quarta-feira, 4 de setembro de 2019

FERNANDO DIL | Entrevista com Mário-Henrique Leiria


Um Dom Quixote às gargalhadas, por prados e Machu-Pichu, a subir os Andes montado num lama, bicho húmido, babado, com cheiro a cerveja e suor – quando nos trópicos as duas coisas se misturam. E a isso junto as lágrimas e o “gin” do cavaleiro as suas armas mais interiores, as que poucos têm e até desconhecem. Das lágrimas nasce o “gin” e, do encontro dos dois, um homem a urrar “não” ao que lhes golpeia a sensibilidade – esse pasmo que nos queima a cara de alegria, de lá de dentro de nós, esse ser no ser que a gente solta aos ganidos, que se mistura com desertos e passado, com minas de carvão e brigas de rua pelo que defendemos, como fez o Mário-Henrique Leiria, esse Zapata e Daria, esse Lampeão, cangaceiro de cidades, de punhal e caneta e Breton debaixo do braço, a pensar nas galáxias, esse Leiria, português à solta de quem falo. “Gin” e vida por pântanos, vilas e avenidas, urros guardados que num instante explodem na escrita, roleta de palavras que nos engana mas perpetua as nossas mãos agarradas aos ideais, quaisquer; de subir o Volga, pisotear por Marraqueche, dormir sobre e sob corpos negros, brancos, azuis, das cores de casebres ou mansões, nas valetas de Veneza ou encostados aos túmulos da ilha da Páscoa, com o espírito à solta a rodear-se de ternura.
Para trás, 51 anos e uma vida como é a vida, intensamente uma só, vivida como nos é dada: a cada passo o seu fim; e, portanto, para Leiria, a cada passo, a vida total; em diferentes hemisférios; por mares e minas, universidades e “caatingas”, com armas à mão, de coldre, cinto duplo e bigode. E copo, no bar, no “maquis”. Realidade e ficção que se cruzam com o amor e os beijos, no Pacífico chileno, no Atlântico brasileiro, nos “kibutz” de Israel, a correr o Danúbio ou no cemitério judeu de Praga, em visita ao túmulo de Kafka.
… Pelo mundo, a encher-se de solidão. Nesta, a sua poesia, meio sangue, meio vinho, espaços de sua pele, vida curta para todos os que na sua prosa nascem. De passagem, Carroll, Mallarmé, Neruda, Guillén, os amigos são poetas, Einstein (“um poeta que morreu de desespero por ter inventado a morte”). Antes e agora “João Sem Medo” que só há pouco veio saber quem era o seu autor: José Gomes Ferreira. (“Foi o livro que mais me marcou. Quando o li era menino; mas o que lá está me acompanhou; não sei porquê, mas nunca liguei ao nome do autor e um dia destes descobri que é o Gomes Ferreira”).
Nas paredes do quarto, sacos de couro, penas naturais, restos de armas, coldres, amuletos, um galo de Aldemir Martins, relíquia de um pintor caboclo do Nordeste brasileiro, abraço de um amigo que também aproveito. Num canto, um baú com copos e “gin”; noutro, a máquina de escrever e o sol a entrar pela janela nesse casarão de torre ao alto, em Carcavelos.
“É um amigo que desconfia da amizade. Por instinto. No fundo, tem medo que o apanhem nas filigranas de uma ternura qualquer” – diz o Alexandre O’Neill. Aí está o Leiria. Um olho roxo: patada do “vodka”, o cão. “Antes levava patadas nas ruas, na guerra, por ideal; hoje, levo patadas dum cão, em casa, na cama como qualquer velhinho.” Cabeça raspada, alegria sôfrega, a dar pouca importância às palavras, de linguagem sem requintes, fragmentária, quase sempre coisas sem conclusão, buscando mais o sentir do que o pensar certinho, somado, habilidoso, conveniente. Língua solta, esse Mário-Henrique Leiria. E, no entanto, pela palavra, ao falar, pouco dele fica: é ele, em si, personagem toda, que nos invade profundamente.

FD | Porquê “Gin Tonic”?
MHL | Porquê “Gin Tonic” o quê, pá?
FD | Os livros…
MHL | O Último é só “gin”, já é sem “tonic”… é porque eu gosto da bebida, pá, pura e simplesmente mais nada… gosto mesmo dessa bebida… Na Inglaterra é a bebida das velhas… eu quero que se lixem, pá… eu já estou uma velha também…
FD | E isso do “autor anda muito chateado”, esse quase subtítulo que “agarraste” e “lançaste” muito bem… pode-se dizer que foi intencional?
MHL | Não, pá, intencional não foi… é o prazer do gozo que eu tenho constantemente… isso de dizer que “ando muito chateado” pra mim é um gozo enorme, mas de facto ando muito chateado…
FD | Porquê?
MHL | Tu já viste o estado em que eu estou… todo estragado.
(Outras conversas e tocamos no nome do Luís Pacheco)
MHL | Até que ele escreve bem, aquele diabo…
FD | Gosta do Luís Pacheco>
MHL | Como indivíduo ou como escritor?
FD | Os dois…
MHL | Como indivíduo divirto-me muito com o Luís Pacheco. É a pior má-língua deste país. Talvez um dos tipos mais solitários que eu conheço…
FD | Que é que tu pensas que é a solidão?
MHL | a solidão é isto, é isto em que eu vivo, pá….
FD | eu sinto-me totalmente só… permanentemente só… mesmo com você aqui e com a família, às vezes, pá… Eu até tomara não ter família, às vezes… porque é um problema: eu tento me comunicar com eles… porque precisam, são seres humanos, claro, e até gosto muito destas duas velhotas, a senhora dona Juvília e a mãe Hilda; mas repara bem, se todos repararem bem, todos vivemos sós… Tu já reparaste como eu escrevo, pá?
FD | Destruidor…
MHL | Não, não é destruir, pá… o tipo está permanentemente só perante tudo…
FD | Perante si também…
MHL | Perante si, até… é perante si com grandes responsabilidades… e então toma acções, pá… parte prà briga…
FD | Escrever é uma briga?
MHL | É, em certa medida é… é uma forma de combate… Mas é a mesma do indivíduo que põe solas em sapatos… é o combate do indivíduo perante a sociedade que o rodeia, pá…
FD | Terá o escritor de ter mais responsabilidades que o sapateiro…
MHL | Olha, pá, conheço tantos escritores tão irresponsáveis que prefiro o meu amigo sapateiro dali da esquina, que foi um velho republicano…
(Segue um diálogo em que são envolvidos alguns nomes do meio literário português, em que se fala de bofetadas, contrabofetadas, exemplos concretos em que estiveram envolvidos um escritor e um crítico da sua obra, etc.).
FD | …Mas o que eu estou a levantar é a questão do homem que está dentro de si e o homem que expõe aquilo que é… Tu, por exemplo, expões nos teus livros o que sentes, deduzo, o que és…, tá lá todo um rufar de sentimentos, de solidão…, todo o teu sol, a tua limpidez..
MHL | Não sei se está, pá…
FD | Eu tou a te dizer que está… eu sou o leitor…
MHL | Tá bem, pá, tu és o leitor… eu sou o tipo que escreveu… não tenho culpa nenhuma…
FD | Há uma coisa que eu recortei do teu primeiro livro e que eu acho explosivo; é o “Pôr-do-Sol”… Lembras-te o que é que é?
MHL | Lembro-me perfeitamente… é o tal sistema…
FD | O que tu escreves, tu te lembras depois?
MHL | Isso sei eu quase de cor, pá, é uma coisa oferecida a mim, é o tal processo da repetição: o tipo tá a escrever o que aconteceu, escrever o que aconteceu, o que acontece e até o que vai acontecer… e o ambiente vai melhorando; da planície, prà praia, prà montanha, mas a obsessão é sempre a mesma e a solidão é cada vez maior… (…) É aquela obsessão… o tipo escreveu aquilo e depois agiu como aquilo e aquilo passou a ser outra coisa escrita e ia agir a terceira vez, que não foi realizada, e estamos a vez que aquilo não tem fim… Não tenho culpa nenhuma, o problema não é meu, pá…
FD | E depois dos “Novos Contos do Gin”? (Há bocado dizias que é terrível quando um escritor vive a explorar permanentemente o mesmo filão. De tal maneira que passa a não mais saber escrever senão daquela maneira). Já tens dois “Gins”; são dois livros que seguem uma sequência de sensibilidade, uma sequência literária mais ou menos idêntica…
MHL | Certo… as historinhas têm quase a mesma linguagem, reparaste, só que uma é extremamente violenta e a outra é extremamente humor negro.
Pra diante eu não sei bem… mas o “República” pediu-me uns contos de ficção científica que eu tenho absolutamente assente… é do género pro louco, pá. São casos de direito galáctico… Um tipo que tira um olho, um fulano que acha que a solidão é realmente símbolo do seu planeta e então tira os olhos ao outro por amizade, mas o outro usava os olhos como elemento de reprodução… Então levanta-se um caso de direito… e eu tenho já cinco casos desses… um deles é o caso de um celicóide que é uma pedra até, não é do sistema carbónico, é um celicóide, que não sabia o que queria dizer agressão, mas que destruiu um planeta, por acaso, por necessidade de comunicar… queria comunicar: a solidão perfeita… Aquilo tem uma introdução que é uma greve na Universidade do Dabarán; os estudantes tomaram o poder juntamente com os técnicos e os “robots”… e os aristopedagogos recusaram-se, pá… e claro isso relaciona-se com outros tipos de greves… e agora vai sair um livrinho, pá; são cinco casos de direito galático e um caso policial recolhidos pelo Mário-Henrique… O caso policial é uma montagem fotográfica… fotografias aí com o tio Ricardo, o sr. Ricardo da mercearia.
FD | Tu falas de “direito galático” com a força de uma realidade…
MHL | Mas é claro que é um direito, pá… eu concebi os casos, pá, que eu não sei até se existirão aqueles animais todos, os rastejadores da Algo-3 e isso e aquilo… No entanto, há todo um processo de comunicação que a gente poderia fazer com aquilo…
FD | Lembro-me agora daquela tua personagem do Palácio dos Prazeres…
MHL | O Joãozinho… “Joãozinho Volta à Casa”…
FD | Tu te lembras de tudo o que escreves…
MHL | Eu tenho uma bruta memória…
FD | E pra escreveres, há método?
MHL | Isso de perguntar ao escritor como escreve, talvez o Fernando Namora pudesse explicar… Tou convencido que o Ferreira de Castro explicava, o Jorge Amado poderia explicar perfeitamente, agora mais ainda depois de pai de santo e tudo… Mas eu não tenho um processo, pá, honestamente não tenho… de repente, apet… não é apetecer, pá, isso daria, assim, um ar tão “snob”… é uma necessidade qualquer… é uma série de historinhas que estão sempre a funcionar cá dentro na môcha…
FD | Tu anotas coisas?
MHL | Não, às vezes escrevo à noite quando estou assim…
FD | Mas quando tu começas uma história, e as tuas são muito bem elaboradas, tu já sabes antecipadamente onde queres chegar…
MHL | Algumas têm acontecido que eu vou dar solução mesmo no fim, pá… Eu estou tão enrascado… o pânico é maior pra mim do que o personagem lá dentro… É autêntico, pá… e os títulos vêm sempre depois… só aí eu descubro o que é aquilo… Tu sabes aquela historinha que se chama “Apenas”, no segundo livro que é o “Simão Zacuto”? que é o Caminhante, é evidente, que acaba morrendo ouvindo o bramido do mastodonte… Acontece que essa historinha o título me veio absolutamente no fim porque é apenas aquilo, não há mais nada… Veio o pele-vermelha ajudar o “Simão Zacuto” contra os nazis e acabou vindo “Rakut da Barba Vermelha” com toda a sua ordem de Cro-Magnons, pá… para abater os nazis… Só que o “Simão Zacuto” já estava morto, pá… é o tal desastre, pá… Mas apesar de tudo abateram os nazis; é a minha grande esperança, pá… enquanto a “Briolanja” lá de cima acenava com o lencinho…
FD | No que escreves está uma linha de pensamento que gostava que definisses…
MHL | Eu vou te dar uma definição que talvez já esclareça uma certa posição política, quer dizer: eu não tenho nada a ver com os romanos, pá, o meu latinismo mantém-se apenas no nome que é Mário, pá, eu não acredito no “in medium est virtus”… tenho um papel sempre à cabeceira onde escrevi a minha linha… a minha linha, tanto a de viver como a de escrever é esta: mas se houver morte, então darás vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe – está no “Exodus”, é o segundo livro de Moisés. Depois, mais tarde, uns seculozinhos mais tarde, nesse mesmo livro, houve um tal “gajo” que afirmou: quer-te quente ou quer-te frio, mas se queres morno eu vomito pela minha boca. Eu não gosto de mornos, pá… quente ou frio, morno não dá. A minha maneira de escrever é aminha maneira de viver, pá; e é até a minha forma política. Um extremo ou outro; como não sou nazi, supõe-se qual será o outro.
(Falou-se da vida de Leiria na América Latina, da sua intensa participação no processo histórico em alguns países do continente nos anos 60).
FD | E hoje que é que tu pensas de tudo isso?
MHL | Penso que valeu a pena… foi óptimo… saí correndo sei lá como, pá… passei pelo Chile, raspei-me para Cuba, tive no México…
FD | Que fazias durante esse tempo?
MHL | Comia, às vezes…
FD | E a literatura?
MHL | Nunca tive preocupação de ordem literária… nem hoje… de ordem literária não tenho, pá… deixo isso para o Namora, etc.
FD | E porque escreves?
MHL | Porque gosto, pá.
FD | Escrever, portanto, pra ti não é uma profissão; ou melhor, poderias ser um sapateiro, mesmo a escrever, como escreves…
MHL | E poderia seu um óptimo sapateiro, porque eu tenho a mania de ser um bom profissional…
(Falou-se de humoristas, de humor…)
FD | As tuas coisas são cheias de um humor destrutivo, como se fora uma traça gigante a devorar tudo…
MHL | Eu gosto de comer, pá. (…) Os espaços e os tempos estão extremamente associados pra mim… É por isso que eu adoro, em certa medida, a ficção científica… o tempo é uma coisa que pra mim não conta senão todo um processo que está para trás e o que vai para frente…
FD | Mas o homem é extremamente limitado…
MHL | Nem tanto, pá… o universo só existe porque existimos… senão não havia universo… Mas isso dos limites é uma questão muitas vezes de cada um: tu és limitado, por exemplo, a meio litro, eu aguento dois litros… mas eu nem queria dar esse exemplo: se o homem desaparecer da Terra não tem importância nenhuma, pá… aparecerá outro animal qualquer…
FD | A tua ficção científica tu a ligas muito à realidade…
MHL | Claro, pá… eu sempre transponho… aquela historinha do segundo livro “Amor Escreve-se com Água”…. é um peixe a escrever prà mulher… até pode ser ficção científica em certa medida…
(Falou-se de pintores… da pintura em Portugal, de Gracinda Candeias, sem se saber porque veio o nome dela à baila…)
MHL | Quando chegou aqui o Álvaro Belo Marques trouxe a Gracinda a casa… tinha uma coisa notável num apartamento em Cascais… eu fui lá um dia… todo torcido, como é costume… que eu ando sempre todo torcido… em óleo brutal que é uma coisa assim redonda, com uma brutalidade enorme; mas depois passou a fazer umas coisas com pintinhas e pontinhos… bom, eu vejo mal, devido à Polícia, geralmente não ando com lente…
FD | Tu falaste em ver… há ver e olhar… estou a falar de outra coisa, noutro plano…
MHL | Olhar é o que estou a olhar para este copo… ver é o prazer com que olho para o “gin” neste momento, pá… (e vai mais um gole)… ver é prazer… olhar é um acidente biológico.
FD | E onde está o instinto?
MHL | Em tudo, pá… nas pontas dos dedos, nos pés, nos olhos… no nariz…
FD | Tu escreves por instinto?
MHL | Sou um animal extremamente instintivo como todos nós… é claro que eu tenho de ser absolutamente comedido e respeitador…
F.D. - … Para dirigires os teus objectivos…
MHL | Eu não dirijo os objectivos… os objectivos estão lá… evidentemente que eu dirijo a caneta ou a máquina e dirijo um certo processo de pensar, porque se eu escrevesse bulhulhu-bulhulhu-paraparapá-katapuft não dizia nada… eu tenho de usar um processo que comunique… então estou a dirigir esse processo de comunicação. No entanto, eu tenho muito prazer, por vezes, e o meu cão compreende isso perfeitamente, o “vodka” de dizer pra ele: Galhuff e ele fica extremamente admirado, olha pra mim, e eu digo: katapuff e ele salta pra cima da cama e acredita no que ouve…
FD | Tu falas em acreditar. E num dos teus contos, leio: “Desconfio que a democracia não resulta. Juntam-se astronautas, bodes, camponeses, galinhas, matemáticos, virgens loucas e dão-se a todos os mesmos direitos. Isso parece-me um erro cósmico. Desculpa.” – O que queres dizer com isso?
MHL | Isso é o que se supõe que democracia, pá.
FD | Que é democracia?
MHL | Primeiro, não acredito. Já te defini a minha posição política: olho por olho, mão por mão, etc., eu não acredito nestas democracias do jornal “República”, onde, aliás eu colaboro com grande prazer… tenho bons amigos lá dentro… mas minha democracia é por amizade… amizade com o Álvaro Belo Marques, como Álvaro Guerra, são amizades particulares…
FD | Que há um envolvimento de respeito as acções deles…
MHL | Não; eu respeito as acções de todo o mundo, pá, desde que elas não sejam nazis, pá.
FD | Isso é intemporal…
MHL | Não é temporal, é exacto, pá. Se tu me disseres agora – sou católico praticante e desculpa vou acabar esta conversa e vou à missa… eu digo: perfeitamente… vai, mas volta cá pra gente discutir o que te disseram…
(…) A primeira coisa que temos é ter de aceitar o tipo que chega, o desconhecido… depois é selecionar… isso deve acontecer, mas custou-nos caro, muito caro… Em 36, todo o mundo deveria ter saído da Alemanha, não saiu… à espera… e ainda por cima, com os estimados rabis a dizer a paz e não sei o que mais…
(Dizia ele há bocado que quase todas as suas histórias foram por ele vividas…)
FD | E tens boa pontaria?
MHL | Tinha, pá… mas é o que eu digo: nas minhas mãos sobram-me dois dedos: o indicador direito, do gatilho, e o esquerdo, do nariz…
FD | Falaste, há pouco, dos “Homens Verdes”… O que pensas mesmo disso, da existência de vida noutros planetas, tu que és um apaixonado da ficção científica?
MHL | …Estou de acordo até com o grupo topológico francês… e tudo isso, que de facto a probabilidade matemática dá, analisando as estrelas, Alfa, Beta, sei lá… tenho lá por cima 7 mil livros… é preciso ler, pá… mas acontece que a possibilidade de existência da vida é enorme… bom, nós estamos na periferia da galáxia, como se sabe… até num braço periférico; no centro, a concentração é assim no género de estrela para estrela… ali deve haver celuizações de assustar… e a pluralidade das culturas? O nosso solo é um solo jovem: são apenas 4 biliões de anos… quatro e meio… dizem… temos que acreditar que hajam os pólipos de Algo-3, os rastejadores de Veja-5, qualquer coisa extremamente impressionante, pá… (…) eu tenho um extremo orgulho em ser hom… em ser um ser humano… quase dizer em ser homem… se eu fosse dizer homem, caíam-me em cima as feministas… a Teresa Horta dava-me uma tacada… e eu adoro aquele menina, pá… ele tem uma poesia… você conhece “A Minha Senhora de Mim”? Que lindo livro!
(Fala dos eu divórcio – foi casado entre 59 e 61 – “Dela” que vive hoje na Inglaterra e tem um castelo em França…)
FD | Tu vives só, Leiria?
MHL | Vivo só, pá… mais as duas velhas (a tia e a mãe)…
(… E lembrou a sua simpatia e amizade ao lama, das suas andanças pelo Peru, por Machu-Pichu e falou de quantas coisas se ia lembrando, em passagens por “vales e montanhas” até chegar ao lirismo, ao romantismo, ao realismo da sua obra…)
MHL | Uns chamam-me lírico, o Alexandre O’Neill, o nosso maior poeta… tu conheces o O’Neill? Já fez versos prà Amália, pá…
FD | E tu farias versos prà Amália?
MHL | Era capaz disso… se ela cantasse o que eu fizesse, pá… não tenho nada contra a Amália…
FD | Tu achas que ela cantaria coisas como esta que vem escrito na abertura do seu segundo livro: “A justiça será feita quando o justiçado puder dizer como terá de ser feita a justiça.” – isto não é teu, mas tu pensas que…
MHL | Não, isso é mesmo meu, pá…
FD | Mas no livro vem um outro nome…
MHL | Pois é, pá… mas a gente tem que assinar; e assinar sempre com o mesmo nome é uma chatice, pá… o nome que tá lá é Goro Tivuloi.
Goro é uma coisa que me parece ter vindo de outro planeta… é o nome que usei muito no Brasil pra assinar coisas…
Tivuloi lembra-me uma amiga finlandesa que tava lá e joguei aí esse nome…
(Outros temas fragmentados etc… e)
(…) …O povo continua, pá… não ligo nada, nada a mim… nem sou cósmico, pá… nem nada… pá… é claro que sei que morreram aqui há pouco seis ou mais milhões de tipos, por casos acidentais e outros, na Coreia aqui e ali… e eu faço parte desses tipois, pá… (e num grito) é a solidão total, pá. É a tentativa de comunicação de um tipo que sabe que de facto pertence a um grupo ou seja o que for e conta umas coisas – é o que eu faço, pá…
(E sobre a morte)
MHL | Medo nenhum… ainda não tenho… (…) Um dia, nessa revista, “E Etc.” pediram-me umas coisas… e disseram pra eu mandar umas notas biográficas, o retrato, não sei o que mais… eu mandei uma grade de um campo de concentração com uma fotografia minha… depois escrevi: Mário-Henrique Leiria nasceu a 2 de Janeiro de 1923… todo o resto é consequência disso… mais nada… todo o resto é consequência disso… depois, veio o corte a esse resto… mas o problema não é meu, pá… quer dizer: se eu quiser é meu, quando eu quiser eu corto também… por cansaço, por tá farto, por tá chateado… mas honestamente, pá, não tenho medo da morte… e pela razão de não ter medo da morte é que o tipo arrisca tudo, pá… tudo que lhe é indiferente em certa medida… se pifar, pifou… eh, pá, pensa bem: que importância tem essas duas “cagadas” desses dois livrinhos ou os três livros de poesia que eu tenho aí escondidos e guardados e as publicações no estrangeiro e isso tudo? que importância tem isso em relação ao mundo? nada… e ao meu povo e a tudo isso? nada… medo de quê, pá? de deixar de ver esse sol de tarde? Ele continua… deixo de ver… é só… o universo então se acabou pra mim… mais nada… é um problema meu, pá… mais nada… é o problema do homem solitário… pronto, acabou… não há mais universo… não nasceu, nem existe…
FD | Mas nas tuas historinhas repetes sempre que é magnífico viver…
MHL | É óptimo, pá… eu adoro estar vivo… até me fartar… mas tu sabes perfeitamente que nós somos uma gente só… cheia de desejo de comunicar com os outros… talvez na esperança de que os outros acreditem que nós somos pessoas… mas somos sós mesmo… profundamente sós… e esse é o nosso prazer de estarmos vivos… é a tomada de consciência de estarmos sós… donde vem o tal humorzinho malvado…
FD | Estávamos há pouco a falar da presença da solidão na literatura portuguesa…
MHL | É verdade… é uma solidão chorada, pá… um desastre… os tipos nem sabem que estão sós e então estão cheios da tia, da vaca, eu sei lá de quê… da nêspera, do pato, do ambiente, das caldas e ficam muito tristinhos em casa a chorar sozinhos, pá… então nasce o fado choradinho… a vários títulos, pá…
FD | Mas lá fora pensa-se comummente que o fado representa um sentimento do povo português…
MHL | Mas não é verdade, pá… pensa-se lá fora… mas não é verdade… Porque como todos sabem é uma canção de Lisboa… no Porto não se ouve o fado… nem em Trás-os-Montes, nem no Algarve ninguém sabe o que é o fado… eu tenho ali canções muito portuguesas… as de Trás-os-Montes. Canções com gaita-de-foles e tudo, pá. Uma coisa espantosa que gravei lá… de manhã sai-se de uma cidade com neve e tudo e vem um tipo com um tambor e outro com uma gaita de foles a anunciar a manhã… o resto, pá, é a grande exportação, péssima de discos mal gravados que dá dor de cabeça… nunca aguentei isso do fado a não ser à noite nos botecos de Lisboa, muito cheio de vinho tinto e de chouriço e aí, sim, eu chorava… bem, não chorava porque nunca fui capaz… mas ficava comovidíssimo… mas isso era também por força de uma outra corrente, como se deduz, não é? Uma comoção à base do tinto numa cidade frustrada como Lisboa, pá…
FD | Cidade frustrada…
MHL | Sim, pá, frustrada… com a sua meia dúzia de intelectuais… repara, pá… uma cidade pequenininha, uma cidade raquitiquinha, que tem arranha-ceuzinhos e tudinho… tudo em “inho”, pá… cafezinhos…
FD | E o Poe…
MHL | Gosto muito desse tipo, pá… morreu com uma cirrose de fígado e ainda bem… era um tipo tão desesperado, tão solitário… a poesia dele é das coisas mais solitárias que eu tenho lido… que me deixa às vezes aquilo que se chama “a pele de galinha”…
(À volta de Poe e circunstância de vida, dele Poe e da do próprio Leiria, de ser ou não rico, da hipótese de um Rotschild na vida de um escritor – detestável na opinião de Leiria, como destestável é um Prémio Nobel).
MHL | (…)… Quanto a mim, o problema de viver, de existir, é estar bem vivos, pá…e temos uma razão pra isso, pá… por qualquer coisa que nos valha a pena brigar…
(Sobre o escrever e a realidade… fragmentos vários… “um tipo tem que tomar a responsabilidade do que diz”… escrever e pensar: aquém ou além? “O escrever está aquém do pensar… muito aquém, pá… tu estás a pensar em coisas tenebrosas e quando chegas a escrever escreves meia dúzia.” Superação da leitura – a questão da imagem e sua concorrência… o cinema sobrepõe-se à literatura: “eh, pá… mas só no momento em que se vê, pá… repara numa coisa: vês um filme que te lixa, que te impressiona e chegas a casa, espreitas em baixo da mesa a ver se tá lá o fantasma… no dia seguinte esqueceste totalmente… com a leitura não, pá… se leres fixas… se ficaste com dúvidas voltas a repetir… é muito menos agressivo, pá… concordo… a imagem é de facto aquela coisa que nos corta a cara… aquilo que a gente escreve é aquela brocazinha perfurante que vai chateando, vai ficando… é a forma de comunicação mais directa, pá…).
FD | E a mais difícil.
MHL | Em certa medida é…
FD | Tu escreves, cortas e recortas…
MHL | Não, quase sempre escrevo directo… isso é que é chato… por isso é que me dizem que eu tenho erros de ortografia que me farto é de semântica…
FD | Mas tu não te preocupas com isso…
MHL | Estou-me nas tintas pra escrever errado, na medida em que o que eu escrevo comunica, pá… a semântica deixo para os professores de semântica e para os grandes críticos, pá… depois, analisam-me… eh, pá, tem-me acontecido desastres… tenho lido cada análise ao que eu escrevo que eu fico tão apavorado que eu vou voltar a ler outra vez… é autêntico, pá… pra ver se era aquilo… não tenho nada a ver com isso… não volto atrás para escrever uma coisa, nunca, pá… até que depois não tinha graça, pá. Não tenho culpa: eu não sou um escritor… não sou um escritor dentro do conceito que se chama escritor… eu não estou enfeudado a princípios que me obriguem a leias escriturais, pá… escrevo coisas tá como poderia fazer um sapato bem feito, não sei… eu tenho prazer em escrever, às vezes… eu sou muito mais oral do que escrevinhador… escrevo, pá… até que me pagam os livros, pá… mal, mas pagam… mal, vírgula, no meu caso, pá… têm sido honestíssimos e porreiríssimos a pagarem-me… o que é uma necessidade, pá… porque eu gosto do “gin”, pá, eu sou um “snob” ao fim e ao cabo, por sinal barato, pá… Mas ser escritor é que eu não queria que me considerassem oficialmente escritor… escrevo é só…
(…E falou da Carminda e da sua “recusa”, certa vez, por amor a ele… por amor ao que com ele viveu durante os anos de amizade quando era “manequim” no “atelier” do Jorge Vieira, do Frederico Jorge e do Abel Manta… “foi uma recusa linda, pá… linda… uma recusa de grande amizade, pá… isso é uma história tão bonita que eu nunca fui capaz nem de a escrever nem de a publicar, pá… e tão verdadeira que o Jorge Vieira sabe, o Frederico Jorge… grande, grande gravador, grande pintor… como seu bigode britânico e até de descendência britânica… foi no ‘atelier’ dele que conheci a Carminda…” E daí “salta” para lembrança de coisas vividas de Moscovo a Machu-Pichu à Ilha da Páscoa…)
MHL | Por isso é que gente bebe “gin”, pá…


NOTA
Entrevista de FERNANDO DIL a Mário-Henrique Leiria para a revista Vida Mundial, no. 1813, de 8 de Março de 1974.


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
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