O teatro é acima de tudo uma cerimônia, uma festa, da qual fazem parte o sagrado e o sacrilégio, o erotismo e o misticismo, a morte e a vida. Eu sonho com um teatro onde o humor e a poesia, a fascinação e o pânico serão apenas um. O rito teatral se transformará, portanto, em uma opera mundi, como os fantasmas de Don Quixote ou os pesadelos de Alice no País das Maravilhas.
FERNANDO ARRABAL
O Ano era 2010, e
depois de muitas experiências com texto O Grande Cerimonial, do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, chegávamos, se assim
pode-se dizer, a um resultado, que poderíamos compartilhar com o espectador em sessões
abertas nosso Cerimonial. Ao atravessarmos
a cena, o hibridismo cênico se tornaria matéria dos sonhos, e o pânico, permeado
de traços de surrealismos, expressionismo e nossa investida apaixonada pela aventura
arrabalesca, revelaria aquilo que estávamos vivendo há meses em sala de ensaio,
tão bem traçado nas linhas no texto de Fernando Arrabal.
Uma aventura de amor
e dor entre uma mãe e seu filho, meio cocho, meio quasímodo, o Casanova às avessas
de Arrabal, o filho que ama e chicoteia bonecas, preso num sótão, que se apaixona
pela menina do parque Sil, ou Lis, a mesma face em cores diferentes, em silabas
trocadas, para confundir e encantar. Arrabal, em sua sutiliza, em um quase conto
infantil, apresenta a Menina boneca, que abandona seu amante, o “Belo”, para fugir
com o cocho, num carrinho de bonecas, aceitando todo tipo de torturas em nome de
uma liberdade que só Fernand Arrabal poderia narrar.
Escrito em 1963,
O Grande Cerimonial narra
a história de Cavanosa, um Casanova às avessas, que todas as noites seduz uma mulher
e a leva a seu quarto, onde estabelece o cerimonial: um rito tresloucado de amor,
que não passa de um projeto, uma fantasia extraída de seus sonhos. O Cerimonial
acontece quando Cavanosa encontra a Mulher-menina, a pureza profana que com ele
irá desbravar o mundo. Uma história de amor às avessas, levada às últimas consequências.
Mas, antes de adentrar
o universo propriamente dito da encenação, que é o objeto deste artigo, é importante
dizer que meu encontro com o texto O
Grande Cerimonial aconteceu em 1993, quando ainda nos primeiros anos
da atividade teatral assisti a uma montagem no Festivale, em São José dos Campos,
São Paulo. Naquele ano eu estreara meses antes minha primeira direção, no teatro
amador, As desgraças de uma Criança, de Martins Pena.
Assistir aquele trabalho e conhecer aquele texto e autor,
naquele momento, abriu em meu coração a certeza de que era esse o ofício, o de encenador,
que eu queria encarar, e encontrar textos que me desafiassem, como O Grande Cerimonial. E lá se foram
dezessete anos até o ano de 2010, quando encenei o texto, já depois de várias direções
e encenações de tantos outros textos tão importantes e desafiadores quanto, que
me trouxeram estofo até o reencontro com a obra arrabalesca.
É fato que, durante todos estes anos, as vivências, estudos, experiencias, as conversas por longo período com o autor Fernando Arrabal e sua presença em São Paulo, em agosto de 2009, me trouxeram riquíssimos materiais para a construção de uma poética que, acredito, foi muito particular, íntima mesmo, um olhar que carregou em sua essência o amadurecimento do pensamento acerca do que poderia ser encenar uma das potentes obras das que escreve Fernando Arrabal.
Escolher adentar
o universo das personagens de Arrabal não é tarefa das mais fáceis, eu diria que
é uma aventura das mais prazerosas, mas também das mais desafiadoras para um encenador.
