quarta-feira, 6 de maio de 2020

LILIAN PESTRE DE ALMEIDA | Isabel Meyrelles e a invenção de Ítaca


Por sete anos, de 1970 a 1977, a poeta e escultora portuguesa Isabel Meyrelles, nascida em Matosinhos, em abril de 1929, e residindo em Paris desde 1950, voltou a Portugal, o seu país natal.
Vinte anos depois da sua ida para a França, retornava Isabel com o propósito de participar da fundação e criação de um novo espaço social e cultural, idealizado juntamente com a “estrela” Natália Correia, numa Lisboa em mudança: com um nome que era deliberadamente uma antífrase, O Botequim, a nova casa, no bairro da Graça, reuniria duas artes, sumamente refinadas, cozinha e tertúlia.
Do ponto de vista literário, o retorno ao país natal domina todo o imaginário do Ocidente desde Homero ao Renascimento com Du Bellay (“Heureux, qui comme Ulysse, a fait un beau voyage...”) e aos poetas negros contemporâneos, Aimé Césaire (Cahier d’un retour au pays natal) ou Derek Walcott (Omeros). Mas esse primeiro retorno de Isabel Meyrelles a Portugal frustrou-a, profundamente.
O Botequim era, de certa forma, a abertura do “salon” aristocrático iluminista a um novo público, mais amplo e por isso mesmo mais democrático. Lugar de encontro, fruição e descoberta, em que a cozinha tradicional portuguesa, inclusive, abrir-se-ia ao gosto de inventar (e inventar também é descobrir mas lá vamos mais tarde) novos sabores e novos pratos. No Botequim acontecia, a cada noite, algo de inesperado. O chef era Isabel Meyrelles.
Ao cabo de sete anos de trabalho no Botequim no bairro da Graça, em Lisboa, onde dirigia a cozinha enquanto a sua sócia, Natália Correia, recebia os convidados e clientes na sala, Isabel Meyrelles deu fim à experiência, que se tornara muito dolorosa, deixando-a em depressão profunda, fracasso sobre o qual fala, ainda hoje, mesmo na intimidade, com delicadeza e discrição. O Botequim continuaria sem ela, como continuou aliás.
Prestes a retornar à França, Isabel publica, em 1977, o seu livro de poemas mais coerente e, sem dúvida, o mais soturno, Le Livre du Tigre, [1] livro que traduziu depois, ela própria, para o português. E é o Livro do Tigre, para quem sabe ler, que dá a medida da sua decepção e tristeza ao retornar à França em companhia de Émilienne Paoli. Isabel parte, pela segunda vez, para Paris onde se refugia e se reconstrói uma vez mais, com apoio da companheira. Aos 48 anos, em plena maturidade, a artista retorna à França.
A epígrafe inicial do Livre du Tigre sai do célebre poema de William Blake: “Tyger, tyger, burning bright/ in the forest of the night,/ what imortal hand or eye/ could frame thy fearful symmetry”, poema-desafio que tantos poetas-tradutores porfiam em traduzir. [2] Duas outras sombras perpassam, no volume, a de Alice e a de Borges. Também poeta e tradutor, o Argentino nunca esqueceu o momento mágico da infância em que viu, pela primeira vez, um tigre de Bengala, no jardim zoológico de Palermo, na Sicília, em viagem com os pais:

Iba y venía, delicado y fatal, cargado de infinita energia, del otro lado de los firmes barrotes y todos lo mirábamos. Era el tigre de esa mañana, en Palermo, y el tigre del Oriente y el tigre de Blake y de Hugo y Shere Khan, y los tigres que fueran y serán y así mismo el tigre arquétipo, ya que el individuo, en su caso, es toda la espécie. Pensamos que era sanguinário y hermoso. Norah, una niña, dijo: Está hecho para el amor. (In El oro de los tigres, 1972)

Isabel leu El oro de los Tigres. De forma semelhante, nunca esqueceu as cabras em que mamava diretamente na quinta da sua avó Sobral [3] onde viveu os primeiros anos da vida, longe dos pais e dos irmãos, num paraíso terrestre, perdido, como o Outro, ao voltar, no final da primeira infância, para a casa paterna.
