quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Agulha Revista de Cultura # 144 | Outubro de 2019


• O OLHAR SURREALISTA DE MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA

Mário-Henrique Leiria (1923-1980) desliga-se do Surrealismo em 1952 e no ano seguinte morre António Maria Lisboa – duas irreparáveis perdas para o Surrealismo em Portugal que logo começa a dispersar-se. Leiria integrou apenas a segunda formação grupal, em 1948 – que durou até 1953 –, o grupo dissidente, após sua ruptura com a formação inicial, datada de 1947. Leiria chega ao Surrealismo em seu melhor momento e conta com a cumplicidade relevante de António Maria Lisboa, Fernando Alves dos Santos, Henrique Risques Pereira, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa, dentre outros, além de Mário Cesariny, este que já atuara no grupo anterior.
Leiria foi um iconoclasta em essência, ou, no dizer da crítica Joana Emídio Marques, um exilado no planeta Terra. A grande amizade que o unia a António Maria Lisboa, leva este a lhe escrever uma carta logo após seu desligamento do grupo Os Surrealistas, onde destacamos esta passagem:

Quanto ao envenenamento de que te julgas alvo, não foi nem é um envenenamento; pouco de resto tenho falado com os nossos comuns amigos, mas, de qualquer modo, só se tivesses decretado a minha pena de morte e disso fizesses bandeira da tua salvação eu me inibiria em te enviar aquilo que não é, penso, não será nunca, a tua pena de morte e respectiva propaganda. De resto, nisto de Penas de Morte cada um subscreve a sua; e é por saber que tu, seja quais forem os passos que deste ou hás-de dar só a tua subscreverás – e mais nenhuma, é que não vi razão para deixar de te enviar aquilo que também é teu, queiras ou não queiras. […] A uma consciência delirante sucede-lhe uma consciência sonambúlica, mas é ainda uma consciência esfíngica que está não só contida na primeira e na segunda, como verticalidade, como tende a totalizar-se nelas – ou a totalizar-se elas.

Curioso observar como, já em 1950, António Maria Lisboa escreve a Mário Cesariny uma extensa carta, onde fala de seus conceitos de uma metaciência, e assim a finaliza:

Cesariny, quanto gostaria de ver a meu lado tu e todos os outros – desta vez não com a sombra de um Breton – com os nossos próprios corpos! na conquista de mais um impossível, de mais um mundo que está perdido – a elaborar a imaginação do Mundo!

A avalição de erros e acertos dessas primeiras formações do Surrealismo em Portugal, que em muito se prolongaram até os dias atuais, certamente encontrará ou lugar para seu imperativo detalhamento. A presente edição, no entanto, dedica-se à vida e obra de Mário-Henrique Leiria, edição cuja organização comparto com a ensaísta Tania Martuscelli, responsável pela compilação das Obras Completas de Leiria. Para esta edição temos, como artista convidado, John Richardson (Inglaterra, 1958), poeta e artista plástico de expressão surrealista e intensa atuação crítica e criativa em seu país, nos diz que Contrariando o chamado senso comum, a ideologia capitalista, as ilusões religiosas e o miséria da vida cotidiana, com total revolta e uma imaginação irrestrita impregnada do amor ao irracional e da irracionalidade do amor, o surrealismo é acima de tudo uma aventura da mente que garante nós (não) deixaremos que os caminhos do desejo fiquem cobertos de vegetação (André Breton, Amor louco). Em suma, o surrealismo procura transformar nossa visão do que é e do que pode ser. Suas colagens, se observadas sequencialmente, possuem um fio narrativo intrigante, moldado no maravilhoso.

