Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
[EU VOS AFIRMO]
Eu vos afirmo
Eu sou o maldito
o único que conhece
a maldição de não
existir
existindo
o único único
que é acompanhado
por outro que conhece
a maldição
que é também maldito
que é também o único
eu sou
eu sou
porque somos
o único vários
só
solitário de ser
acompanhado
solitários de sermos
verdadeiros
talvez sabendo
talvez conhecendo
a solidão que formo
formamos
só único
sós únicos.
É ALTURA
–
a Alexandre O’Neill, comemorando mais um aniversário do “cozido à
portuguesa”
é
altura da corneta tocar dignidade
é
altura dos sapatos olharem bem de frente
é
altura – quem diria –
do
barbeiro subir à livraria
é
mesmo altura
de
afirmar que sim senhor
é
altura de pôr o colarinho
é
altura de vestir o sobretudo
é
agora altura
de
dizer eu já lá estive
é
altura de ser e de não ser
é
altura – pois então – de vir a ser
é
altura
é
altura
–
que bem que sabe –
de
arrumar as algibeiras
é
altura
é
grande altura
de
ficar sério
mesmo
mesmo
até
às sobrancelhas
OPERAÇÃO CIRÚRGICA
a
re-compensa da perna da reta-guarda
o
zumbido do mosquito re-organizado para o surdo-mudo
a
manobra suspeita da afinação do oboé
o
gesto mais gnânimo de atravessar a ponte suspensa entre o pé e a vírgula
a
gangrena sedentária da frase quotidiana
a
proposta súbita sobre o preço da pescada
a
pátria pautada e apresentada à cobrança
a
quebra que dura até ao estalar da vértebra
a
agonia radical de coçar a úlcera na doçaria da esquina
a
mobilidade persistente do rodízio made-in-england
o
direito cívico de usar abundantemente os urinóis
a
boca sorridente como um vestígio de cicatriz de navalha
o
tampão inesperado…
Passando como a faca
profissional
cortante e exacta
através da porta
da noite rigorosa
riscando a pedra
clara
com a última fúria
armada de granada
solitário como a
árvore
na véspera do funeral
familiar
dirigindo a máquina
de esfolar fascismos
ditos socialistas
organizados em comités
de salvação
fazendo a ligação
feroz
entre a disciplina
proletária
do sexo atento
e a rapidez agressiva
de viver
por sim
acabaste extremamente
lúcido
no fracasso de inventar
a liberdade certa.
REBOLA-A-BOLA
Sete crianças
resolveram
ir procurar a bola
que tinham perdido
e não voltara
a correr tiraram
os sapatos
e foram a correr
Sete senhores
resolveram
ficar com aquela
bola
que tinham encontrado
e que ali estava
apressados puseram
os chapéus
e seguiram apressados
Sete polícias
obedeceram
a guardar a bola
que tinham esquecido
na infância
disciplinados tiraram
os cacetes
e ficaram disciplinados
Sete crianças
decidiram
voltar a ter
a bola que rebola
e mijar
com alegria e prazer
em sete senhores
em sete polícias
e tirar-lhes
a bola de correr
e tiraram
UMA DAS LIBERDADES
Um
pequeno coelho
a
correr
com
o desespero
entre
as pernas
e
a erva a crescer
um
cão babando
a
correr
com
a obediência
entre
as pernas
e
a erva a passar
um
caçador rindo
a
correr
com
a espingarda
entre
a morte
e
a erva a fugir
um
tiro gritando
a
parar
com
o caçador
entre
o estômago
e
a erva a esperar
um
pequeno coelho
a
correr
com
a liberdade
entre
as pernas
e
a erva a sorrir
Todos
ouviram a palavra que foi dita.
Como
todos sabiam que pensar
era
um cargo importante e bastante arriscado,
resolveram
pôr a palavra dentro do
chapéu
e olhar, com cuidado,
para
o lado esquerdo.
Foi
então que veio
A
Ocasião, de fato de xadrez,
e
vários documentos
comprovativos
que
justificassem o aparecimento
das
coisas contraditórias.
Mas
os sindicatos lá estavam,
muito
crescidos, muito gordos,
a
porem ovos que punham.
Por
esta razão todos sentiam que
pensar
se estava a tornar uma
responsabilidade
urgente,
tão
urgente que houve alguns
que
se esqueceram de o fazer.
A
palavra continua a ser dita e todos nós
sabemos
que o pensar nos está a sair
pelos
olhos, pelos ouvidos e
pelo
nariz e que
também
nos é arrancado muitas vezes pelas costas.
CONFRATERNIZAÇÃO
A
anca bem tostada
um
rim na grelha
e
ainda
a
bexiga recheada
tudo
com arroz
é
evidente
e
um notável molho
picante
e sapiente
foi
o que me coube
ah
esquecia-me
também
um olho
com
champignon
ao
natural
estava
bom
nada
de muito excepcional
mas
comia-se
a
contento
foi
um jantar
bem
agradável
todos
louvámos
aquela
sangria tão gelada
era
um portento
no
fim
após
a marmelada
a
aguardente
e
o cafezinho fumegante
oferecemos
os
sapatos o casaco
as
calças e o penante
àquele
pobrezinho
refugiado
búlgaro
fugido
à vacina
a
camisa foi pró lixo
estava
imprestável
suja
com
manchas
nada
fina
dá-la
ao pobre búlgaro
seria
imperdoável
Um
poeta
cara
amiga
é
como uma noite escura
com
olheiras
Tem
cuidado querida
tem
cuidado quando abrires a janela
olha
que os poetas
como
certos pássaros e mosquitos
entram
logo por ela
aos
bandos aos molhos
às
mãos cheias
como
uma recordação de infância
como
um sinal de perigo
em
curva deslizante
Olha
querida
o
melhor será não fazeres isso
tranca-te
bem fecha-te à chave
respira
numa bolha
que
te isole
vê
bem
protege
a tua paz o teu sossego
Um
poeta
não
é coisa aceitável
é
obviamente como já se sabe
uma
catástrofe tão arrepelante
que
até pode
que
tragédia minha querida
fazer
cair dignidades
comprometer
consciências repousantes
envenenar
a água tão solenemente calma
da
paz quotidiana
um desastre irreparável
Mas
olha amiga minha
ai
que desgosto
terás
p’ra toda a vida
que
saudade desesperante
de
não teres encontrado um dia algum
Mas
antes isso
do
que vê-los
…
isso nunca…
*****
EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019
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