quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Beat Generation, Angry Young Men e os anos cinquenta


Ossos queimados, Dachau, capacetes de aço e cães amestrados para assassinar crianças, Estalingrado, cidades derretendo-se em poeira negra, Berlim, um fim de guerra que não irá acabar, Hiroshima e Nagasaky, dois cogumelos tremendamente indigestos para 200.000 seres humanos… história contemporânea, átomo, medo…
E a razão, a explicação viável, a justificação coerente? Onde? Nas veneras penduradas em peitos sem braços? Nas calças de uniforme (com direito a promoção) vestidas num corpo sem pernas? Na traquitana quotidiana de “eleições livres” porquê? Nas continências com corneta e tudo, tocadas aos mortos sem saber enrolados em bandeira?
O polícia apita, a multidão continua subindo e descendo as ruas e os negócios caminham bem, graças a Deus, entre as nove da manhã e as seis da tarde. Os cães, agora, só mordem o osso do treino, enquanto esperam.
E ser herói? Ficava bem nos livros comovedores, nos filmes de grande audiência com J. Waine – general e E.G. Robinson – almirante, na TV recém-nascida e na rádio massacrante. Para ser herói, havia quem soubesse, bastava deixar de ser humano, até não custava muito. Só que o tempo dos heróis já cansara. Não ser herói e não ficar na História, ser apenas realmente vivo, humano, saber que as instituições tinham falhado e que os meios de viver convencionais já não prestavam, foram as questões que se puseram obcessivamente a muitos jovens dos anos cinquenta, em ambos os lados do Atlântico.
Nos Estados Unidos, esses novos bárbaros a quem erradamente chamaram rebeldes sem causa (e então a vida? Não será uma causa maior?) e que escolheram o presente como rumo de existir, formaram a Beat Generation. Na Inglaterra, com determinadas diferenças que já se verão, foram os Angry Young Men. Ambos foram um fenómeno social de violenta expressão literária e, porque representam uma significante adaptação à vida nos meados do século XX, os seus textos possuem um valor imediato para todos nós. Formaram a coluna avançada da revolução que pretende transformar o homem de objecto da História em ser da experiência. Aceitaram a vida como um estado de contínua ansiedade em procura de uma incerteza que recusa salvações e pátrias como solução de pantufa e lareira (com direito a família e restante cangalhada).
Rejeição do passado como mito, do futuro como obrigação, rebelião contra a autoridade organizada, nojo vomitativo dos “quadrados” encaixados na sociedade de compra e venda.
Vá, homem, você tem que ir, diz Jack Kerouac, ex-jogador de futebol americano, criador do termo Beat, em “Pela estrada fora”.

Não tenho planos
nem compromissos
nem encontros marcados com ninguém

Assim
exploro preguiçosamente
almas e cidades
----------------------------------
Parece que sou realmente
um cidadão
do mundo
que tolera a Democracia
da qual Platão disse
há mais de dois mil anos
que é a melhor forma de mau governo
----------------------------------
É suficiente, não acham?

Jack Kerouac, Mexico City Blues

Ir exaustivamente até ao fundo da derrota, não pretender ser um controlador de acontecimentos e povos, desejar os dedos reais da existência, os dedos com que se apalpa o fundo das coisas, do ódio e do amor. Mastigar, como Allen Ginsberg, a orelha de Van Gogh.

Poeta é sacerdote
O dinheiro tem representado a alma da América
despedaçado o Congresso no precipício da Eternidade
o Presidente construiu uma máquina de guerra que há-de vomitar e reconstruir a Rússia no Kansas
O século Americano foi traído por um Senado demente que já não dorme com a mulher
Franco assassinou Lorca o belo filho de Whitman
do mesmo modo que Mayakowsky se matou para escapar à Rússia
Hart Crane suicidou-se para abalar a América errada ao mesmo tempo que milhões de toneladas de trigo   eram queimadas em cavernas secretas debaixo da Casa Branca
enquanto a Índia passava fome e gritava e comia cães raivosos encharcados e montanhas
 de ovos eram reduzidas a cinzas nas salas do Congresso
homem algum temente a deus ousará passar por ali outra vez por causa da pestilência dos ovos podres da América

Allen Guinsberg, Morte para a orelha de Van Gogh

Mentiras e embustes em excesso, tinha sido o que a Beat Generation encontrara; essa fora a sua experiência e o seu credo tornou-se simples, directo: o único caminho para entrar em relações com a vida, é encarar a realidade tal como é, tal como cada um a encontra em todos os momentos de agonia ou alegria. Enquanto isso, os “quadrados” ficam à janela ou vão pintando os seus slogans políticos pelas paredes. Sabendo-se só, o beat resolve o seu problema dentro desse conhecimento e todos os seus contactos são imediatos e intensos. Da forma como a realidade está presente, conta Diane di Prima no seu 12º pesadelo:

Fui à clínica. Disse tenho uma entorse no pé.
Como se chama perguntaram e idade e quanto ganha e quem é o dentista da sua família.
Disse-lhes e eles disseram-me para esperar e esperei e eles disseram entre e eu entrei.
Abra o olho disse o médico tem qualquer coisa nele.
Magoei-me no pé disse eu.
Abra o olho disse ele e eu abri e ele tirou-me o globo ocular e lavou-o numa bacia.
Pronto disse ele e voltou a colocá-lo agora sente-se melhor não sente.
Parece que sim disse eu. Vejo tudo preto não sei. Magoei-me no pé repeti.
Importa-se de piscar o olho pediu ele falta-lhe uma pestana.
Parece-me disse eu que tenho qualquer coisa no pé.
Oh disse ele. Talvez tenha razão. Vou cortá-lo.

e da violência dessa realidade tão constantemente quotidiana também ela assinala a ideia quando avisa, com certa melancolia irónica no 13º pesadelo:

Dói, ser assassinado

Deste mundo subterrâneo da Beat Generation se diferenciam em certa medida os Angry Young Men, mais consequentes em relação ao processo político que os rodeia numa Inglaterra saída da 2ª. Guerra Mundial. Geralmente filhos da classe média, com o corpo bem tratado pelo programa de saúde do governo e a mente alimentada em escolas e universidades de velhas tradições, vinham à procura do seu lugar numa nova Inglaterra e viram que a saída estava fechada, que não havia para onde ir.

 Vamos continuar a deixar enganar-nos por uma classe de mentirosos imbecis? Vamos continuar a ser governados por eles? São ineptos, sempre o foram, pois são incapazes de reconhecer um problemas (…)  Estarão sempre prontos a sustentar o mesmo mito, a organizar o seu Culto Número Um. Agora, que as técnicas de comunicação são praticamente ilimitadas, parece-me que nunca houve tão pouco a dizer ou tão pouco desejo de dizer seja o que for. Esta poderia ser uma época apaixonante, criadora. Portanto, deixemos os escrevinhadores borrarem o papel, deixemos a Inglaterra perder o seu sangue. Um dia cantaremos, estou à espera desse dia…

John Osborne, Fazer o jogo de quem?

Não pretendendo, como a Beat Generation, criar um mundo do abismo, mas antes exigindo o seu lugar no mundo bem real da superfície, os “jovens zangados” irromperam explosivamente na cena literária britânica. Os seus textos, em que a literatura apenas serve para exprimir o descontentamento e nunca como manipulação da arte, foram muito tempo ignorados pelos estabelecidos oficiais das letras. Deles dizia o habilidoso e requebrado Somerset Maugham: “são uns nojentos”. Por trazerem consigo atitudes proletárias de dúvida e hostilidade contra a intocável classe dita intelectual, criaram inimigos entre os variados tipos de conservadores. Mas a sua posição era evidente

O material de todos o escritor, o assunto de toda a literatura podem ser definidos muito simplesmente: como ser um humano? Cada um tem o seu ponto de vista acerca do que constitui a humanidade e esse ponto de vista determina os seus actos e as suas actitudes. Se se é um artista, isso determina a forma de arte que se adopta. Duma forma geral, os escritores dividem-se em duas categorias: aqueles que se interessam pela humanidade para fins de análise e de investigação e aqueles cujo fim é propor qualquer coisa de positivo. Os primeiros dão um passo atrás e perguntam: “o que é isto?” Os segundos avançam, mostram o caminho e fazem sinal para que os sigam…

John Wain, Na corda bamba

A posição dos Angry Young Men estava claramente identificada com os segundos. Com eles apareceu o novo tipo de herói, o anti-herói (actualmente tão cansativamente usado em massacrado a despropósito de tudo e tão pouco entendido), consequência do colapso dos anos trinta, da guerra e dos seus pânicos, do falhanço moral do socialismo britânico e da guerra fria com os seus fantasmas de catástrofe. Criava-se então um dilema em que o ser humano se via cercado de valores construídos no vácuo.

Todas as lutas e todos os problemas que se opõem ao crescimento da nossa civilização se subordinam inteiramente à questão de saber se se conseguirá pôr de pé um homem esgotado e conservá-lo assim. Se se responde pela negativa, o nosso passado não conta para mais nada; mostra-se insuficiente para preservar o futuro.
[…]
Em resumo, é o esgotamento de um asmático que acaba de correr a maratona e que descobre que, no fim da corrida, não há troféu nem glória à sua espera. Eis exactamente onde nos encontramos…

Bill Hopkins, Novos Rumos

A diferença crucial entre Angry Young Men e Beat Generation era de tempos de experiência. Os primeiros desejavam acreditar na experiência da sociedade transformada e os segundos estavam já experimentando essa transformação.
Na Beat Generation a acumulação da experiência levava-os à perseguição de uma forma em que, por vezes, o mistério, a magia, uma agulha, um corno se tornavam valores intrínsecos no campo da revolta que, assim, se dava isolada.
Entretanto, os Angry Young Men, tinham, com o seu contínuo criticismo do presente, transformado a crítica social numa arma usada com fins limitados de auto-realização, dentro apenas dos ditames da própria consciência.
Mas ambos, dos lados opostos do Atlântico, nos deixaram uma literatura maior, essencial para sentir a verdade dessa década de cinquenta. Chamaram violentamente a atenção dos vivos para a grande origem da esperança, num mundo exausto: o coração activo, real, do homem.


*****

EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2019



Nenhum comentário:

Postar um comentário