Por sete anos, de 1970 a 1977, a poeta e escultora portuguesa
Isabel Meyrelles, nascida em Matosinhos, em abril de 1929, e residindo em Paris
desde 1950, voltou a Portugal, o seu país natal.
Vinte
anos depois da sua ida para a França, retornava Isabel com o propósito de participar
da fundação e criação de um novo espaço social e cultural, idealizado juntamente
com a “estrela” Natália Correia, numa Lisboa em mudança: com um nome que era deliberadamente
uma antífrase, O Botequim, a nova casa,
no bairro da Graça, reuniria duas artes, sumamente refinadas, cozinha e tertúlia.
Do
ponto de vista literário, o retorno ao país natal domina todo o imaginário do Ocidente
desde Homero ao Renascimento com Du Bellay (“Heureux, qui comme Ulysse, a fait un beau voyage...”) e aos poetas negros
contemporâneos, Aimé Césaire (Cahier d’un
retour au pays natal) ou Derek Walcott (Omeros).
Mas esse primeiro retorno de Isabel Meyrelles a Portugal frustrou-a, profundamente.
O Botequim era, de certa forma,
a abertura do “salon” aristocrático iluminista
a um novo público, mais amplo e por isso mesmo mais democrático. Lugar de encontro,
fruição e descoberta, em que a cozinha tradicional portuguesa, inclusive, abrir-se-ia
ao gosto de inventar (e inventar também é descobrir mas lá vamos mais tarde) novos
sabores e novos pratos. No Botequim acontecia,
a cada noite, algo de inesperado. O chef era
Isabel Meyrelles.
Ao
cabo de sete anos de trabalho no Botequim
no bairro da Graça, em Lisboa, onde dirigia a cozinha enquanto a sua sócia, Natália
Correia, recebia os convidados e clientes na sala, Isabel Meyrelles deu fim à experiência,
que se tornara muito dolorosa, deixando-a em depressão profunda, fracasso sobre
o qual fala, ainda hoje, mesmo na intimidade, com delicadeza e discrição. O Botequim continuaria sem ela, como continuou
aliás.
Prestes
a retornar à França, Isabel publica, em 1977, o seu livro de poemas mais coerente
e, sem dúvida, o mais soturno, Le Livre du
Tigre, [1] livro que traduziu depois,
ela própria, para o português. E é o Livro
do Tigre, para quem sabe ler, que dá a medida da sua decepção e tristeza ao
retornar à França em companhia de Émilienne Paoli. Isabel parte, pela segunda vez,
para Paris onde se refugia e se reconstrói uma vez mais, com apoio da companheira.
Aos 48 anos, em plena maturidade, a artista retorna à França.
A
epígrafe inicial do Livre du Tigre sai
do célebre poema de William Blake: “Tyger,
tyger, burning bright/ in the forest of the night,/ what imortal hand or eye/ could
frame thy fearful symmetry”, poema-desafio que tantos poetas-tradutores porfiam
em traduzir. [2] Duas outras sombras
perpassam, no volume, a de Alice e a de Borges. Também poeta e tradutor, o Argentino
nunca esqueceu o momento mágico da infância em que viu, pela primeira vez, um tigre
de Bengala, no jardim zoológico de Palermo, na Sicília, em viagem com os pais:
Iba
y venía, delicado y fatal, cargado de infinita energia, del otro lado de los firmes
barrotes y todos lo mirábamos. Era el tigre de esa mañana, en Palermo, y el tigre
del Oriente y el tigre de Blake y de Hugo y Shere Khan, y los tigres que fueran
y serán y así mismo el tigre arquétipo, ya que el individuo, en su caso, es toda
la espécie. Pensamos que era sanguinário y hermoso. Norah, una niña, dijo: Está
hecho para el amor. (In El oro de los tigres, 1972)
Isabel leu El oro
de los Tigres. De forma semelhante, nunca esqueceu as cabras em que mamava diretamente
na quinta da sua avó Sobral [3] onde
viveu os primeiros anos da vida, longe dos pais e dos irmãos, num paraíso terrestre,
perdido, como o Outro, ao voltar, no final da primeira infância, para a casa paterna.
Desde
o seu volume de poemas O rosto deserto,
de 1966, [4] que a língua de criação
de Isabel Meyrelles é o francês. Escrever numa outra língua, [5] no seu caso, não é anódino.
Foi-lhe
imposta, na infância, uma interdição fundadora e por isso mesmo formadora, na sua
relação com a língua: a mãe de Isabel, - não o pai -, proibiu-a muito cedo de escrever,
e sobretudo de escrever poemas. O interdito foi tão forte que Isabel só parece capaz
de escrever poesia sua em momentos de crise profunda, de perda e de luto: o principal
crítico da sua obra, o espanhol Perfecto Quadrado, o confirma. E Isabel confessa
numa entrevista recente o interdito: “quase
que nunca lhe consegui escapar”. E a partir de um certo momento, - a data precisa
seria 1966 - toma o atalho do francês, numa poética do “Détour” (desvio) como a denomina Edouard Glissant. Ou seja: Isabel inventa
um atalho pela língua do Outro para encontrar um caminho para sua obra poética,
de outra maneira, bloqueada, à mercê de crises e de lutos.
O
título da grande exposição inaugurada este ano em Vila Nova de Famalicão, na Fundação
Cupertino de Miranda - “Como a sombra, a vida
foge” - retoma o ex-libris que Isabel Meyrelles fabricou, ainda jovem, para
si mesma, na sua versão original em latim, cuja fonte longínqua é Vergílio, retomado
aliás por toda uma tradição poética clássica italiana (Dante, Petrarca: “La vita fugge, et non s’arresta una hora”,
Canzoniere, 272) e resgatado pelo grupo
de Virgínia Woolf. Por outras palavras: Isabel chega a Vergílio (o de Mântua) por
Virgínia, a Inglesa. Esta foi um dos seus atalhos para o passado clássico. O que
se quer dizer com isso? Muita coisa, e sobretudo: Isabel Meyrelles é, sem dúvida
nenhuma, entre os surrealistas portugueses, não só a mais culta do grupo como aquela
que funciona, em todos os níveis, como mediadora, verdadeiro go-between entre línguas e artes plásticas.
Prefiro a palavra inglesa à palavra francesa “passeur”, porque aquela remete, do ponto de vista antropológico, a um
tipo de figura mítica que não só dialectiza como curto-circuita os planos do real
e do imaginário. E a função de go-between
foi exercida por Isabel, constante e discretamente, ao longo da sua vida, nos mais
diferentes níveis: do mais prosaico (acolher/abrigar amigos na sua casa em Paris,
dar emprego a jovens escritores portugueses na sua livraria de ficção-científica
no Quartier Latin, sugerir compra de obras
de um artista português à Fundação Cupertino de Miranda etc.) ao trabalho mais intelectual
(traduzir poemas de seus amigos para o francês e difundir poesia portuguesa, e também
brasileira, no exterior, através de antologias) ou ao mais criativo (verter para
as três dimensões, ou seja, traduzir em escultura, desenhos do seu amigo Cruzeiro
Seixas).
O
diálogo entre desenho e escultura está patente na exposição da Fundação Cupertino
de Miranda [6] em peças como “Mino-Equus”
(bronze, nº 7); “Equus” (terracota, nº 8); “Sem título” de 1977 em que duas pernas
saem das órbitas de dois olhos (terracota, nº 15); “Le pied et la main” (terracota,
nº 22); “Face dupla” de 1995 (terracota, nº 23); “La cornue [7] déprimée” (terracota, nºs 27 e 28) etc
.
O
que me parece interessante em Isabel é a sua capacidade de inovação e transformação,
mesmo nos casos em que o modelo é evidente: o melhor exemplo seria talvez a sua
“Sereia” (peça nº 26, em bronze). A postura é a da “Pequena sereia” de Copenhague,
obra conhecida de Edvard Eriksen, erigida em 1913 e inspirada no conto de Andersen,
história de um amor trágico e adolescente. Recordo ao leitor rapidamente o enredo:
uma jovem sereia salva um príncipe durante uma tempestade. Por amor dele, abandona
o oceano pela terra firme. Para encontrá-lo, cede a sua voz de sereia (que encantou,
um dia, Ulisses) em troca de um par de pernas. Dispõe de três dias para que ele
a ame, único meio para conservar a forma humana, sem o quê, ela se desfaz em espuma
do mar. O príncipe admira a sua beleza mas não a reconhece: lembra-se apenas de
que foi salvo por uma jovem de voz mágica e casa-se com uma outra. Magoada, a Sereia
atira-se de uma falésia e torna-se espuma do mar.
A
comparação entre as duas sereias é por demais evidente: a de Isabel Meyrelles, coberta
de escamas e de semblante grave, tem a força e a atração dos seres primitivos, que
retornam ao mar profundo. A sua Sereia vive um processo inverso ao da Sereia adolescente
de Eriksen, o da transformação da forma humana para criatura marítima, em que as
mãos e os pés com uma pele entre os dedos assim como cabelo trançado visto por detrás,
anunciam a sua metamorfose, em processo, para barbatanas e cauda de peixe.
Conheci
pessoalmente Isabel Meyrelles em Lisboa, apresentada por uma amiga comum, Maria
Helena Castro, em 2004, na Galeria São Mamede. [8] Voltei a vê-la em Paris, no apartamento no Quai Malaquais, à margem
do Sena, quando nos recebeu e, mais tarde, numa viagem dela com Emilienne Paoli
a Portugal, quando as fotografei juntamente com Cruzeiro Seixas, em 2006, durante
as férias de verão. Neste ano de 2019, fui visitá-la inúmeras vezes, cinco mais
precisamente, na sua nova casa, em Crône-Montgeron. [9]
Minha
primeira impressão da artista manteve-se e reforçou-se ao longo desses quinze anos:
Isabel Meyrelles, figura que escandalizou a Lisboa provinciana do imediato pós-guerra,
permanece, ainda hoje, uma “senhora” e guarda sempre uma certa distância, sem intimidade
fácil. É, no fundo, uma “discreta” não só no sentido clássico espanhol, “sabia, gallarda, entendida” mas também, no
sentido corrente da palavra em português: [10]
num país pequeno como Portugal em que todos se conhecem e a “má língua” é frequente,
nunca ouvi Isabel falar mal de ninguém. Mesmo quando provavelmente tinha ou tem
razão para tal. De forma semelhante, num tempo em que, de saída, as pessoas tratam-se
quase de imediato por “tu”, sobretudo em francês, só ouvi, nesses anos todos, Isabel
usar o “tu” com Emilienne ou com seus muito velhos conhecidos (Mª Helena Castro,
Cruzeiro Seixas e pessoas da sua família).
Depois
de cada uma dessas visitas, ao voltar a casa da minha filha em Paris, tomei nota,
de memória, do menu (Isabel sempre preparou
o almoço) e das suas frases mais marcantes. Cozinhar, para ela, continua a ser uma
espécie de alquimia entre sabores do terroir
e da experimentação. De certa forma, registei o que Isabel me confiou e o que penso
ter compreendido sem palavras: fiz, ao longo deste ano, um pequeno diário das minhas
visitas. Olhei com atenção o seu atelier/escritório, apreciei o pequeno jardim,
obra de Emilienne, jardineira de “dedo verde” [11] e ganhei uma pequena “Barca” negra com um ovo amarelo.
Isabel
parece-me, no fundo, um oxímoro vivo: masculina e muito feminina; pujante de força
e cheia de delicadeza; fundamente pagã e judia ao mesmo tempo. Este, aliás, é o
supremo oxímoro do ponto de vista imaginário e simbólico. Todos os críticos da sua
obra falam da “metamorfose” nas suas esculturas: perna que se prolonga num braço
com a mão aberta em oferta (de quê?) ou para receber (o quê?), como na peça nº 22;
a imagem muito antiga do ouroboros circular
que, ao morder a própria cauda, renascia indefinidamente, transforma-se em diálogo
de duas serpentes de goelas abertas que se afrontam (peça irónica entre todas, denominada
“Conversação”, nº 14); o barco cujas velas desenham a cara de Ulisses (assim como
Portugal é a cara que mira o mar oceano, peça nº 76); o pé humano que se ergue em
cabeça de gavião (“O Vigia”, peça em bronze, nº 90); a árvore do Éden, renascendo
com sexo e seios de mulher, ergue asas de vampiro e, da sua copa cortada, como a
cabeça de Medusa, brota nova vida do sangue/seiva que esguicha forte (peças nº 33
e 34) etc. Esta última imagem, poderosa e inquietante, está na capa do catálogo
e a partir do seu nome, “Voo da árvore” (peça nº 33), junta os “semas” da árvore
da Vida e do Conhecimento no primeiro jardim, de enraizamento e elevação, de morte
e promessa de renascimento, invertendo a maldição da Vampira e da Górgona Medusa.
Um
outro tronco de árvore sem copa, a escultura nº 51 do catálogo, feita de gesso pintado
sobre uma base escura alta, articula os corpos nus, opostos e crucificados (pés
e mãos em estrela ou em cruz de Santo André) do primeiro casal humano, “Adão e Eva”.
É a escultura, em três dimensões, - o espectador pode rodar em torno dela -, que
permite essa reinterpretação original do livro do Gênesis. Pessoalmente, gostaria
que essa iconografia absolutamente inédita tivesse uma realização em tamanho grande
e em bronze, tal como foi feito para “Ulisses”, “Homenagem a Breton” ou “O Vigia”.
Na
verdade, a contínua metamorfose na obra de Isabel liga-se a uma concepção do mundo,
que Italo Calvino, num ensaio fundamental, “Ovidio e la contiguità universale”,
[12] analisa como a força do paganismo.
Deste ponto de vista, Isabel é uma pagã, vive no mundo imaginário do paganismo em
que os frutos e folhas, flores e ervas colhidas na horta ou nos campos podem ser
servidas à avó Sobral no chá da tarde, em que uma pequena selvagem de cabelos fartos
(carapinha a ser domada, mais tarde, por um corte à la garçonne), sem mãe, mama diretamente nas tetas das cabras, em que
as coisas inanimadas podem parecer deprimidas ou exprimir a dor de uma traição,
em que não há hierarquia no criado nem diferenças radicais entre os seres, e sobretudo
o mítico, ou o onírico, se materializa. E sabendo-se/sentindo-se pagã, Isabel cria
as suas formas que transformam o inanimado em animado, os humanos em animais ou
plantas, as árvores ganham asas, o navegador Ulisses torna-se barco, um ovo vira
ninho de outros ovos (peça nº 50) etc.
Mas,
ao mesmo tempo, sem renegar a sua sensibilidade pagã, Isabel Meyrelles é uma mulher
de valores vincados que se sente, ao envelhecer, “cada vez mais judia”. [13]
Ou, pelo menos marrana, ou seja, cripto-judia ou judia que assim se sente e o é,
interiormente, para dentro e não para a galeria.
O
seu judaísmo imaginário, e como tal importante, nasce da fidelidade à memória do
avô paterno (Meyrelles) nascido em Trás-os-Montes e sua mulher “oriental” (chinesa
ou japonesa, “a macaquinha amarela”, segundo
a maledicência familiar): judaísmo consciente da sua diferença, do seu humor, do
gosto pelas articulações inéditas e imprevistas, do prazer da tradução de textos
em massa folhada e da marca da leitura do Antigo Testamento que considera uma obra
“mágica”.
Uma
das chaves de compreensão para a obra escrita e plástica de Isabel Meyrelles é a
leitura e meditação do Antigo Testamento, “fonte
de magia pessoal”, e nunca leitura dos Evangelhos.
Outra
chave ainda que faz, aliás, a mediação entre paganismo e judaísmo: a leitura da
“matière de Bretagne”, que explica, por
exemplo, o seu “Auto-retrato” (peças nºs 1 e 2) sob forma de pequeno dragão que
fuma cachimbo. Quem leu Chrétien de Troyes e os poetas provençais, sabe da importância
da figura do dragão, nascido da terra. [14]
Isabel-dragão-tigre pode, inclusive, tornar-se outro animal: “E agora sou eu o novo Minotauro/ do meu próprio
labirinto.” [15]
Alguém
se surpreende com o judaísmo de Isabel Meyrelles, poeta de “nariz sino-judeu-cristão”? É só ler a sua
poesia. [16] Há pelo menos dois ou três
poemas que trazem a marca explícita do Antigo Testamento. [17] Cito apenas um, do seu livro inédito Le messager des rêves (O mensageiro
dos sonhos), datado de abril, 1986: “Bereshith”. Sem nenhuma nota ou explicação
em pé de página. Que Português, ou Francês, hoje, sabe o que significa esse título
estranho?
Bereshit (hebraico: “no começo”) é a primeira secção semanal do ciclo anual de leitura da Torá. É lida no primeiro chabbat que segue a festa de Sim’hat Torah (geralmente em outubro), correspondendo ao Gênesis 1, 1, 6-8. A parasha
abre-se com as narrativas da criação, nó central da filosofia, da ética e da tradição
esotérica judaicas assim como ponto fulcral de discussão/discórdia da “gente da
nação”
[18] com o
politeísmo pagão e a filosofia grega. Essa primeira secção prossegue com a narrativa
do início da humanidade, terminando com a introdução a Noé, protagonista da secção
hebdomadária seguinte. No seu poema, Isabel segue, de muito perto, a narrativa bíblica
antes da declaração de amor final a um tu,
misterioso e que permanece misterioso, transcrita em letras minúsculas:
BERESHITH
“Au
commencement
Elohim
créa les cieux et la terre
La
terre était déserte et vide
Il
y avait des ténèbres au-dessus de l’Abîme
et
l’esprit d’Elohim planait sur les eaux.
Elohim
dit: ‘qu’il y ait de la lumière!’
et
il y eut de la lumière.
Elohim
appela la lumière jour
et
les ténèbres Nuit.
Il
y eut un soir, il y eut un matin:
le
premier jour.”
Pendant
six autres jours
il
s’amusa à créer
des
tas de trucs marrants
et
d’autres qui l’étaient moins.
Elohim
acheva, le septième jour,
l’œuvre
qu’il avait faite,
mais
il ne se reposa pas,
comme
il a été dit et redit.
Au
contraire,
il
contempla, insatisfait et déçu,
sa
création.
Alors
il réfléchit
pendant
quelques milliards d’années
et
puis il te créa,
toi.
(in Poesia, p. 186) [19]
Outro
paradoxo de Isabel: a tradutora que traduz hoje, diariamente, poesia para manter
a cabeça ativa, que gosta de discutir tradução (a maioria dos e-mails que recebi
de Isabel traz perguntas sobre tradução), que conhece muito bem a evolução da poesia
portuguesa, das cantigas de amigo à poesia de Bernardim (outro marrano), que admira
como suprema realização da prosa portuguesa os Sermões de Vieira, que tem na parede do seu atelier o manuscrito de
um poema de Cesariny enquadrado, tem dificuldade em falar da sua obra pessoal. Às
vezes, confessa que não sabe traduzir para o português, o que escreveu em francês.
[20] Quando lhe enviei, em português,
um questionário sobre o surrealismo, ela me respondeu em francês. [21] Outras vezes, o título da suas esculturas
aponta um caminho para que possamos entendê-las; é o caso de “Voo da árvore” e “Adão
e Eva”, como já visto, entre outras.
Voltemos
ao início, ao ponto de partida, ou seja, para Ítaca. Instalando-se em Paris em 1950,
Isabel adaptou-se de imediato à França: em verdade, não houve sequer adaptação,
mas identificação profunda, reconhecendo-se, desde o primeiro dia, em casa, no seu
espaço sonhado, apesar das condições duras das suas moradias iniciais, simples chambres de bonne, sem aquecimento e sem
água encanada. Voltou algumas vezes a Portugal de férias, - antes e, sobretudo,
depois do período de provação de 1970-1977 -, para rever amigos e parentes ou fazer
algumas exposições. A partir precisamente de 1977, quando escreve e publica livros
de poemas, sempre espaçados e com dificuldade extrema, ela o faz, a partir dessa
data, em francês, podendo, depois, traduzi-los sozinha: o primeiro jato, noturno,
sai em francês.
Todos
os linguistas sabem que a censura introjectada é sempre menor na língua do Outro,
[22] mesmo quando esta língua outra é
tornada sua, pela imersão no contexto estrangeiro, pelo uso diário e pela convivência
com uma companheira francesa.
Quando
Isabel Meyrelles retorna a Paris em 1977, depois de sete anos em Lisboa, ela volta
com Emilienne Paoli ao país amado, à cidade que a acolheu e onde deitou raízes.
Cada uma das suas casas sucessivas é um porto de abrigo, quer seja no Quartier Latin,
quer na Place des Deux Écus, quer no Quai Malaquais.
Ouvir
Isabel falar, em novembro de 2019, da França e da sua última casa de Crône-Montgeron
é revelador. Aos 90 anos, Isabel Meyrelles, como muita gente, sente-se forçada a
dizer que a França mudou e que não a reconhece mais. [23] Por outro lado, ouvi-la convidar uma amiga de longa data para ir
visitá-la na sua nova casa na banlieue
é reconfortante: “uma casa que transmite paz”, “uma ilha”, dizia ela à sua amiga
Maria Helena.
Isabel
Meyrelles inventou a sua Ítaca. Quer dizer: descobriu, no fim da vida, a sua ilha
e confirmou Emilienne, cuja família vem de outra ilha do Mediterrâneo, [24] como a sua Penélope.
Invenção, inventar vêm do latim inventio, “achado”, “descoberta”, de invenire, “descobrir, achar”, formado de
in-, “em”, mais -venire, “vir”. O sentido atual de invenção, de “coisa feita previamente não-existente”, no português,
é de cerca de 1510. Mas o sentido arcaico, etimológico, não desapareceu.
O mesmo ocorre na língua francesa. Inventeur, segundo o Littré, dicionário da
língua clássica, designa o homem que encontra, por acaso feliz, um tesouro de moedas
antigas no pasto das suas vacas, um monumento soterrado ou uma gruta pré-histórica
desconhecida. Neste sentido, inventer
é descobrir o que estava escondido ou perdido, significado que se mantém igualmente
na iconografia e no discurso religioso e pictórico, na maioria das línguas latinas
de tradição católica: na Invenção da Santa
Cruz, título do ciclo admirável de Piero della Francesca, em Arezzo, não se
trata de fabricar um factoide (uma falsa cruz) mas criar uma narrativa pictórica
do descobrimento milagroso da cruz da Paixão de Cristo. O significado primevo mantém-se
ainda, em francês, quando se trata de descobrir, por exemplo, uma gruta num terreno
de sua propriedade: l’inventeur de la grotte
de Rocamadour é o senhor Lamothe [25] que “inventou” a caverna com pinturas e gravuras do paleolítico e que, sobre
ela, teve reconhecidos, oficialmente, os seus direitos legais.
Para
quê serve essa conversa vadia sobre etimologia? Serve para entender que a grande
escultura denominada Ulisses, em bronze,
colocada, neste mês de novembro de 2019, à entrada da Fundação Cupertino de Miranda,
é igualmente um auto-retrato de Isabel Meyrelles. Como Ulisses, depois de muitas
viagens, de idas e vindas, ela voltou a casa natal, [26] que descobriu/inventou enfim como ilha de paz: “Heureux, qui comme Ulysse, a fait un beau voyage...”
(Les Regrets, 1558, soneto 31). O seu
pequeno Liré tem nome: Crône-Montgeron. Segunda descoberta: a identificação final
de Isabel com Ulisses permite reler, como antecipação inconsciente, os seis belos
poemas líricos sobre o matelot (traduzido
por “marinheiro”): “Portrait du matelot”, “Le matelot voyage”, “Le matelot au repos”,
“Le matelot en bordée”, “Le matelot ne sait pas”, “Le matelot est parti” do volume
que faz a viragem para o atalho inventado de escrever em francês. [27]
Isabel-matelot inventou a sua Ítaca e encontrou
de novo um jardim (em miniatura) criado por uma jardineira, originária da Córsega.
Sua poesia e suas obras contam essa muito, muito velha história, a dos primórdios
do Mediterrâneo, o nosso passado longínquo - aquele de todos nós - que não passa
e nos alimenta.
NOTAS
1. Le Livre du Tigre. Dessins
de Cruzeiro Seixas. Édition de l’auteur, 1977 [Impresso na Tip. Henrique Torres,
de Lisboa]. Reed. em Paris, Genevière Pastre, 2000. Inserido em Isabel Meyrelles.
Poesia. Lisboa, Edições Quasi, s.d., com
prefácio de Perfecto E. Cuadrado, “Isabel Meyrelles ou a razão dos sonhos”. É esta
a edição, com algumas gralhas aliás tanto em português como em francês, que citamos
a seguir e que a Fundação Cupertino de Miranda pretende reeditar, felizmente.
2. Só para o português existem
inúmeras traduções, na maioria de poetas: Augusto de Campos, João Paulo Pais, Vasco
Graça Moura, Alberto Marciano e John Milton, Ivo Barroso, Renato Suttana etc. E
ainda mais: o poeta Ivo Barroso, além da sua tradução, escreveu um texto de reflexão
sobre as premissas para traduzir essa obra-prima de condensação e combustão interna.
Angiuli Copetti de Aguiar escreveu igualmente: “certamente o poema mais famoso (e
mais traduzido) de William Blake, ‘The Tyger’ é talvez um dos mais poderosos da
língua inglesa devido ao seu ambíguo simbolismo, ritmo compassado e métrica concisa”.
3.
A memória da avó Sobral e da sua casa está num dos últimos poemas de Isabel, datado,
de 1997 (ibid., p. 208 – 211): “Le lieu qui n’est plus.”
4. O volume O rosto deserto foi vertido para o português
por Natália Correia, numa tradução apressada, feita, dir-se-ia, com certo desleixo.
Ver, na edição de Quasi, com prefácio de Perfecto Cuadrado: p. 62-63: “entre o unicórnio e tu” e ainda “espaço entre unicórnio/ e eu” (sic) e ainda,
p. 70-71: “des mots de velours” traduzido
por “palavras seda” (sic). Natália Correia
não era uma boa tradutora.
5. Há muitos escritores e poetas
que passam para uma outra língua ou que escrevem em duas línguas, cada uma com um
território ou função especial. Interessa-nos aqui apenas o caso de Isabel Meyrelles.
6. Indicamos sempre o nº da
peça no catálogo acabado de sair: Isabel Meyrelles. Como a sombra, a vida foge. Famalicão, Fundação Cupertino de Miranda
– Centro Português do Surrealismo, novembro de 2019, 132 p.
7. Cornue, em português, é retorta, recipiente de gargalo longo e curvo
que serve para destilar. Que a retorta tenha pernas de mulher abatida sob o peso
da traição é uma das metamorfoses mais irónicas e ferozes de Isabel.
8. 2004: O Universo dos sonhos: escultura. Galeria
São Mamede, Lisboa.
9. Crône é uma comuna francesa
na Ile-de-France, a 18 km a sudeste de Paris. Para o sul, Crône compartilha a sua
fronteira com a cidade de Montgeron, o curso da ribeira Yerres fazendo o limite
entre as duas cidades que guardam ainda, surpreendentemente, um aspecto rural de
“vieille France”.
10. Os sinónimos poderiam ser: reservada, simples, modesta,
que sabe guardar um segredo. Aliás, esta é também a imagem de Isabel que ficou na
memória da sua amiga Helena Castro que a conheceu quando tinha 18 anos mais ou menos:
“Lembro-me dela acabada
de chegar da viagem Paris/Lisboa, de moto. Foi o meu primeiro encontro com a Isabel.
Em 1954? Ou1955? Não me lembro. Para mim a Isabel parecia um ser vindo de outro
planeta ou antes caminhando para lá no seu fato-macaco branco e o seu capacete preto
de motard. Pujante de força. É a primeira imagem que guardo dela. É interessante
que se ela era um ser tão vigoroso, por outro era também extremamente delicada.
Essa característica, para mim, foi-se acentuando ao longo dos anos.”
11.
Expressão corrente entre gente que faz jardinagem; significa pessoa que tudo o que
planta nasce e cresce.
12.
Faz parte do seu livro Perché leggere i classici,
de 1995.
13.
Comentário feito na sua exposição de Famalicão.
14. Ver “Chanson d’ami – Cantiga de amigo”, no Livre du Tigre, XIV: cujo início é: “Ah Dieu, si mon seigneur tigre savait/ comme le temps est long sans lui,/
viendra-t-il?”
15.
Poema XXVIII, Livre du Tigre, p. 164 –
165.
16.
É um outro aspecto que a aproxima de Borges: querer/sonhar ser judeu em imaginação.
17. Ver,
por exemplo, “Genèse XXII, 9-18” (in Le Livre
du Tigre, p. 116); poema XXVI: “Moi, le
Seigneur Tigre,/grand chasseur devant l’Eternel” (ibid., p. 158); “La Bibliothèque”,
in Le Messager des songes, p. 174, poema
dedicado justamente a Borges.
18. “Gente
da nação” é a denominação tradicional, em Portugal e no Brasil, dos cristãos-novos
e marranos.
19.
O poema tem uma excelente tradução em português, assinada por Vítor Castro, p. 186
20.
O poema IV, “Un autre Voyage d’Alice de l’autre côté du miroir”, do volume Le Livre du Tigre, tem na página da direita
a seguinte frase: “ a autora considera o poema intraduzível”.
21. Fiz-lhe, a pedido do poeta,
editor e ensaísta brasileiro, Floriano Martins, as três perguntas canónicas sobre
a sua ligação ao Surrealismo; Isabel respondeu-as em francês que reproduzo, em anexo.
22. Proibida de escrever em
português pela mãe, Isabel toma o atalho, mais tarde, de escrever em francês, este
tornado, segundo Glissant, “langue du Détour”. A censura “introjectada” desde cedo é muito mais forte
na língua materna. De forma reveladora, a última coisa que se consegue fazer na
língua do Outro são as contas (cálculo mental de somar e subtrair, por exemplo)
e as preces aprendidas no colo da mãe. Para um falante nativo do português é muito
mais difícil somar quatre-vingt-treize plus
soixante-dix-huit, do que somar noventa e três mais setenta e oito.
23. A violência gratuita da
queima anual dos carros na noite do Ano Novo, o rasto de destruição anárquica da
passagem dos Black-blocs e dos gilets-jaunes, os atentados antissemitas,
as incivilidades repetidas nos transportes públicos, a inédita agressividade de
desconhecidos nas ruas tudo isso inquieta Isabel e deixa-a indignada.
24. Emilienne Paoli descende de
Pascal Paoli (Morosaglia, 1725 – Londres, 1807). Aliás, na porta do atelier-escritório
de Isabel, um mapa antigo da Córsega, recorda a sua origem. Sobre uma mesa que dá
para o pequeno jardim, um livro recente de Michel Vergé-Franceschi, Pascal Paoli, un Corse des Lumières, estuda
a figura pouco conhecida em França e em Portugal, de Pasquale Paoli, herói
corso do século XVIII. Opondo-se à causa francesa e chefe de um Estado Corso que
existiu de 1755 a 1769, é uma personagem complexa e admirada no mundo anglo-saxão. É o antepassado dos
nacionalistas e independentistas.
25. A descoberta, ou invenção,
data de outubro de 1920, no Lot, região da Occitânia, no sul da França.
26. Da
outra casa, a da infância feliz, só ficou o tema da balada de Villon, “mais où sont les neiges d’antan”: “Le lieu
qui n’est plus” (in Poesia, p. 208 – 211):
“Pinède, où est la vieille dame/ qui racontait
à sa petite fille/des histoires de fantômes? Por outro lado, a “pinède” de Isabel traz a marca da canção
de D. Dinis, “Ai flores, ai flores do verde
pino/ se sabedes novas do meu amigo”.
27. Traduzir é trair ou fazer
o desvio possível: matelot, em francês,
difere de marin, não corresponde exatamente
a marinheiro: é o homem de uma equipagem e o termo saiu da marinha à vela, uma vez
que, etimologicamente, matelot é o homem
do mastro (le mât). Haveria outra solução,
- marujo -, que, em português, não é o homem do mastro mas o nome do calafate (o
operário naval que veda com estopa de algodão e alcatrão os espaços entre as tábuas
com que eram feitos os barcos. O calafate trabalha para impedir que a água se infiltre
e o navio possa inundar ou afundar).
Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 150
| Fevereiro de 2020
Artista convidado:
Daniel Cotrina Rowe (Peru, 1966)
editor geral
| FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor assistente
| MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo &
design | FLORIANO MARTINS
revisão de
textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
ARC Edições © 2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário