• O OLHAR SURREALISTA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA
Mário-Henrique Leiria (1923-1980) desliga-se do Surrealismo em 1952 e no ano
seguinte morre António Maria Lisboa – duas irreparáveis perdas para o Surrealismo
em Portugal que logo começa a dispersar-se. Leiria integrou apenas a segunda formação
grupal, em 1948 – que durou até 1953 –, o grupo dissidente, após sua ruptura com
a formação inicial, datada de 1947. Leiria chega ao Surrealismo em seu melhor momento
e conta com a cumplicidade relevante de António Maria Lisboa, Fernando Alves dos
Santos, Henrique Risques Pereira, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa, dentre
outros, além de Mário Cesariny, este que já atuara no grupo anterior.
Leiria foi um
iconoclasta em essência, ou, no dizer da crítica Joana Emídio Marques, um exilado no planeta Terra. A grande amizade
que o unia a António Maria Lisboa, leva este a lhe escrever uma carta logo após
seu desligamento do grupo Os Surrealistas, onde destacamos esta passagem:
Quanto ao envenenamento
de que te julgas alvo, não foi nem é um envenenamento; pouco de resto tenho falado
com os nossos comuns amigos, mas, de qualquer modo, só se tivesses decretado a minha
pena de morte e disso fizesses bandeira da tua salvação eu me inibiria em te enviar
aquilo que não é, penso, não será nunca, a tua pena de morte e respectiva propaganda. De resto, nisto de Penas de Morte cada um subscreve
a sua; e é por saber que tu, seja quais forem os passos que deste ou hás-de dar
só a tua subscreverás – e mais nenhuma, é que não vi razão para deixar de te enviar
aquilo que também é teu, queiras ou
não queiras. […] A uma consciência delirante sucede-lhe
uma consciência sonambúlica, mas é ainda
uma consciência esfíngica que está não
só contida na primeira e na segunda, como verticalidade, como tende a totalizar-se nelas – ou a totalizar-se elas.
Curioso observar
como, já em 1950, António Maria Lisboa escreve a Mário Cesariny uma extensa carta,
onde fala de seus conceitos de uma metaciência,
e assim a finaliza:
Cesariny, quanto gostaria de ver a meu lado tu e todos
os outros – desta vez não com a sombra de um Breton – com os nossos próprios corpos!
na conquista de mais um impossível, de mais um mundo que está perdido – a elaborar
a imaginação do Mundo!
A avalição de
erros e acertos dessas primeiras formações do Surrealismo em Portugal, que em muito
se prolongaram até os dias atuais, certamente encontrará ou lugar para seu imperativo
detalhamento. A presente edição, no entanto, dedica-se à vida e obra de Mário-Henrique
Leiria, edição cuja organização comparto com a ensaísta Tania Martuscelli, responsável
pela compilação das Obras Completas de
Leiria. Para esta edição temos, como artista convidado, John Richardson (Inglaterra,
1958), poeta e artista plástico de expressão surrealista e intensa atuação crítica
e criativa em seu país, nos diz que Contrariando o chamado senso comum,
a ideologia capitalista, as ilusões religiosas e o miséria da vida cotidiana, com
total revolta e uma imaginação irrestrita impregnada do amor ao irracional e da
irracionalidade do amor, o surrealismo é acima de tudo uma aventura da mente que
garante nós (não) deixaremos que os caminhos do desejo fiquem cobertos de vegetação (André Breton, Amor louco). Em suma, o surrealismo procura transformar
nossa visão do que é e do que pode ser. Suas colagens, se observadas sequencialmente,
possuem um fio narrativo intrigante, moldado no maravilhoso.
