Por mais sabores de Gin que o
mercado descubra, nenhum se iguala àquele que foi inventado por-Mário Henrique
Leiria idos de 70: um Gin-Tonic surrealista, hilariante, político, provocador e
com a particularidade bizarra de vir embalado num livro de contos e não numa
garrafa de vidro. Amantes de Gin, alcoólicos anónimos e conhecidos, poetas e
literatos (não necessariamente por esta ordem) fizeram deste livro-bebida um
bestseller e Leiria não se fez rogado: escreveu outro. Ficaram para a
posteridade e para glória da literatura iconoclasta portuguesa Os
Contos do Gin-Tonic (1973) e Os Novos Contos do Gin (1974).
O ator Mário
Viegas tratou de dar voz à perfídia destas histórias tornando-as inesquecíveis para
várias gerações. Hoje, 36 anos depois da sua morte, Mário-Henrique Leiria renasce
de forma espetacular nas noites de poesia dos bares de Lisboa e Porto onde, com
mais ou menos álcool, os Contos do Gin-Tonic são leitura obrigatória. Mas,
bebido este copo (aliás há muito esgotado), o que fica das quatro décadas de produção
do poeta e pintor surrealista? Pouco, muito pouco. Valha-nos pois a iniciativa da
E-Primatur que acaba de publicar um conjunto de textos inéditos que andavam perdidos
por aí: são contos, poemas, colagens, fragmentos que ganharam o título Casos
de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos e merecem já o título de acontecimento
literário do ano. O livro tem ainda notas de Mário Cesariny, desenhos de Cruzeiro
Seixas e fotografias de João Freire.
Esquecidos e
atirados no deposito da Biblioteca Nacional estão as dezenas de poemas escritos
por Leiria e que urgia serem reunidos num volume onde os leitores pudessem conhecer
a fundo a sua obra originalíssima, mesmo para os cânones do surrealismo (onde, de
resto, ele nunca se fixou). Era mais do que tempo de alguma abrir estes caixotes
e reunir a poesia inclassificável de Mário-Henrique, um homem que passou por aqui
de forma tão misteriosa que ainda hoje ninguém pode afirmar se não era ele um dos
extraterrestres que habitam vários dos seus contos e poemas.
A asa não quebra
vibra
às vezes
como lâmina solitária
Separa-se do corpo
e parte
pelo espaço
que a aceita como é
foi assim camarada
assim será.
vibra
às vezes
como lâmina solitária
Separa-se do corpo
e parte
pelo espaço
que a aceita como é
foi assim camarada
assim será.
[Poema escrito
em homenagem ao cosmonauta soviético Vladimir Komarov, morto numa missão espacial
a 24 de abril de 1967]
As múltiplas identidades de
Mário Henrique, um exilado no planeta Terra
| Diz-se que Mário Henrique Leiria nasceu em Cascais em 1923, que estudou na
Faculdade de Belas Artes da qual foi expulso em 1942 por motivos políticos. Pertenceu
ao primeiro grupo Surrealista de Lisboa do qual saiu em dissidência. Forma o segundo
grupo de surrealistas juntamente com António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Pedro
Oom, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa. Em 1952 foi preso pela Pide. Em 1958
vai para Inglaterra e depois viaja pela Europa Ocidental, Balcãs, Médio Oriente.
Em 1961 exila-se no Brasil e participa na luta armada em vários países da América
latina. Diz-se que viajava pago pelo Partido Comunista, diz-se que era filiado,
diz-se que era turista e pagava com o seu dinheiro, diz-se que se alistou na Marinha
Mercante, diz-se que era um aventureiro, diz-se que não. Morreu em 1980, em casa
da mãe para onde tinha voltado, vítima de uma doença óssea degenerativa ou morreu
de fome. Tinha 57 anos. Estava na miséria e nem os amigos o iam visitar.
Tudo isto pode
ser verdade ou pode ser mentira. Tudo pode ser verdade ou sonho, à boa maneira surrealista.
Há várias testemunhas para as várias versões e a investigadora Tânia Martuscelli,
professora na Universidade de Yale, Colorado, EUA, e uma das únicas especialistas
na obra de Mário Henrique, falou com várias para os seus livros Mário-Henrique Leiria
e a Linhagem do Surrealismo em Portugal (Colibri) e Pelo Mundo Disperso (Tinta da
China). Mas fiquemo-nos com a melhor versão, a de Cesariny: “Mário Henrique foi
um homem que implodiu para dentro”.
