A primeira vez que li Fernando Arrabal, foi em 1981, quando morava na capital das Montanhas Gerais que, devido ao momento político do país, nem sempre soava um Belo Horizonte. Estávamos nas ruas clamando por Eleições Diretas. Ora presos e espancados pela polícia e prestando depoimentos aos órgãos da ditadura. Nesse momento, caiu em minhas mãos uma fotocópia de Fando e Lis. Eu tinha 22 anos e participava como ator do Grupo Teatral Contra Vento e Maré, na montagem de Um grito parado no ar, de Gianfrancesco Guarnieri.
Logo no início me encantei
com a peça Fando e Lis e pensei em montá-la,
mas eu não era diretor e o Contra Vento e Maré tinha outros projetos. A partir daí,
iniciei uma pesquisa sobre a obra de Fernando Arrabal, embora, paralelamente, eu
também já estava investigando sobre Antonin Artaud, sua poesia e seu Teatro da Crueldade.
Muitas coisas aconteceram
e continuei na pesquisa sobre a obra de Fernando Arrabal, em especial, sobre seu
teatro, embora somente muito tempo depois, em 1999, depois de fazer uma nova tradução
de Fando e Lis, acabei numa montagem com
o Grupo Tarahumaras. Depois, com o mesmo grupo, montei Cemitério de Automóveis, em 2010, e Carta de Amor (Como um suplício chinês), em 2014.
No meio do caminho, entre
essas montagens, diversas outras ações foram realizadas. A partir da montagem de
Fando e Lis, começamos a nos corresponder,
a princípio, pelos correios e, depois, por e-mail. Dele também traduzi muitas obras
e ministrei oficinas de dramaturgia, num projeto do Serviço Social Social do Comércio
– Sesc denominado “Leituras em Cena”, em 16 cidades de 12 estados do Brasil. As
peças dele com as quais trabalhei nas oficinas foram: Fando e Lis, Guernica,
Oração, A Bicicleta do Condenado, Árvore
de Guernica e Piquenique no Front. Depois das oficinas,
os grupos tinham compromisso de montar uma “leitura dramática” para a comunidade
de pelo três dessas obras como resultado do trabalho. Resumindo, no mínimo, foram
feitas, no total dessas cidades, 48 leituras dramatizadas da obra de Fernando Arrabal.
Dos estados onde realizei esse trabalho, foram Tocantins, Piauí, Amazonas, Bahia,
Paraná, Acre, Amapá, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Roraima e Rondônia,
nas cidades de Palmas-TO, Teresina-PI, Parnaiba-PI, Manaus-AM, Salvador-BA (Sesc
Pelourinho e Sesc Comércio), Ponta Grossa-PR, Paranavaí-PR, Paranaguá-PR, Foz do
Iguaçu-PR, Rio Branco-AC, Macapá-AP, São Luís-MA, Campo Grande-MS, Cuiabé-MT, Boa
Vista-RR e Porto Velho-RO.
Para revelar um pouco de minha história com Fernando
Arrabal, tanto a partir de sua obra quanto de nossa aproximação pessoal, devo informar
que sou o responsável pelos seus direitos
autorais no Brasil. Voltando um pouco no tempo, depois de eu ter feito o bacharelado
em filosofia e mestrado em estudos literários com o tema de Antonin Artaud resolvi,
no doutorado, escrever uma tese sobre Fernando Arrabal, entendendo que, de certa
forma, ele como alguém que participou do movimento surrealista, foi amigo de Marcel
Duchamp, Boris Vian e tantos outros, bem como criador do movimento pânico, juntamente
com Alejandro Jodorowsky e Roland Topor, pareceu-me uma espécie de “continuador”
da crueldade de Artaud e, num certo sentido, tenha realizado o que o autor de O teatro e seu duplo não conseguiu ou não
teve tempo e nem meios de colocar em prática.
Na verdade, eu e Fernando
Arrabal acabando nos tornando amigos. Envia-me e-mail quase todos os dias. Tenho
traduções e pequenos textos incluídos em algumas de suas obras, como a tradução
do poema Clitóris e uma defesa de Milan
Kundera proibido de falar em seu país. Eu o trouxe uma vez em Vitória, para fazer
uma palestra no Festival Nacional Cidade de Vitória e, depois, nos encontramos em
São Paulo, Salvador, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Fortaleza, Buenos Aires e Paris.
Em todos esses lugares, com exceção de Paris que fui receber um prêmio, fui o mediador
de suas palestras e, em Fortaleza, além de duas palestras, também realizamos juntos
oficinas de dramaturgia e uma mostra de sua obra cinematográfica.
