumas definições, recolhidas em 1935, época
na qual a palavra “swing” era sinônimo de jazz:
O pistonista branco Wingy Manone: Sentir
uma sensação de aceleração do tempo, conservando o mesmo tempo;
O grande baterista branco Gene Krups: Liberdade
completa inspirada na interpretação rítmica;
O saudoso baterista Chick Webb: É como amar
uma garota: brigar um pouco e achá-la logo depois;
O inimitável “Satchmo” Louis Armstrong:
A maneira na qual eu julgo deve ser tocada um música; ou então: Falar com o coração,
e com o coração não se mente;
A cantora Ella Fitzgerald: Mas, bom,… o
swing é… enfim é: a gente o sente em qualquer modo… eu… eu não sei… toca-se swing!
Jelly Roll Morton, um dos primeiros grandes
pianistas de jazz: A música de jazz é um estilo, não uma obra dada; qualquer tipo
de música pode tornar-se jazz, se tocado, evidentemente.
Todos esses músicos procuravam
um novo dicionário, mas não acharam palavras para explicar o tipo de improvisação
para tocar jazz. O vocabulário simples, condensado, até muito elítico dos músicos
de jazz nos dá muitas explicações sobre essa música; p.ex. nos ensina que o jazz
não se interessa a esse substantivo senão no que significa no ponto de vista rítmico.
De fato, ele pouco se importa se dizemos que jazz é uma deformação do nome de um
músico chamado Charles (Chas, Jass, Jazz), ou então se o substantivo é uma deformação
do verbo francês jaser. Entretanto, se
nós lhe perguntarmos o que o “beat”, palavra que nenhum dicionário sabe definir,
ele dará uma explicação apropriada, nem sempre com nossas palavras, mas sim, com
sua linguagem: A música.
Antes de começar a escrever
sobre uma estética do jazz, acredito que seja melhor dar algumas noções sobre essa
música: Antes de tudo precisa-se dizer que o canto religioso negro é, com toda a
certeza, tão antigo quanto a peregrinação de escravos de cor aos E.U.A. Alguns desses
cantos, principalmente aqueles em que o padre prega ritmicamente, acompanhado pelos
“Amen” dos fiéis, têm ainda alguma semelhança com os cantos de certas regiões do
Oeste da África, onde foram recolhidos os escravos. A origem do blues se perde nos
tempos. Não podemos supor uma origem africana direta, mas tudo parece indicar que
o blues nasceu dos sofrimentos causados pela escravidão e com eles viveu. O que
parece confirmar essa idéia é que os mais antigos blues conhecidos, e também os
mais característicos, vêm de Estados com o Mississipi, Arkansas e Texas, Estados
em que o problema racial foi particularmente violento.
É também impossível dar
uma data precisa do nascimento do jazz, o que é certo, porém, é que as primeiras
orquestras de jazz fizeram sua aparição durante os últimos anos do século 19º.
Não podemos também designar
um lugar exato de nascimento para uma música criada coletivamente por um povo. Entretanto,
é coisa legítima designar New Orleans e seus arredores como berço do jazz, pois
é incontestavelmente o lugar onde a nova música floresceu e se desenvolveu, e é
desse lado da Luisiana que vêm os primeiros músicos de jazz de grande qualidade,
aqueles que ampliaram essa música, que lhe deram a sua forma orquestral inicial.
As primeiras orquestrar
de jazz foram orquestras de rua e tocavam, como muito bem explica o guitarrista
Danny Barker em “Hear Me Talking to Ya”, em bailes, soirées, banquetes, casamentos,
batizados, primeiras Comunhões católicas, pique-niques à beira de lago, desfiles
publicitários e enterros. (A esse respeito ver o filme “Taverna Maldita”, ou ouvir
a célebre gravação de Louis Armstrong “New Orleans function” LP 10” Decca LTM 8363).
Alguns desses músicos
tocavam nos grandes salões de dança de New Orleans, em orquestras que compreendiam:
1 (algumas vezes 2) pistão,
trombone, clarinete, banjo, tuba, bateria e raramente um violino.
O piano só foi utilizado
nas orquestras quando estas viraram orquestras de dança no início do séc. 20 (segundo
George Ramsay), ou na segunda década do séc. 20 (segundo Hugues Panassié).
Mas existiam desde o
fim do séc. 19 pianistas que tocavam como solistas: eram então chamados pianistas
de ragtime.
De New Orleans, onde
a nova música formou suas raízes, o jazz foi conquistando as cidadezinhas ao longe
do Mississipi até St. Louis; os músicos eram contratados para distrair e divertir
os clientes a bordo de navios de excursões sobre o rio. A partir de 1914, mas sobretudo
em 1917 (quando foi fechado o célebre bairro “das luzes vermelhas” Storyville) os
músicos se deslocaram para Chicago, que se tornou logo a nova capital do jazz, assim
permanecendo até 1928.
No fim da primeira guerra
mundial as orquestras (a primeira entre elas a Original Dixieland Jazz Band) foram
para a Europa e começaram a fazer ouvir o novo tipo de música. Mas tanto na Europa
como na América, o jazz “comercializado” teve mais aceitação do que o autêntico.
Os brancos começaram
a tocar músicas até então tocadas somente por negros, com as mesmas orquestrações
desses últimos. Eles pareciam apresentar as mesmas aparências da orquestra de jazz,
mas na realidade faltava-lhes a coisa mais importante: o swing.
O swing (lit. balançar)
é, segundo Panassié: “O balanço rítmico próprio da música jazz, o elemento vital
dessa música. E a pulsação que anima toda boa interpretação, pulsação regular, mas
viva e não mecânica. O swing está no executante e não se pode notá-lo.”
De outro lado, a maioria
desses músicos brancos nem procuraram assimilar a linguagem musical dos Negros,
tendo reparado que o grande público branco, pouco sensível ao verdadeiro jazz, preferia
interpretações doces e sem variações às interpretações viris, finas, das orquestras
de cor.
Depois da segunda grande
guerra, em torno de 1945, temos o advento de be-bop ou re-bop, ou simplesmente bop,
cuja expressão designa uma música que certos críticos (segundo Panassié) acharam
que fosse jazz. A confusão, sempre seguindo as idéias do crítico acima citado, provem
do fato de que o be-bop foi criado por músicos que já haviam tocado jazz puro, em
orquestras de jazz, que se serviam dos mesmos instrumentos e tomavam as mesmas melodias
como trampolim para suas improvisações.
Depois do bop, tivemos
o “cool-jazz” e em nossos dias temos o “progressive-jazz”, cujo criador e principal
figura é Stan Kenton, estilos que, ao ver de Panassié, em substância não têm nada
em comum com o jazz.
Acredito que a posição
tomada pelo crítico francês seja demasiado tradicionalista, e creio que esses últimos
estilos possam ser encarados no âmbito do jazz, considerando-os como um desenvolvimento
natural dessa música. Ainda hoje o jazz comercializado ocupa um lugar maior em todos
os países.
