quarta-feira, 4 de setembro de 2019

MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA | Linhas manifestas


1º. Manifesto do Sobreporismo
A estética e o Sobreporismo

Na arte a concepção de estética tem obedecido sempre a cânones, digamos, a dogmas. A diferenciação das várias escolas submete-se sempre a um certo conceito de estética, conceito esse que pode ser mais ou menos livre, mais ou menos académico, mais ou menos dogmático, mas sempre indestrutível e fixo. E isto dá como resultado a falta de liberdade criadora que, por vezes, inutiliza as faculdades do artista. Ora, este conceito de estética tem de desaparecer. O dogma ou o método não são precisos para nada em arte. Faça-se arte anárquica, arte absurda, criem-se alucinações ou pesadelos, mas reproduza-se a sensibilidade e a criação cerebral. O Sobreporismo tende para a destruição total dos métodos. Exige apenas, como princípio fundamental, a associação do íntimo com o exterior e a desumanização do belo. Sim, a desumanização é o fim lógico do Sobreporismo, como resultado da criação anárquica e sensitiva. A estética do Sobreporismo será, portanto, uma estética destrutiva e construtiva ao mesmo tempo, uma estética em que a acção será condicionada à independência de sensações e em que apenas interessará a perfeição total cerebralizada como único método de atingir o sobre-humano. Há necessidade, para atingir esse sobre-humano de destruir todas as anteriores concepções. Então destrua-se, aniquile-se, mas crie-se algo de novo que valha a pena ser vivido, embora esse algo de novo traga como resultado a loucura ou a auto-destruição. A estética do Sobreporismo ama a arte pela violência destrutiva e não pela fraqueza criadora. Criar, sem sofrimento nem violência, não será nunca uma estética aceitável. Destruir brutalmente, para poder renovar o destruído com a energia necessária, essa sim, essa será a estética pura e verdadeira dum Sobreporismo cada vez mais violento.


1º. Manifesto da Rua da Escola
CONTRA AS AVES DE CAPOEIRA”
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Redigido por MÁRIO HENRIQUE LEIRIA com o acordo de MAIS CINCO
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Razões deste MANIFESTO:

1ª. Por não acreditarmos que Deus seja um vendedor de gravatas.
2ª. Por sabermos que os poetas são crocodilos para uso doméstico.
3ª. Por o Júlio Dantas usar ceroulas de atilho.
4ª. Porque três + três são oito e não seis como toda a gente diz.
... e, finalmente, porque quisemos escrever um MANIFESTO.

Qualquer semelhança que exista entre um membro da Academia e um homem é pura coincidência.
Assim galos e galinhas, patos e patas, perus e peruas e até coelhos são animais propostos para a imortalidade, atendendo que também usem ceroulas de atilho e estudaram medicina. Contra isto há a dizer que:

1º. – A arte é uma cauda que só os homens podem usar e que, portanto, não se pode transformar em sopa de canja sem o perigo de se ter que entrar numa Academia.

2º. – Quando um grupo se junta num “atelier” não quer dizer que seja a hora de dar milho às aves de capoeira nem tão pouco a altura de pôr ovo. Um atelier é um objecto multiforme e aqueles que estão nele não têm a obrigação de defecar, a não ser que sejam da categoria dos que desejam fazer um retrato muito parecido de S. S. Pio XIII; mas essas usam ceroulas de atilho e estudaram medicina.

3º. – A liberdade deste grupo que está neste “atelier” é precisamente aquela de não fazer retratos muito parecidos de S. S. Pio XIII, de não usar ceroulas de atilho, de não pôr obrigatoriamente um ovo muito amarelo, de fazer muitas coisas ou de não fazer coisa nenhuma. Portanto a nossa liberdade é a de podermos comer todas as aves de capoeira sem que as mesmas aves de capoeira tenham a mais remota possibilidade de nos comer a nós.

Continuando, podemos verificar que as aves de capoeira são animais que não têm a mais pequena noção de decência. Assim, por todos os cantos deixam os seus vestígios amarelos e até aqui, na Rua da Escola, o seu cheiro nauseabundo nos chega vindo dos cantos onde elas se catam mutuamente. Quando elas apertam os atilhos das ceroulas, são condecoradas por um ministro gordo que antes de ser ministro era magro e, nessa altura, aquelas indecências amarelas caíam no chão, por baixo das ceroulas, e nós aí temos o cheiro a condecorações, discursos e caca. Portanto há que começar a utilizar a nossa liberdade, isto é: há que começar a comer o mais depressa possível as aves de capoeira para que nos não torne a chegar o seu inacreditável fedor.
Além de tudo isto, as aves de capoeira dão uma boa canja.


[POR UM DESERTO EXAUSTIVAMENTE LONGO]

Por um deserto exaustivamente longo, seguimos o nosso caminho de inventores desconhecidos, enquanto um corpo de mulher decapitada nos sorri, e uma mesa muito branca e sangrando sempre caminha para nós...
Em cada país a posição surrealista tem de se colocar conforme as suas próprias possibilidades e formas de actuação, condicionada pelo meio em que existe e é obrigada a ser e servindo-se da capacidade de revolucionar-destruir-criar que esse mesmo meio lhe proporciona. O surrealista não é um mártir da ciência ou d’outro qualquer mito aceite pela sociedade dita organizada, nem um combate, te pago (ou não-pago) para servir ordens emanadas de qualquer partido ou organização mais ou menos política ou filantrópica. O surrealista usa o seu próprio mito, venha ele das cavernas dos anões de sete olhos ou das máquinas de costura antiquíssimas, serve-se do seu mito particular para seguir pelos caminhos tenebrosos e ainda por descobrir onde existem pontes de velhos manequins, e usa-o conforme a sua necessidade e furor pessoais dentro do meio em que por acaso existe, sem procurar o martírio nem o sacrifício merdoso-patriótico dos homens de partido. Por isso as actuações têm de adiantar-se ao local em que se situam. Por isso a nossa afirmação de que, em Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por vezes, em conjunto.
Debaixo de qualquer ditadura (fascista ou stalinista) não é possível uma actuação surrealista organizada sem as respectivas consequências de represálias policiais e, portanto, sem o aparecimento dos respectivos mártires e heróis. A acção surrealista, neste caso particular, está limitada a uma série de actos que poderíamos chamar de guerrilhas, ou a um acomodamento reacionário com os respectivos ministérios de PROPAGANDA. Das duas posições e, sem dúvida, a primeira a única possível embora, por vezes, bastante difícil de manter.
Quando num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século – LIBERDADE – deixa de ser mito para se tornar numa realidade visível que se procura com ânsia e desejo. Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos ao grande acto mágico da subversão de valores e a afirmação total do nosso direito de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da surrealidade.
Queremos afirmar – e afirmamos – que a verdadeira actuação surrealista, não se limitando ao campo político, ao filosófico, ao estético ou a qualquer outro, mas reunindo todos no Real-Imaginário, não pode nem deve seguir a rota de qualquer um destes caminhos, mas agir dentro de todos eles. Por isso cremos que aqui, em Portugal, estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem que o Estado vai realizando sistematicamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos faria cair fatalmente noutra ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta ou aquela tendência estética que, a título de revolucionária, pretenda criar um novo tipo de academismo, fosse de qualquer maneira suficiente para nos levar à libertação desejada. Qualquer espécie de realismo-socialista com todo o seu cortejo de estéticas, literaturas e políticas de partido, é tão prejudicial à liberdade do Homem como uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar de Deus um outro Deus igualmente absurdo.
Substituir um Papa por outro Papa é o que de forma nenhuma podemos admitir. O Homem só será livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política ou político-religiosa e quando for universalmente capaz de existir sem limites. Então o Homem será o Poeta e a poesia será o Amor-Explosivo.
A nossa posição de surrealistas portugueses é, portanto, feita de pequenos actos, de esporádicas surtidas no campo do desconhecido, e feita de transformações súbitas em que a serpente de repente deixa de ser o pequeno animal caseiro que todos conhecemos para começar a caminhar na floresta petrificada povoada de sombras e de olhos de panteras.
Contra a transformação do Homem em santo canonizado, propomos a aparição do Homem e da mulher eternamente abraçados, a súbita nascença na praia abandonada do Cavalo de Sete Cabeças, filho do Fogo e da Água.
Contra a adaptação do Homem numa máquina de defender pátrias e partidos, propomos a criação do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montado num cometa extremamente longo e fulgurante.
Para a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.

COMUNICADO PELOS SURREALISTAS
Mário Henrique Leiria, Artur do Cruzeiro Seixas e João Artur Silva


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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)


Agulha Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número 144 | Outubro de 2019
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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