Quando, em 2006, Arrabal veio
à Vitória, disse que me indicaria para ser um Auditor Real do Colégio de Patafísica
de Paris. Deu-me uma aula sobre o Colégio de Patafísica de Paris, inclusive, que
foi fundado em 1948, inspirado em Alfred Jarry, autor do termo patafísica que significa “ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções”. Depois,
numa de suas viagens ao Brasil, em Porto Alegre, em 2011, Arrabal me escreveu pedindo
que providenciasse uma ida nossa à casa de Oscar Nieymeyer porque o Collège de Pataphysique
de Paris tinha lhe incumbido de entregar um diploma da Ordem da Gidouille, nomeando-lhe
Batisseur d’Utopies (Construtor de Utopias).
Marquei com Niemeyer a nossa visita que aconteceu depois que viemos de Porto Alegre.
Desse encontro surgiu o livro
SKYLINE, editado por Juan Carlos Valera, no MENÚ – CUADERNOS DE POESÍA, com uma
tiragem de 15 exemplares invendáveis, do qual há um poema de Arrabal, um desenho
de Niemeyer. Daí me pediram a tradução do poema para o português para uma publicação
bilinque, bem como escrever um posfácio (também em espanhol e português). Na verdade,
fiquei com praticamente 70% do livro.
Depois disso, fui indicado para receber também o diploma de Commandeur Exquis. A primeira pessoa a receber esse diploma pelo Colégio de Patafísica foi Pablo Picasso, a segunda foi Louise de Bourgeois, a terceira, Oscar Niemeyer (que eu também fui entregar). Avaliado por Fernando Arrabal, Thieri Foulc, Paul Gayot, Umberto Eco e Dario Fo recebi o diploma de Commandeur Exquis como Tarahumara Voluntário, no ano de 2013, em Paris.
Agora, voltando ao tema das
montagens, encenar
uma obra de Fernando Arrabal, para além do prazer estético, significava mim uma
empreitada perigosa, considerando que, no processo de pesquisa, muitas das vezes,
nos apanhamos numa estrada sinuosa que se desenha num terreno baldio. A estrada
é sinuosa pelo fato de se construir no próprio ato da caminhada e o terreno é baldio
por ser repleto de obstáculos. Obstáculos estes que se dão como tal na medida em
que se desvelam, e também re-velam (velam outra vez), aquilo que momentaneamente
supomos ter des-coberto.
Por um lado, temos a questão histórica em que a guerra
civil espanhola perpassa sua espinha dorsal. Ao mesmo tempo, esse Arrabal nasceu
no continente africano, em Melilla, que o faz espanhol pelo fato de ser uma colônia
de Espanha em Marrocos. Mas ele se exila em Paris, onde produz praticamente a totalidade
de sua obra. Nesse sentido, trata-se de um desterrado, um homem que faz do não-lugar
(u-topos) o seu lugar.
Levando em conta a sua trajetória, tanto no sentido
cultural quanto artístico, sua obra ocupa espaço (e é ocupada a todo momento) nos
movimentos dadaísta, surrealista, postista, pânico e, conforme alguns críticos,
no absurdo. Desses movimentos, de certa forma, destaca-se o pânico, criado em Paris,
na década de 60, por Fernando Arrabal, juntamente com Alejandro Jodorowsky e Roland
Topor. Mas isso não vem muito ao caso se levarmos em conta que o pânico (do deus
grego Pan, da totalidade, onde se mistura o humor com o terror) se realiza de forma
mais contundente em sua obra cinematográfica.
Em Fernando Arrabal não há como confundir autor e obra,
ou seja, um e outro são o mesmo. Tampouco se pode rotulá-lo, pois sua obra tem influências
das artes plásticas, da patafísica (ciência das soluções imaginárias, conforme Alfred
Jarry), sem esquecer o xadrez, a física quântica, as matemáticas, os fractais, etc.
A linguagem em Fernando Arrabal é a simplicidade, o
olhar infantil sobre o mundo, no sentido da ingenuidade, onde a crueldade não diz
respeito à moral ou ao imoral. É uma leitura de que o ser humano faz o que faz pela
incapacidade de compreender o sentido da existência.
Eis aí o desafio para que surja um novo ator, que não
seja dramático, que não seja cômico, mas que experimente essa estranheza do homem
diante do lógico e do desconhecido.
Eu estava diante de tudo isso quando me propus a montar
Fando e Lis. Embora diante de todos esses
desafios, de certa forma, foi a direção mais tranquila que fiz de Fernando Arrabal.