*****
TANIA MARTUSCELLI
| Mário-Henrique Leiria
O
carácter rebelde de Mário Henrique Leiria que surge na literatura em forma de sarcasmo
e crítica social, foi bem recebido pelo público nos anos de 1970 com a publicação
de Contos do gin tonic e Novos
contos do gin. Entretanto, ao nos depararmos
com a obra completa do autor-artista, que recentemente se disponibilizou pela editora
portuguesa E-Primatur em três volumes (2017-2018-2019), percebemos que o
experimentalismo com diversas estéticas, como uma postura de quem busca constantemente
uma “arte verdadeira” – como um bom vanguardista que era, foram constantes em sua
obra. Não se trata de aferir que o surrealismo foi uma vaga experimentalista que
passou. O Surrealismo na obra leiriana foi o momento de liberdade completa no campo
artístico, mas um bocado incomodativo no campo da figura de Breton, uma vez que
os portugueses se sentiram postos de lado pelo francês.
A dimensão humana do poeta, notadamente sua
dignidade enquanto homem-político, que não se separa da figura do homem-artista,
é percebida e admirada pelos amigos. Artur do Cruzeiro Seixas, por exemplo, seu
companheiro de surrealismo, afirma que “quase todo o espaço seu
é o mais ferozmente ético dos espaços (…). A contrastar com seu corpo anquilosado,
por dentro, está o mais maleável dos acrobatas. Creio-o, por exemplo, inteiramente
consciente da parte de ideal e de mito que a esquerda representa.” Acrescenta ainda nesse que é um depoimento-prefácio
a uma pequena edição bilíngue (espanhol-português) de Juan Carlos Valera, Claridad
dada por el tiempo, que “[s]e a crítica fosse realmente desperta ou menos tímida,
já teria encontrado nesta obra uma das mais representativas e exemplares de toda
uma geração profundamente marcada, para além de tudo o mais, pelo anarquismo, e
pelo dadaísmo.” (1996)
O corpo
anquilosado devido a uma doença degenerativa que acabou por lhe ser fulminante aos
57 anos (nasceu em 1923 e faleceu em 1980), foi representado em sua arte por grandes
pernas, imensos abraços, caminhadas longas com duração quase de uma odisseia, etc.:
tudo o que o surrealismo lhe permitiu fazer sem extrapolar os limites de uma realidade
que, em nome da liberdade (física, mas também política, por exemplo), alcança os
liames da surrealidade. Pode-se afirmar, de igual modo, que a experiência
coletiva valeu-lhe uma maturidade enquanto artista. No entanto, não se pode negar,
após verificar sua obra disponibilizada pela E-Primatur, que a tendência a experimentar
com diversas estéticas, às vezes como exercício poético, outras como experimentalismo per se, dá-se desde o início
quando o autor, ainda com 15 anos, quando criava jogos verbais com resultados poéticos
próximos de imagens geométricas, influenciado por certo futurismo de Almada Negreiros,
certo cubismo de Picasso, além de escrever uma sátira comesinha próxima da de um
Bocage “repentista” ou de um Tolentino de veia sarcástica e caricatural. Mais tarde
escreveu manifestos de vanguarda explicando e defendendo sua arte, autodenominou-se
“hiper-moderno”, e deixou clara em alguns poemas que podem ser considerados parodísticos
o peso de Fernando Pessoa teve em sua vida. Leiria viveu e produziu num momento
em que ideias de vanguarda na arte pululavam em Portugal e no mundo.
Em 1949, ao
reunir-se ao grupo de ex-alunos da António Arroio: Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas,
Pedro Oom (e ainda outros que não estudaram lá, como António Maria Lisboa, por exemplo)
para oficializar-se como surrealista, já trazia na algibeira um curriculum assaz
interessante para um artista revolucionário. Em 1942, quando era estudante de Arquitetura
na Escola Superior de Belas Artes, as desavenças políticas custaram-lhe a matrícula
no curso. Em 1948, Leiria chegou a colaborar muito brevemente com o grupo de J.-A.
França, mas parece não ter se integrado muito bem com os colegas, como afirma numa
carta a Mário Cesariny: “Fui e sou considerado por eles um mau surrealista, caso
que se põe exactamente da mesma maneira de mim em relação a eles. Eles não são surrealistas
na minha forma de ver (excepto o O’Neill que é de facto um surrealista)” (2019).
