A experiência de exílio, ou do processo de exílio, pode
ser elemento-chave para a escritura de ficção. Apesar do trauma ou traumas que
tal experiência possa causar, como defendem os psicanalistas León e Rebeca
Gringberg ao afirmar que “in any migration a constellation of factors combine
to produce anxiety and sorrow” (1989), um aspecto positivo, segundo Michael
Rossner, sublinhado por Sonja Steckbauer, é a criação literária ou ainda, o
surgimento da literatura de exílio
enquanto gênero. O gênero de exílio não deixa de representar a ansiedade e o
sofrimento referidos por Gringberg e Gringberg, como também representa outras
“sete pragas” vividas pelo imigrante, de acordo com Mario Benedetti. Para o
uruguaio, as sete pragas do exílio são “el pesimismo, el derrotismo, la
frustración, la indiferencia, el escepticismo, el desánimo y la inadaptación”
(Steckbauer, 2005). Note-se que o processo criativo, ainda segundo Gringberg e
Gringberg, normalmente não se dá de maneira imediata ou concomitante à
experiência migratória. Segundo os autores de Psychoanalytic
Perspectives on Migration and Exile, “A deprived immigrant, through
sustained loss of reliable objects in his environment, also suffers from
diminished creative capacity. His ability to regain his skills will depend upon
his capacity to work through and overcome this deprivation” (1989).
Evidentemente,
há uma diferença entre exílio forçado e exílio espontâneo, se bem que os fatores
que levam um indivíduo a autoexilar-se não devem ser menos dolorosos que
aqueles que levam outro indivíduo a ser expatriado. Note-se, contudo, que
apesar de as razões para a emigração
poderem afastar a experiência de cada indivíduo, a experiência de imigração aproxima-os. É Andrew Gurr
quem observa que o exilado “does not leave home with the intention of acquiring
the superiority of the international traveler… The pressures on him are
negative, in the sense that he is impelled not to visit other countries but
simply leave his own.” (1989).
Pense-se,
sob este ponto de vista, na experiência de Mário-Henrique Leiria. Segundo o
autor nos informa na contracapa de seu best-seller,
Contos do gin tonic, em 1973
visitou “a Europa cristã e ocidental, o Mediterrâneo norte-africano, o Oriente
Médio e até, dizem, os países socialistas.” E também os Balcãs e “Em 1958
meteram-se-lhe ideias na cabeça e foi até Inglaterra, para aprender coisas. Não
aprendeu e voltou… Em 1961 foi para a América Latina donde voltou nove anos
depois.” Num primeiro momento, é possível inferir que Leiria se encaixa na
definição de Gurr que diferencia um viajante internacional de um exilado.
Leiria foi um turista por quase 10 anos. Entretanto, é de notar certa
nebulosidade no que concerne a tais viagens, sobretudo em relação à questão
financeira.
Uma
das hipóteses possíveis de se aventar é a de que o Partido Comunista lhe dava
fundos para montar os “relais” necessários para “haver mais margem de entrada e
saída das cartas da nossa gente” ao redor da Europa, como explica Leiria numa
carta a Isabel Alves da Silva Turner escrita em Dukla, no dia 30 de Novembro de
1961 (Leiria, 1997). Aliás, Mário Cesariny afirmou em Verso de Autografia que “O Mário Henrique Leiria, já cheio
de desespero, aderiu ao Partido Comunista, com o Carlos Eurico da Costa”
(Cesariny). Ou ainda, como escreveu Leonor Correia de Matos, na contracapa de Depoimentos
Escritos, as cartas que Leiria
escreve a Isabel Turner, vão “preencher aquela quota de esperança numa
felicidade pessoal de que ele, revolucionário sempre e homem de partido, nem por isso prescinde.” (grifo meu).
De
fato, os poemas de Leiria escritos entre 1952 e 1961, alguns publicados em
revistas literárias, tal é o caso de Notícias do Bloqueio, podem ser
organizados na prateleira da literatura de viagens, cuja essência é de crítica
social e empenhamento político. Quanto às informações referentes à sua
participação ativa no Partido Comunista Português, não haveria dúvidas nenhumas
se não fossem os depoimentos daqueles que conviveram no Brasil com ele por nove
anos.
Eugénia
Tabosa, ex-esposa do primo de Leiria, Mário Seabra, repetiu mais de uma vez
numa entrevista que fizemos em 1 de Julho de 2008 que “O Mário Leiria acho que
nunca foi filiado, mas sempre foi comunista”, acrescentando ainda na mesma
entrevista que “ele era um pouco
anarca”. Tabosa opina com certa autoridade, pois conviveu com o poeta em sua
casa em São Paulo por dois anos. Acrescentem-se, contudo, as informações dadas
por Mário Seabra, primo e padrinho de casamento do poeta: “O Leiria atuava como
tal [como comunista], mas nunca chegou a me dizer. Eu tenho quase certeza que
era. Mas ele . . . devia ser contrário a tudo aquilo. Tanto que o Manuel da
Fonseca e ele fundaram um partido de esquerda, e não era o PCP.” Isto ocorreria
nos anos 70, depois de Leiria retornar a Portugal.
Outra
hipótese – ou outras – referente(s) ao financiamento das viagens de Leiria pela
Europa e consequente auto-exílio no Brasil seria a de que, como era comum na
época, ele tivesse se alistado na marinha mercante, como seu companheiro de
Surrealismo, Cruzeiro Seixas, por exemplo. Segundo afirma ainda na contra-capa
dos Contos do gin tonic, “Teve vários empregos, marinha mercante,
caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil… pelas terras onde
andou”. Cruzeiro Seixas assinala numa carta que me enviou em Março de 2008 que
naqueles “anos distantes sonhávamos com longas viagens, e Paris era meta
mítica! Aqui o país é pequeno, e estamos sempre a encontrar as mesmas pessoas.
Sem dinheiro para satisfazer tais sonhos fiz-me marinheiro, o que foi uma muito
dura experiência”. Caminho semelhante traçou Jorge de Sena, e registrou-o nos
contos de Os Grão-Capitães. Segundo Eugénia Tabosa acredita, a marinha
mercante “era uma carreira promissora e, no caso do Leiria, tudo indica que foi
verdade.”
Ainda
existe a hipótese de que Leiria pagava por suas viagens com seu próprio
dinheiro, que ganhava sobretudo com as traduções diversas que fazia. Os
familiares do poeta no Brasil confirmam e contrastam a vida que tinha em Lisboa
com a que teve em São Paulo. Tabosa observa que “em Portugal ele vivia muito
bem, do trabalho dele… quando ele veio aqui para o Brasil teve dificuldade em
arranjar trabalho, porque ele dizia que nunca tinha ganho tão pouco. . . Ele
não estava dentro do maquinismo. Isto deve ter ajudado ele a se
desestabilizar.” Mário Seabra lembra-se das circunstâncias em que se davam as
entrevistas de trabalho: O curriculum dele “era rico, porque ele sabia várias línguas,
além disso ele escrevia bem. E tinha quadros dele espalhados pelo mundo, da
época surrealista. Olhavam o curriculum e diziam: ‘o senhor tem gabarito
demais!’” – e não lhe davam trabalho.
A
ideia de mudar-se para o Brasil é um tanto nebulosa, se não uma combinação de
fatores. Uma das razões foi o cerco da polícia, como afirma Leiria numa carta
de 14 de Janeiro de 1961: “é uma fatalidade que tenho de aceitar e que, neste
momento, me é imposta por uma série de factos concretos contra os quais nada posso
fazer, a não ser deixar-me esmagar ou ir parar ao Forte de Caxias. Ora eu não
quero nem uma nem outra coisa” (Leiria, 1997). O poeta já tinha sido preso uma
vez em 1952. Outro fator que influenciou sua decisão de ir ao Brasil era o de
que seu primo já estava instalado no país e, talvez um motivo mais forte, o de
que sua ex-esposa, a alemã Dietlinde Hartel, por quem “tinha uma paixão
impossível”, como afirmou Cesariny, também estava lá, vivendo em Recife.
Segundo nos informou Mário Seabra, Leiria estava “meio chateado da vida porque
tinha perdido a Fipsy. A mulher fugiu com um brasileiro.” Além disso,
informou-nos o primo que : “…eu o convidei para ele vir ter comigo. Ele estava
com muito trabalho, tal, e ele disse, ‘Mário, olha, daqui a um ano eu vou para
o Brasil’. E exatamente depois de um ano ele chegou ao Brasil. Fui esperá-lo em
Santos, ele veio de navio.”
