A Mário
Cesariny de Vasconcelos
e aos outros
Agradeço
a informação que me enviaram para ir na sexta-feira passada à Casa do Alentejo,
mas lamento não me terem informado que era uma secção do JUBA.
Teria ido mais precavido...
Não tinha conhecimento do vosso grupo (chamemos-lhe assim,
por comodidade). Não sabia da existência de surrealistas funcionando em conjunto,
excepto do chamado Grupo Surrealista de Lisboa, que deixa bastante a desejar e até
a duvidar.
Põe-se agora uma pergunta da minha parte: – Posso conhecer
o vosso funcionamento?
Vou agora tentar dar uma ideia da minha posição, pois considero-me
um surrealista bastante anterior a qualquer aparecimento de grupos mais ou menos
surrealistas, surrealizantes ou surrealistas mesmo.
O meu encontro com o problema moral deu-se mais ou menos em
1942, quando descobri
os Manifestos Surrealistas de André Breton e a Imaculada Conceição de Breton e Éluard. Daí
em diante a exteriorização duma certa e determinada forma moral-poética (sabem evidentemente
o que quero dizer com moral e poesia) tornou-se premente em mim. Tentei analisar
e sistematizar o caso.
Mais tarde apareceu o Grupo de Lisboa e eu interessei-me pelo
que nele se passava, como
me interesso pelo que se passa sempre à volta da Realidade.
O ano passado comecei a ter a forte necessidade de uma colaboração colectiva, pois
tenho trabalhado apenas com alguns surrealizantes que, por vezes, me incomodam com
um excesso de estética e de mística. Tentei, portanto entrar em colaboração com
o Grupo de Lisboa, mas desentendimentos de ordem ética, moral e ainda de outras
ordens não me permitiram (e actualmente muito menos me permitem) colaborar com eles.
Fui e sou considerado por eles como mau surrealista, caso
que se põe exactamente da mesma maneira de mim em relação a eles. Eles não são surrealistas
na minha forma de ver (excepto o O’Neill que é de facto um surrealista). Repito
mesmo a minha forma de ver, que não vem para o caso, e afirmo que eles não estão
funcionando como devem. Nesta questão ou se é, ou não se é. Senão vejamos aquela
exposição. Todos, excepto um, caminham para um reacionarismo plástico. Onde estava
ali o problema moral surrealista? Onde estava o ataque definido e sistematizado
a um certo e determinado número de organizações sociais erradas? Onde estava, enfim,
a necessidade de acção e o estado de furor?
Estava numas pobres receitas de paranoia-crítica? O que ali estava apenas era uma manifestação colectiva de onanismo que se resolveria perfeitamente com uma distribuição também colectiva de 20$00 a cada componente não casado do grupo (excepção feita, como já disse, para o O’Neill que é etc., etc.).
Estava numas pobres receitas de paranoia-crítica? O que ali estava apenas era uma manifestação colectiva de onanismo que se resolveria perfeitamente com uma distribuição também colectiva de 20$00 a cada componente não casado do grupo (excepção feita, como já disse, para o O’Neill que é etc., etc.).
Não sou pintor, como podem bem verificar pelos quadros que
mandei para a E.G.A.P. nem a própria pintura me resolve um problema que nada tem
com a própria pintura. Objectos, colagens, escrita automática, desenhos em estado
de libertação, poemas, não-poemas, etc., são mais reais, muito mais absolutamente
reais do que qualquer forma exclusivamente plástica.
Portanto, e como conclusão, poderei saber como vocês funcionam?
Poderei (caso haja interesse mútuo) colaborar com vocês?
É isso que quero saber.
Tenho uma produção relativamente boa e que talvez interesse.
Se pensarem que a minha colaboração lhes agrada, digam.
Mário-Henrique Leiria
Caro
Lisboa
Recebi
carta do Taylor. Ele é que nada tinha ainda recebido meu, a não ser um postal que
lhe escrevi e em que lhe perguntava se tinha recebido o meu comunicado. Pedia-me
ele com grande urgência o envio duma cópia da tal laracha, o que fiz imediatamente.
Dizia também que se estava cagando para os Pedro-França e para as suas actividades
públicas e que contava absolutamente conosco
para a representação dos portugueses na folha de couve que vai editar.
Aqui começa a coisa. Acho que é altura de
pormos de parte as nossas mútuas embirrações (minha e tua) pois, a-pesar de tudo,
creio que a tua colaboração é necessária e que, quando não estás zuca, dizes coisas que são úteis e convenientes.
É idiota a posição ultimamente tomada por nós dois, posição essa que só pode vir
a beneficiar gentes que é conveniente ter sempre debaixo de olho. De qualquer maneira
creio que ainda há meia dúzia de coisas que nos são comuns e pelas quais temos lutado
(passe a palavra, que cheira a neo-realismo), coisas essas que me parecem ser a
razão porque tanto temos esperneado e escabujado e são talvez mais importantes que
reles e idiotas embirrações. Não quero dizer com isto que esteja a fazer pedidos
de formação de novos grupos que não podem existir, mas simplesmente a propor a colaboração
na altura e que a creia necessária.
