Para nós, que estamos a caminho da grande barreira da
sombra, nada mais inesperado que o encontro súbito da verdade que existe nos olhos
que nos fixam. Para acreditar na evidência do olhar é preciso ter encontrado o amor;
não o amor vulgar, mas o amor pelo inesperado, desconhecido animal que nos espreita
há séculos, a ave que parte para o infinito, a sombra das existências já perdidas.
De nós sai agora o grande conhecimento das coisas ocultas
que parte para os vossos olhos.
Entre o sonho e a pedra nada mais existe que isto:
Os dois caminhos formados para uma exaustiva procura.
O braço, praia e noite por onde caminhamos até ao desconhecido,
forma única que está por descobrir e que por si só é já a escada líquida que subiremos
um dia:
é a carta, o Arcano XVII, a estrela dos magos, cujo
norte é a estrada longa e muito branca
que leva à vida e à morte.
Do encontro súbito e muito rápido destes dois objectos
nasce a força, nossa própria força de atacar e de ferir, nosso desejo de destruição
e, ainda que não pareça, o nosso subir à última nuvem, à altura inultrapassada onde
o próprio sangue para, onde o seco nada mais é que a própria forma humana, onde
a luta e a raiva dão origem à flor por descobrir.
Para ser mais claro, poderei afirmar que este conhecimento
me veio da aventura que um dia me aconteceu:
ia por uma rua longa, muito longa e completamente deserta.
Era noite e não existiam luzes, talvez porque tivesse faltado a corrente eléctrica,
talvez porque nunca tivesse existido luz naquela rua. Era um vulgar caminho de volta
para casa, tão vulgar que não dava para ele. De repente abriu-se uma porta à minha
frente. Fiz os três sinais; o primeiro de alto a baixo com a mão aberta, o segundo
à esquerda, horizontal, só com o polegar e o último, o maior, circular e muito nítido
em frente da cara. Depois entrei. Uma escada enorme, cheia de luz levou-me até ao
fundo, à sala onde pequenas serpentes caminhavam velozmente para a floresta petrificada
que se projectava ao fundo. Segui-as. Já não podia parar, devido principalmente
à inclinação da sala. Entrei na floresta. Enormes figuras que ainda hoje não posso
classificar me apareceram então, lentas, armadas de longas lanças, e me empurraram
brutalmente para uma praça de calcário exaustivamente brando onde um corpo de mulher
jazia sangrando, sem cabeça. Para atravessar a praça vi-me forçado a passar por
cima desse corpo e então verifiquei que ele estava atravessado por um lindíssimo
garfo de prata. Nada mais havia a fazer e, portanto, segui o meu caminho. Do outro
lado da praça havia uma outra porta, monumental, rutilante como um Sol. Abri-a.
Nessa altura, uma forma esférica me caiu em cima da cabeça. Creio bem que desmaiei.
Quando, de manhã, dois amigos me encontraram caído na mesma rua, um pouco mais à
frente apenas, eu estava abraçado a uma cabeça de mulher cujos lindíssimos e negros
cabelos se enrolavam no meu pescoço. Nos seus olhos verdes havia lágrimas. Julgo
ter ficado três dias de cama, mas depois o conhecimento de todos estes acontecimentos
trouxe-me a descoberta do que se segue:
NÓS REDUZIREMOS
A ARTE À SUA EXPRESSÃO MAIS SIMPLES, QUE É O AMOR
– Evidência Surrealista –
Só a imaginação transforma. Só a imaginação transtorna: é imaginação o livre
exercício do espírito que, servindo-se de um (ou mais) aspectos do real, passa lenta
ou rapidamente ao extremo limite dele (humor negro, etc.) para encontrar pouco importa
em que margens, o objecto real de um irreal conquistado no espírito. Acelerar este
processo, encontrar um objecto onde tudo, simultaneamente, tenha as propriedades
da verdade e do erro, do uno e do múltiplo, do que foi encontrado e do que está
perdido, é transformar (violentar) a realidade depois de a ter transtornado; é fixar
um novo real poético uno. Esse real poético dá-o o SURREALISMO reunindo, até aqui
insuperavelmente, Apolo e Dionísio, Vênus Celeste e Vênus Terrena, Ocultismo e Magia.
Para nós – que estamos longe de requerer o exclusivo
da constatação – toda a imaginação forte é actuação forte no mundo, todo o acto
está por si mesmo encontrado e perdido, intensamente desejado e intensamente temido.
A “poesia surrealista” tende constantemente, como no acto amoroso, a fundir num
só total delirante “explosivo-fixo, solene-circunstancial” todas as presenças, ligando
estreitamente a coisa a possuir e os meios de possui-la, numa viagem que só se termina
quando ardem por completo não apenas o carvão que movia a locomotiva, mas a locomotiva,
a estação de chegada, os rails e os passageiros.
À “reabilitação do real quotidiano” opomos simplesmente
o espectáculo dos quartos e das ruas. Quanto à teorética correspondente, é de fins
literários e, à transparência, preparadamente confusos e confundidos. Para o poeta,
que é Imaginação, não há nem pode haver compartimentos estanques no real das coisas
– na presença das coisas. Ele é, por si, voluntária ou involuntariamente, o mais
alto compartimento de relação, junto ao qual todos os outros são mero artifício
geográfico ou económico. NÃO É para um par de sapatos que alienamos a vida e quando
ela, para nós, está ausente é porque está MAIS ALTO.