Foi um trabalho de pesquisa que me pareceu um bom resultado, pois a peça me permitiu
passear na experiência que o Grupo Tarahumaras acumulara com as obras de Antonin
Artaud.
Na história de Fando
e Lis – uma peça em 5 quadros – o personagem Fando empurra a amada Lis, que
é paralítica, numa cadeira de rodas a caminho de Tar. Fando ama Lis, profundamente,
mas ao mesmo tempo ela o irrita por ser-lhe uma pesada carga. Mesmo assim, procura
diverti-la tocando em seu tambor a única coisa que sabe, a canção da pena. Os personagens
Fando e Lis encontram três senhores que carregam um guarda-chuva e que também estão
a caminho de Tar. Assim como Fando e Lis, parece quase impossível que estes senhores
encontrem seu destino, pois – em vez de chegarem a Tar – ficam sempre rodando em
torno do ponto de partida. Fando, muito orgulhoso, exibe a beleza de Lis aos três
senhores, levantando-lhe a saia para que eles vejam suas coxas e até convidando-os
a beijá-la. Apesar do amor que sente por Lis, Fando não consegue resistir à tentação
de ser cruel com ela. No quarto quadro, vamos saber que, para exibi-la aos três
senhores, Fando a deixou nua, ao relento, durante toda uma noite, com o que abalou
a sua saúde e, depois, acorrentou-a e colocou-lhe algemas para ver se ela era capaz
de arrastar-se como os outros. Fando espanca Lis até derrubá-la. Na queda, Lis quebra
o seu tambor. Furioso, ele a espanca até que ela perca os sentidos e, quando retornam
os três homens, a encontram morta.
A última cena nos mostra os três senhores de guarda-chuva a discutir confusamente, numa linguagem nonsense, o que aconteceu quando, de repente, Fando aparece com uma flor e um cachorro: ele havia prometido a Lis que, quando ela morresse, ele a visitaria em seu túmulo com uma flor e um cachorro. Os três senhores acompanham-no ao cemitério e, depois, os quatro vão tentar, novamente, encontrar o caminho de Tar.
O processo de montagem foi tranquilo e prazeroso, assim
como a estreia e fizemos uma agradável temporada em 1999, passando por diversos
teatros e realizamos grandes debates com o público.
Na montagem de O
Cemitério de Automóveis, por mais trabalhosa que tenha sido, também foi uma
oportunidade de grande aprendizado. Aliás, a peça é bem conhecida pela montagem
e direção do diretor argentino Victor García, em 1968. Esse também era um grande
desafio, considerando que a montagem de García tornou-se uma referência como divisor
de águas do teatro no Brasil. A nossa montagem, foi
uma parceria entre os Grupos Tarahumaras e Boiacá e, apesar de contemplada com o
Prêmio Miriam Muniz de Teatro (FUNARTE 2009), somente estreou em 2010, no Centro
Cultural Frei Civitella di Trento, Campo Grande, Cariacica-ES. Eu, além de tradutor,
fiz a direção e tive a honra de contar com a competente assistência de meu amigo,
artista plástico e dramaturgo Nysio Chrisóstomo, do Grupo Boiacá.
O Cemitério de Automóveis vem a ser uma versão muito peculiar da vida e paixão
de Cristo, a quem dará o nome de Emanú (com a supressão do sufixo “el”, que em hebreu
significa Deus, o autor expressa sua opção exclusiva pelo humano). A ação tem lugar
num espaço cênico enormemente sugestivo cuja decoração espetacular Arrabal introduz
no teatro as tendências materiais das artes plásticas. O mundo vem configurado por
um subúrbio de barracos e miséria, de luzes e sombras, representado por um amontoamento em
diversos níveis de carros queimados. Com a chegada de Emanú, que pretende, junto com Foder (Pedro) e Tope
(Judas) alegrar a vida dos pobres do cemitério, as relações se transtornam. O trio de instrumentistas de jazz, encabeçado por Emanú, que toca a trompete, aparece
como um elemento perturbador.
No processo de montagem, eu, Nysio Chrisóstomo e algumas pessoas do elenco
começamos a percorrer a Grande Vitória visitando cemitérios de automóveis, até que
encontramos o Ferro Velho Santa Clara, em Cariacica, no bairro Campo Grande. Quando
começamos a negociar alguns carros e peças de automóveis para construir o cenário,
descobrimos que, em frente ao ferro-velho havia um centro cultural desativado há
mais de três anos. Era o Centro Cultural Frei Civitella Di Trentro. Procuramos
a prefeitura e conseguimos uma parceria e nos foi cedido o espaço. Havia um teatro,
mas todo em ruinas, inclusive, sem iluminação, sonoplastia etc. Compramos uns seis
carros no Ferro Velho Santa Clara, um monte de peças, sucatas e pneus velhos. Depois,
fretamos um caminhão que foi levando toda essa parafernália para o Centro Cultural.
Foi uma festa e um escândalo para a vizinha a chegada desses carros e de toda a
bugiganga para a montagem da cenografia. Enfim, estava pronto o espetáculo e fizemos
uma temporada de três meses. O Grupo Tarahumaras, na época, comemorava seus 23 anos
de atividades e, para coroar nossa empreitada, o prefeito da cidade, Helder Salomão,
foi ao Centro Cultural Frei Civitella Di Trentro assistir ao espetáculo e, nesse
dia, assinou um termo de serviço para a reforma e restauração do espaço que até
hoje está funcionando a todo vapor.
Com essa experiência, pudemos ratificar a ideia de que toda obra de arte se pauta por códigos que lhe são próprios. Códigos estes que, apesar de distintos, podem até se dar como uma unidade no sentido da criação (poiesis) e daquilo que lhes confere o status de obra de arte. No caso do teatro, tanto na dramaturgia quanto na pesquisa de montagem e mise-en-scène (apresentação) parece impossível que se realize sem que se enquadre num modelo entendido a partir do conflito e da existência de personagens, sem falar nas estruturas do texto que geralmente se sustentam de ação central, carpintaria, prólogo, desenvolvimento da intriga, crise, clímax, epílogo, etc.
Isto posto, ao dirigir O Cemitério de Automóveis, fez-se imprescindível rever alguns conceitos,
considerando a linearidade do texto, a inexistência de “personagens” e a suposta
ausência do conflito. Foi uma montagem em que a encenação teve que tornar-se invisível
para que a peça se manifestasse, como um corte na realidade.
A outra montagem, foi do monólogo Carta de Amor (Como
um suplício chinês), que teve estreia e temporada na Academia de Letras de Vila
Velha e no Centro de Artes da UFES – Universidade Federal do Espírito Santo, em
2014, além de participar do Primeiro Encontro de Teatro
Latinoamericano, em San Bernardo, Santiago de Chile, em
2015.
Em alguns de nossos encontros, dentre eles, uma vez
em Salvador, outra em Buenos Aires, também em São Paulo e, ainda, em Paris, Arrabal
insistiu em me contar e recontar a gênese dessa obra. Ele disse que, em 1998, depois
de uma palestra que realizou em Jerusalém, conversava com Orna Porat, uma espécie
de diva do teatro local que, inclusive, havia sido laureada com o Prêmio Israel
de Teatro. Nessa conversa, a atriz revela que, por ser uma atriz anciã, não tinha
mais como atuar senão em papéis secundários ou terciários de avó, ou seja, não encontrava
nenhuma dramaturgia em que pudesse interpretar um papel interessante e escapar do
mero lugar de coadjuvante. Arrabal prometeu escrever-lhe uma peça em que ela pudesse
atuar como protagonista. Nesta mesma noite de dezembro de 1998, Arrabal foi para
o hotel e escreveu Carta de Amor (Como um suplício chinês).
Em Carta de amor (Como um suplício chinês), uma
mãe recebe uma carta de seu filho, do qual há muito não tem notícias, no dia de
seu aniversário. Estabelece-se um monólogo interior da mãe a partir de recordações
do tempo em que sua relação com o filho era idílica. Mas os conflitos bélicos e
suas consequências fizeram desse amor em verdadeiro “suplício chinês”. Arrabal transcende
a mera anedota e coloca em questão a crueldade e a penúria da Guerra Civil Espanhola.
Parecia que tudo estava dito e que poucas novidades ficavam por elucidar nesta história
desgraçada que uma mãe e um filho enfrentaram, durante décadas, espancados pela
madrasta história. A Carta de Amor parece mais um testamento de amor porque
atesta e publica a geografia de uma relação íntima. Neste sentido, a surpresa está
no fato de Arrabal (autor e filho) conceder à sua mãe a palavra que é dela e permitir
que soem as suas razões.
Atualmente, estou montando o espetáculo Oração, de Fernando
Arrabal e, novamente, experimentando a sensação de que se trata da primeira vez,
considerando que a obra desse sobrevivendo dos grandes avatares da modernidade,
protagonista do pânico e abençoado pelo deus Pan é, e sempre será, uma Caixa de
Pandora.
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Agulha Revista de Cultura
UMA AGULHA NO MUNDO INTEIRO
Número 158 | outubro de 2020
editor geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
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