Aquando
de seu retorno a Portugal, em 1971, apesar de já debilitado por problemas
ósseos, Leiria reencontrou a fama de tempos surrealistas. Participou de
exposições, foi redator de jornais marcadamente de esquerda e publicou os Contos
do gin tonic, e Novos contos do gin um ano depois. Ambos os livros
estiveram na lista dos best-sellers
do jornal Expresso, que, aliás, pelas mãos de Maria Teresa Horta,
enalteceu mais de uma vez o talento de Leiria. Horta afirma num artigo de 12 de
Maio de 1973 que “Esta é a terceira vez que escrevemos acerca de: ‘Contos do
Gin-Tónic’, de Mário-Henrique Leiria. Supomos, pois, não ser preciso
acrescentar mais nada para se perceber quanto este livro nos entusiasmou”
(1973). Leiria publicou ainda Imagem Devolvida: Poema-mito em 1974, além
de Casos de direito galáctico. O mundo inquietante de Josela em 1975 e Lisboa
ao voo do pássaro em 1979, com fotos de João Freire, dentre outros textos
que experimentavam com diversos media, como é o caso de uma banda desenhada com
texto seu e desenhos de Isabel Lobinho, Mário e Isabel também publicada
em 1975.
Na
entrevista dada a Fernando Dil publicada na Vida Mundial, o leitor fica
sabendo que “(Falou-se da vida de Leiria na América Latina, da sua intensa
participação no processo histórico em alguns países do continente nos anos 60)”
(1974). Tendo Leiria concluído: “Penso que valeu a pena… foi óptimo… saí
correndo sei lá como, pá… passei pelo Chile, raspei-me para Cuba, tive no
México…” (idem). E quanto à produção literária afirma: “Nunca tive preocupação
de ordem literária… nem hoje… de ordem literária não tenho, pá… deixo isso para
o Namora etc…” (idem). A imagem de revolucionário criada por Leiria em seus
textos corrobora com sua figura (inventada) no plano da realidade. Cite-se
ainda a nota biográfica sobre o poeta presente na antologia Cem poemas do
riso e do maldizer, organizada por José Fanha e José Jorge Letria, na
edição de 2003: “Poeta e contista ligado ao movimento surrealista, esteve
muitos anos ausente de Portugal, tendo vivido uma vida aventurosa, participando
nomeadamente na luta armada contra a ditadura militar no Brasil”.
Contudo,
e muito surpreendentemente, parece ter sido somente na ficção – e nesse termo
inclua-se também o gênero epistolar – que tal participação na luta armada, bem
como as passagens por Cuba ou pelo Chile e México, etc., se deram. Em
contraponto com o que normalmente ocorre na chamada “literatura de exílio”, em
que as experiências do exilado influenciam o espaço da ficção, no caso de
Leiria, foi seu talento como escritor e postura política (mas não
necessariamente de militante armado, senão de pensador que era), além de uma
traumática experiência de exílio interior, que acabaram por consubstanciar – e
atrevo-me aqui a afirmar – num heterónimo
seu.
Em
São Paulo, Leiria viveu com os Seabra de 1962 a 1964, e posteriormente com Lys
e Acácio Assunção. Por pouco tempo viveu sozinho num apartamento alugado. Conseguiu
trabalhos esporádicos, tendo vivido a maior parte do tempo graças à ajuda dos
amigos. Segundo Lys Assunção numa entrevista concedida no dia 1 de Outubro de
2008:
Nossa lembrança era dele como uma
pessoa disponível, sem trabalho fixo e vivendo da ajuda de amigos. O tempo que
morou só em um apartamento trabalhava na editora do Gil Clemente. [A extinta
editora Samambaia] Quando teve um problema ósseo na perna e foi operado. Esteve
se recuperando em nossa casa… Eu o levava para seções de fisioterapia na Santa
Casa. Conseguimos o dinheiro para que ele voltasse a Portugal com jantares
portugueses, creio que 5, que fizemos em casa.
Quanto
a viagens, Lys Assunção menciona duas, desconhecendo aquelas que o poeta
afirmou ter feito fora do estado de São Paulo e até do país: “Viajou conosco
para São Sebastião no litoral paulista e para Araraquara, interior paulista”.
Nesta viagem a Araraquara, aliás, como informou Lys Asunção, visitaram Jorge de
Sena, “professor na faculdade, tinha uma porção de filhos, se não me engano
nove. Foi bem interessante o encontro dos dois.”