Alexandre O’Neill, aliás, vai merecer um poema de Leiria, intitulado “É altura”, datado de 1951, ano em que o poeta se desoficializa
do G.S.L., e publica Tempo de Fantasmas, com um polémico “Pequeno aviso do
autor ao leitor” em que critica o movimento surrealista – o que inspira o poema
leiriano – no fascículo 11 dos Cadernos de Poesia. Em 1952 foi preso pela PIDE e passou um mês
no Forte de Caxias. Desoficializou-se neste mesmo ano do grupo surrealista, solidarizando-se,
em certo sentido, com a postura de O’Neill, sobretudo quando se considera o que
escreveu numa já célebre carta a Carlos Eurico da Costa: “Não acredito,
actualmente, na salvação pelo Surrealismo como não acredito sequer que a salvação
seja uma coisa encontrável assim como quem encontra uma chave que perdeu a semana
passada” (2019).
Iniciou
então uma série de viagens pelo leste da Europa, casou-se com uma alemã, trabalhou
em Portugal como tradutor e colaborou em jornais, descasou-se, e acabou por se auto-exilar
em São Paulo, em 1961. Durante os nove anos que viveu no Brasil, praticamente não
escreveu poemas. Ou ainda, quando os escreveu, deixou-os guardados na gaveta, mesmo
aqueles dedicados a amigos que lhe eram muito próximos e inclusive chegaram a ajudá-lo
financeiramente, uma vez que só conseguia trabalhos esporadicamente. Entretanto,
chegou a trabalhar na editora Samambaia, hoje extinta, onde desenvolveu alguns projetos,
tais como o de uma banda desenhada intitulada As terras paralelas que, no entanto, ficou inacabada, e antologias como
os Clássicos do Erotismo em dois volumes.
Ao retornar a Portugal em 1970, o poeta voltou
a colaborar em jornais (O Coiso – suplemento
do jornal República –, Aqui) e revistas (Ele, a versão portuguesa
da Playboy) tornou-se vastamente conhecido uma segunda vez, nomeadamente
com os best-sellers, em 1973, Contos do Gin-Tonic. seguidos dos Novos Contos do Gin um ano depois. O sucesso
dos Contos levou Maria Teresa Horta, então
articulista do Expresso, a afirmar que
o primeiro livro de Leiria tinha sido “o melhor livro de ficção de autor português
durante o ano” (1973: 30). Também participou de exposições coletivas de pintura
em que sua fase surrealista foi novamente celebrada.
BIBLIOGRAFIA
HORTA, Maria Teresa. “Contos
do Gin Tónico”, Jornal Expresso [Lisboa] 12 de Maio, 1973: 30.
LEIRIA, Mário-Henrique. (ed.)
Juan Carlos Valera. Claridad
Dada por el Tiempo. Cuenca:
Menú-
Cuadernos de Poesía, 1996.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique
Leiria. Ficções. Vol. I. (ed.) Tania Martuscelli.
Lisboa: E-Primatur, 2017.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique
Leiria. Poesia. Vol. II. (ed.) Tania Martuscelli.
Lisboa: E-Primatur, 2018.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique
Leiria. Manifestos, Textos Críticos e Afins. Vol. III.
(ed.)
Tania Martuscelli. Lisboa: E-Primatur, 2019.
Os Editores
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• ÍNDICE
FERNANDO DIL | Entrevista com Mário-Henrique
Leiria
https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2019/09/fernando-dil-entrevista-com-mario.html
JOANA EMÍDIO MARQUES | Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia
Gin-Tonic?
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Beat Generation, Angry
Young Men e os anos cinquenta
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Cartas
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dez poemas
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dicionário modesto para famílias de poucos haveres
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Linhas manifestas
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | O micróbio da música
MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Razões surrealistas
TANIA MARTUSCELLI
| Mário-Henrique Leiria, surrealista ele mesmo
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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E qualquer dúvida estaremos a disposição.
Obrigado.
Juliano Cunha
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