Mas há um público cada
dia mais numeroso pelo jazz autêntico, e os músicos brancos não são mais tão raros
e alguém conseguiu assimilar a linguagem musical dos Negros.
O BLUES
A influência que o cancioneiro afronorteamericano
exerceu na estética, na estrutura e também no espírito das legítimas expressões
do jazz, é, sem dúvida nenhuma, realmente única.
Os “spirituals”, os “shouts”,
os “work song”, os “labor song”, os “hollers”, os cancioneiros de dança (“dance
songs” e “reels”), os primitivos sermões pronunciados pelos velhos pregadores do
Sul dos U.S.A.; todas essas manifestações da rica arte folclórica dos negros dos
U.S.A., ocorreram na gênesis da música jazz. Mas não há a menor dúvida de que o
blues, vocábulo que carece de uma definição, foi o que mais influiu na nova música.
O blues é um trecho curto
de 12 medidas, dividindo-se em 3 partes, cada uma de 4 medidas: 4 medidas na tônica
(com abaixamento de meio tom no sétimo grau durante a última meia medida); duas
medidas na subdominante; duas medidas na tônica; duas medidas na sétima e duas medidas
na tónica. Essa é a sequência harmônica normal do verdadeiro blues.
Somente a melodia escrita
nesses acordes difere um blues do outro, e as mesmas frases se encontram na maior
parte dos blues cantados. O que distingue um blues do outro são, de um lado, as
palavras, do outro, ligeiras variações musicais que todo cantor eleva às fases clássicas
do blues. A maioria dos blues antigos não comporta um refrão, mas consiste em uma
série de estrofes. Algumas formam duplo refrão no mesmo grupo de doze medidas, as
palavras das quatro primeiras medidas mudam cada vez, restando as das outras medidas
iguais. Ex. “Somebody’s gotta go”, Big Bill Blues.
A principal característica
musical dos blues é a alteração de duas notas: o terceiro e sétimo grau da gama
que são abaixados de um meio tom. As notas assim alteradas são chamadas em inglês
as “blue notes”. Essas alterações tornaram-se uma das maiores características do
estilo melódico empregado no jazz.
Na maior parte dos blues,
cada frase cantada ocupa duas medidas e meia, depois vem uma pausa de uma medida
e mais durante a qual o ou os acompanhadores do cantor executam breaks instrumentais.
A maioria dos antigos
cantores de blues acompanhavam-se com uma guitarra, sem nenhum outro acompanhador.
Em seguida eles utilizaram ou um pianista, ou outro guitarrista, ou uma inteira
secção rítmica.
Os blues utilizados no
jazz não são sempre tão simples como os dos primeiros cantores de blues. São, muitas
vezes, verdadeiras composições, tendo muitos temas. O celebérrimo St. Louis Blues
contém três temas, dois pertencem à forma clássica do blues de doze medidas, enquanto
que o terceiro possui dezesseis medidas.
Beale Street Blues compreende
três temas: dois de doze medidas muito diferentes, uma em fá, a outra em si bemol.
No jazz da época de New Orleans, os músicos partiam de um tema de blues dado como,
p. ex., os dois acima citados. Em seguida eles se satisfaziam em improvisar sobre
a sequência harmônica do blues de doze medidas, sem melodia nenhuma. Cada grupo
de doze medidas foi então chamado “chorus”.
Existem blues de oito
medidas, muito menos utilizados dos de doze, ex. “How Long How Long Blues”.
Por causa da extensão
dá-se algumas vezes o nome de blues a algum trecho de estrutura diferente (de dezesseis
medidas, com ou sem cauda de duas medidas), onde o estilo lembra mais ou menos o
do blues de doze medidas quando interpretado no mesmo estilo desses últimos. Ex.:
Baby won’t you please come home” e “Baby Doll”, cantados por Bessie Smith, o primeiro
gravado em 1923 e o segundo em 1926.
A palavra blues aparece
frequentemente em títulos que não têm senão uma longínqua relação com o verdadeiro
blues. Ex.: “Wang Wang Blues”; “Wabash Blues”; de outro lado, a palavra blues está
muitas vezes ausente em títulos que recobrem o clássico blues de doze medidas. Ex.: “Sugar
Foot Stomp” (antigamente intitulado “Dipper Mouth Blues”); “Hey Ba Ba Re Bop”; “Time’s
wastin’” (antigamente intitulado “Things ain’t what they used to be”). A palavra blues
possui um sentido parecido com a palavra francesa “cafard”. Mas blues possui mais
força do que o substantivo francês e sua utilização é muito mais variada. Ela está
continuamente combinada com outras palavras para formar expressões intraduzíveis
em português, como p. ex.: “That’s the only way I can get these thinkin’ blues off
my mind” (lit.: é o único meio de dissipar da minha mente esse blues da reflexão,
ou seja, “de livrar meu espírito da hipocrisia que me toma quando sou tomado de
idéias amargas”).
Os mesmos títulos utilizam
a palavra blues em uma maneira que dá a idéia precisa do trecho. Ex.: “He’s gone
blues” (lit. ele partiu blues); será então um blues dado à cantora pela partida
do homem amado. As palavras dos blues são frequentemente repletas de poesia: de
uma poesia popular, colorida, muitas vezes humorística, uma poesia criada por pessoas
sem nenhuma cultura literária, mas dotada de uma grande habilidade na imaginação
verbal.
Os temas mais frequentes
são aqueles da mulher morta ou abandonada pelo seu homem (e vice-versa), ou aqueles
da miséria, que constituem muitas vezes uma sátira mordaz contra o estado social.
Graças a duplos sentidos ou a expressões regionais, que não podem agradar aos brancos
americanos, os blues vão mesmo protestar mais ou menos abertamente contra o prejuízo
racial do qual são vítimas os Negros nos U.S.A.
Eis aqui as palavras
de dois blues característicos (de Dictionnaire
du Jazz):
Sittin’ in the house with everythin’ on my mind,
(Estou sentada em minha casa com tudo o que me passa pela
cabeça,)
Sittin’ in the house with everythin’ on my mind,
(Estou sentada em minha casa com tudo o que me passa pela
cabeça,)
Lookin’ at the clock can’t even tell time,
(Olha para o relógio e nem posso dizer as horas,)
Walkin’ to my window, lookin’ out of my door,
(Vou até a janela e olho fora da minha porta,)
Walkin’ to my window, lookin’ out of my door,
(Vou até a janela e olho fora da minha porta,)
Wishin’ that my man would come home once more,
(na esperança de ver meu homem regressar mais uma vez)
Trecho extraído de “In the house blues” de Bessie Smtih.
Went down on the levee, workin’ the levee freight yard,
(Trabalhei nas digas, encavilhei nos entrepostos,
Went down on the levee, workin’ the levee freight yard,
(Trabalhei nas digas, encavilhei nos entrepostos,)
They paid a dolar an hour but the work was so dawg gone
hard,
(Eles me davam um dólar por hora mas que verdadeira vida de
cães)
My flour barrel is empty and meat I didn’t even have a
bone,
(Meu saco de farinha é vazio, não tem mais carne, nem um osso,)
My flour barrel is empty and meat I didn’t even have a
bone,
(Meu saco de farinha é vazio, não tem mais carne, nem um osso,)
And my best gal had quit me and my last dollar is gone,
(A mulher que eu amava me deixou, e meu último dólar também).
Trecho extraído de “Levee blues” cantando por Pleasant Joe.
HISTÓRIA
É impossível indicar, mesmo aproximadamente,
a data de nascimento do blues. Somente temos certeza de que já era cantado nos U.S.A.
durante o século 19º. durante os últimos tempos da escravidão. Esses trechos parecem
haver nascido do imenso sofrimento do povo negro diante dos terríveis tratamentos
suportados, pois traduzem com uma força singular a crise de dor e de revolta do
homem duramente oprimido. Depois da abolição da escravidão os blues continuaram
a ser cantados, pois a dura condição dos Negros foi modificada mais na teoria do
que na prática.
No fim do século 19 e
no início do 20, era coisa comum que cantores de blues fossem de cidade em cidade,
parassem nas esquinas e cantassem alguns blues acompanhados por uma guitarra, recebiam
algumas vezes esmolas das pessoas que se agrupavam para escutá-los. Esses cantores
de blues não tinham feito o mínimo estudo musical e tinham aprendido tudo de ouvido.
Esses blues não estavam submetidos ao quadro fixo de doze medidas. O cantor de blues,
acompanhado por ele mesmo, não tinha que fazer concordar a sua interpretação com
a de outros músicos e usava uma liberdade total. Não obstante gravados entre 1924
e 1928, os blues cantados por Blind Lemond Jefferson, acompanhando-se com a guitarra,
dão uma idéia exata do primeiro estado dos blues, pois B.L.J. já cantava em 1890-1895
e nunca mudou seu estilo. Em seguida temos discos gravados por Barbecue Bob, Big
Bill Broonzy, Sleep John. Estes, que são os mais parecidos com os blues originais,
conservam o sabor original e dão uma idéia exata da maneira com a qual um blues
deve ser cantado e acompanhado.
Desde que os Negros começaram
a se utilizar de todos os instrumentos de música e a formar orquestras, no fim do
século 19º, eles interpretavam, naturalmente, os blues, como também outros trechos,
de uma forma diferente (nos quais aplicavam a técnica vocal e harmônica do blues).
As palavras não limitando mais as frases, eles se lançaram nas variações dos acordes
de base mais extensas dos cantores. Eles conservavam, entretanto, todos os elementos
essenciais da técnica vocal. O blues orquestral, para que seja autêntico, deve ficar
muito próximo do canto; também os efeitos de virtuosismo nos quais se lançam muito
bem alguns músicos de jazz em certas execuções rápidas se chocam no blues.
Os músicos de jazz mais
renomados na interpretação do blues são: Louis Armstrong, Joe “King” Oliver, Tommy
Ladnier (pistão); Charlie Green, Triky Sam (trombone), Jimmy Noone, Johnny Doods,
Milton Mezzrow (clarinete), Sammy Price, Pete Johnson, Count Basie (piano); Lonnie
Johnson (guitarra) e Pops Foster (contrabaixo).
Durante sessenta anos,
depois do nascimento do jazz, o blues ocupa um grande lugar no repertório das orquestras.
Depois de 1937, o êxito de duas orquestras especializadas no blues, as de Count
Basie e Luis Jordan, repuseram “na moda” os blues que haviam sido um pouco abandonados
durante os anos precedentes. Surgiram então alguns cantores de blues de estilo diferente,
tais como Jimmy rushing, Lips Paige, Sonnie Parker. Não é mais o blues com sabor
rítmico dos cantores que vinham dos campos do Mississipi ou do Texas, como os já
conhecidos Big Bill Broonzy e Bill Lemond Jefferson: é o blues da cidade, influenciado
pelo estilo instrumental do jazz, mas sempre blues.
Mas o blues continua
a viver uma vida dupla: a primeira que continua a fornecer-lhe os puros cantores
de blues, vindos dos campos do Sul, entre os quais Muddy Waters e John Lee Hooker
foram os mais recentes exemplois; a segunda que se refere aos executores instrumentais
ou vocais do ambiente do jazz propriamente dito. Mesmo entre estes últimos, o blues
continua tendo aspecto bem diferente de todas as outras formas de jazz.
BOOGIE WOOGIE
Durante a primeira guerra mundial, e mesmo
depois dela, quando os Negros das plantações do Sul começaram a emigrar para as
zonas industriais do Norte, enfrentaram uma série de problemas econômicos e sociais.
Foi uma duríssima crise,
pois os donos de casas, quando se tratava de alugar uma casa a um homem de cor,
exigiam somas exorbitantes. Os afronorteamericanos procuraram resolver o problema
de uma maneira muito original: celebravam festas semanais, nas quais podia ir qualquer
pessoa, sempre que pagasse 10 cents, quantia que prontamente subiu para 15 até chegar
a 50. Também era costume deixar a entrada livre, obtendo lucro sobre as bebidas
e comidas. Com o produto desses bailes a família necessitada procurava resolver,
mesmo momentaneamente a precária situação econômica, e fazer frente ao elevado custo
da vida.
Essas reuniões, hoje
desaparecidas, segundo nos diz a conhecida socióloga, Irene Diggs, que alcançaram
uma enorme divulgação antes da Proibição, se popularizaram extraordinariamente nos
bairros negros de várias cidades, como Chicago, South Side, New York – Harlem, Kansas
City, Baltimore, Filadelfia, e se converteram em uma verdadeira instituição, recebendo
os nomes de: “house rent parties, parlor socials, socials whist parties”, e os lugares
onde se efetuavam estas festas denominavam-se “buffet flats”.
A música estava a cargo
de um pianista, e, ocasionalmente, de um guitarrista, pistonista e baterista. Às
vezes se encontravam vários pianistas, estabelecendo-se então, competições parecidas
com as das bandas de New Orleans, denominadas “cutting session, cutting contest
ou carving contest.”
Nestes bailes tomou incremento
uma escola pianística “em cujo ritmo palpita o germe africano” (Nestor R. Ortiz
Oderigo, Historia del Jazz, Buenos Aires
1952). Nós nos referimos ao boogie woogie, em cujas versões se adverte a influência
das maneiras características dos guitarristas que atuam nos “suckey jumps”, festas
populares realizadas pelos Negros.
Nos boogie woogie as
melodias dos blues dão passo a uma torrente rítmica, cuja maré cresce até chegar,
às vezes, a um “climax” de força irresistível e frenética. Sob o ponto de vista
rítmico o boogie woogie é, com toda a certeza, mais primitivo do que a própria música
africana; mas, de outro lado, mais complexo e mais polifonicamente rítmico que o
estilo de um Fats Waller ou Teddy Wilson.
Os movimentos rápidos
da mão esquerda, que produzem um efeito hipnótico, são frequentemente postos em
oposição aos ritmos sempre variantes da mão direita: o resultado é um movimento
muito dinâmico, de um ritmo entrançado.
Construído sob o ponto
de vista melódico, sobre frases curtas, com numerosas repetições de notas, é, entretanto,
mais cromático que um blues ordinário. O motivo mais frequente parece ser uma passagem
de três notas na gama descendente.
Entretanto, algumas vezes
a melodia, num chorus inteiro, consiste em uma única nota (frequentemente a sexta
em dó maior: lá, ou a nona, ré), repartida com muitas variantes de ritmo e entoação.
O ritmo usual por esta
forma de variação consiste, pela mão direita, em um acorde sobre o primeiro tempo
e repetido pouco antes do 4º tempo de cada medida. Muitas vezes utiliza-se o trenado,
que tem uma função de repercussão e ritmo.
Quase sempre o boogie
woogie possui a forma de um blues de doze medidas que se repetem com variações infinitas
e sempre no mesmo tom. A harmonia é essencialmente tónica dominante. Não tem nenhuma
procura de uma harmonia a quatro parte: o acento principal é frequentemente posto
no contraponto, do qual não utilizam-se que duas partes. Nesse caso a melodia pode
ficar, durante muito tempo, separada do baixo, fazendo um movimento inverso. De
um lado ao outro do trecho, há uma ignorância total de harmonia convencional, quase
um desafio às regras clássicas. É uma música baseada não sobre um tratado de harmonia,
mas sobre um piano. O boogie woogie fez sentir a sua influência nas orquestras modernas,
e os grandes conjuntos têm, frequentemente, a “sua” versão do boogie woogie. Mas
é, antes de tudo, um estilo de piano e dá o máximo de efeito quando tocado num solo
de piano. Se o boogie woogie foi, no início, uma música de dança, é também, duma
maneira secundária, um acompanhamento. Nos nossos dias é reconhecido, universalmente,
como um estilo independente.
Os mais renomados especialistas
de boogie woogie são: Pine Top Smith, Jimmy Yancey, Sammy Price, Pete Johnson e
Albert Ammons; entretanto, existem pianistas que se utilizam do boogie woogie somente
ocasionalmente, como Fats Waller, James P. Johnson, Art Tatum, Count Basie, Earl
Hine, Oscar Peterson. Além disso, existe uma dança que se chama “boogie woogie”,
mas nos Negros não a dançam necessariamente no ritmo de boogie woogie.
A ESCOLA DE NEW ORLEANS
No
início, a música que cultivavam os primitivos criadores surgidos em New Orleans,
era embrionária. Os executantes, em sua maioria intuitivos, se viam obrigados a
investigar por si próprios, os desconhecidos recursos que lhes eram oferecidos pelos
novos instrumentos, com os quais entraram em contato recentemente. Tocavam uma música
anônima, pois ainda não tinha sido batizada com o nome que iria percorrer o mundo.
Quando o povo se referia ao “jazz” dizia: “That reggedy uptown music” (essa música
sincopada da parte alta da cidade).
Dos primeiros balbucios
emitidos pelos grupos precursores, a técnica da nova música foi conquistando maior
franqueza, enquanto que as improvisações ampliaram a esfera de sua expressão. Entretanto,
o jazz perfilava suas leis estéticas básicas, que o afastavam da tradição europeia
da música e que, consequentemente, devem ser focalizadas num prisma diferente.
Nasceu a denominada escola
de New Orleans: chamada também polifônica, pois nela se cultiva a improvisação a
várias vozes ou coletiva, que pode ser uma reminiscência do caráter social da arte
negra e que, sem dúvida, constitui uma herança do alto desenvolvimento polifônico
observado na África Ocidental. Essa modalidade é a primeira, mais original, expressão
mais castiça e representativa do jazz.
Não temos a menor dúvida
de que, através desta modalidade, o jazz alcançou a sua máxima manifestação formal
e expressiva; chegou ao “climax” de sua originalidade e de sua qualidade.
Produto espontâneo do
executante Negro, que criou essa expressão artítistica à margem da música escrita
e da tradição européia da linguagem sonora, a sua característica fundamental é,
precisamente, o germe que deu a vida: a improvisação.
Ao calor da influência
coral e polifônica do cancioneiro afronorteamericano, os intérpretes de New Orleans
não se consagraram a improvisação individual, mas abraçaram, simultaneamente, as
várias vozes instrumentais. A improvisação tripartida – corneta ou pistão, trombone
e clarinete – que era mais reduzida na sua instrumentação, mas muito mais rítmica
e geradora de swing do que os conjuntos “modernos” – é a pedra inicial da “New Orleans
school”.
Neste tipo de improvisação
predomina o trabalho em conjunto. Se excluem quasi totalmente os solos instrumentais,
com exceção dos tradicionais “breaks” de dois compassos. As três vozes melódicas
improvisam simultaneamente, procurando criar um “entramado” polifônico, sem que
sobressaia nenhuma delas; mas esse trio se move em perfeito equilíbrio, reinando
uma claridade e ordem, obtendo assim o “ensemble” um robusto corpo melódico.
Semelhante maneira interpretativa
exige um absoluto domínio técnico dos instrumentistas, e sobretudo, uma perfeita
compreensão do que deve ser a parte que cada executante improvisa, em relação aos
demais componentes da orquestra, pois, do contrário, se produziria o caos absoluto.
A corneta, ou o pistão,
ocupa, na escola que estamos estudando, um lugar de destaque, pois está encarregada
de levar o tema melódico, improvisando sobre seu desenho: ocupa o papel dominante
a causa de seu som dominante.
Em suas mãos se encontra
a condução dos demais instrumentos nas improvisações coletivas, e neste trabalho
de chefia emprega frases curtas, executadas, geralmente, no timbre médio, destacando
a amplitude de seu “vibrato”, que é peculiar a essa maneira de interpretação.
No caso em que a orquestra
conta com duas cornetas (Creole Jazz Band de King Oliver ou a Ragtime Band de Buddy
Bolden), a segunda toca, geralmente, a parte aguda ou grave, que corresponde a do
clarinete ou do trombone, respectivamente.
Na “New Orleans School”
o trombone proporciona uma sólida ponte rítmica, efetuando curtos “glissados” que
constituem uma das características expressivas mais genuínas do jazz.
