quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Cartas


7 de Maio de 1949
A Mário Cesariny de Vasconcelos
e aos outros

Agradeço a informação que me enviaram para ir na sexta-feira passada à Casa do Alentejo, mas lamento não me terem informado que era uma secção do JUBA.
Teria ido mais precavido...
Não tinha conhecimento do vosso grupo (chamemos-lhe assim, por comodidade). Não sabia da existência de surrealistas funcionando em conjunto, excepto do chamado Grupo Surrealista de Lisboa, que deixa bastante a desejar e até a duvidar.
Põe-se agora uma pergunta da minha parte: – Posso conhecer o vosso funcionamento?
Vou agora tentar dar uma ideia da minha posição, pois considero-me um surrealista bastante anterior a qualquer aparecimento de grupos mais ou menos surrealistas, surrealizantes ou surrealistas mesmo.
O meu encontro com o problema moral deu-se mais ou menos em 1942, quando descobri
os Manifestos Surrealistas de André Breton e a Imaculada Conceição de Breton e Éluard. Daí em diante a exteriorização duma certa e determinada forma moral-poética (sabem evidentemente o que quero dizer com moral e poesia) tornou-se premente em mim. Tentei analisar e sistematizar o caso.
Mais tarde apareceu o Grupo de Lisboa e eu interessei-me pelo que nele se passava, como
me interesso pelo que se passa sempre à volta da Realidade. O ano passado comecei a ter a forte necessidade de uma colaboração colectiva, pois tenho trabalhado apenas com alguns surrealizantes que, por vezes, me incomodam com um excesso de estética e de mística. Tentei, portanto entrar em colaboração com o Grupo de Lisboa, mas desentendimentos de ordem ética, moral e ainda de outras ordens não me permitiram (e actualmente muito menos me permitem) colaborar com eles.
Fui e sou considerado por eles como mau surrealista, caso que se põe exactamente da mesma maneira de mim em relação a eles. Eles não são surrealistas na minha forma de ver (excepto o O’Neill que é de facto um surrealista). Repito mesmo a minha forma de ver, que não vem para o caso, e afirmo que eles não estão funcionando como devem. Nesta questão ou se é, ou não se é. Senão vejamos aquela exposição. Todos, excepto um, caminham para um reacionarismo plástico. Onde estava ali o problema moral surrealista? Onde estava o ataque definido e sistematizado a um certo e determinado número de organizações sociais erradas? Onde estava, enfim, a necessidade de acção e o estado de furor?
Estava numas pobres receitas de paranoia-crítica? O que ali estava apenas era uma manifestação colectiva de onanismo que se resolveria perfeitamente com uma distribuição também colectiva de 20$00 a cada componente não casado do grupo (excepção feita, como já disse, para o O’Neill que é etc., etc.).
Não sou pintor, como podem bem verificar pelos quadros que mandei para a E.G.A.P. nem a própria pintura me resolve um problema que nada tem com a própria pintura. Objectos, colagens, escrita automática, desenhos em estado de libertação, poemas, não-poemas, etc., são mais reais, muito mais absolutamente reais do que qualquer forma exclusivamente plástica.
Portanto, e como conclusão, poderei saber como vocês funcionam? Poderei (caso haja interesse mútuo) colaborar com vocês?
É isso que quero saber.
Tenho uma produção relativamente boa e que talvez interesse.
Se pensarem que a minha colaboração lhes agrada, digam.

Mário-Henrique Leiria


Caro Lisboa
Recebi carta do Taylor. Ele é que nada tinha ainda recebido meu, a não ser um postal que lhe escrevi e em que lhe perguntava se tinha recebido o meu comunicado. Pedia-me ele com grande urgência o envio duma cópia da tal laracha, o que fiz imediatamente. Dizia também que se estava cagando para os Pedro-França e para as suas actividades públicas e que contava absolutamente conosco para a representação dos portugueses na folha de couve que vai editar.
Aqui começa a coisa. Acho que é altura de pormos de parte as nossas mútuas embirrações (minha e tua) pois, a-pesar de tudo, creio que a tua colaboração é necessária e que, quando não estás zuca, dizes coisas que são úteis e convenientes. É idiota a posição ultimamente tomada por nós dois, posição essa que só pode vir a beneficiar gentes que é conveniente ter sempre debaixo de olho. De qualquer maneira creio que ainda há meia dúzia de coisas que nos são comuns e pelas quais temos lutado (passe a palavra, que cheira a neo-realismo), coisas essas que me parecem ser a razão porque tanto temos esperneado e escabujado e são talvez mais importantes que reles e idiotas embirrações. Não quero dizer com isto que esteja a fazer pedidos de formação de novos grupos que não podem existir, mas simplesmente a propor a colaboração na altura e que a creia necessária.
Meu caro, por enquanto está combinado que eu, Cesariny, O’Neill e Moniz Pereira colaboremos em conjunto num comunicado em que, creio, também quererás meter a colher. Resolvemos, parece-me, que todos os que colaborassem assinassem e pronto. Ficava assim, sem mais explicações, o caso Pedro-França resolvido, pois desapareciam lentamente da circulação.
Se quiseres, aparece 5ª. feira no Café Chiado à tarde, que lá estarei mais a missiva tayloriana e as explicações necessárias.
Três uivos

Mário Henrique


Carcavelos, 30-3-52

Caro Carlos Eurico
Como me pediste e eu acho conveniente, vou-te apontar o que actualmente se me afigura acerca do Movimento Surrealista e seus participantes (aqui e além).
Isto de cartas está a tornar-se uma coisa cada vez mais indiscreta e, portanto, não farei um total desenvolvimento do que penso, deixando para uma próxima vinda tua uma mais clara exposição do assunto.
Começando por cá:
Como sabes, verificaste e assististe, nada de verdadeiramente revolucionário construímos, já porque não pudemos, já porque, por vezes, não o quisemos. A nossa luta caracterizou-se sempre por uma fuga constante às responsabilidades e por uma qualidade muito próxima da “blague”. Dela nos resta agora e apenas a verdade encontrada pela experiência poética, verdade essa que nos é cara mas que, para mim, acho insuficiente como meio de combate. Verifico agora um desmembramento total, uma apatia por parte de todos aqueles que foram nossos companheiros desde a 1ª. Exposição e das actuações no J.U.B.A., um abandono, uma fuga, um medo que me parece não ser somente dos próprios indivíduos, mas do mesmo Movimento Surrealista. Há, não tenho dúvidas, um enfraquecimento do qual vejo o culpado mais directo em André Breton; no André Breton-Papa, no André Breton-Ditador, no André Breton que colabora no “Arts” e no “Opera”, que aceita convites e entrevistas tipo burguês-ó-barato, que escreve artigos puramente literários (e maus) nos jornais que acima citei. Temos assim o Movimento Surrealista travado, representado por um só homem que expulsa ou aceita conforme o seu bel-prazer e que, para impor a sua vontade, faz uma selecção arbitrária dos valores por ele chamados surrealistas (nota a indiferença olímpica do cavalheiro perante o nosso protesto para ele enviado quando do caso Pedro-França). Além de tudo isto e até por causa disto, temos o Movimento Surrealista a caminhar para um reaccionarismo muito próximo dum fascismo de nova espécie. As fontes verdadeiramente revolucionárias vão desaparecendo, o combate vai caindo numa forma puramente literária e, se nós não tomarmos as medidas necessárias, não tardará muito que andemos todos fardados com uma farda-Breton e assistamos, com gritinhos mais ou menos histéricos, a um discurso do Breton na janela duma qualquer praça para tal fim embandeirada. Daqui à ACADEMIA DAS ARTES E DAS LETRAS é um passo.
Meu caro Carlos Eurico, não vejo que tal solução e tal caminho estejam próprios para o meu feitio (e creio que para o teu também não). A grande força de combate, de violência, de criação que em nós existe não pode suportar este estado de coisas. Eu, na posição que actualmente tomei e da qual mais adiante te falarei, aceito do Surrealismo aquilo que de verdadeiro e grande há nele, a descoberta poética, a revolta contra a opressão, o verdadeiro caminho de sabermos quem somos, mas não, nunca, todo o cortejo de falsos Messias que ele pretende impor-nos. Não acredito, actualmente, na salvação pelo Surrealismo como não acredito sequer que a salvação seja uma coisa encontrável assim como quem encontra uma chave que perdeu a semana passada.
Deste meu pensar que isto não está certo nem vai bem, veio a minha actual afirmação (e necessidade) de que o problema está cada vez mais insolúvel no Movimento Surrealista e de que nós, se quisermos seguir, teremos que combater acompanhados por todos os que por ânsia e desejo, também querem como nós, livrar-se da opressão que diariamente nos é posta nos olhos, na boca, no sexo, no corpo todo.
Amigo Carlos Eurico, daqui em diante só falando contigo. Não acredito nas cartas e, portanto, para quem abrir esta carta no intervalo dela sair das minhas mãos e chegar às tuas, desejo que tenha uma boa viagem a barda-merda e que vá meter o nariz no cu da mãe. (Como a correspondência é inviolável por lei e direito, não podem acusar-me de desrespeito à autoridade ou a qualquer cabotino idiota que, na altura, a represente).
Falando dos poemas e outras coisas da nossa publicação, tenho 8 escolhidos e que te peço para enviares totalmente. Agradeço a boa vontade da escolha ser feita aí, mas prefiro ser eu a escolher, como gostaria que o Henrique também aparecesse connosco e com os outros.
Na próxima semana seguirão os poemas. Só envio um exemplar de cada, pois não tenho máquina de escrever mas, se achares que pode ser, enviarei cópias à mão.
Espero resposta tua assim que esta carta aí chegar, inclusivamente para saber se ela aí chegou e quando chegou.
Diz coisas.
Um grande e firme abraço do

Mário-Henrique


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



Nenhum comentário:

Postar um comentário