A
“literatura de exílio” pode se basear numa ilusão, ou em diversas, dentre elas
a ilusão biográfica, como argumenta Sonja M. Steckbauer em seu artigo, “Exilio
y ilusión en la obra de Juan Carlos Herzen: El mercader de ilusiones”. A
autora menciona o caso do escritor paraguaio, Augusto Roa Bastos, que saiu de
sua terra natal em 1947, ano em que foi viver na Argentina e, mais tarde, em
1976, instalou-se em Tolouse, na França. Nesta
época, Bastos assinalou “en más de una
ocasión su situación de exiliado”, tendo inclusive se autodenominado “‘el
decano de los exiliados’”. Contudo, foi somente em 1982 que seu
exílio se deu pelas mãos de Stroessner. O motivo de sua expulsão do Paraguai
foi justamente o de ter mentido por tantos anos acerca de sua condição de
emigrante.
Com
este exemplo, Steckbauer demonstra que o termo “escritor exiliado” também pode
servir “como un recurso publicitário, incluso llegando a emprender – en el caso
de que sea necesario – algunos cambios en la biografia del mismo” (2005).
Pode-se pensar que Leiria adotou um método semelhante ao de Bastos tanto em
suas cartas a Isabel Turner, advogada de sua ex-esposa, por exemplo, em que
menciona um natal que passa na floresta amazônica com os índios e viagens a
Cuba, ao Rio de Janeiro, à Bahia, além de prisões e sessões de tortura, quanto
na sua obra de ficção publicada em Portugal após sua reentrada no país.
Fernando
Dil, animado em sua conversa com Leiria, afirma o seguinte: “o que eu estou a levantar é a questão do homem que
está dentro de si e o homem que expõe aquilo que é… Tu, por exemplo, expões nos
teus livros o que sentes, deduzo, o que és…, tá lá todo um rufar de
sentimentos, de solidão…, todo o teu sol, a tua limpidez…” Ao que Leiria responde:
“Não sei se está, pá…” E Dil acrescenta: “Eu tou te a dizer que está… eu sou o
leitor…” e Leiria: “Tá bem, pá, tu és o leitor… eu sou o tipo que escreveu… não
tenho culpa nenhuma…” (1974). De outro modo, é interessante notar o que Hugh
Hazelton assinalou como “los efectos regeneradores de la vuelta del exiliado –
sea para una visita o para quedarse permanentemente – a su tierra natal”
(2005), em seu trabalho intitulado “Exilio, marginación y resolución en las
obras de cinco autores chileno-canadienses”.
Os
problemas que Leiria encontrou no exílio transformaram-se em força vital.
Leiria se regenera de todos os traumas depois que se reintegra em seu país, um
Portugal ainda em crise, ainda sob o regime da ditadura, enquanto que, no
Brasil, esteve prestes a matar-se, como conta Eugénia Tabosa:
Houve uma altura que ele bebeu todo
o álcool da casa. Então o que é que se podia fazer? Era não termos tanto álcool
em casa. Só que foi tudo, ele bebeu o álcool destilado, o álcool da farmácia.
Aí eu zanguei-me com ele, eu disse ‘olha, se tu quiseres te matar, mata-te em
outro lugar, não aqui em casa, porque tem as crianças…’ e ele era o ídolo
delas… Em Portugal eu nunca o vi beber tanto.
Podemos inferir que a persona leiriana então
celebrada em Portugal, sobretudo nos pós-25 de Abril foi uma figura ficcional,
heterónima dele mesmo, que surgiu em sua literatura e foi transposta a sua
imagem graças às suas atuações (também literárias) nos jornais de esquerda, e
na cena revolucionária portuguesa. O físico não-prodigioso do cinquentenário
que desse criança sofria da degenerescência óssea, torna-se invisível diante de
sua mente portentosa e talento artístico. O surrealismo, neste caso, passa a
ser realidade – a sua realidade que, redimensionada aos parâmetros médicos da
condição do homem, seriam facilmente refutadas pelo público. No entanto, a
figura do herói revolucionário, surrealista, permanece entre seus leitores, e
lá deve ficar, pois, desse modo, Mário-Henrique Leiria encontra sua liberdade.
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TABOSA,
Eugénia, e Carlos Seabra. Entrevista pessoal. 1 de Julho de 2008.
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
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Quando se gosta e quer bem a uma pessoa, há que usar palavras amargas e duras se as doces e mansas não fazem seu efeito.
ResponderExcluirTânia, o humor do Mário Leiria não cabe no que escreveu e pintou, incorporou-se nos amigos que com ele conviveram. Pois...