quarta-feira, 4 de setembro de 2019

JOANA EMÍDIO MARQUES | Afinal quem era Mário-Henrique Leiria, o poeta que bebia Gin-Tonic?


Por mais sabores de Gin que o mercado descubra, nenhum se iguala àquele que foi inventado por-Mário Henrique Leiria idos de 70: um Gin-Tonic surrealista, hilariante, político, provocador e com a particularidade bizarra de vir embalado num livro de contos e não numa garrafa de vidro. Amantes de Gin, alcoólicos anónimos e conhecidos, poetas e literatos (não necessariamente por esta ordem) fizeram deste livro-bebida um bestseller e Leiria não se fez rogado: escreveu outro. Ficaram para a posteridade e para glória da literatura iconoclasta portuguesa Os Contos do Gin-Tonic (1973) e Os Novos Contos do Gin (1974).
O ator Mário Viegas tratou de dar voz à perfídia destas histórias tornando-as inesquecíveis para várias gerações. Hoje, 36 anos depois da sua morte, Mário-Henrique Leiria renasce de forma espetacular nas noites de poesia dos bares de Lisboa e Porto onde, com mais ou menos álcool, os Contos do Gin-Tonic são leitura obrigatória. Mas, bebido este copo (aliás há muito esgotado), o que fica das quatro décadas de produção do poeta e pintor surrealista? Pouco, muito pouco. Valha-nos pois a iniciativa da E-Primatur que acaba de publicar um conjunto de textos inéditos que andavam perdidos por aí: são contos, poemas, colagens, fragmentos que ganharam o título Casos de Direito Galático e Outros Textos Esquecidos e merecem já o título de acontecimento literário do ano. O livro tem ainda notas de Mário Cesariny, desenhos de Cruzeiro Seixas e fotografias de João Freire.
Esquecidos e atirados no deposito da Biblioteca Nacional estão as dezenas de poemas escritos por Leiria e que urgia serem reunidos num volume onde os leitores pudessem conhecer a fundo a sua obra originalíssima, mesmo para os cânones do surrealismo (onde, de resto, ele nunca se fixou). Era mais do que tempo de alguma abrir estes caixotes e reunir a poesia inclassificável de Mário-Henrique, um homem que passou por aqui de forma tão misteriosa que ainda hoje ninguém pode afirmar se não era ele um dos extraterrestres que habitam vários dos seus contos e poemas.

A asa não quebra
vibra
às vezes
como lâmina solitária
Separa-se do corpo
e parte
pelo espaço
que a aceita como é
foi assim camarada
assim será.

[Poema escrito em homenagem ao cosmonauta soviético Vladimir Komarov, morto numa missão espacial a 24 de abril de 1967]

As múltiplas identidades de Mário Henrique, um exilado no planeta Terra | Diz-se que Mário Henrique Leiria nasceu em Cascais em 1923, que estudou na Faculdade de Belas Artes da qual foi expulso em 1942 por motivos políticos. Pertenceu ao primeiro grupo Surrealista de Lisboa do qual saiu em dissidência. Forma o segundo grupo de surrealistas juntamente com António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Pedro Oom, Cruzeiro Seixas, Carlos Eurico da Costa. Em 1952 foi preso pela Pide. Em 1958 vai para Inglaterra e depois viaja pela Europa Ocidental, Balcãs, Médio Oriente. Em 1961 exila-se no Brasil e participa na luta armada em vários países da América latina. Diz-se que viajava pago pelo Partido Comunista, diz-se que era filiado, diz-se que era turista e pagava com o seu dinheiro, diz-se que se alistou na Marinha Mercante, diz-se que era um aventureiro, diz-se que não. Morreu em 1980, em casa da mãe para onde tinha voltado, vítima de uma doença óssea degenerativa ou morreu de fome. Tinha 57 anos. Estava na miséria e nem os amigos o iam visitar.
Tudo isto pode ser verdade ou pode ser mentira. Tudo pode ser verdade ou sonho, à boa maneira surrealista. Há várias testemunhas para as várias versões e a investigadora Tânia Martuscelli, professora na Universidade de Yale, Colorado, EUA, e uma das únicas especialistas na obra de Mário Henrique, falou com várias para os seus livros Mário-Henrique Leiria e a Linhagem do Surrealismo em Portugal (Colibri) e Pelo Mundo Disperso (Tinta da China). Mas fiquemo-nos com a melhor versão, a de Cesariny: “Mário Henrique foi um homem que implodiu para dentro”.
Movendo-se com extremo à vontade em várias vidas, em várias camadas de realidade e em vários universos artísticos, Mário Henrique também era bom a inventar vidas para os outros, senão veja-se como, em 1958, ajudou o escritor e poeta Helder Macedo a inventar uma nova identidade para sair de Portugal:

Na altura eu tinha 21 anos e era estudante de Direito, coisa que odiava. Decidi que queria ir passar uns tempos em Londres, cheio de dúvidas existenciais. O Mário Henrique aconselhou-me, afirmando que tinha experiência dos ingleses. Explicou-me que eu não poderia ter no passaporte a profissão de estudante (nesse tempo os passaportes mencionavam a profissão) porque isso criaria problemas na fronteira (teria de apresentar prova de matrícula numa escola inglesa, ou coisa assim) e que, portanto, seria mais fácil se eu tivesse no passaporte uma profissão liberal. Bom, sim, mas qual? Isso ele arranjava. Veio então com a ideia: eu seria desenhador. Mas eu sou péssimo em desenho! Não tem importância. Disse-me que tinha amigos e arranjaria tudo. Ele próprio foi a duas lojas de Lisboa onde obteve declarações que diziam ‘este senhor desenha para esta casa’. Fui ao Registo Civil e obtive o passaporte como desenhador. Depois, em Londres, registei-me no Consulado. Onde, além de me darem uma cédula com a profissão de desenhador se enganaram na data do meu nascimento, escrevendo 1925 em vez de 1935. Muitos anos depois, quando passei a residir em Londres permanentemente sem poder voltar a Portugal, houve a “primavera marcelista” e decidi arriscar. A PIDE parou-me na fronteira mas, depois de seis horas de espera, deixaram-me entrar no país. Depois do 25 de Abril, quando tive acesso aos arquivos do Consulado em Londres, vi a cópia de um telegrama de resposta a uma consulta telegráfica da PIDE. Dizia assim: “Não é o mesmo. Este é Desenhador e nasceu em 1925.”

Esta história, que poderia ter sido escrita por Leiria, revela o seu espírito indómito, mas também irónico e pouco interessado em ser obediente aos ditames da realidade. Não é qualquer um que inventa vidas, mesmo Pessoa, inventou heterónimos, que fingissem verdadeiramente. Mário Henrique era o seu próprio heterónimo: inventava vidas porque a sua nunca lhe chegou.
Como conta Martuscelli, a partida do poeta para o Brasil, em 1961, também é misteriosa, até porque os anos que passou naquele país terão sido muito penosos. Vivia em casa de amigos que o ajudavam financeiramente, acumulou trabalhos precários, tentou suicidar-se e praticamente deixou de escrever. Destes nove anos salvam-se 15 poemas e nenhuma pintura ou desenho. A pressão da Pide terá sido menos decisiva neste autoexílio, do que a paixão por Dietlinde Hertel, a quem ele chamava Fipsy.
Não se sabe como é que Mário Henrique e Fipsy se conheceram. Ela era “uma lourinha triste e assustada”, segundo Helder Macedo, que se encontrou com o casal em Paris, no final dos anos 50. A verdade é que pouco depois do casamento a “lourinha triste” trocou Mário-Henrique por outro homem e foi para o Brasil, deixando o poeta emocionalmente devastado. Para Cesariny, tinha sido “essa paixão impossível” que o tinha feito partir para o Brasil. A viver em São Paulo, Mário-Henrique correspondia-se com a advogada de Fipsy que vivia em Recife. Nessas cartas ficciona de novo a sua vida: a participação em acontecimentos políticos no México, no Chile, em Cuba, as fugas in extremis, o Natal passado com índios na Amazónia, as prisões e as sessões de tortura. Apesar desta suposta vida heroica, Leiria nunca mais terá voltado a ver a ex-mulher.
Haverá de voltar a contar estas aventuras aos jornalistas portugueses, já nos anos 70, regressado a Lisboa e famoso pelos Contos do Gin-Tonic. Tornara-se enfim o revolucionário que sempre fora. E quem se atreve a duvidar?
Questionado sobre a sua carreira literária neste anos nas Américas dirá ao entrevistador: “Nunca tive preocupações de ordem literária… nem hoje… de ordem literária não tenho, pá. Deixo isso para o Namora”. Porém, Lys Assunção, em casa de quem o poeta viveu, em São Paulo conta que naqueles nove anos Leiria apenas saiu duas vezes da cidade e uma delas para visitar Jorge de Sena, que na altura ensinava numa universidade em Araraquara.
Sena, tal como Namora, era um dos ódios de estimação dos Surrealistas (em especial de Cesariny e Luiz Pacheco) e esse encontro com é registado com sarcasmo por Mário-Henrique Leiria, espantado com a quantidade de filhos (nove) e de livros do escritor. O texto viria a ser publicado no jornal Diário de Lisboa em 1982: “Abria-se uma porta, entrava um filho, abria-se uma gaveta, saía um filho, puxava-se uma cadeira e apanhava-se com uma encadernação no estômago, ia-se à janela, topava-se com um monte de in-fólios. O diabo! Não havia onde pôr os pés, não havia onde colocar as mãos! Tropeçava-se em filhos, esmagavam-se brochuras. De arrasar!”.

Contra a ditadura do bom-gosto, marchar, marchar | Como explica Tânia Martuscelli, Mário-Henrique Leiria, atuava, quer na sua obra de poesia e ficção, quer na pintura, de forma a subverter o mais possível os códigos morais do bom gosto, procurando dar a ver o presente, mas também o passado fora do establishment bem pensante da época e, sobretudo, da Academia. Também nunca viveu de forma estrita as “regras surrealistas”, desde logo rejeitando a tentativa de André Breton de impôr as suas ideias ao grupo português, mas também incorporando na sua obra elementos de outros movimentos artísticos, alguns deles antagónicos ao surrealismo. Assim podem encontrar-se no seu trabalho elementos da poesia medieval, em especial das cantigas de escárnio e mal-dizer, Romantismo e Decadentismo, Modernismo, Presencismo e até Neorrealismo. Como se pode ver neste Casos de Direito Galáctico, Mário-Henrique era ainda fascinado por Ficção Científica, romance Noir, policiais.
A incorporação da paródia, do non-sense e do absurdo e até mesmo da pornografia resultam num mundo às avessas, que continha quase sempre uma forte carga política e pressupunha que a única ética da arte era a liberdade e a libertação do indivíduo.
“Leiria manteve-se fiel à sua própria marginalidade mesmo contra as suas próprias propostas artísticas”, diz Martuscelli. Na verdade, o artista sempre preferiu deambular por movimentos artísticos vários, tendências estéticas marginais e tradições seculares sem nunca se fixar em nenhuma. O livro agora publicado mostra essa deambulação com o poema “Imagem-Devolvida”, carregado de simbolismo. Sobre este poema, diz Martuscelli em entrevista ao Observador: “Todos os textos agora reeditados são de extrema qualidade e marcantes no contexto não só da obra leiriana, mas no contexto das letras portuguesas. ‘Imagem Devolvida’, por exemplo, trazia a inovação do poema-pintado, ou da pintura-poesia em suas páginas”.
Já os contos surrealistas (e profundamente políticos) “Casos de Direito Galático” (a fazerem lembrar preciosidades como “Os Animais Imaginários” do surrealista francês Henry Michaux) são um desafio para os estudantes de Direito de todos os tempos. E o “Estranho Mundo de Josela”, com os seus mamutes Renato e Antónia, a tia Mizé e as crianças compradas no talho, são uma delícia de humor negro. “O Conto de Natal para Crianças” é mais uma manifestação da crueza do olhar de Leiria, enquanto os poemas/fotografias “Lisboa Voo do Pássaro” refletem sobretudo uma tristeza sem redenção, é a sua versão da “feira cabisbaixa” de Alexandre O’Neill.
Todos estes textos foram, como os Contos do Gin-Tonic, escritos nos anos 70, quando depois de regressar do Brasil, a vida e a carreira do escritor ganharam novo fôlego. Torna-se redator do jornal O Coiso, suplemento do jornal República e depois redator do jornal Aqui.
Todos estes textos, lembra a investigadora, “fazem uma fusão de géneros, nomeadamente a fusão palavra e imagem (desenho, pintura, colagem, fotografia) lembrando que obra de Leiria sempre procurou também o experimentalismo.
Tânia Martuscelli destaca a importância da edição destes textos dispersos não só pelo valor da obra de Leiria para a literatura portuguesa, criada a partir de uma posição de contracultura e da busca de olhar absolutamente singular mas também por ter sido um grande revolucionário da ditadura portuguesa, Brasileira e sul americanas em geral.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
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editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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