Descobrir esses universos submersos em camadas de sonhos, pesadelos, amores e desamores
do menino Arrabal, que vai tecendo na teia de suas tramas uma pouco da sua própria
história e de uma Espanha onde cresceu, colocando artisticamente em cada movimento
poético, surreal, esperpentico e pânico um pouco das histórias que um dia ele viu
e viveu.
Para construir O Grande Cerimonial partimos da frase
beckettiana “Nada a fazer”, primeira fala do texto Esperando Godot, de Samuel
Beckett, de 1953, detemo-nos sobre o texto e pensamos o que poderíamos descamar
daquela história tão repleta de significados.
A personagem a Mãe,
essa mãe dominadora, a grande a mãe, seria a madrasta história, seria sua mãe e
a história que perpassava a vida do próprio autor? A Espanha? A grande mãe arquetípica
dominando seus filhos e determinado seu começo meio e fim, aprisionando sonhos,
proibindo a poesia de viver, fuzilando poetas, para lembrar Federico Garcia Lorca,
enfim, O Grande Cerimonial
me levava para muitos caminhos, e quando pensava no nada a fazer, percebia que tinha
muito a dizer.
“Nada a fazer”, a partir desta colocação nos debruçamos sobre o texto O Grande Cerimonial para conceber o espetáculo a partir de uma investigação do teatro da Absurdidade e do Movimento Pânico, buscando revelar na cena um estado de paralisia dos seres, o inusitado da vida moderna, que vê sentido na futilidade das coisas, no tempo sem tempo, na violência exacerbada que é comercializada como bijuteria barata pelos manipuladores da massa.
Essa vertente teatral, que
desvelava o real como se fosse irreal, com forte ironia, intensificando bem as neuroses
e loucuras das personagens, que divulga o homem como um psicótico, um sofredor,
um ser que chega às últimas consequências, culminando sempre na revolução, no atrito,
na crise, na desgraça total ou na felicidade eterna, é o que nos levou a encenação
de O Grande Cerimonial, é
o que nos fez acreditar na importância de se montar Arrabal.
O que mais eu escutava das pessoas que assistiram à peça é que ela era densa, pesada, forte, angustiante e que o texto tinha momentos engraçados, e de fato, em algumas sessões, a plateia ria mesmo, era engraçado em alguns momentos, mas, para mim era um certo riso nervoso, porque toca diretamente em assuntos que as pessoas temem em falar. Não é possível pensar que A MÃE, a nossa mamãezinha querida, é uma bruxa dominadora, castradora, malvada, que quer comer o filho em todos os sentidos, desde o sexual até o antropofágico. Mas, para o pequenino Arrabal é assim, A MÃE não é doce, porque as mães querem os filhos para si.
Para além de tudo
que estava contido no subtexto, no segundo plano da obra que acredito apareceu com
potência na montagem, amplificado na encenação, O Grande
Cerimonial é um drama absurdo, no qual a gestualidade foi construída a partir
da experimentação livre dos atores no processo de ensaio, buscando sempre um gesto
não real, amplificado, grotesco. Este trabalho culminou na construção de uma partitura
física, corrigida e limpa pela direção, e ensaiada exaustivamente num processo de
aprimoramento necessário para a construção de um movimento expressionista, gerando
a estética final do espetáculo.
Procurei despertar no trabalho com os atores um estado absurdo, buscamos construir interpretações
fortes, trabalhadas numa partitura física que apresenta uma gestualidade bem definida
para ampliar as possibilidades de comunicação num espetáculo, onde o não olhar ampliava
a capacidade de ver de fato quem somos e para onde vamos. A ideia era apresentar
um trabalho onde intensidade,
verdade, delírio, loucura, confusão, amor, horror, terror estivessem em cena, acreditando
em cada respiração da história, mesmo sem relações de olhar e toque estabelecidas
dentro da concepção do jogo de cena dos atores.
A peça foi concebida como
um ritual proibido, uma cerimônia pânica, que mistura beleza e horror para aprofundar
as questões de um certo vazio da alma, desse pesadelo que é compartilhado pelo público,
é o absurdo que resiste a todas as questões existenciais; é o que fica depois de
perguntarmos qual o sentido da existência.