Movendo-se com
extremo à vontade em várias vidas, em várias camadas de realidade e em vários universos
artísticos, Mário Henrique também era bom a inventar vidas para os outros, senão
veja-se como, em 1958, ajudou o escritor e poeta Helder Macedo a inventar uma nova
identidade para sair de Portugal:
Na altura eu tinha 21 anos e era estudante de Direito,
coisa que odiava. Decidi que queria ir passar uns tempos em Londres, cheio de dúvidas
existenciais. O Mário Henrique aconselhou-me, afirmando que tinha experiência dos
ingleses. Explicou-me que eu não poderia ter no passaporte a profissão de estudante
(nesse tempo os passaportes mencionavam a profissão) porque isso criaria problemas
na fronteira (teria de apresentar prova de matrícula numa escola inglesa, ou coisa
assim) e que, portanto, seria mais fácil se eu tivesse no passaporte uma profissão
liberal. Bom, sim, mas qual? Isso ele arranjava. Veio então com a ideia: eu seria
desenhador. Mas eu sou péssimo em desenho! Não tem importância. Disse-me que tinha
amigos e arranjaria tudo. Ele próprio foi a duas lojas de Lisboa onde obteve declarações
que diziam ‘este senhor desenha para esta casa’. Fui ao Registo Civil e obtive o
passaporte como desenhador. Depois, em Londres, registei-me no Consulado. Onde,
além de me darem uma cédula com a profissão de desenhador se enganaram na data do
meu nascimento, escrevendo 1925 em vez de 1935. Muitos anos depois, quando passei
a residir em Londres permanentemente sem poder voltar a Portugal, houve a “primavera
marcelista” e decidi arriscar. A PIDE parou-me na fronteira mas, depois de seis
horas de espera, deixaram-me entrar no país. Depois do 25 de Abril, quando tive
acesso aos arquivos do Consulado em Londres, vi a cópia de um telegrama de resposta
a uma consulta telegráfica da PIDE. Dizia assim: “Não é o mesmo. Este é Desenhador
e nasceu em 1925.”
Esta história,
que poderia ter sido escrita por Leiria, revela o seu espírito indómito, mas também
irónico e pouco interessado em ser obediente aos ditames da realidade. Não é qualquer
um que inventa vidas, mesmo Pessoa, inventou heterónimos, que fingissem verdadeiramente.
Mário Henrique era o seu próprio heterónimo: inventava vidas porque a sua nunca
lhe chegou.
Como conta Martuscelli,
a partida do poeta para o Brasil, em 1961, também é misteriosa, até porque os anos
que passou naquele país terão sido muito penosos. Vivia em casa de amigos que o
ajudavam financeiramente, acumulou trabalhos precários, tentou suicidar-se e praticamente
deixou de escrever. Destes nove anos salvam-se 15 poemas e nenhuma pintura ou desenho.
A pressão da Pide terá sido menos decisiva neste autoexílio, do que a paixão por
Dietlinde Hertel, a quem ele chamava Fipsy.
Não se sabe como
é que Mário Henrique e Fipsy se conheceram. Ela era “uma lourinha triste e assustada”,
segundo Helder Macedo, que se encontrou com o casal em Paris, no final dos anos
50. A verdade é que pouco depois do casamento a “lourinha triste” trocou Mário-Henrique
por outro homem e foi para o Brasil, deixando o poeta emocionalmente devastado.
Para Cesariny, tinha sido “essa paixão impossível” que o tinha feito partir para
o Brasil. A viver em São Paulo, Mário-Henrique correspondia-se com a advogada de
Fipsy que vivia em Recife. Nessas cartas ficciona de novo a sua vida: a participação
em acontecimentos políticos no México, no Chile, em Cuba, as fugas in extremis,
o Natal passado com índios na Amazónia, as prisões e as sessões de tortura. Apesar
desta suposta vida heroica, Leiria nunca mais terá voltado a ver a ex-mulher.
Haverá de voltar
a contar estas aventuras aos jornalistas portugueses, já nos anos 70, regressado
a Lisboa e famoso pelos Contos do Gin-Tonic. Tornara-se enfim o revolucionário
que sempre fora. E quem se atreve a duvidar?
Questionado sobre
a sua carreira literária neste anos nas Américas dirá ao entrevistador: “Nunca tive
preocupações de ordem literária… nem hoje… de ordem literária não tenho, pá. Deixo
isso para o Namora”. Porém, Lys Assunção, em casa de quem o poeta viveu, em São
Paulo conta que naqueles nove anos Leiria apenas saiu duas vezes da cidade e uma
delas para visitar Jorge de Sena, que na altura ensinava numa universidade em Araraquara.
Sena, tal como
Namora, era um dos ódios de estimação dos Surrealistas (em especial de Cesariny
e Luiz Pacheco) e esse encontro com é registado com sarcasmo por Mário-Henrique
Leiria, espantado com a quantidade de filhos (nove) e de livros do escritor. O texto
viria a ser publicado no jornal Diário de Lisboa em 1982: “Abria-se uma porta, entrava
um filho, abria-se uma gaveta, saía um filho, puxava-se uma cadeira e apanhava-se
com uma encadernação no estômago, ia-se à janela, topava-se com um monte de in-fólios.
O diabo! Não havia onde pôr os pés, não havia onde colocar as mãos! Tropeçava-se
em filhos, esmagavam-se brochuras. De arrasar!”.
Contra a ditadura do bom-gosto,
marchar, marchar | Como explica
Tânia Martuscelli, Mário-Henrique Leiria, atuava, quer na sua obra de poesia e ficção,
quer na pintura, de forma a subverter o mais possível os códigos morais do bom gosto,
procurando dar a ver o presente, mas também o passado fora do establishment bem
pensante da época e, sobretudo, da Academia. Também nunca viveu de forma estrita
as “regras surrealistas”, desde logo rejeitando a tentativa de André Breton de impôr
as suas ideias ao grupo português, mas também incorporando na sua obra elementos
de outros movimentos artísticos, alguns deles antagónicos ao surrealismo. Assim
podem encontrar-se no seu trabalho elementos da poesia medieval, em especial das
cantigas de escárnio e mal-dizer, Romantismo e Decadentismo, Modernismo, Presencismo
e até Neorrealismo. Como se pode ver neste Casos de Direito Galáctico, Mário-Henrique
era ainda fascinado por Ficção Científica, romance Noir, policiais.
A incorporação
da paródia, do non-sense e do absurdo e até mesmo da pornografia resultam
num mundo às avessas, que continha quase sempre uma forte carga política e pressupunha
que a única ética da arte era a liberdade e a libertação do indivíduo.
“Leiria manteve-se
fiel à sua própria marginalidade mesmo contra as suas próprias propostas artísticas”,
diz Martuscelli. Na verdade, o artista sempre preferiu deambular por movimentos
artísticos vários, tendências estéticas marginais e tradições seculares sem nunca
se fixar em nenhuma. O livro agora publicado mostra essa deambulação com o poema
“Imagem-Devolvida”, carregado de simbolismo. Sobre este poema, diz Martuscelli em
entrevista ao Observador: “Todos os textos agora reeditados são de extrema qualidade
e marcantes no contexto não só da obra leiriana, mas no contexto das letras portuguesas.
‘Imagem Devolvida’, por exemplo, trazia a inovação do poema-pintado, ou da pintura-poesia
em suas páginas”.
Já os contos
surrealistas (e profundamente políticos) “Casos de Direito Galático” (a fazerem
lembrar preciosidades como “Os Animais Imaginários” do surrealista francês Henry
Michaux) são um desafio para os estudantes de Direito de todos os tempos. E o “Estranho
Mundo de Josela”, com os seus mamutes Renato e Antónia, a tia Mizé e as crianças
compradas no talho, são uma delícia de humor negro. “O Conto de Natal para Crianças”
é mais uma manifestação da crueza do olhar de Leiria, enquanto os poemas/fotografias
“Lisboa Voo do Pássaro” refletem sobretudo uma tristeza sem redenção, é a sua versão
da “feira cabisbaixa” de Alexandre O’Neill.
Todos estes textos
foram, como os Contos do Gin-Tonic, escritos nos anos 70, quando depois de
regressar do Brasil, a vida e a carreira do escritor ganharam novo fôlego. Torna-se
redator do jornal O Coiso, suplemento
do jornal República e depois redator do
jornal Aqui.
Todos estes textos,
lembra a investigadora, “fazem uma fusão de géneros, nomeadamente a fusão palavra
e imagem (desenho, pintura, colagem, fotografia) lembrando que obra de Leiria sempre
procurou também o experimentalismo.
Tânia Martuscelli
destaca a importância da edição destes textos dispersos não só pelo valor da obra
de Leiria para a literatura portuguesa, criada a partir de uma posição de contracultura
e da busca de olhar absolutamente singular mas também por ter sido um grande revolucionário
da ditadura portuguesa, Brasileira e sul americanas em geral.
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO
DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson
(Inglaterra, 1958)
Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO
MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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