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TANIA MARTUSCELLI | Mário-Henrique Leiria

O carácter rebelde de Mário Henrique Leiria que surge na literatura em forma de sarcasmo e crítica social, foi bem recebido pelo público nos anos de 1970 com a publicação de Contos do gin tonic e Novos contos do gin. Entretanto, ao nos depararmos com a obra completa do autor-artista, que recentemente se disponibilizou pela editora portuguesa E-Primatur em três volumes (2017-2018-2019), percebemos que o experimentalismo com diversas estéticas, como uma postura de quem busca constantemente uma “arte verdadeira” – como um bom vanguardista que era, foram constantes em sua obra. Não se trata de aferir que o surrealismo foi uma vaga experimentalista que passou. O Surrealismo na obra leiriana foi o momento de liberdade completa no campo artístico, mas um bocado incomodativo no campo da figura de Breton, uma vez que os portugueses se sentiram postos de lado pelo francês.
A dimensão humana do poeta, notadamente sua dignidade enquanto homem-político, que não se separa da figura do homem-artista, é percebida e admirada pelos amigos. Artur do Cruzeiro Seixas, por exemplo, seu companheiro de surrealismo, afirma que “quase todo o espaço seu é o mais ferozmente ético dos espaços (…). A contrastar com seu corpo anquilosado, por dentro, está o mais maleável dos acrobatas. Creio-o, por exemplo, inteiramente consciente da parte de ideal e de mito que a esquerda representa.” Acrescenta ainda nesse que é um depoimento-prefácio a uma pequena edição bilíngue (espanhol-português) de Juan Carlos Valera, Claridad dada por el tiempo, que “[s]e a crítica fosse realmente desperta ou menos tímida, já teria encontrado nesta obra uma das mais representativas e exemplares de toda uma geração profundamente marcada, para além de tudo o mais, pelo anarquismo, e pelo dadaísmo.” (1996)
 O corpo anquilosado devido a uma doença degenerativa que acabou por lhe ser fulminante aos 57 anos (nasceu em 1923 e faleceu em 1980), foi representado em sua arte por grandes pernas, imensos abraços, caminhadas longas com duração quase de uma odisseia, etc.: tudo o que o surrealismo lhe permitiu fazer sem extrapolar os limites de uma realidade que, em nome da liberdade (física, mas também política, por exemplo), alcança os liames da surrealidade. Pode-se afirmar, de igual modo, que a experiência coletiva valeu-lhe uma maturidade enquanto artista. No entanto, não se pode negar, após verificar sua obra disponibilizada pela E-Primatur, que a tendência a experimentar com diversas estéticas, às vezes como exercício poético, outras como experimentalismo per se, dá-se desde o início quando o autor, ainda com 15 anos, quando criava jogos verbais com resultados poéticos próximos de imagens geométricas, influenciado por certo futurismo de Almada Negreiros, certo cubismo de Picasso, além de escrever uma sátira comesinha próxima da de um Bocage “repentista” ou de um Tolentino de veia sarcástica e caricatural. Mais tarde escreveu manifestos de vanguarda explicando e defendendo sua arte, autodenominou-se “hiper-moderno”, e deixou clara em alguns poemas que podem ser considerados parodísticos o peso de Fernando Pessoa teve em sua vida. Leiria viveu e produziu num momento em que ideias de vanguarda na arte pululavam em Portugal e no mundo.
Em 1949, ao reunir-se ao grupo de ex-alunos da António Arroio: Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Pedro Oom (e ainda outros que não estudaram lá, como António Maria Lisboa, por exemplo) para oficializar-se como surrealista, já trazia na algibeira um curriculum assaz interessante para um artista revolucionário. Em 1942, quando era estudante de Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes, as desavenças políticas custaram-lhe a matrícula no curso. Em 1948, Leiria chegou a colaborar muito brevemente com o grupo de J.-A. França, mas parece não ter se integrado muito bem com os colegas, como afirma numa carta a Mário Cesariny: “Fui e sou considerado por eles um mau surrealista, caso que se põe exactamente da mesma maneira de mim em relação a eles. Eles não são surrealistas na minha forma de ver (excepto o O’Neill que é de facto um surrealista)” (2019). Alexandre O’Neill, aliás, vai merecer um poema de Leiria, intitulado “É altura”, datado de 1951, ano em que o poeta se desoficializa do G.S.L., e publica Tempo de Fantasmas, com um polémico “Pequeno aviso do autor ao leitor” em que critica o movimento surrealista – o que inspira o poema leiriano – no fascículo 11 dos Cadernos de Poesia. Em 1952 foi preso pela PIDE e passou um mês no Forte de Caxias. Desoficializou-se neste mesmo ano do grupo surrealista, solidarizando-se, em certo sentido, com a postura de O’Neill, sobretudo quando se considera o que escreveu numa já célebre carta a Carlos Eurico da Costa: “Não acredito, actualmente, na salvação pelo Surrealismo como não acredito sequer que a salvação seja uma coisa encontrável assim como quem encontra uma chave que perdeu a semana passada” (2019).
 Iniciou então uma série de viagens pelo leste da Europa, casou-se com uma alemã, trabalhou em Portugal como tradutor e colaborou em jornais, descasou-se, e acabou por se auto-exilar em São Paulo, em 1961. Durante os nove anos que viveu no Brasil, praticamente não escreveu poemas. Ou ainda, quando os escreveu, deixou-os guardados na gaveta, mesmo aqueles dedicados a amigos que lhe eram muito próximos e inclusive chegaram a ajudá-lo financeiramente, uma vez que só conseguia trabalhos esporadicamente. Entretanto, chegou a trabalhar na editora Samambaia, hoje extinta, onde desenvolveu alguns projetos, tais como o de uma banda desenhada intitulada As terras paralelas que, no entanto, ficou inacabada, e antologias como os Clássicos do Erotismo em dois volumes.
Ao retornar a Portugal em 1970, o poeta voltou a colaborar em jornais (O Coiso – suplemento do jornal República –, Aqui) e revistas (Ele, a versão portuguesa da Playboy) tornou-se vastamente conhecido uma segunda vez, nomeadamente com os best-sellers, em 1973, Contos do Gin-Tonic. seguidos dos Novos Contos do Gin um ano depois. O sucesso dos Contos levou Maria Teresa Horta, então articulista do Expresso, a afirmar que o primeiro livro de Leiria tinha sido “o melhor livro de ficção de autor português durante o ano” (1973: 30). Também participou de exposições coletivas de pintura em que sua fase surrealista foi novamente celebrada.