___________
Não ama aquele que ama tão somente a humanidade, mas
aquele que ama através de um indivíduo bem determinado (Charles Fourier).
Lisboa – Outubro de 1951
Mário Henrique Leiria
Mário Cesariny de Vasconcelos
Carlos Eurico da Costa
Artur do Cruzeiro Seixas
Realidade Surrealista
Quem se interessa tem obrigação de conhecer.
Quer dizer que a má interpretação
da experiência ou a sua catalogação não invalidam o fundamento da própria experiência.
Escolhemos o Surrealismo
porque ele é para nós a única base autêntica duma realização procurada e urgente,
mas não nos empenhamos demasiado na força mítica do rótulo. Hoje, realizados certos
dados da experiência, continua a ser um caminho para a sua persecução a aceitarmos
verdadeiramente qualquer outro movimento que garanta a liberdade atingida. Sabemos,
no entanto, que tal não se deu ainda. É bom dizer que sem abstrair da nossa própria
miséria, nós vemos a miséria ambiente, o medo circundante, a luta pelo sucesso fácil,
a adaptação à conveniência (saída duma sala para a outra, com bater de portas) e,
sobretudo, a inércia secular dum público de que alguns teóricos extremistas garantem
a existência, mas que nos parece estar por experimentar e até por existir.
O ideal não existe senão na fantasia dos poetas e dos filósofos sonhadores.
Não fomos nós que nos fizemos assim como somos; e daí?
Deixemos, pois, as coisas como estão.
São fruto da experiência, são o resultado das forças que se combatem, dos atritos
que se formam no combate dos instintos e da razão.
Quando for preciso uma reforma, ela se fará por si; porque as coisas necessárias
se realizam sem e contra a nossa vontade, sem precisão de livros, de conferências
e de leis.
Antes de começar quero fazer
uma prevenção aos que estão ouvindo: tudo o que aqui se vai afirmar tem o valor
exacto que as palavras lhe dão. Não há simbolismos ou disfarces.
Quando eu disser merda, é mesmo merda que quero dizer. Quando eu disser lua,
é mesmo lua que quero dizer.
As afirmações e negações que vou fazer são minhas. E por mim se representam
agora uns tantos – poucos – que ainda têm força para afirmar e negar. Com respeito
aos que irão talvez patear e gritar, são-me tão indiferentes como os que vão aplaudir,
se o quiserem fazer.
Mais uma vez digo: a afirmação e negação é minha e os nomes que por acaso aparecerem
representam de facto aquilo que são.
Se alguém está disposto a ir-se embora será óptimo que o faça. As presenças
inúteis só servem para encher sem servirem para coisa alguma.
E agora entremos na análise cuidadosa o mais possível das
RAZÕES PORQUE SOU SURREALISTA
Morri, como todos sabem, em 3 de Fevereiro
de 1759. Fui acompanhado nesse acto eminentemente económico e irracional por trinta
e nove sanguessugas, primatas já por si predispostos para a aceitação de qualquer
acção construtiva e revolucionária. Talvez por isso, e mesmo por isso, uma velha
máquina de costura se encontrou (e quando digo encontrou ponho, evidentemente, o
caso do sexualismo actuante) com uma locomotiva que, de cabelos desgrenhados, uivava
perdida na noite. É esta a razão do nascimento dos elicópteros metafísicos, que
todos os anos descem do ninho para fazer análises de urinas e de actos de devoção.
Então cada elicóptero traz uma pequena esfera metálica com que se alimenta e é nessa
altura que lhes é dada autorização para viver 73 anos (incluindo os passados na
tropa) e para se desmoronar quando lhes apeteça. O desmoronamento dum elicóptero
é sempre um espetáculo digno e emocionante: primeiro todas as mães de família não
ocupadas ou em estado de gravidez adiantada, se reúnem numa dança de roda e afirmam
as suas convicções. Em seguida começam a rolar laranjas e é dado o início à sagração.
As estruturas caem com grande estrondo dentro do ouvido de cada espectador e o regozijo
é geral. Formam-se por essa ocasião pequenos aglomerados pustulentos que devem ser
extraídos com todo o cuidado e postos a secar em lugares elevados e onde hajam pessoas
de compleição débil. A justaposição contínua desses aglomerados dá frequentes vezes
como resultado o aparecimento de doenças venéreas e toda a espécie de perturbações
na vista, que logo são remediadas com aplicações frequentes de massagens eléctricas
e banhos mornos em água não muito açucarada (isto à falta de ácido nítrico, evidentemente).
Bem, mas o essencial
para obter boas torneiras e chaves é, como já foi dito, usar de toda a circunspecção
e uma boa dose de glicerina de preferência a do Cáucaso. Depois nada mais há a fazer
do que mexer tudo e pôr em banho-maria até as orelhas começarem a tomar uma transparência
vítrea que muito facilita a observação dos fenómenos climatéricos. A evidência dos
actos aparece então, perfeitamente nítida.
Afirmo até que
a razão de ser do esmalte dos dentes não é, como parece à primeira vista, um caso
de raciocínio, mas sim uma posição moral, bastando para isso observar como andam
os caranguejos e as fases da lua por ocasião do aparecimento de símbolos agnósticos.
Tudo está, portanto,
esclarecido até atingir a devida incompreensão necessária e pedida, tanto mais que
os aparelhos ortopédicos se fizeram para educação das crianças.
São estas as razões
porque sou surrealista...
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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