Desde o seu volume de poemas O rosto deserto, de 1966, [4] que a língua de criação de Isabel Meyrelles é o francês. Escrever numa outra língua, [5] no seu caso, não é anódino.
Foi-lhe imposta, na infância, uma interdição fundadora e por isso mesmo formadora, na sua relação com a língua: a mãe de Isabel, - não o pai -, proibiu-a muito cedo de escrever, e sobretudo de escrever poemas. O interdito foi tão forte que Isabel só parece capaz de escrever poesia sua em momentos de crise profunda, de perda e de luto: o principal crítico da sua obra, o espanhol Perfecto Quadrado, o confirma. E Isabel confessa numa entrevista recente o interdito: “quase que nunca lhe consegui escapar”. E a partir de um certo momento, - a data precisa seria 1966 - toma o atalho do francês, numa poética do “Détour” (desvio) como a denomina Edouard Glissant. Ou seja: Isabel inventa um atalho pela língua do Outro para encontrar um caminho para sua obra poética, de outra maneira, bloqueada, à mercê de crises e de lutos.
O título da grande exposição inaugurada este ano em Vila Nova de Famalicão, na Fundação Cupertino de Miranda - “Como a sombra, a vida foge” - retoma o ex-libris que Isabel Meyrelles fabricou, ainda jovem, para si mesma, na sua versão original em latim, cuja fonte longínqua é Vergílio, retomado aliás por toda uma tradição poética clássica italiana (Dante, Petrarca: “La vita fugge, et non s’arresta una hora”, Canzoniere, 272) e resgatado pelo grupo de Virgínia Woolf. Por outras palavras: Isabel chega a Vergílio (o de Mântua) por Virgínia, a Inglesa. Esta foi um dos seus atalhos para o passado clássico. O que se quer dizer com isso? Muita coisa, e sobretudo: Isabel Meyrelles é, sem dúvida nenhuma, entre os surrealistas portugueses, não só a mais culta do grupo como aquela que funciona, em todos os níveis, como mediadora, verdadeiro go-between entre línguas e artes plásticas. Prefiro a palavra inglesa à palavra francesa “passeur”, porque aquela remete, do ponto de vista antropológico, a um tipo de figura mítica que não só dialectiza como curto-circuita os planos do real e do imaginário. E a função de go-between foi exercida por Isabel, constante e discretamente, ao longo da sua vida, nos mais diferentes níveis: do mais prosaico (acolher/abrigar amigos na sua casa em Paris, dar emprego a jovens escritores portugueses na sua livraria de ficção-científica no Quartier Latin, sugerir compra de obras de um artista português à Fundação Cupertino de Miranda etc.) ao trabalho mais intelectual (traduzir poemas de seus amigos para o francês e difundir poesia portuguesa, e também brasileira, no exterior, através de antologias) ou ao mais criativo (verter para as três dimensões, ou seja, traduzir em escultura, desenhos do seu amigo Cruzeiro Seixas).
O diálogo entre desenho e escultura está patente na exposição da Fundação Cupertino de Miranda [6] em peças como “Mino-Equus” (bronze, nº 7); “Equus” (terracota, nº 8); “Sem título” de 1977 em que duas pernas saem das órbitas de dois olhos (terracota, nº 15); “Le pied et la main” (terracota, nº 22); “Face dupla” de 1995 (terracota, nº 23); “La cornue [7] déprimée” (terracota, nºs 27 e 28) etc .

O que me parece interessante em Isabel é a sua capacidade de inovação e transformação, mesmo nos casos em que o modelo é evidente: o melhor exemplo seria talvez a sua “Sereia” (peça nº 26, em bronze). A postura é a da “Pequena sereia” de Copenhague, obra conhecida de Edvard Eriksen, erigida em 1913 e inspirada no conto de Andersen, história de um amor trágico e adolescente. Recordo ao leitor rapidamente o enredo: uma jovem sereia salva um príncipe durante uma tempestade. Por amor dele, abandona o oceano pela terra firme. Para encontrá-lo, cede a sua voz de sereia (que encantou, um dia, Ulisses) em troca de um par de pernas. Dispõe de três dias para que ele a ame, único meio para conservar a forma humana, sem o quê, ela se desfaz em espuma do mar. O príncipe admira a sua beleza mas não a reconhece: lembra-se apenas de que foi salvo por uma jovem de voz mágica e casa-se com uma outra. Magoada, a Sereia atira-se de uma falésia e torna-se espuma do mar.
A comparação entre as duas sereias é por demais evidente: a de Isabel Meyrelles, coberta de escamas e de semblante grave, tem a força e a atração dos seres primitivos, que retornam ao mar profundo. A sua Sereia vive um processo inverso ao da Sereia adolescente de Eriksen, o da transformação da forma humana para criatura marítima, em que as mãos e os pés com uma pele entre os dedos assim como cabelo trançado visto por detrás, anunciam a sua metamorfose, em processo, para barbatanas e cauda de peixe.
Conheci pessoalmente Isabel Meyrelles em Lisboa, apresentada por uma amiga comum, Maria Helena Castro, em 2004, na Galeria São Mamede. [8] Voltei a vê-la em Paris, no apartamento no Quai Malaquais, à margem do Sena, quando nos recebeu e, mais tarde, numa viagem dela com Emilienne Paoli a Portugal, quando as fotografei juntamente com Cruzeiro Seixas, em 2006, durante as férias de verão. Neste ano de 2019, fui visitá-la inúmeras vezes, cinco mais precisamente, na sua nova casa, em Crône-Montgeron. [9]
Minha primeira impressão da artista manteve-se e reforçou-se ao longo desses quinze anos: Isabel Meyrelles, figura que escandalizou a Lisboa provinciana do imediato pós-guerra, permanece, ainda hoje, uma “senhora” e guarda sempre uma certa distância, sem intimidade fácil. É, no fundo, uma “discreta” não só no sentido clássico espanhol, “sabia, gallarda, entendida” mas também, no sentido corrente da palavra em português: [10] num país pequeno como Portugal em que todos se conhecem e a “má língua” é frequente, nunca ouvi Isabel falar mal de ninguém. Mesmo quando provavelmente tinha ou tem razão para tal. De forma semelhante, num tempo em que, de saída, as pessoas tratam-se quase de imediato por “tu”, sobretudo em francês, só ouvi, nesses anos todos, Isabel usar o “tu” com Emilienne ou com seus muito velhos conhecidos (Mª Helena Castro, Cruzeiro Seixas e pessoas da sua família).
Depois de cada uma dessas visitas, ao voltar a casa da minha filha em Paris, tomei nota, de memória, do menu (Isabel sempre preparou o almoço) e das suas frases mais marcantes. Cozinhar, para ela, continua a ser uma espécie de alquimia entre sabores do terroir e da experimentação. De certa forma, registei o que Isabel me confiou e o que penso ter compreendido sem palavras: fiz, ao longo deste ano, um pequeno diário das minhas visitas. Olhei com atenção o seu atelier/escritório, apreciei o pequeno jardim, obra de Emilienne, jardineira de “dedo verde” [11] e ganhei uma pequena “Barca” negra com um ovo amarelo.
Isabel parece-me, no fundo, um oxímoro vivo: masculina e muito feminina; pujante de força e cheia de delicadeza; fundamente pagã e judia ao mesmo tempo. Este, aliás, é o supremo oxímoro do ponto de vista imaginário e simbólico. Todos os críticos da sua obra falam da “metamorfose” nas suas esculturas: perna que se prolonga num braço com a mão aberta em oferta (de quê?) ou para receber (o quê?), como na peça nº 22; a imagem muito antiga do ouroboros circular que, ao morder a própria cauda, renascia indefinidamente, transforma-se em diálogo de duas serpentes de goelas abertas que se afrontam (peça irónica entre todas, denominada “Conversação”, nº 14); o barco cujas velas desenham a cara de Ulisses (assim como Portugal é a cara que mira o mar oceano, peça nº 76); o pé humano que se ergue em cabeça de gavião (“O Vigia”, peça em bronze, nº 90); a árvore do Éden, renascendo com sexo e seios de mulher, ergue asas de vampiro e, da sua copa cortada, como a cabeça de Medusa, brota nova vida do sangue/seiva que esguicha forte (peças nº 33 e 34) etc. Esta última imagem, poderosa e inquietante, está na capa do catálogo e a partir do seu nome, “Voo da árvore” (peça nº 33), junta os “semas” da árvore da Vida e do Conhecimento no primeiro jardim, de enraizamento e elevação, de morte e promessa de renascimento, invertendo a maldição da Vampira e da Górgona Medusa.
Um outro tronco de árvore sem copa, a escultura nº 51 do catálogo, feita de gesso pintado sobre uma base escura alta, articula os corpos nus, opostos e crucificados (pés e mãos em estrela ou em cruz de Santo André) do primeiro casal humano, “Adão e Eva”. É a escultura, em três dimensões, - o espectador pode rodar em torno dela -, que permite essa reinterpretação original do livro do Gênesis. Pessoalmente, gostaria que essa iconografia absolutamente inédita tivesse uma realização em tamanho grande e em bronze, tal como foi feito para “Ulisses”, “Homenagem a Breton” ou “O Vigia”.
Na verdade, a contínua metamorfose na obra de Isabel liga-se a uma concepção do mundo, que Italo Calvino, num ensaio fundamental, “Ovidio e la contiguità universale”, [12] analisa como a força do paganismo. Deste ponto de vista, Isabel é uma pagã, vive no mundo imaginário do paganismo em que os frutos e folhas, flores e ervas colhidas na horta ou nos campos podem ser servidas à avó Sobral no chá da tarde, em que uma pequena selvagem de cabelos fartos (carapinha a ser domada, mais tarde, por um corte à la garçonne), sem mãe, mama diretamente nas tetas das cabras, em que as coisas inanimadas podem parecer deprimidas ou exprimir a dor de uma traição, em que não há hierarquia no criado nem diferenças radicais entre os seres, e sobretudo o mítico, ou o onírico, se materializa. E sabendo-se/sentindo-se pagã, Isabel cria as suas formas que transformam o inanimado em animado, os humanos em animais ou plantas, as árvores ganham asas, o navegador Ulisses torna-se barco, um ovo vira ninho de outros ovos (peça nº 50) etc.
Mas, ao mesmo tempo, sem renegar a sua sensibilidade pagã, Isabel Meyrelles é uma mulher de valores vincados que se sente, ao envelhecer, “cada vez mais judia”. [13] Ou, pelo menos marrana, ou seja, cripto-judia ou judia que assim se sente e o é, interiormente, para dentro e não para a galeria.
O seu judaísmo imaginário, e como tal importante, nasce da fidelidade à memória do avô paterno (Meyrelles) nascido em Trás-os-Montes e sua mulher “oriental” (chinesa ou japonesa, “a macaquinha amarela”, segundo a maledicência familiar): judaísmo consciente da sua diferença, do seu humor, do gosto pelas articulações inéditas e imprevistas, do prazer da tradução de textos em massa folhada e da marca da leitura do Antigo Testamento que considera uma obra “mágica”.
Uma das chaves de compreensão para a obra escrita e plástica de Isabel Meyrelles é a leitura e meditação do Antigo Testamento, “fonte de magia pessoal”, e nunca leitura dos Evangelhos.
Outra chave ainda que faz, aliás, a mediação entre paganismo e judaísmo: a leitura da “matière de Bretagne”, que explica, por exemplo, o seu “Auto-retrato” (peças nºs 1 e 2) sob forma de pequeno dragão que fuma cachimbo. Quem leu Chrétien de Troyes e os poetas provençais, sabe da importância da figura do dragão, nascido da terra. [14] Isabel-dragão-tigre pode, inclusive, tornar-se outro animal: “E agora sou eu o novo Minotauro/ do meu próprio labirinto.” [15]
Alguém se surpreende com o judaísmo de Isabel Meyrelles, poeta de “nariz sino-judeu-cristão”? É só ler a sua poesia. [16] Há pelo menos dois ou três poemas que trazem a marca explícita do Antigo Testamento. [17] Cito apenas um, do seu livro inédito Le messager des rêves (O mensageiro dos sonhos), datado de abril, 1986: “Bereshith”. Sem nenhuma nota ou explicação em pé de página. Que Português, ou Francês, hoje, sabe o que significa esse título estranho?
Bereshit (hebraico: no começo) é a primeira secção semanal do ciclo anual de leitura da Torá. É lida no primeiro chabbat que segue a festa de Sim’hat Torah (geralmente em outubro), correspondendo ao Gênesis 1, 1, 6-8. A parasha abre-se com as narrativas da criação, nó central da filosofia, da ética e da tradição esotérica judaicas assim como ponto fulcral de discussão/discórdia da “gente da nação” [18] com o politeísmo pagão e a filosofia grega. Essa primeira secção prossegue com a narrativa do início da humanidade, terminando com a introdução a Noé, protagonista da secção hebdomadária seguinte. No seu poema, Isabel segue, de muito perto, a narrativa bíblica antes da declaração de amor final a um tu, misterioso e que permanece misterioso, transcrita em letras minúsculas:

BERESHITH

“Au commencement
Elohim créa les cieux et la terre
La terre était déserte et vide
Il y avait des ténèbres au-dessus de l’Abîme
et l’esprit d’Elohim planait sur les eaux.
Elohim dit: ‘qu’il y ait de la lumière!’
et il y eut de la lumière.
Elohim appela la lumière jour
et les ténèbres Nuit.
Il y eut un soir, il y eut un matin:
le premier jour.”
Pendant six autres jours
il s’amusa à créer
des tas de trucs marrants
et d’autres qui l’étaient moins.
Elohim acheva, le septième jour,
l’œuvre qu’il avait faite,
mais il ne se reposa pas,
comme il a été dit et redit.
Au contraire,
il contempla, insatisfait et déçu,
sa création.
Alors il réfléchit
pendant quelques milliards d’années
et puis il te créa,
toi.
(in Poesia, p. 186) [19]

Outro paradoxo de Isabel: a tradutora que traduz hoje, diariamente, poesia para manter a cabeça ativa, que gosta de discutir tradução (a maioria dos e-mails que recebi de Isabel traz perguntas sobre tradução), que conhece muito bem a evolução da poesia portuguesa, das cantigas de amigo à poesia de Bernardim (outro marrano), que admira como suprema realização da prosa portuguesa os Sermões de Vieira, que tem na parede do seu atelier o manuscrito de um poema de Cesariny enquadrado, tem dificuldade em falar da sua obra pessoal. Às vezes, confessa que não sabe traduzir para o português, o que escreveu em francês. [20] Quando lhe enviei, em português, um questionário sobre o surrealismo, ela me respondeu em francês. [21] Outras vezes, o título da suas esculturas aponta um caminho para que possamos entendê-las; é o caso de “Voo da árvore” e “Adão e Eva”, como já visto, entre outras.
Voltemos ao início, ao ponto de partida, ou seja, para Ítaca. Instalando-se em Paris em 1950, Isabel adaptou-se de imediato à França: em verdade, não houve sequer adaptação, mas identificação profunda, reconhecendo-se, desde o primeiro dia, em casa, no seu espaço sonhado, apesar das condições duras das suas moradias iniciais, simples chambres de bonne, sem aquecimento e sem água encanada. Voltou algumas vezes a Portugal de férias, - antes e, sobretudo, depois do período de provação de 1970-1977 -, para rever amigos e parentes ou fazer algumas exposições. A partir precisamente de 1977, quando escreve e publica livros de poemas, sempre espaçados e com dificuldade extrema, ela o faz, a partir dessa data, em francês, podendo, depois, traduzi-los sozinha: o primeiro jato, noturno, sai em francês.
Todos os linguistas sabem que a censura introjectada é sempre menor na língua do Outro, [22] mesmo quando esta língua outra é tornada sua, pela imersão no contexto estrangeiro, pelo uso diário e pela convivência com uma companheira francesa.
Quando Isabel Meyrelles retorna a Paris em 1977, depois de sete anos em Lisboa, ela volta com Emilienne Paoli ao país amado, à cidade que a acolheu e onde deitou raízes. Cada uma das suas casas sucessivas é um porto de abrigo, quer seja no Quartier Latin, quer na Place des Deux Écus, quer no Quai Malaquais.
Ouvir Isabel falar, em novembro de 2019, da França e da sua última casa de Crône-Montgeron é revelador. Aos 90 anos, Isabel Meyrelles, como muita gente, sente-se forçada a dizer que a França mudou e que não a reconhece mais. [23] Por outro lado, ouvi-la convidar uma amiga de longa data para ir visitá-la na sua nova casa na banlieue é reconfortante: “uma casa que transmite paz”, “uma ilha”, dizia ela à sua amiga Maria Helena.
Isabel Meyrelles inventou a sua Ítaca. Quer dizer: descobriu, no fim da vida, a sua ilha e confirmou Emilienne, cuja família vem de outra ilha do Mediterrâneo, [24] como a sua Penélope.
Invenção, inventar vêm do latim inventio, “achado”, “descoberta”, de invenire, “descobrir, achar”, formado de in-, “em”, mais -venire, “vir”. O sentido atual de invenção, de “coisa feita previamente não-existente”, no português, é de cerca de 1510. Mas o sentido arcaico, etimológico, não desapareceu.
O mesmo ocorre na língua francesa. Inventeur, segundo o Littré, dicionário da língua clássica, designa o homem que encontra, por acaso feliz, um tesouro de moedas antigas no pasto das suas vacas, um monumento soterrado ou uma gruta pré-histórica desconhecida. Neste sentido, inventer é descobrir o que estava escondido ou perdido, significado que se mantém igualmente na iconografia e no discurso religioso e pictórico, na maioria das línguas latinas de tradição católica: na Invenção da Santa Cruz, título do ciclo admirável de Piero della Francesca, em Arezzo, não se trata de fabricar um factoide (uma falsa cruz) mas criar uma narrativa pictórica do descobrimento milagroso da cruz da Paixão de Cristo. O significado primevo mantém-se ainda, em francês, quando se trata de descobrir, por exemplo, uma gruta num terreno de sua propriedade: l’inventeur de la grotte de Rocamadour é o senhor Lamothe [25] que “inventou” a caverna com pinturas e gravuras do paleolítico e que, sobre ela, teve reconhecidos, oficialmente, os seus direitos legais.
Para quê serve essa conversa vadia sobre etimologia? Serve para entender que a grande escultura denominada Ulisses, em bronze, colocada, neste mês de novembro de 2019, à entrada da Fundação Cupertino de Miranda, é igualmente um auto-retrato de Isabel Meyrelles. Como Ulisses, depois de muitas viagens, de idas e vindas, ela voltou a casa natal, [26] que descobriu/inventou enfim como ilha de paz: “Heureux, qui comme Ulysse, a fait un beau voyage...” (Les Regrets, 1558, soneto 31). O seu pequeno Liré tem nome: Crône-Montgeron. Segunda descoberta: a identificação final de Isabel com Ulisses permite reler, como antecipação inconsciente, os seis belos poemas líricos sobre o matelot (traduzido por “marinheiro”): “Portrait du matelot”, “Le matelot voyage”, “Le matelot au repos”, “Le matelot en bordée”, “Le matelot ne sait pas”, “Le matelot est parti” do volume que faz a viragem para o atalho inventado de escrever em francês. [27]
Isabel-matelot inventou a sua Ítaca e encontrou de novo um jardim (em miniatura) criado por uma jardineira, originária da Córsega. Sua poesia e suas obras contam essa muito, muito velha história, a dos primórdios do Mediterrâneo, o nosso passado longínquo - aquele de todos nós - que não passa e nos alimenta.

NOTAS
1. Le Livre du Tigre. Dessins de Cruzeiro Seixas. Édition de l’auteur, 1977 [Impresso na Tip. Henrique Torres, de Lisboa]. Reed. em Paris, Genevière Pastre, 2000. Inserido em Isabel Meyrelles. Poesia. Lisboa, Edições Quasi, s.d., com prefácio de Perfecto E. Cuadrado, “Isabel Meyrelles ou a razão dos sonhos”. É esta a edição, com algumas gralhas aliás tanto em português como em francês, que citamos a seguir e que a Fundação Cupertino de Miranda pretende reeditar, felizmente.
2. Só para o português existem inúmeras traduções, na maioria de poetas: Augusto de Campos, João Paulo Pais, Vasco Graça Moura, Alberto Marciano e John Milton, Ivo Barroso, Renato Suttana etc. E ainda mais: o poeta Ivo Barroso, além da sua tradução, escreveu um texto de reflexão sobre as premissas para traduzir essa obra-prima de condensação e combustão interna. Angiuli Copetti de Aguiar escreveu igualmente: “certamente o poema mais famoso (e mais traduzido) de William Blake, ‘The Tyger’ é talvez um dos mais poderosos da língua inglesa devido ao seu ambíguo simbolismo, ritmo compassado e métrica concisa”.
3. A memória da avó Sobral e da sua casa está num dos últimos poemas de Isabel, datado, de 1997 (ibid., p. 208 – 211): “Le lieu qui n’est plus.”
4. O volume O rosto deserto foi vertido para o português por Natália Correia, numa tradução apressada, feita, dir-se-ia, com certo desleixo. Ver, na edição de Quasi, com prefácio de Perfecto Cuadrado: p. 62-63: “entre o unicórnio e tu” e ainda “espaço entre unicórnio/ e eu” (sic) e ainda, p. 70-71: “des mots de velours” traduzido por “palavras seda” (sic). Natália Correia não era uma boa tradutora.
5. Há muitos escritores e poetas que passam para uma outra língua ou que escrevem em duas línguas, cada uma com um território ou função especial. Interessa-nos aqui apenas o caso de Isabel Meyrelles.
6. Indicamos sempre o nº da peça no catálogo acabado de sair: Isabel Meyrelles. Como a sombra, a vida foge. Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda – Centro Português do Surrealismo, novembro de 2019, 132 p.
7. Cornue, em português, é retorta, recipiente de gargalo longo e curvo que serve para destilar. Que a retorta tenha pernas de mulher abatida sob o peso da traição é uma das metamorfoses mais irónicas e ferozes de Isabel.
8. 2004: O Universo dos sonhos: escultura. Galeria São Mamede, Lisboa.
9. Crône é uma comuna francesa na Ile-de-France, a 18 km a sudeste de Paris. Para o sul, Crône compartilha a sua fronteira com a cidade de Montgeron, o curso da ribeira Yerres fazendo o limite entre as duas cidades que guardam ainda, surpreendentemente, um aspecto rural de “vieille France”.
10. Os sinónimos poderiam ser: reservada, simples, modesta, que sabe guardar um segredo. Aliás, esta é também a imagem de Isabel que ficou na memória da sua amiga Helena Castro que a conheceu quando tinha 18 anos mais ou menos: “Lembro-me dela acabada de chegar da viagem Paris/Lisboa, de moto. Foi o meu primeiro encontro com a Isabel. Em 1954? Ou1955? Não me lembro. Para mim a Isabel parecia um ser vindo de outro planeta ou antes caminhando para lá no seu fato-macaco branco e o seu capacete preto de motard. Pujante de força. É a primeira imagem que guardo dela. É interessante que se ela era um ser tão vigoroso, por outro era também extremamente delicada. Essa característica, para mim, foi-se acentuando ao longo dos anos.
11. Expressão corrente entre gente que faz jardinagem; significa pessoa que tudo o que planta nasce e cresce.
12. Faz parte do seu livro Perché leggere i classici, de 1995.
13. Comentário feito na sua exposição de Famalicão.
14. Ver “Chanson d’ami – Cantiga de amigo”, no Livre du Tigre, XIV: cujo início é: “Ah Dieu, si mon seigneur tigre savait/ comme le temps est long sans lui,/ viendra-t-il?”
15. Poema XXVIII, Livre du Tigre, p. 164 – 165.
16. É um outro aspecto que a aproxima de Borges: querer/sonhar ser judeu em imaginação.
17. Ver, por exemplo, “Genèse XXII, 9-18” (in Le Livre du Tigre, p. 116); poema XXVI: “Moi, le Seigneur Tigre,/grand chasseur devant l’Eternel” (ibid., p. 158); “La Bibliothèque”, in Le Messager des songes, p. 174, poema dedicado justamente a Borges.
18. “Gente da nação” é a denominação tradicional, em Portugal e no Brasil, dos cristãos-novos e marranos.
19. O poema tem uma excelente tradução em português, assinada por Vítor Castro, p. 186
20. O poema IV, “Un autre Voyage d’Alice de l’autre côté du miroir”, do volume Le Livre du Tigre, tem na página da direita a seguinte frase: “ a autora considera o poema intraduzível”.
21. Fiz-lhe, a pedido do poeta, editor e ensaísta brasileiro, Floriano Martins, as três perguntas canónicas sobre a sua ligação ao Surrealismo; Isabel respondeu-as em francês que reproduzo, em anexo.
22. Proibida de escrever em português pela mãe, Isabel toma o atalho, mais tarde, de escrever em francês, este tornado, segundo Glissant, “langue du Détour”. A censura “introjectada” desde cedo é muito mais forte na língua materna. De forma reveladora, a última coisa que se consegue fazer na língua do Outro são as contas (cálculo mental de somar e subtrair, por exemplo) e as preces aprendidas no colo da mãe. Para um falante nativo do português é muito mais difícil somar quatre-vingt-treize plus soixante-dix-huit, do que somar noventa e três mais setenta e oito.
23. A violência gratuita da queima anual dos carros na noite do Ano Novo, o rasto de destruição anárquica da passagem dos Black-blocs e dos gilets-jaunes, os atentados antissemitas, as incivilidades repetidas nos transportes públicos, a inédita agressividade de desconhecidos nas ruas tudo isso inquieta Isabel e deixa-a indignada.
24. Emilienne Paoli descende de Pascal Paoli (Morosaglia, 1725 – Londres, 1807). Aliás, na porta do atelier-escritório de Isabel, um mapa antigo da Córsega, recorda a sua origem. Sobre uma mesa que dá para o pequeno jardim, um livro recente de Michel Vergé-Franceschi, Pascal Paoli, un Corse des Lumières, estuda a figura pouco conhecida em França e em Portugal, de Pasquale Paoli, herói corso do século XVIII. Opondo-se à causa francesa e chefe de um Estado Corso que existiu de 1755 a 1769, é uma personagem complexa e admirada no mundo anglo-saxão. É o antepassado dos nacionalistas e independentistas.
25. A descoberta, ou invenção, data de outubro de 1920, no Lot, região da Occitânia, no sul da França.
26. Da outra casa, a da infância feliz, só ficou o tema da balada de Villon, “mais où sont les neiges d’antan”: “Le lieu qui n’est plus” (in Poesia, p. 208 – 211): “Pinède, où est la vieille dame/ qui racontait à sa petite fille/des histoires de fantômes? Por outro lado, a “pinède” de Isabel traz a marca da canção de D. Dinis, “Ai flores, ai flores do verde pino/ se sabedes novas do meu amigo”.
27. Traduzir é trair ou fazer o desvio possível: matelot, em francês, difere de marin, não corresponde exatamente a marinheiro: é o homem de uma equipagem e o termo saiu da marinha à vela, uma vez que, etimologicamente, matelot é o homem do mastro (le mât). Haveria outra solução, - marujo -, que, em português, não é o homem do mastro mas o nome do calafate (o operário naval que veda com estopa de algodão e alcatrão os espaços entre as tábuas com que eram feitos os barcos. O calafate trabalha para impedir que a água se infiltre e o navio possa inundar ou afundar).


*****

Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 150 | Fevereiro de 2020
Artista convidado: Daniel Cotrina Rowe (Peru, 1966)
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo & design | FLORIANO MARTINS
revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020

Nenhum comentário:

Postar um comentário