A encenação de O Grande Cerimonial, pela ótica da
absurdidade, trouxe à tona o desejo de ver, naquele momento de profundas transformações
no mundo, o que podemos fazer, quando não há “Nada a fazer” e ao mesmo tempo tudo.
O desejo era que o espetáculo
pudesse conduzir o público para dentro do clima de confusão, uma incursão pela alma
humana, levando o mesmo a um encontro com seus medos e angústias interiores, seus
fantasmas da infância, seu desejo reprimido, suas emoções e sentimentos, misturando
fantasia, realidade, lirismo e horror dentro de um Grande Cerimonial.
O desejo foi cumprindo, criamos um espetáculo que instigava, encantava, irritava, mexia com os espectadores em todos os sentidos, o riso nervoso estava presente, o pânico e a cumplicidade acontecia entre personagens e público, e o jogo de Xadrez a la Arrabal (para quem não sabe Fernando Arrabal é exímio jogador, domina como ninguém a arte do Xadrez), estava montado, com as peças todas colocadas e a ponto de um Xeque-mate
Diante de tudo o que foi
colocado, o que sinto, e que mais me interessa em toda obra de Fernando Arrabal,
é o amor tresloucado de suas personagens, há um jeito único de existir e coexistir
entre elas. Há uma forma de se olharem, de como se tocam, como se amam ou se odeiam.
Sinto que ainda há muito a se revelar nas encenações de textos deste autor, até
mesmo porque muitas obras permanecem inéditas, e mesmo as que sempre são montadas
como Fando e Lis ou O Arquiteto e o Imperador da Assíria, por exemplo, nunca se
esgotam em suas propostas, é sempre surpreendente o que se vê.
Por fim, o que importa
é que contamos com muita paixão essa história de amor às avessas, nossa desconstrução
do belo, do Casanova, ressignificado na figura do Cavanosa. E como me disse Arrabal,
num café da manhã em agosto de 2009, em São Paulo, sobre Fando e Liz ser
seu Romeu e Julieta, aqui também Cavanosa, Sil ou Lis Sil, os amantes proibidos,
improváveis, que viajaram ao infinito em seu carrinho de criança, irão a Tar como
Fando e Lis. É como um conto de fadas às avessas, ou contado como deveria ser, já
que os contos guardam em si, nos seus subtextos, as verdades não reveladas, fantasiam
a realidade para aliviar o pesado da vida e tornar mais doce, ou falso, os dias.
O teatro que elaboramos
agora, nem moderno, nem de vanguarda, nem novo, nem absurdo, aspira somente ser
infinitamente livre e melhor. O teatro em todo seu esplendor é o espelho mais rico
de imagens sobre o qual pode se refletir a arte de hoje; ele é também prolongação
e sublimação de todas as artes.
FERNANDO ARRABAL
Ficha Técnica:
Texto: Fernando Arrabal
Tradução: Wilson
Coêlho
Direção: Reginaldo Nascimento
Elenco:
Alessandro Hernandez (Cavanosa)
Amália Pereira (Sil e Lis)
Deborah Scavone (Mãe)
Angelo Coimbra (Amante) e Alessandro Hanel (Amante na primeira temporada)
Cenário e sonoplastia: Reginaldo Nascimento
Figurino: Anelise
Drake e Reginaldo Nascimento
Iluminação: Vanderlei
Conte
Bonecas: Susy
Gheler
Montagem: Teatro
Kaus Cia Experimental
O espetáculo estreou em maio de 2010, no Teatro Augusta, sala Experimental, em São Paulo, SP. Ainda em 2010, participou dos Festivais de Teatro nas cidades de Presidente Prudente, São José dos Campos e Vitória. Em junho de 2011, fez temporada no Teatro de Arena Eugênio Kusnet, em São Paulo, Capital.
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