quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Razões surrealistas


EVIDÊNCIA SURREALISTA

Para nós, que estamos a caminho da grande barreira da sombra, nada mais inesperado que o encontro súbito da verdade que existe nos olhos que nos fixam. Para acreditar na evidência do olhar é preciso ter encontrado o amor; não o amor vulgar, mas o amor pelo inesperado, desconhecido animal que nos espreita há séculos, a ave que parte para o infinito, a sombra das existências já perdidas.
De nós sai agora o grande conhecimento das coisas ocultas que parte para os vossos olhos.
Entre o sonho e a pedra nada mais existe que isto:
Os dois caminhos formados para uma exaustiva procura.
O braço, praia e noite por onde caminhamos até ao desconhecido, forma única que está por descobrir e que por si só é já a escada líquida que subiremos um dia:
é a carta, o Arcano XVII, a estrela dos magos, cujo norte é a estrada longa e muito branca
que leva à vida e à morte.
Do encontro súbito e muito rápido destes dois objectos nasce a força, nossa própria força de atacar e de ferir, nosso desejo de destruição e, ainda que não pareça, o nosso subir à última nuvem, à altura inultrapassada onde o próprio sangue para, onde o seco nada mais é que a própria forma humana, onde a luta e a raiva dão origem à flor por descobrir.
Para ser mais claro, poderei afirmar que este conhecimento me veio da aventura que um dia me aconteceu:
ia por uma rua longa, muito longa e completamente deserta. Era noite e não existiam luzes, talvez porque tivesse faltado a corrente eléctrica, talvez porque nunca tivesse existido luz naquela rua. Era um vulgar caminho de volta para casa, tão vulgar que não dava para ele. De repente abriu-se uma porta à minha frente. Fiz os três sinais; o primeiro de alto a baixo com a mão aberta, o segundo à esquerda, horizontal, só com o polegar e o último, o maior, circular e muito nítido em frente da cara. Depois entrei. Uma escada enorme, cheia de luz levou-me até ao fundo, à sala onde pequenas serpentes caminhavam velozmente para a floresta petrificada que se projectava ao fundo. Segui-as. Já não podia parar, devido principalmente à inclinação da sala. Entrei na floresta. Enormes figuras que ainda hoje não posso classificar me apareceram então, lentas, armadas de longas lanças, e me empurraram brutalmente para uma praça de calcário exaustivamente brando onde um corpo de mulher jazia sangrando, sem cabeça. Para atravessar a praça vi-me forçado a passar por cima desse corpo e então verifiquei que ele estava atravessado por um lindíssimo garfo de prata. Nada mais havia a fazer e, portanto, segui o meu caminho. Do outro lado da praça havia uma outra porta, monumental, rutilante como um Sol. Abri-a. Nessa altura, uma forma esférica me caiu em cima da cabeça. Creio bem que desmaiei. Quando, de manhã, dois amigos me encontraram caído na mesma rua, um pouco mais à frente apenas, eu estava abraçado a uma cabeça de mulher cujos lindíssimos e negros cabelos se enrolavam no meu pescoço. Nos seus olhos verdes havia lágrimas. Julgo ter ficado três dias de cama, mas depois o conhecimento de todos estes acontecimentos trouxe-me a descoberta do que se segue:

NÓS REDUZIREMOS A ARTE À SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES, QUE É O AMOR
– Evidência Surrealista –

Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna: é imaginação o livre exercício do espírito que, servindo-se de um (ou mais) aspectos do real, passa lenta ou rapidamente ao extremo limite dele (humor negro, etc.) para encontrar pouco importa em que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este processo, encontrar um objecto onde tudo, simultaneamente, tenha as propriedades da verdade e do erro, do uno e do múltiplo, do que foi encontrado e do que está perdido, é transformar (violentar) a realidade depois de a ter transtornado; é fixar um novo real poético uno. Esse real poético dá-o o SURREALISMO reunindo, até aqui insuperavelmente, Apolo e Dionísio, Vênus Celeste e Vênus Terrena, Ocultismo e Magia.
Para nós – que estamos longe de requerer o exclusivo da constatação – toda a imaginação forte é actuação forte no mundo, todo o acto está por si mesmo encontrado e perdido, intensamente desejado e intensamente temido. A “poesia surrealista” tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num só total delirante “explosivo-fixo, solene-circunstancial” todas as presenças, ligando estreitamente a coisa a possuir e os meios de possui-la, numa viagem que só se termina quando ardem por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva, a estação de chegada, os rails e os passageiros.
À “reabilitação do real quotidiano” opomos simplesmente o espectáculo dos quartos e das ruas. Quanto à teorética correspondente, é de fins literários e, à transparência, preparadamente confusos e confundidos. Para o poeta, que é Imaginação, não há nem pode haver compartimentos estanques no real das coisas – na presença das coisas. Ele é, por si, voluntária ou involuntariamente, o mais alto compartimento de relação, junto ao qual todos os outros são mero artifício geográfico ou económico. NÃO É para um par de sapatos que alienamos a vida e quando ela, para nós, está ausente é porque está MAIS ALTO.
___________

Não ama aquele que ama tão somente a humanidade, mas aquele que ama através de um indivíduo bem determinado (Charles Fourier).

Lisboa – Outubro de 1951

Mário Henrique Leiria
Mário Cesariny de Vasconcelos
Carlos Eurico da Costa
Artur do Cruzeiro Seixas



Realidade Surrealista

Quem se interessa tem obrigação de conhecer.
Quer dizer que a má interpretação da experiência ou a sua catalogação não invalidam o fundamento da própria experiência.
Escolhemos o Surrealismo porque ele é para nós a única base autêntica duma realização procurada e urgente, mas não nos empenhamos demasiado na força mítica do rótulo. Hoje, realizados certos dados da experiência, continua a ser um caminho para a sua persecução a aceitarmos verdadeiramente qualquer outro movimento que garanta a liberdade atingida. Sabemos, no entanto, que tal não se deu ainda. É bom dizer que sem abstrair da nossa própria miséria, nós vemos a miséria ambiente, o medo circundante, a luta pelo sucesso fácil, a adaptação à conveniência (saída duma sala para a outra, com bater de portas) e, sobretudo, a inércia secular dum público de que alguns teóricos extremistas garantem a existência, mas que nos parece estar por experimentar e até por existir.



Mas para que havemos de sonhar um novo mundo ideal, quando estamos tão bem naquele em que vivemos?
O ideal não existe senão na fantasia dos poetas e dos filósofos sonhadores.
Não fomos nós que nos fizemos assim como somos; e daí?
Deixemos, pois, as coisas como estão.
São fruto da experiência, são o resultado das forças que se combatem, dos atritos que se formam no combate dos instintos e da razão.
Quando for preciso uma reforma, ela se fará por si; porque as coisas necessárias se realizam sem e contra a nossa vontade, sem precisão de livros, de conferências e de leis.



Antes de começar quero fazer uma prevenção aos que estão ouvindo: tudo o que aqui se vai afirmar tem o valor exacto que as palavras lhe dão. Não há simbolismos ou disfarces.
Quando eu disser merda, é mesmo merda que quero dizer. Quando eu disser lua, é mesmo lua que quero dizer.
As afirmações e negações que vou fazer são minhas. E por mim se representam agora uns tantos – poucos – que ainda têm força para afirmar e negar. Com respeito aos que irão talvez patear e gritar, são-me tão indiferentes como os que vão aplaudir, se o quiserem fazer.
Mais uma vez digo: a afirmação e negação é minha e os nomes que por acaso aparecerem representam de facto aquilo que são.
Se alguém está disposto a ir-se embora será óptimo que o faça. As presenças inúteis só servem para encher sem servirem para coisa alguma.
E agora entremos na análise cuidadosa o mais possível das


RAZÕES PORQUE SOU SURREALISTA

Nasci em 2 de Janeiro de 1923.
Morri, como todos sabem, em 3 de Fevereiro de 1759. Fui acompanhado nesse acto eminentemente económico e irracional por trinta e nove sanguessugas, primatas já por si predispostos para a aceitação de qualquer acção construtiva e revolucionária. Talvez por isso, e mesmo por isso, uma velha máquina de costura se encontrou (e quando digo encontrou ponho, evidentemente, o caso do sexualismo actuante) com uma locomotiva que, de cabelos desgrenhados, uivava perdida na noite. É esta a razão do nascimento dos elicópteros metafísicos, que todos os anos descem do ninho para fazer análises de urinas e de actos de devoção. Então cada elicóptero traz uma pequena esfera metálica com que se alimenta e é nessa altura que lhes é dada autorização para viver 73 anos (incluindo os passados na tropa) e para se desmoronar quando lhes apeteça. O desmoronamento dum elicóptero é sempre um espetáculo digno e emocionante: primeiro todas as mães de família não ocupadas ou em estado de gravidez adiantada, se reúnem numa dança de roda e afirmam as suas convicções. Em seguida começam a rolar laranjas e é dado o início à sagração. As estruturas caem com grande estrondo dentro do ouvido de cada espectador e o regozijo é geral. Formam-se por essa ocasião pequenos aglomerados pustulentos que devem ser extraídos com todo o cuidado e postos a secar em lugares elevados e onde hajam pessoas de compleição débil. A justaposição contínua desses aglomerados dá frequentes vezes como resultado o aparecimento de doenças venéreas e toda a espécie de perturbações na vista, que logo são remediadas com aplicações frequentes de massagens eléctricas e banhos mornos em água não muito açucarada (isto à falta de ácido nítrico, evidentemente).
Bem, mas o essencial para obter boas torneiras e chaves é, como já foi dito, usar de toda a circunspecção e uma boa dose de glicerina de preferência a do Cáucaso. Depois nada mais há a fazer do que mexer tudo e pôr em banho-maria até as orelhas começarem a tomar uma transparência vítrea que muito facilita a observação dos fenómenos climatéricos. A evidência dos actos aparece então, perfeitamente nítida.
Afirmo até que a razão de ser do esmalte dos dentes não é, como parece à primeira vista, um caso de raciocínio, mas sim uma posição moral, bastando para isso observar como andam os caranguejos e as fases da lua por ocasião do aparecimento de símbolos agnósticos.
Tudo está, portanto, esclarecido até atingir a devida incompreensão necessária e pedida, tanto mais que os aparelhos ortopédicos se fizeram para educação das crianças.
São estas as razões porque sou surrealista...


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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