Meu caro, por enquanto está combinado que
eu, Cesariny, O’Neill e Moniz Pereira colaboremos em conjunto num comunicado em
que, creio, também quererás meter a colher. Resolvemos, parece-me, que todos os
que colaborassem assinassem e pronto. Ficava assim, sem mais explicações, o caso
Pedro-França resolvido, pois desapareciam lentamente da circulação.
Se quiseres, aparece 5ª. feira no Café Chiado
à tarde, que lá estarei mais a missiva tayloriana e as explicações necessárias.
Três uivos
Mário Henrique
Caro Carlos
Eurico
Como me pediste e eu acho conveniente, vou-te apontar o que
actualmente se me afigura acerca do Movimento Surrealista e seus participantes (aqui
e além).
Isto de cartas está a tornar-se uma coisa cada vez mais indiscreta
e, portanto, não farei um total desenvolvimento do que penso, deixando para uma
próxima vinda tua uma mais clara exposição do assunto.
Começando por cá:
Como sabes, verificaste e assististe, nada de verdadeiramente
revolucionário construímos, já porque não pudemos, já porque, por vezes, não o quisemos.
A nossa luta caracterizou-se sempre por uma fuga constante às responsabilidades
e por uma qualidade muito próxima da “blague”. Dela nos resta agora e apenas a verdade
encontrada pela experiência poética, verdade essa que nos é cara mas que, para mim,
acho insuficiente como meio de combate. Verifico agora um desmembramento total,
uma apatia por parte de todos aqueles que foram nossos companheiros desde a 1ª.
Exposição e das actuações no J.U.B.A., um abandono, uma fuga, um medo que me parece
não ser somente dos próprios indivíduos, mas do mesmo Movimento Surrealista. Há,
não tenho dúvidas, um enfraquecimento do qual vejo o culpado mais directo em André
Breton; no André Breton-Papa, no André Breton-Ditador, no André Breton que colabora
no “Arts” e no “Opera”, que aceita convites e entrevistas tipo burguês-ó-barato,
que escreve artigos puramente literários (e maus) nos jornais que acima citei. Temos
assim o Movimento Surrealista travado, representado por um só homem que expulsa
ou aceita conforme o seu bel-prazer e que, para impor a sua vontade, faz uma selecção
arbitrária dos valores por ele chamados surrealistas (nota a indiferença olímpica
do cavalheiro perante o nosso protesto para ele enviado quando do caso Pedro-França).
Além de tudo isto e até por causa disto, temos o Movimento Surrealista a caminhar
para um reaccionarismo muito próximo dum fascismo de nova espécie. As fontes verdadeiramente
revolucionárias vão desaparecendo, o combate vai caindo numa forma puramente literária
e, se nós não tomarmos as medidas necessárias, não tardará muito que andemos todos
fardados com uma farda-Breton e assistamos, com gritinhos mais ou menos histéricos,
a um discurso do Breton na janela duma qualquer praça para tal fim embandeirada.
Daqui à ACADEMIA DAS ARTES E DAS LETRAS é um passo.
Meu caro Carlos Eurico, não vejo que tal solução e tal caminho
estejam próprios para o meu feitio (e creio que para o teu também não). A grande
força de combate, de violência, de criação que em nós existe não pode suportar este
estado de coisas. Eu, na posição que actualmente tomei e da qual mais adiante te
falarei, aceito do Surrealismo aquilo que de verdadeiro e grande há nele, a descoberta
poética, a revolta contra a opressão, o verdadeiro caminho de sabermos quem somos,
mas não, nunca, todo o cortejo de falsos Messias que ele pretende impor-nos. Não
acredito, actualmente, na salvação pelo Surrealismo como não acredito sequer que
a salvação seja uma coisa encontrável assim como quem encontra uma chave que perdeu
a semana passada.
Deste meu pensar que isto não está certo nem vai bem, veio
a minha actual afirmação (e necessidade) de que o problema está cada vez mais insolúvel
no Movimento Surrealista e de que nós, se quisermos seguir, teremos que combater
acompanhados por todos os que por ânsia e desejo, também querem como nós, livrar-se
da opressão que diariamente nos é posta nos olhos, na boca, no sexo, no corpo todo.
Amigo Carlos Eurico, daqui em diante só falando contigo. Não acredito nas cartas e, portanto, para
quem abrir esta carta no intervalo dela sair das minhas mãos e chegar às tuas, desejo
que tenha uma boa viagem a barda-merda e que vá meter o nariz no cu da mãe. (Como
a correspondência é inviolável por lei e direito, não podem acusar-me de desrespeito
à autoridade ou a qualquer cabotino idiota que, na altura, a represente).
Falando dos poemas e outras coisas da nossa publicação, tenho
8 escolhidos e que te peço para enviares totalmente. Agradeço a boa vontade da escolha
ser feita aí, mas prefiro ser eu a escolher, como gostaria que o Henrique também
aparecesse connosco e com os outros.
Na próxima semana seguirão os poemas. Só envio um exemplar
de cada, pois não tenho máquina de escrever mas, se achares que pode ser, enviarei
cópias à mão.
Espero resposta tua assim que esta carta aí chegar, inclusivamente
para saber se ela aí chegou e quando chegou.
Diz coisas.
Um grande e firme abraço do
Mário-Henrique
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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