BIBLIOGRAFIA
HORTA, Maria Teresa. “Contos do Gin Tónico”, Jornal Expresso [Lisboa] 12 de Maio, 1973: 30.
LEIRIA, Mário-Henrique. (ed.) Juan Carlos Valera. Claridad Dada por el Tiempo. Cuenca: Menú-
   Cuadernos de Poesía, 1996.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Ficções. Vol. I. (ed.) Tania Martuscelli.
   Lisboa: E-Primatur, 2017.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Poesia. Vol. II. (ed.) Tania Martuscelli. 
   Lisboa: E-Primatur, 2018.
-----. Obras Completas de Mário-Henrique Leiria. Manifestos, Textos Críticos e Afins. Vol. III.  
   (ed.) Tania Martuscelli. Lisboa: E-Primatur, 2019.

Os Editores


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• ÍNDICE

FERNANDO DIL | Entrevista com Mário-Henrique Leiria

https://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2019/09/fernando-dil-entrevista-com-mario.html

 

JOANA EMÍDIO MARQUES | Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia Gin-Tonic?


MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Beat Generation, Angry Young Men e os anos cinquenta

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Cartas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dez poemas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Dicionário modesto para famílias de poucos haveres

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Linhas manifestas

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | O micróbio da música

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Razões surrealistas

TANIA MARTUSCELLI | Mário-Henrique Leiria, surrealista ele mesmo



John Richardson



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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019


Um comentário:

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