A estética
e o Sobreporismo
Na arte a concepção de estética tem obedecido sempre a cânones,
digamos, a dogmas. A diferenciação das várias escolas submete-se sempre a um certo
conceito de estética, conceito esse que pode ser mais ou menos livre, mais ou menos
académico, mais ou menos dogmático, mas sempre indestrutível e fixo. E isto dá como
resultado a falta de liberdade criadora que, por vezes, inutiliza as faculdades
do artista. Ora, este conceito de estética tem de desaparecer. O dogma ou o método
não são precisos para nada em arte. Faça-se arte anárquica, arte absurda, criem-se
alucinações ou pesadelos, mas reproduza-se a sensibilidade e a criação cerebral.
O Sobreporismo tende para a destruição total dos métodos. Exige apenas, como princípio
fundamental, a associação do íntimo com o exterior e a desumanização do belo. Sim,
a desumanização é o fim lógico do Sobreporismo, como resultado da criação anárquica
e sensitiva. A estética do Sobreporismo será, portanto, uma estética destrutiva
e construtiva ao mesmo tempo, uma estética em que a acção será condicionada à independência
de sensações e em que apenas interessará a perfeição total cerebralizada como único
método de atingir o sobre-humano. Há necessidade, para atingir esse sobre-humano
de destruir todas as anteriores concepções. Então destrua-se, aniquile-se, mas crie-se
algo de novo que valha a pena ser vivido, embora esse algo de novo traga como resultado
a loucura ou a auto-destruição. A estética do Sobreporismo ama a arte pela violência
destrutiva e não pela fraqueza criadora. Criar, sem sofrimento nem violência, não
será nunca uma estética aceitável. Destruir brutalmente, para poder renovar o destruído
com a energia necessária, essa sim, essa será a estética pura e verdadeira dum Sobreporismo
cada vez mais violento.
1º. Manifesto da Rua da Escola
CONTRA AS AVES DE CAPOEIRA”
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Redigido
por MÁRIO HENRIQUE LEIRIA com o acordo de MAIS CINCO
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1ª. Por não acreditarmos
que Deus seja um vendedor de gravatas.
2ª. Por sabermos que
os poetas são crocodilos para uso doméstico.
3ª. Por o Júlio Dantas
usar ceroulas de atilho.
4ª. Porque três + três
são oito e não seis como toda a gente diz.
... e, finalmente, porque
quisemos escrever um MANIFESTO.
Qualquer
semelhança que exista entre um membro da Academia e um homem é pura coincidência.
Assim
galos e galinhas, patos e patas, perus e peruas e até coelhos são animais propostos
para a imortalidade, atendendo que também usem ceroulas de atilho e estudaram medicina.
Contra isto há a dizer que:
1º. – A arte é uma cauda que só os homens podem usar e que,
portanto, não se pode transformar em sopa de canja sem o perigo de se ter que entrar
numa Academia.
2º. – Quando um grupo se junta num “atelier” não quer dizer
que seja a hora de dar milho às aves de capoeira nem tão pouco a altura de pôr ovo.
Um atelier é um objecto multiforme e aqueles que estão nele não têm a obrigação
de defecar, a não ser que sejam da categoria dos que desejam fazer um retrato muito
parecido de S. S. Pio XIII; mas essas usam ceroulas de atilho e estudaram medicina.
3º. – A liberdade deste grupo que está neste “atelier” é precisamente aquela de
não fazer retratos muito parecidos de S. S. Pio XIII, de não usar ceroulas de atilho,
de não pôr obrigatoriamente um ovo muito amarelo, de fazer muitas coisas ou de não
fazer coisa nenhuma. Portanto a nossa liberdade é a de podermos comer todas as aves
de capoeira sem que as mesmas aves de capoeira tenham a mais remota possibilidade
de nos comer a nós.
Continuando,
podemos verificar que as aves de capoeira são animais que não têm a mais pequena
noção de decência. Assim, por todos os cantos deixam os seus vestígios amarelos
e até aqui, na Rua da Escola, o seu cheiro nauseabundo nos chega vindo dos cantos
onde elas se catam mutuamente. Quando elas apertam os atilhos das ceroulas, são
condecoradas por um ministro gordo que antes de ser ministro era magro e, nessa
altura, aquelas indecências amarelas caíam no chão, por baixo das ceroulas, e nós
aí temos o cheiro a condecorações, discursos e caca. Portanto há que começar a utilizar
a nossa liberdade, isto é: há que começar a comer o mais depressa possível as aves
de capoeira para que nos não torne a chegar o seu inacreditável fedor.
Além
de tudo isto, as aves de capoeira dão uma boa canja.
[POR UM DESERTO EXAUSTIVAMENTE LONGO]
Por um deserto exaustivamente
longo, seguimos o nosso caminho de inventores desconhecidos, enquanto um corpo de
mulher decapitada nos sorri, e uma mesa muito branca e sangrando sempre caminha
para nós...
Em cada
país a posição surrealista tem de se colocar conforme as suas próprias possibilidades
e formas de actuação, condicionada pelo meio em que existe e é obrigada a ser e
servindo-se da capacidade de revolucionar-destruir-criar que esse mesmo meio lhe
proporciona. O surrealista não é um mártir da ciência ou d’outro qualquer mito aceite
pela sociedade dita organizada, nem um combate, te pago (ou não-pago) para servir
ordens emanadas de qualquer partido ou organização mais ou menos política ou filantrópica.
O surrealista usa o seu próprio mito,
venha ele das cavernas dos anões de sete olhos ou das máquinas de costura antiquíssimas,
serve-se do seu mito particular para seguir pelos caminhos tenebrosos e ainda por
descobrir onde existem pontes de velhos manequins, e usa-o conforme a sua necessidade
e furor pessoais dentro do meio em que por acaso existe, sem procurar o martírio
nem o sacrifício merdoso-patriótico dos homens de partido. Por isso as actuações
têm de adiantar-se ao local em que se situam. Por isso a nossa afirmação de que,
em Portugal, não é possível a existência de qualquer agrupamento ou movimento dito
surrealista, mas de que apenas poderão existir indivíduos surrealistas agindo, por vezes, em conjunto.
Debaixo
de qualquer ditadura (fascista ou stalinista) não é possível uma actuação surrealista
organizada sem as respectivas consequências de represálias policiais e, portanto,
sem o aparecimento dos respectivos mártires e heróis. A acção surrealista, neste
caso particular, está limitada a uma série de actos que poderíamos chamar de guerrilhas,
ou a um acomodamento reacionário com os respectivos ministérios de PROPAGANDA. Das
duas posições e, sem dúvida, a primeira a única possível embora, por vezes, bastante
difícil de manter.
Quando
num país o poeta não é mais poeta se não pertencer a um partido e o homem não pode
ser homem se não for um carneiro, o grande mito do século – LIBERDADE – deixa de
ser mito para se tornar numa realidade visível que se procura com ânsia e desejo.
Quando num país a igreja católica transforma os homens em seres sem sexo e a ditadura
do Papa obriga os poetas a serem padres ou castrados, o nosso furor sexual obriga-nos
ao grande acto mágico da subversão de valores e a afirmação total do nosso direito
de foder livremente, de sermos os verdadeiros poetas do amor, da destruição, da
surrealidade.
Queremos
afirmar – e afirmamos – que a verdadeira actuação surrealista, não se limitando
ao campo político, ao filosófico, ao estético ou a qualquer outro, mas reunindo
todos no Real-Imaginário, não pode nem deve seguir a rota de qualquer um destes
caminhos, mas agir dentro de todos eles. Por isso cremos que aqui, em Portugal,
estando, como estamos, limitados por todos os lados, só temos à nossa frente a feroz
presença do desejo individual para lutarmos contra a extinção do Homem que o Estado
vai realizando sistematicamente e não podemos, portanto, enfileirar em qualquer
partido que, a título de futuras liberdades políticas (ou outras quaisquer) nos
faria cair fatalmente noutra ditadura. Também não acreditamos que o seguir esta
ou aquela tendência estética que, a título de revolucionária, pretenda criar um
novo tipo de academismo, fosse de qualquer maneira suficiente para nos levar à libertação
desejada. Qualquer espécie de realismo-socialista com todo o seu cortejo de estéticas,
literaturas e políticas de partido, é tão prejudicial à liberdade do Homem como
uma ditadura fascista, apenas conseguindo pôr no lugar de Deus um outro Deus igualmente
absurdo.
Substituir
um Papa por outro Papa é o que de forma nenhuma podemos admitir. O Homem só será
livre quando tiver destruído toda e qualquer espécie de ditadura religioso-política
ou político-religiosa e quando for universalmente capaz de existir sem limites.
Então o Homem será o Poeta e a poesia será o Amor-Explosivo.
A nossa
posição de surrealistas portugueses é, portanto, feita de pequenos actos, de esporádicas
surtidas no campo do desconhecido, e feita de transformações súbitas em que a serpente
de repente deixa de ser o pequeno animal caseiro que todos conhecemos para começar
a caminhar na floresta petrificada povoada de sombras e de olhos de panteras.
Contra
a transformação do Homem em santo canonizado, propomos a aparição do Homem e da
mulher eternamente abraçados, a súbita nascença na praia abandonada do Cavalo de
Sete Cabeças, filho do Fogo e da Água.
Contra
a adaptação do Homem numa máquina de defender pátrias e partidos, propomos a criação
do Homem-Asa, do Homem que percorrerá o Universo montado num cometa extremamente
longo e fulgurante.
Para
a pátria, a igreja e o estado a nossa última palavra será sempre: MERDA.
COMUNICADO PELOS SURREALISTAS
Mário Henrique Leiria, Artur
do Cruzeiro Seixas e João Artur Silva
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EDIÇÃO COMEMORATIVA | CENTENÁRIO DO SURREALISMO 1919-2019
Artista convidado: John Richardson (Inglaterra, 1958)
Agulha
Revista de Cultura
20 ANOS O MUNDO CONOSCO
Número
144 | Outubro de 2019
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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A foto do Mário-Henrique, acima, foi tirada em minha casa, 1976. :-)
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