Os clarinetistas que
cultivavam o sistema tradicional da cidade de New Orleans possuíam o “vibrato” rápido
e muito pronunciado, e uma intonação fluida e cheia. Sua frase é ligeira, cheia
de notas ligadas. As frases, de estrutura às vezes sinuosa, quebrada, se constroem
com abundantes notas rápidas, executadas com uma vivacidade admirável. Frequente
é o uso de “glissandi” que vão do agudo ao grave, para retornar ao agudo.
Nos conjuntos que conservam
esta tradicional concepção “jazzística”, a seção rítmica distribui um pulso permanente
e fluido. O baterista acentua a síncopa com o “snare drum”, o prato, no contratempo,
enquanto que com o pé marca os tempos fortes, ou os quatro tempos de compasso no
“bass drum”; o contrabaixo, assinala os tempos fortes, enquanto que o piano – quando
existe – marca com a mão esquerda os tempos fortes e os fracos com a direita; e
a guitarra ou o banjo apoia os quatro tempos.
Com o decorrer dos anos,
as orquestras de New Orleans foram introduzindo, pouco a pouco, alguns solos mais
extensos que os simples “breaks” de dois compassos. A origem desses solos é, segundo
o crítico Rudi Blesh (Shinning Trumpets,
N. York, 1946) devida ao fato de que, depois de longas marchas, os integrantes das
bandas de desfile, ou “Street parade”, sentiam a necessidade de gozar de um momento
de descanso. Então o diretor da orquestra fazia sinal a um dos instrumentistas para
que executasse um solo, enquanto que seus companheiros fumavam ou descansavam.
Por causa dos absurdos
prejuízos que ainda hoje imperam nos USA, os músicos não tiveram as mesmas oportunidades
de trabalho que seus irmãos brancos, efetuando-se uma discriminação étnica que falta
de fundamento, e o jazz foi divulgado através do disco fonográfico (Original Dixieland
Jazz Band, Earl Fuller’s Famous Jazz Band, Louisiana Five, etc., etc.) por muitos
brancos, e não por aqueles que imprimem sua autêntica vibração “hot”.
Esse mal-intencionado
misonegrismo, que não é senão uma pequeníssima parte das tremendas injustiças cometidas
com quasi quinze milhões de homens, que não fizeram outra coisa senão trabalhar
e lutar, nos privou de uma genuína prova documentária necessária para julgar o período
ao qual nos estamos referindo.
Porque, não obstante
terem alguns veteranos se acostumado nestes últimos tempos às salas de gravações
de discos fonográficos, o fizeram em condições desfavoráveis, pois, ou já se tinham
retirado da carreira musical, dedicando-se a outras atividades, ou por motivos de
saúde, ou por sua idade avançada não puderam tocar da mesma maneira em que o haviam
feito na juventude.
A ORQUESTRA DE JAZZ
Duas seções constituem o corpo instrumental
da orquestra de jazz: a seção rítmica, que é a espinha dorsal do conjunto, cuja
função é de assinalar os quatro tempos do compasso, desenvolvendo um trabalho de
fundo, não obstante que na atualidade, seus integrantes se transformam em solistas;
e a seção melódica, em cujas mãos se encontra a exposição do trecho interpretado
e a realização das diversas combinações melódicas e polifônicas.
Numa maneira geral podemos
apontar dois tipos diferentes de orquestra de jazz: o pequeno agrupamento, indicada
pelo cultivo das escolas clássicas do gênero, e integrada por instrumentos cujo
número varia entre cinco e oito, e o grande que pode contar de nove a vinte membros.
Também é possível executar excelente jazz através de um só instrumento – o piano
–; de um instrumento com acompanhamento de outro ou outros – clarinete, saxofone,
pistão, trombone secundado por piano; por piano e percussão; por piano, percussão
e guitarra ou banjo; ou por piano, percussão, guitarra e contrabaixo.
As velhas orquestras
de New Orleans não eram numerosas como as que hoje ouvimos, salvo raras exceções.
Geralmente contavam com um número reduzido de instrumentos, que raramente passava
de sete. Na seção melódica figuravam uma clarineta, uma corneta, um trombone, e,
em certos casos, de um violino (utilizado sobretudo porque um violinista sabia geralmente
ler as notas musicais). Mas este último instrumento foi eliminado do âmbito da música
“hot”, pois a sua débil sonoridade se perdia nas atuações ao ar livre. Era frequente
que se duplicasse algum dos instrumentos melódicos. O legendário Buddy Bolden, por
exemplo, empregou simultaneamente dois clarinetes ou duas cornetas, e Joe “King”
Oliver, na sua famosa “Creole Jazz Band”, tinha Louis Armstrong como segunda corneta.
Compunha a seção rítmica
de três membros: guitarra, contrabaixo – que ao redor de 1925 foi frequentemente
substituído pela tuba – e bateria (ou percussão), que não incluía complicados instrumentos
que presentemente são utilizados pelos executantes “modernos”.
Como vimos, esses primitivos
agrupamentos não empregavam saxofones – contrariamente a crença dos não iniciados
de que a criação de Antoine Joseph Sax seja típica do jazz, ou até que foi obra
dos negros – instrumento que se incorporou à música sincopada em época posterior
anexado aos demais instrumentos da seção melódica; algumas vezes o saxofone substituiu
alguns instrumentos como o trombone (como ocorreu nas clássicas expressões do estilo
de Chicago), ou o clarinete (ouvir a esse respeito os discos do conjunto de Jimmie
Noone).
Os saxofones se constroem
em seis registros diferentes: sopranino, soprano, alto, tenor, barítono e baixo,
geralmente nas tonalidades de si bemol e mi bemol.
No jazz, os registros
preferidos, em virtude da flexibilidade de suas vozes, são o alto e o tenor, não
obstante se utilize também o soprano, no qual Sidney Bechet é um maestro inigualável;
o barítono, utilizado maravilhosamente por Harry Carney, da orquestra de Duke Ellington,
e o baixo cujo “astro” tem sido, durante muito tempo, Adrian Rollini, são pouco
utilizados; desconhecido o uso do sopranino.
Pouco a pouco, dos seis
ou sete instrumentos que compunham a primitiva orquestra de jazz – corneta ou pistão,
trombone, clarinete, piano, guitarra ou banjo, contrabaixo ou tuba e bateria – formação
esta que acabou sendo aceita como clássica, o número dos membros foi crescendo até
chegar a atualidade, em que há agrupamentos que contam com cinco saxofones, cinco
pistões, cinco trombones e quatro elementos da sessão rítmica. O corpo destes numerosos
organismos – que não praticam a improvisação senão em breves e determinadas passagens
da interpretação, e além disso, se vêm obrigados a substituir esse importante recurso
do jazz por arranjos, com o objetivo de “manter a ordem”, sendo suas execuções cuidadosamente
ensaiadas e convenientemente preconcebidas – não compreende duas sessões, como nos
pequenos conjuntos, mas sim três, pois o setor melódico se subdivide em sessão de
metais (ou bronze) “brass section”, integrada por trombones e pistões, e sessão
de madeiras “reed, ou woodwind section”, constituída por saxofones e clarinetes.
A sessão rítmica, ou “rhythm section” é integrada por quatro instrumentos: piano,
contrabaixo, guitarra e bateria. Acrescentamos que a guitarra com amplificador,
ou guitarra elétrica, substitui frequentemente a comum.
O RITMO
Os negros, tanto na África, como nos diversos
países americanos, se destacam por sua inegável capacidade musical. Ora, se este
conceito é indiscutível, é também indiscutível que o seu principal dote artístico
é constituído pelo seu extraordinário sentido do ritmo. Exploradores, viajantes,
etnógrafos, missionários, que visitaram o continente africano, o demonstraram generosamente
em uma rica bibliografia.
Não existe a menor dúvida
de que na música africana a preeminência do ritmo é evidente, porque o sentido do
ritmo no homem de cor é claramente superior ao dos demais povos do mundo. Todas
as expressões dos negros africanos, a palavra, o verso, o canto, o coro, o instrumento,
a orquestra, a dança, estão unidas por um encadeamento de ritmos.
Três são os elementos
que constituem a música “culta”: a melodia, a harmonia e o ritmo, dos quais a melodia
sempre foi considerada como fundamental.
A música sincopada reconhece
o ritmo como componente de valor capital. Ora, assim como nas canções de trabalho,
nos “negro spirituals”, nos “blues”, a regularidade rítmica básica impera no jazz,
que deriva desses fontes melódicas e constitui um elemento imprescindível. O ritmo
negro se caracteriza pela peculiar diversidade e complexidade de suas acentuações,
complexidade e diversidade que não respeitam as normas comuns nos ritmos conhecidos
até que se tomou contato com a música africana: de fato, os acentos se antecipam,
se atrasam, se interrompem de maneira inesperada.
As duas principais características
do jazz são: a síncope e a polirritmia, que, segundo Copland (Jazz Structure and Influence) “é a verdadeira
contribuição da estética que nos ocupa ao aspecto rítmico do idioma universal.”
Elemento que tanta influência
exerce na produção do ingrediente estético chamado “swing”, a polirritmia é mais
fundamental do que a síncope, que podemos definir como “alteração do ritmo regular,
produzida pela colocação da ênfase mais vigorosa na parte do compasso que geralmente
não se acentua.” Poliritmia é uma execução simultânea de dois ritmos distintos,
e o recurso polirrítmico mais comum é o uso de metros opostos; geralmente o metro
de 3/4 ou 3/8 se superpõe ao básico 4/4. Entretanto, a polirritmia não é uma invenção
do jazz – não é encontrada na música negra do Brasil, de Cuba, de Trinidad? – mas
constitui uma herança proveniente da linguagem sonora africana.
A pulsação do jazz se
exprime através da sessão rítmica que, como os tambores na música africana, dá o
ritmo fundamental de maneira ininterrupta, detendo-se somente nos “breaks” de dois
compassos. Da execução do setor rítmico depende a coesão da obra, porque uma boa
sessão rítmica inspira o solista e o grupo de intérpretes, assim como uma que atue
com fraqueza ou desarticulação, impede a criação mais inspirada.
Para que o ritmo do jazz
surja com a fluência própria da música sincopada, a sessão correspondente deve mostrar,
antes de tudo, uma coesão imutável. Seus três ou quatro membros devem atuar como
um só homem, completando-se em sua tarefa com absoluta compreensão; devem reunir
a pulsação mecânica e trocar a rigidez em espontaneidade e plasticidade. Nada se
obtém com um setor rítmico no qual um dos elementos seja deficiente, mesmo sendo
os outros excelentes. É preferível que todos possuam qualidades médias, mas que
toquem com unidade e coerência.
Os conjuntos pequenos,
que às vezes contam com um ou dois instrumentos melódicos, procuram sempre manter
a sessão rítmica completa, na qual todos os seus integrantes, até a bateria, atuam
como solistas.
O baterista é o músico
essencial da sessão rítmica. Em suas mãos se encontra, em grande parte, a produção
do “swing”, assim como a conservação da coesão e homogeneidade das interpretações.
De fato, todos os membros da orquestra devem segui-lo em seu trabalho de assinalar
com rigidez o pulso fundamental em 4/4, ao redor do qual se criam os polirrítmos.
O SWING
Em torno do vocábulo swing teceram-se não
poucas inexatidões, pois é aplicado indistintamente à genuína arte sincopada de
New Orleans e ao pseudo jazz de orquestras numerosas, que constroem suas versões
sobre a base de intermináveis “riffs”, assim como a qualquer musiquinha de baile.
Durante muito tempo os críticos, historiadores
e musicógrafos de jazz procuraram uma correta definição técnica do que constitui
o swing. Apesar da ampla discografia que a música sincopada desenvolveu nestes últimos
tempos, esta face da concepção artística permanece ainda bastante obscura. O musicógrafo
suíço Edgar Willems disse que o swing é uma espécie de quarta dimensão da música
sincopada, sendo o ritmo a primeira, a melodia a segunda e a polifonia a terceira.
Escreveu o crítico Charles
Delaunay: “o swing dá à nota uma espécie de mobilidade contida no ritmo, que se
traduz graças a uma maior intensidade de vida” (De la vie et du jazz – Lausanne, 1946).
Segundo o crítico holandês
Joost Van Praag: “o swing constitui uma tensão psíquica nascida da uma atração do
ritmo pela medida.”
André Hodeir define o
vocábulo como “alguma cousa que determina uma espécie de tensão, física e psíquica,
e se manifesta, no plano material, mediante um contínuo balança rítmico; cada tempo
(ou fração de tempo) parece sofrer a atração dos tempos precedentes, e o mesmo exerce
uma atração sobre os seguintes.”
“Swing” – segundo Albert
Bettonville, é alargadamento dos tempos fortes, com uma ligeira contração dos tempos
fracos, tocados muito secamente.” (Paranoia
do Jazz, Bruxelles, 1939).
Irving Kolodin, no capítulo
“Swing is here”, da autobiografia de Benny Goodman, escreve: “é um produto do mero
entusiasmo pela ação de executar, uma expontaneidade que não se podem indicar mediante
acentos, valor das notas ou outros símbolos escritos.”
Resulta evidente que
o “swing” constitui um elemento estético inseparável do autêntico jazz. É um dos
diversos ingredientes – entre os quais figuram também o ataque, o vibrato, a entonação
“hot”, o glissado… de cuja coesão germinam as legítimas improvisações dos grandes
criadores deste gênero artístico. O ouvinte acostumado e sensível às expressões
da música sincopada o percebe, o SENTE. Portanto, podemos concordar com Nestor R.
Ortiz Oderigo quando define swing como “ênfase e vigor rítmicos que brotam das genuínas
improvisações dos melhores cultores do gênero, quando chegam ao máximo de excitação,
de abandono à inspiração. É o sopro vital, a seixa que anima e mantém vivas as raízes
das expressões jazzísticas” (Historia del
Jazz – Buenos Aires, 1952).
Uma legítima manifestação
de jazz pode gerar maior ou menor dose de swing. Mas, se falta completamente este
básico elemento estético, seu nível artístico se abaixa, pois o swing é o que dá
o tom ao puro jazz.
A sua presença ou ausência
em uma criação determina se ela é “hot jazz” puro ou adulterado; as manifestações
da arte sincopada privadas de swing constituem uma música automática, sem vida,
sem alma. Poderíamos compará-las a uma poesia bem rimada, mas isenta de conteúdo
humano ou social.
Acrescenta-se que o swing,
para que surja com generosidade, requer certas condições. Antes de tudo, precisa
que a execução se funda sobre um compasso binário, pois todas as tentativas que
se efetuaram de criar verdadeiro jazz sobre outra classe de compassos se viram irremediavelmente
condenadas ao fracasso. Exige também que o tempo não seja nem muito lento, nem muito
acelerado, pois sobre áreas velozes ou lentas demais, somente artistas do calibre
de Louis Armstrong, Bessie Smith, Jelly Roll Morton, Trummy Young, Ma Raney, Johnny
Doods, Barney Bigard, Sidney Bechet… podem gerar swing.
O TIMBRE
Dentro das séries de recursos originais
de que se serve a linguagem de jazz e cujo caráter se distingue das outras escolas
musicais, um dos mais peculiares é seu timbre característico. Seu significado na
genuína produção jazzística resulta indiscutível, pois constitui um dos pontos mais
sólidos sobre os quais se forma a música “hot”.
Valendo-se de uma série
de timbres de maior amplitude do que a do músico “culto”, obtida sobre a base de
um ataque incisivo, de um vibrato sustentado, do emprego contínuo de “glissandi”,
o músico de jazz põe a disposição do timbre orquestral uma série de descobertas
de elevada originalidade. Devido a uma consumida habilidade, reconhecida até pelos
mais ardentes acusadores, procura imprimir às suas versões acordes e acentos surpreendentes.
De fato, o timbre da orquestra de jazz é completamente diferente do da música clássica
ou de qualquer outra classe de música: o jazz possui sua voz própria.
Um fato ocorrido a Armstrong
nos mostra claramente este fenômeno: depois de seus concertos efetuados na capital
britânica, os músicos da B.B.C. o entrevistaram para que lhes explicasse como conseguia
obter os coloridos acordes, e insistiam também de que devia utilizar algum pistão
especial… Se ensaiam as execuções de música clássica até a obtenção de sonoridades
apuradas, e, nos instrumentos de vento, o vibrato é desconhecido. Ao contrário,
o músico de jazz, devido ao fato de que, em sua origem, não era um realizador académico,
nem tinha efetuado seus estudos num conservatório, mas foi um músico intuitivo e
espontâneo, que nada sabia de regras escolásticas, pois era um autodidata, fez uso
dos instrumentos da maneira que julgou mais conveniente, de acordo com a própria
inspiração. Não obstante que as normas académicas eram defeituosas, esta forma de
interpretação abriu novos caminhos e possibilidades novas na técnica dos instrumentos
antes deixados num segundo plano pelas orquestras sinfónicas, como, por exemplo,
o trombone, a corneta ou o pistão.
Os músicos tocavam de
uma maneira diferente do que se tinha feito até então. Utilizavam posições falsas
e empregavam uma técnica original; a sonoridade que arrancavam de seus instrumentos,
segundo a concepção do músico “sério”, não era pura, mas, ao contrário, suja, “dirty”.
Na execução dos instrumentos de vento, além dos lábios, intervém a língua e até
a garganta, pois os afronorteamericanos “cantam dentro dos instrumentos de vento”.
Era a característica
“maneira negra” de executar um trecho, a forma típica que o negro consegue fazer
vibrar as notas, de atacá-las com uma ligeira antecipação ou atraso relativo ao
valor exato da medida; tudo isso, acrescentado ao uso do vibrato, originou uma profunda
renovação na técnica instrumental.
Para produzir o típico
timbre de que falamos, o músico de jazz se utiliza de diversas surdinas, colocadas
na extremidade do pistão, corneta e trombone.
Buddy Boden, figura legendária
na história da música sincopada, utilizava diversas classes de surdinas, ou simplesmente
colocava a mão, ou um copo na extremidade de sua corneta, para efetuar variações
tímbricas. Com a ajuda de surdinas especiais, particularmente a denominada “wah-wah”
– que recebeu este nome da onomatopeia de seu som, e que foi utilizada, pela primeira
vez por “Papa” Mutt Carey – se produz o típico “growl” (grunhido), que dá às criações
“hot” uma notável intensidade expressiva, apesar de quem não está ao corrente das
autênticas versões do gênero, o julguem um efeito “cômico” ou “grotesco”.
A este ponto pode surgir
uma pergunta: Qual é a fonte de procedência desse timbre característico? Antes de
tudo, não devemos nós esquecer, como muito bem assinalou Rudi Blesch em Shinning Trumpets, que “a música africana
e afroamericana que precederam o jazz são, em sua maior parte, vocais. O jazz revela
estes antecedentes em qualidade altamente vocalizada com que se executam os instrumentos
melódicos.”
Nos blues vocais, acompanhados
por uma corneta ou pistão, se repara perfeitamente o que observamos enquanto a imitação
da voz humana que realizam os instrumentos de vento. Ouça-se, p. ex., os acompanhamentos
de Louis Armstrong a Ma Raney, Chippie Hill ou Bessie Smith.
Outro fator que contribui
poderosamente a imprimir à orquestra de jazz o timbre “sui generis” é a peculiar
constituição de sua instrumentação, de cuja sessão melódica foram desprezadas as
cordas. O violino, que integrou o corpo dos primeiros conjuntos do gênero, foi logo
eliminado, por causa de sua limitada esfera de seu campo expressivo, em comparação
com a amplitude que possuem a corneta, o pistão e o trombone. De início, o pequeno
agrupamento de cinco a oito elementos imprimiu um caráter próprio ao timbre do jazz.
O timbre, ou cor tonal, de que falamos, é inseparável do jazz, e em sua qualidade
“dirty” reside a autêntica beleza da sonoridade das orquestras sincopadas. A pureza
do som, tal como é entendida na música clássica, nada tem a ver com o gênero de
que tratamos, pois, assim como um músico culto é julgado pelo seu som cristalino
que obtém de seu instrumento, o músico de jazz é apreciado pela sua capacidade de
obter o “dirty tone”, que é uma das pedras angulares do jazz.
Além disso, o intérprete
de jazz demonstrou tal preocupação de obter um determinado timbre, que sua qualidade
não somente difere do da orquestra sinfônica ou de câmara, mas que, dentro das próprias
fronteiras, cada executante ou conjunto, possui seu vibrato próprio, seu timbre
especial, sua particular intonação, sua voz característica, peculiar; detalhes estes
que uma pessoa com o ouvido acostumado pode identificar sem esforço este ou aquele
músico, como se identifica a voz de uma pessoa.
MATERIAL TEMÁTICO
Entre os problemas mais difíceis a serem
resolvidos se encontra o da existência na nova música de um temário próprio, e o
grau de valor que precisamos dar ao mesmo, como ponto de partida de uma criação
em mãos dos intérpretes, que no jazz são autênticos criadores. Não foram raras as
afirmações de que a música nascida em New Orleans não conta com nenhuma melodia
autóctone, mas que as toma emprestadas de outros gêneros musicais. É verdade que,
entre a temática imposta por óbvios motivos de ordem comercial, abundam os trechos
melódicos inspirados ou copiados de forma textual da “literatura musical culta”,
ou de músicas forâneas, como, por exemplo, AVALON, no qual se copia, com evidente
mau gosto, um tema de Puccini; Old Man River copiada de uma velha canção francesa
pelo seu “criador” Jerome Kern…
Mas estes fragmentos
não pertencem ao temário primitivo e genuíno do jazz de Louisiana, nem ao puro repertório
de “ragtime” de St. Louis. Sua introdução na temática da nova música não somente
constitui um profundo erro estético e uma falta de gosto, mas põe em evidência o
motivo a que obedecem esses embriões: a busca do fácil éxito entre o público mal
informado ou desprevenido.
Negar a existência de
uma excelente face de fragmentos melódicos germinados ao calor da execução improvisada
e adaptados especialmente para abordar sobre os mesmos novas variações “hot”, é
não querer ver o evidente. Além disso o jazz tem nos “spirituals”, nos hinos religiosos,
nos cantos de trabalho, nas canções crioulas da Luisiana, nos “rags”, nos “stomps”,
e, sobretudo, nos “blues”, um temário que lhe basta.
O erro de que falamos
tem sua origem no fato de que, na realidade, o tema melódico em que o criador apoia
suas improvisações, possui uma importância secundária. O que conta fundamentalmente,
como já sabemos, é a interpretação do grupo de improvisadores ou do solista, pois
o improvisador, sobre a base de seu desenho melódico, realiza suas variações “hot”
imprimindo-lhe a marca de sua personalidade e de seu estilo. Na realidade, nos autênticos
conjuntos de jazz, o núcleo de executantes é o que cria, o que compõe. Consequentemente,
a tarefa do compositor é secundária.
Por isso, a música de
jazz não está integrada por páginas inalteráveis, estáticas, invariáveis, e que
se repetem numa forma estereotipada através de diversas versões, como sucede em
outras classes de expressões da arte sonora. Mas, como sucede na música folclórica,
desempenha um papel predominante a dinâmica fantasia do executante que realiza todas
as classes de modificações de ordem melódico, harmônico, rítmico e tímbrico. Por
isso não se pode falar de uma versão definitiva deste ou daquele trecho, pois cada
executante lhe comunica seu próprio respiro, lhe inculca um novo tom. Os temas que
o jazz emprega comumente consistem em um “chorus”.
As frases destes fragmentos
melódicos se desenvolvem ao longo de unidades de quatro, oito, dezesseis ou trinta
e dois compassos. Geralmente, nas genuínas versões do gênero, somente se utiliza
o “chorus” para abordar sobre sua melodia ou seus acordes as improvisações “hot”.
Como já dissemos, o jazz
tem no cancioneiro afronorteamericano e na música afrocrioula da Luisiana sua melhor
fonte de seu temário.
Os músicos de jazz utilizaram,
durante muito tempo, temas de blues de 12 medidas, de ragtimes (16 medidas), de
spirituals (geralmente 16 medidas), de velhas áreas de origem francesa (16 ou 32
medidas), ou de trechos compostos por eles mesmos parecidos com os precedentes.
Em seguida, sobretudo a partir de 1929, os músicos, impulsados pelos managers, editores
de música e companhias de discos, tiveram que interpretar principalmente áreas de
sucesso da Broadway, de qualidade musical geralmente inferior.
A maioria dos temas empregados
pelo jazz depois do período de New Orleans são de 32 medidas, e a maioria consiste
somente de duas frases de 8 medidas cada uma: a frase principal (frase A) que é
repetida três vezes no tema, e a frase secundária (frase B) que aparece somente
uma vez depois de duas repetições da frase A, da maneira que podemos descrever o
trecho como tendo a forma de A, A, B, A. Ex. Honeysuckle Rose, Stomping at the Savoy,
Body and Soul. Em outros temas de 32 medidas a frase principal aparece durante as
8 primeiras medidas, e se desenvolve de uma maneira diferente durante as 8 seguintes;
ao meio (17 medidas), a frase principal reaparece, mas termina de uma maneira diferente.
Podemos representar esse tema pela fórmula A, B, A, C. Ex. I can’t
give you anything but love, Indiana, Margie.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Hugues Panassié e
Madeleine Gautier: Dictionnaire du Jazz –
Paris, 1954.
Hugues Panassié: La Véritable Musique de Jazz – Paris, 1952.
Hugues Panassié: Quand Mezzrow Enregistre – Paris, 1952.
Fréderic Ramsey e
Charles-Édouard Smith: Jazzmen – Paris,
1949.
Rex Harris: The Story of Jazz – New York, 1955.
Barry Ulanov: Histoire du Jazz – Paris, 1955.
Écoutez-moi ça l’Histoire du Jazz Raconté par Ceux Qui L’ont Faite – Paris,
1956.
Nestor R. Ortiz Oderigo:
Historia del Jazz – Buenos Aires, 1952.
Bernard Huvelmans:
De la Bamboula au Be-Bop – Paris, 1951.
Satchmo Louis Armstrong:
My life in New Orleans – New York, 1955.
Gérard Legrand: Puissances du Jazz – Paris, 1953.
Alun Morgan, Peter
Gammond, Don Rendell, Raymond Horricks: Modern
Jazz - London, 1956.
Albert J. McCarthy:
Jazzbook – London, 1955.
Orrin Keepnews and
Bill Grauer Jr.: A Pictorial History of Jazz
– New York, 1955.
Blesh Rudy: Shinning Trumpets – New York, 1946.
Blesh Rudy: This is Jazz – San Francisco, 1943.
Hodeir André: Le Jazz, Cet Inconnu – Paris, 1945.
Barry Ulanov: Duke Ellington – New York, 1946.
Aaron Copland: Jazz Structure and Influence of Modern Music
Coeuroy André: Histoire Générale du Jazz – Paris, 1942.
Bragaglia Giulio: Jazz Band – Milão, 1929.
Albert Bettonville: Paranoia do Jazz – Bruxelles, 1939.
Charles Delaunay:
De la vie et du Jazz – Lausanne, 1946.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário