quarta-feira, 9 de setembro de 2020

FLORIANO MARTINS | Fernando Arrabal e os mitos impossíveis

 


Na mais recente edição do boletim Pasco Bexiga, encontrei uma nota acerca do Surrealismo que gostaria aqui de reproduzir. Seu título já anunciava o caráter insólito da mesma: O SURREALISMO SEGUNDO DOC FLOYD, rapidamente. Vamos à leitura:

 

Ao ser indagada sobre qual a melhor definição do Surrealismo a bióloga Lavínia Patronauta o equiparou a uma pérola estrábica que olha em mil direções. E prosseguiu: Era preciso iluminar os ângulos porosos da realidade e o movimento até que encharcou alguns deles de uma luz líquida que para muitos foi a provocadora da maior confusão possível. Havia nitidamente a urgência em mudar os cantos de cisne da realidade, porém o Surrealismo quis fazê-lo seguindo a receita de seu papa negro, inventor do ritmo sem música. Mesmo aqueles artistas que alcançaram uma maior sintonia com o público, logo foram descartados pelo Janelão escancarado da Promenade. A realidade então foi escoando como o capítulo mal escrito de uma novela, cuja entrada no café também estava barrada. Os sonhos mantinham sua ladainha irreverente, bimbalhando os traumas pescados e catalogados por Freud. Jung ficou de fora, interditado, e Rabelais foi apagado do panteão, esquecendo-se que, ao lado de Lautréamont, certamente até hoje planariam no céu das referências mais valiosas do movimento.

O centro cirúrgico em que se acasalavam guarda-chuvas e máquinas de costura tornou-se oratório de queixas veladas com respeito ao Breton que se excedia em lapidar dogmas. Foi então que Aderbal Larousse pôs em discussão o estado de ânimo do qual se derivaria o funcionamento real do pensamento. O verbete foi escrito de modo a causar indigestão à razão, à estética e à moral. Tudo parecia fluir a caminho do mar nesse rio absoluto do Surrealismo. Porém logo nos deparamos com duas incontinências, de um lado a razão e a moral foram reincorporadas na defesa de uma ideologia marxista e no caudal de preconceitos destilados na cozinha do café onde o grupo se reunia, e, de outro, a estética assumiu seu lugar central na explosão de estilos e incorporações de técnicas e demais truques de linguagem.

Nada disto, evidentemente, empobreceria o Surrealismo, não fosse a cristalização de alguns equívocos, que passaram a ter peso de sacramento. Por sorte muitos, espalhados pelo mundo, entenderam que a melhor chave para a compreensão do Surrealismo estava no que Enrique Molina definiu como um humanismo poético. E acertou também Antonin Artaud ao dizer que o Surrealismo era antes de tudo um estado de ânimo, muito embora o estado de ânimo de muitos dos integrantes do movimento jamais tenha sido surrealista em essência.

 

Enquanto eu lia pude perceber os esgares no rosto de Laurentino Dángeles, dramaturgo cearense que há décadas reside em João Pessoa, onde fundou o Teatro das Catacumbas. Laurentino logo me indagou se esta dura escovada nos pelos do Surrealismo não era algo que poderia se estender a outros afluentes do caudaloso rio das vanguardas, e se acaso tudo não poderia ser melhor compreendido se observássemos a destemperança com que passou a transitar entre nós o conceito de mito, a ele incorporando uma representação carnal. É verdade que os verdadeiros mitos são narrativas oriundas da tradição oral que assumiram um espírito com veemência suficiente para atravessar os anos impondo uma verdade quase de todo inquestionável. Folclores, lendas, cosmogonias, aí estão os mitos essenciais da humanidade. Neste caso, sim, é que poderíamos falar de Surrealismo como um dos mitos fundadores da Modernidade. E tenho que concordar com Laurentino Dángeles quando me sugere que eu deveria estabelecer mitos paralelos ao Surrealismo e dar-lhes igual escovada.

Identificado em geral como nascido a partir de 1924, ano da publicação de seu primeiro manifesto, o Surrealismo já estava em gestação desde 1919, e se em algo se confunde com o movimento Dadá, isto se dá unicamente pela coincidência de alguns de seus integrantes, a começar pelo próprio Breton. Já a Patafísica, que vem de Alfred Jarry e seu Milagre do Santo Agachado, atravessou a primeira metade do século passado até que em 1948 é fundado o Colégio da Patafísica. A evocação das soluções imaginárias, portanto, de algum modo permite os teares em que foram criados Dadá, Surrealismo e Pânico. Até mesmo o Creacionismo, de Vicente Huidobro, poderia ao menos esboçar um gesto de gratidão. Jarry dizia se tratar de uma questão de fome, era sua metáfora cabível para o modo como o homem foi aos poucos se transformando em semideus e depois em mito. Dizia ele que a fome faz soar nos ouvidos vazios, loucos e vazios, seus zumbidos. Anos depois de atuação do Surrealismo, e sua defesa do amor, da poesia e da liberdade, Tristan Tzara, um dos criadores do movimento Dadá, chegou a indagar em que medida o Surrealismo foi capaz de responder à sua tese fundamental: a libertação do homem. Tzara insistia que a cultura, para não ser estacionária ou regressiva, deve ser dirigida para uma finalidade que é a libertação do homem.

As evidências históricas foram atropelando esses mitos modernos, de tal modo que seus conceitos foram desfigurados ou esquecidos. Dadá era uma casa de loucos; Surrealismo se tornou achincalhe ou conduta tresloucada; o Creacionismo jamais ultrapassou o cercado literário; a Patafísica foi acusada de atividades clandestinas intangíveis… Em seu lugar ocasionalmente nos referimos a seus criadores como os mitos representativos das vanguardas: Tzara, Breton, Jarry, Huidobro… Um verdadeiro absurdo, me interrompeu Laurentino. Interrupção providencial, porque nos deu um tombo e juntos caímos no proscênio do teatro moderno. Ali estava a profunda relação, o rio subterrâneo, o tear de vasos comunicantes, da essência da Modernidade: o teatro. Sendo este compreendido não apenas como o palco e a plateia, mas sim a própria obra. Ionesco defendia que o indivíduo é universal, o grupo não tem mais do que uma certa generalidade limitada. Graças a esta percepção é que podemos refletir sobre os dogmas criados no coração desses mitos modernos.

O criador do Teatro do Absurdo também chamou a atenção para o fato de que as ideologias são geralmente álibis e dissimulam, voluntariamente, coisa bem diferente da que elas proclamam. De que modo isto ocorreu ou não com as nossas referências culturais é algo que ainda estamos avaliando. Laurentino não chega propriamente a me contradizer, porém indaga com veemência pelo teatro. Ora, o teatro foi a fiação mais sólida que reuniu todos esses movimentos. Se Breton não tinha apreço pelo teatro, isto não impediu que Antonin Artaud se destacasse como um dos nomes centrais do Surrealismo e do teatro contemporâneo. Outro nome que se tornou imperativo, o espanhol Fernando Arrabal, integrou o grupo surrealista, antes de se afastar para criar seu próprio movimento, Pânico, juntamente com Alejandro Jodorowsky e Roland Topor.

Arrabal sempre foi um pródigo companheiro de lutas de seus pares. Ao jogar xadrez com Tristan Tzara ou tamborilar sobre o dorso do acaso, foi mesclando as seivas da ciência, da filosofia, da poesia, do caos e da confusão. Logo percebeu que o bastão ditatorial de Breton não era lugar para ele e que a criação só se legitimava no interior de uma ruptura, ausência total do claustro territorial. Laurentino então me indagou sobre as relações de Arrabal com os mitos de ocasião e quais teriam sido as suas influências. Ora, meu caro, Arrabal certamente concordaria com Ionesco quando este nega a existência de influências. Dizia o pastor de rinocerontes: As coisas simplesmente estão lá. Somos vários a reagir de um mesmo modo. Somos ao mesmo tempo livres e sujeitos a um determinismo.

Laurentino calou-se quando eu lhe disse que mesmo o absurdo preconizado por Ionesco não abria mão de uma lógica. Isto que muitos surrealistas não entenderam e até ajudaram a ampliar a bagunça conceitual: os sonhos não são uma rejeição da vigília, e sim seu complemento. Há tanto uma lógica nas coisas essenciais, por mais aparentemente embaralhadas, como uma solução para todas as coisas imaginárias. Fernando Arrabal compreendeu isto como poucos. Conversar com ele é algo tão revelador que o próprio Belzebu tratou de elogiar seu interlocutor em um inesquecível encontro registrado na Agulha Revista de Cultura, quando este lhe indagou sobre o que eventualmente mudaria no movimento Pânico e Arrabal tratou de aclarar: A samaritana pânica disse a Jó: A quem Deus nada deu, nada pode tirar. O Diabo não escondeu sua satisfação quando, ao perguntar a Arrabal sobre qual seria seu lema, este lhe respondeu que mudava de lema a cada instante e que, naquele momento, criava brincando de ser Deus e por vezes o conseguia. E quando Belzebu recordou as palavras de um jornalista do New York Times que dissera que Arrabal era o único sobrevivente dos três avatares da Modernidade – Surrealismo, Patafísica, Pânico – o dramaturgo espanhol tratou de ponderar: No grupo surrealista fiquei apenas três anos (com presença diária). Nem mesmo um milênio.


Boa síntese dos postulados do movimento Pânico encontramos em um ensaio de Luis Fernando Cuartas, ao dizer que os três escudeiros do deus Pã amavam o ambíguo, o inusitado, uma certa ingenuidade entre o perverso e o cândido, como se não houvesse travessura mórbida, nem armadilhas de ocultação, eram abertos, austeros, não manejavam um discurso encapsulado entre seus atos, dirigiam-se a eles breves e cruelmente, diretos e mordazes. Tal atrevimento era um indisfarçável convite a afinidades de todas as partes por onde passavam. Devo confessar que a simpatia do Diabo se reproduziu também em mim, desde meu primeiro encontro com Arrabal, o gesto pleno com que recebe a todos quantos queiram dele se aproximar. Logo no início de nosso diálogo ele me disse e o reproduzo sem o menor prurido: Tenho imerecida sorte de que você e sua prestigiosa revista se interessem por mim. Como tive a sorte de ter tratado os seres singulares da minha época. Foi tão fácil conhecê-los! Tão acessível e natural para falar com eles sobre o essencial! E tive a sorte de todos eles me darem a honra [em uma ocasião sempre imprevisível: quando deixaram de se proteger com suas habituais guardas e proteções] de me dar a felicidade espiritual/intelectual de ouvi-los expor e se expor. Eu diria que tenho uma amante apaixonada que está sempre à minha espera e que nunca faz nada sistematicamente: e que tenta me mostrar que só se pode crescer com o suor do silêncio ou do repúdio. Como se aquela amante fosse um tatu com doze cintos apertados. Este é um modo belo de abraçar uma conversa.

A partir daí falamos de seus dias surrealistas, das montagens de suas obras, em especial o trabalho de Victor García, da deslumbrante ineficácia e insólita atualidade da poesia, das inesgotáveis formas de maniqueísmo que caracterizam a espécie humana e a transcendência do Pânico. Laurentino estava quieto há muito tempo, certamente procurando uma brecha por onde atear alguma queimada. Estava ali, justo quando falei em transcendência, e bradou que a única proeminência que restava ao homem era a de sua maldade incondicional, que a arte não podia mais salvar o mundo – isto se algum dia o fez – simplesmente porque não havia mais o que ser salvo. E indagou se a criação de um teatro da maldade acaso não seria uma última tentativa de varrer do palco a crueldade do mundo. Defendia combativamente que o teatro, como a verdadeira mãe do cinema, deveria agora desempenhar o papel da madrasta horripilante de tanta anarquia de butique, de tanta fraude narrativa que tomou conta de nosso tempo. Pensei em indagar isto a Fernando Arrabal em nosso segundo encontro, mas logo me veio à mente o Doutor Faustroll, quando este me disse que a ideia de verdade é a mais imaginária de todas as soluções.

Ao caminhar com Arrabal preferi abordar um tema que poderia significar melhor combustível para combater o armário de fundo falso de todas as crises. Algo que me preocupa na alteridade criativa é se as vozes que incorporamos são diferentes daquilo que somos ou a soma de tudo o que carregamos dentro. São elas a nossa percepção da realidade ou a realidade múltipla de nos reconhecermos no nosso ser? Você pensa sobre isso quando está tecendo seus personagens? Arrabal então me respondeu: O próprio Heisenberg não tinha certeza de que o princípio da incerteza estava totalmente em conformidade com o teorema da incompletude de Gödel. Beckett e eu ficamos surpresos com a chegada de Susana com o livro de Martin Esslin que ela pegara nos Correios e em que ele e eu, entre outros, estávamos na capa: Teatro do absurdo. Samuel Beckett disse distraidamente enquanto pensava em sua jogada de xadrez: Teatro do absurdo, que absurdo! É engraçado que meu matemático favorito, Kurt Gödel, se chamasse ninguém menos que GOD & EL. E que ele não acreditasse totalmente nem na existência de Deus nem na de Pã e ​​ainda assim acreditava, de joelhos, em anjos, fantasmas e o diabo. Como te entendo!

Ali estávamos imersos uma vez mais na necessária dilatação de uma extravagância. Não havia outro modo de seguir vivendo senão a todo instante trazendo a morte para o centro do palco. Único mito redivivo? A morte lendária e a morte real. No mesmo espetáculo em que o sonho não se separa da vigília ou o bem do mal. Havíamos esquecido Huidobro que em um poema nos disse que os quatro pontos cardeais são três: norte e sul. O criador do Creacionismo, que tanta ênfase pôs no lema de que a primeira condição do poeta é criar, a segunda criar e a terceira criar, esse estado latente que expressa a iluminação do mundo, certamente teria sentado a divertir-se em uma mesa com Fernando Arrabal, no que pese a imprevisibilidade do ego do chileno. De qualquer modo reproduzo aqui algo que escrevi em um ensaio sobre Vicente Huidobro: O século XX foi pródigo em estabelecer uma voragem suicida entre tradição e vanguarda. Perdeu sentido a ideia renascentista da soma e ganhou recurso extra a fantasia da exclusão. Com isto a fertilidade das vanguardas acabou se resumindo a uma fatalidade excludente.


Gostaria de ler aqui um texto de Fernando Arrabal intensamente possuído pela clareza magnética e ao mesmo tempo enigmática que marca a sua vida. Fernando consulta a eternidade e tenta lhe dizer que o mais importante – e aqui entro com esta ideia brilhante de Milan Kundera, de quem ele sempre se lembra – é manter a consciência da continuidade acesa, isso mesmo, o diálogo perene com a determinação de uma permanente viagem. A jornada sem fim de Fernando Arrabal é uma revolução permanente, o desenvolvimento contínuo de uma visão de mundo que ele destinou para a perpetuidade da criação. Ele é um homem que cria constantemente, este é um estado natural de sua pessoa, como se fosse seu próprio alento. Na verdade, o pulmão é o magnífico ninho da criação, a magia da matemática de funcionamento desse órgão e sua permanência vital na existência humana. É por isso que este imenso poeta disse com incansável convicção que o universo nada mais é do que um confuso florilégio de partículas elementares.

Com a força de uma piada, toda a realidade se desfaz, como uma pedra sangrando ou talvez como os metais secretos de uma nuvem. A realidade alcançada por Fernando Arrabal o felicita por ter percebido que ela é feita de descobertas, que não cessa, que é a mesma deusa maia que fertilizou a espiritualidade das dúvidas nos homens. Uma das razões da grandeza da obra de Fernando Arrabal reside na multiplicidade transbordante de seus sentidos, que tem buscado as artes visuais dos argumentos, o som dos silêncios dançantes, o sabor das mil fomes que nos mantêm vivos. Arrabal e seus personagens banhados nas águas do paradoxo, Arrabal e suas colagens satíricas, Arrabal e seus óculos com olhos infinitos, Arrabal e suas entrevistas carregadas de força devastadora… São os fios de sua imaginação, a flutuação de suas verdades inspiradas e que se sabe não são permanentes. Portanto, tempero esta nossa conversa com as vozes decifradas na voz de Fernando Arrabal, sua múltipla maneira de dizer o quanto ama a vida. O texto, de 1997, se chama Beber em caveiras.

 

Quando escrevo, meu corpo desliza como uma gaivota que sobe na brisa e treme de prazer ... ou de susto! Durante a respiração, imagino um deus com os deuses do Olimpo e um prisioneiro aterrorizado em seu calabouço das trevas.

Quando a beleza ou o horror são as últimas expressões da verdade, as aventuras iconoclastas me seduzem. Mesmo que a vida passe diante de mim, como um riacho em uma noite sombria e sem nuvens.

Meu corpo me oprime. Eu ficaria feliz em despejá-lo em um depósito de esterco. E ainda assim escrevo sob os ditames de sua miséria e seu frenesi animal. Mas também ouvindo minhas memórias, minha angústia, minha esperança louca e minha desesperança sã. Se a minha existência fosse tão bela quanto supérflua, o teatro seria um testemunho espetacular da desgraça do ser humano e da graça das coisas.

No século de Péricles, o autor, para representar a realidade da tragédia humana, não agiu como Parrhasius. O pintor grego torturou seus escravos até a morte para usá-los como modelos da realidade da agonia. Vinte e quatro séculos depois, Bouguereau construiu um carrossel em seu jardim para pintar o movimento real de seus cavalos. Como se substância e forma, espírito e ilusão estivessem teatralmente unidos para formar uma única entidade.

O culto aos mortos no mundo latino criou as imagos, moldes de cera ou argila feitos por escultores para reproduzir as cabeças dos desaparecidos. Eles os usavam (trancados em armários) como fonte de inspiração.

Outra foi a fonte de inspiração de Pirandello. O autor conta que uma mulher em luto severo o visitou e o inspirou quando ele escreveu teatro: fantasia. Outra mulher vem me ver vestida com as cores da ciência, da filosofia, da rebeldia, do humor, do sofrimento, do amor: é a imaginação, a arte de combinar memórias.

H. Wolf está certo quando diz que o anticonformismo encheu o poço de sua vida de alegria?

No entanto, com que espanto e descontentamento ouço (e ouvimos) as palavras provocação e escândalo infligidas ao meu (nosso) teatro! O mesmo espanto sentido pelos mais velhos: Beckett, Tzara, Breton, Michima, Adamov, Terayama, Ionesco etc. Todos nós nos sentamos no teatro de joelhos, engolfados pelo mesmo desejo e pelo mesmo medo.

(Mas quão indecente e demagógico seria se eu aceitasse o título honroso que H. Wolf me dá precisamente como um dramaturgo perseguido: minhas peças, logo depois de escrevê-las, são editadas e encenadas aqui e ali, sem exceções além das conhecidas).

Até 1975, o poder cultural (como Calaferte o chamou) era tão tocante e pedestre! Ele usou e abusou das duas palavras, provocação e escândalo. Era um álibi, tão curto! Para vetar ou acabar. Hoje, outros poderes (menos rudes) usam, para surpresa dos cândidos, as mesmas palavras. Com que fantasmagoria penetra a quimera na voracidade da intolerância!

A palavra grega skándalon significa armadilha na qual se cai. Nenhuma linha, obviamente, eu escrevi (ou escrevo) com tão pouca intenção. A inspiração é um buraco negro preso no espaço, e também a seiva que sobe dos pés ao topo da sequoia.

Mas o …autor não vive apenas de inspiração. Há trinta anos, Vicente Aleixandre percebeu que o conhecimento com que se contribui está tingido de uma luz moral que está na própria questão da arte de cada um.

Às vezes, os poderes e suas instituições recebem meu teatro como socos no estômago (disse Felix Guattari). Mas a Zebra do Zaire morre com suas listras e a borboleta Vanessa com suas pintas. Não me sinto capaz de mudar, de me aprimorar. Eu nem propus.

Aristóteles e Platão, Confúcio e Buda, já compartilharam a evidência salomônica de que não há nada de novo sob as estrelas. Em meio às trevas, creio vislumbrar, porém, o renascimento filosófico, poético, científico… e teatral! É uma miragem?

A mecânica quântica, a matemática fractal, a teoria dos motivos, a biologia molecular… ou o teatro de hoje propõem um conceito formidável do universo! Formidável em todos os sentidos da palavra: incrível, muito grande, extraordinário… mas também, como indica a raiz latina da palavra (formidabilis): muito assustador… causando medo.


Minhas peças me assustam ao alterar o princípio de causalidade. Elas me fazem… sua própria criação, como no damasco o caroço gera vida.

Meu teatro é o reflexo das vicissitudes do minúsculo grupo que me rodeia e da história da Humanidade. Eu só posso beber em caveiras. Mas toda vez que começo um trabalho volto para a terra virgem e para o momento maravilhoso da primeira vez.

 

Diante deste texto de Fernando Arrabal, Laurentino Dángeles ficou completamente sem palavras. Arrabal reafirmava o que Ionesco já havia deixado claro, e que todo grande criador o atesta sem pestanejar, que a criação é a expressão de uma época na exata proporção em que também expressa a universalidade. Mas também aí havia um paradoxo, apontado por Ionesco: O indivíduo é universal, o grupo não tem mais do que uma certa generalidade limitada. De volta à intransigente defesa de Vicente Huidobro: criar e criar e criar, sempre, a despeito de qualquer truque do indivíduo ou da universalidade. Por isto toda criação é real, por mais que mergulhe no êxtase do inconsciente, ela expressa uma realidade que é ao mesmo tempo verdadeira e falsa. Sonho e desejo, fantasia e memória, são todos estes elementos modos como a realidade se movimenta dentro de nós. Recorro uma vez mais a Ionesco: Se o teatro ou outro sistema de expressão nos ajuda a tomar consciência da realidade, é porque a realidade do imaginário é mais válida, mais viva, do que a realidade cotidiana. Laurentino teria agora que aceitar que não é a verdade que torna miserável o nosso sentido de racionalidade, e sim o desprezo que somos levados a sentir pelo irracional. A arte só existe na condição de ser uma extravagância, o que possui uma espessura imaginária muito além do roteiro utilitário de objetivo e subjetivo.

Se o teatro de Fernando Arrabal expressa uma inesgotável oposição, esta não pode ser limitada a um ambiente político e social. Mesmo que trate com as linhas de grupos e estratificações, como símbolos do oprimido e da opressão, seus personagens constantemente flertam com os riscos da imprecisão, em grande parte pelo modo como humor e ironia injetam em cada argumento sua dose subliminar de incongruência. Este exercício desconcertante de um refinado sarcasmo faz com que Arrabal se aproprie das linhas mais tensas e poéticas dos movimentos por ele de algum modo frequentado, uns mais, outros menos: Patafísica, Dadá, Surrealismo, Pânico, Absurdo… Uma química eclética que rejeita quaisquer etiquetas. A realidade condicional se enrubesce diante de seu saudável inconformismo. Cobra importância compreender que não há devaneio ou falta de lógica na obra de Arrabal, mas sim a construção de uma lógica singular, como bem salienta Francisco Torres Monreal, no estudo introdutório a seu Teatro Completo: Em Arrabal, o mundo exterior não entra em cena para convencer racionalmente os personagens. Sua missão, inclusive desde a ausência, é, pura e simplesmente, a de destruí-los com a morte, a de negar-lhes todo esforço de sobrevivência. Com isto cabe reprisar a ausência total de influências na obra de Fernando Arrabal. Os seus personagens vão se fazendo e fortalecendo na medida em que se escutam entre si e esboçam uma nova perspectiva da realidade. Melhor dizendo, perspectiva de sua realidade própria.

Sim, eu compreendo muito bem essa voragem de intenções que testemunha o nascimento em plena cena dos personagens desse teatro, insiste Laurentino, calmamente. Mas não convém, meu caro, tomar essa trilha como sendo a única. Se os personagens em Arrabal podem ser identificados por sua aparente fragilidade racional, seu quase nenhum apego à realidade, isto se dá como um jogo em que o cotidiano, em sua versão mais destemperada, mais inverossímil, constitui a força motriz de recuperação do ser. Da simbologia do ciúme ao humor ilógico de certas premissas ideológicas, do risco na excessiva nudez do palco ao plano tragicômico evocado pela força dos argumentos, Arrabal desenha um roteiro infinito de contrapontos encarnados nos reclames mais vulgares da aventura humana. Sua verdade – até onde o conceito pode permitir uma aproximação de sua poética – se encontra nas frestas de uma dissimulação permanente. O eu não sabe o que é o outro até que esbarre em sua sombra. Daí que seus pontos, argumentos, personagens, mais se assemelhem com réplicas de uma realidade que ainda não compreendemos de todo. Enfim, como ele próprio costuma dizer: Nada seria certo se não fosse confuso.

Se é verdade que sua obra é fruto de uma alquimia perfeita entre biografia e filosofia – não à toa sua autobiografia por vezes nos parece uma novela fantástica, porque assim o tem sido em igualdade de forças sua vida e seu pensamento –, é também verdade que tem pago um preço altíssimo pela intensidade dessa vertente alquímica. Mesmo assim, a despeito da cegueira da academia sueca em relação à sua obra, Fernando Arrabal tem imensa aclamação popular e suas peças continuam sendo montadas em vários países. O que dizer deste malparido século XXI? Vivemos em um mundo repleto de lacunas e de certa forma orgulhoso delas. De que outro modo entender que até o momento o último sobrevivente das vanguardas não tenha recebido o Nobel de literatura? Mais do que apenas a obra, a grandeza de Fernando Arrabal radica em haver tornado realidade aquele fulgor imaginado pelo Surrealismo, onde vida e obra se fundem ao ponto de ser uma só coisa, graças à qual é possível alcançar tudo. Chegamos assim até este ponto final, onde ainda é possível, acima de todos os mitos impossíveis da Modernidade, evocar aquele humanismo poético defendido pelo poeta argentino Enrique Molina, e fazê-lo de mãos dadas com a genialidade e altruísmo de Fernando Arrabal.

Abraxas 


 
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Agulha Revista de Cultura

UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO

Número 157 | Setembro de 2020

Artista convidado: Fernando Arrabal [dibujos] (Espanha, 1932)

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